Muitos líderes cristãos têm talento inato e descobrem cedo na sua juventude que sentem vontade de ter iniciativas e de liderar um grupo. Eles têm ideias e planos de ação e não se envergonham de apresentá-los e defendê-los. Além disso, eles notam que os seus pares aceitam o seu papel de liderança, seja formalmente, elegendo-os a cargos de responsabilidade, ou informalmente, seguindo as sugestões e apoiando as iniciativas propostas. Esses líderes querem servir a Deus com o seu talento, mas existe uma lição que precisam aprender, para que possam melhor desempenhar o papel que Deus tem reservado para eles: a lição mais difícil — humildade.
Em qualquer atividade, seja profissional ou amadora, das ciências às artes, incluindo liderança secular ou eclesiástica, é preciso complementar o talento com treinamento específico. Os pastores recebem esse treinamento durante sua formação no Seminário. No caso de líderes leigos e leigas, os cursos de liderança, ocasionalmente organizados pelos distritos, são uma boa prática. Existem também bons livros sobre o assunto. Normalmente, esses cursos e livros enfatizam a compreensão profunda do Evangelho, comunhão intensa com Deus e treinamento nas características de um bom líder.
Se observarmos os líderes descritos na Bíblia, veremos que Deus, em muitos casos, informa-nos como eles foram treinados. Por exemplo, Moisés estudou na mais avançada universidade da história antiga, na casa real egípcia. Josué aprendeu de Moisés; e Eliseu, de Elias. Davi aprendeu, em sua casa, a confiar em Deus, sendo bisneto de Rute e Boaz, e foi treinado para liderança no exército de Saul (o primeiro exército regular da nação israelense). Pedro aprendeu do próprio Mestre dos mestres, enquanto Paulo aprendeu primeiro de Gamaliel e depois diretamente de Jesus. Outros, como Abraão e Jacó, não parecem ter tido treinamento formal, mas tinham um relacionamento pessoal com Deus e eram chefes de família e de muitos empregados. Em suma, também os grandes líderes do povo de Deus necessitaram de anos de treinamento, antes de poderem exercer plenamente o seu papel.
Apesar de todo este treinamento, existe uma tentação bem específica que afeta os líderes – e o inimigo sabe explorá-la muito bem. Abraão não conseguiu ficar completamente passivo, esperando a promessa de Deus, e tentou dar uma “mãozinha” no processo com ajuda da serva de Sara. Aos 17 anos, José, filho de Jacó, era ainda muito novo para liderar seus irmãos mais velhos, mas já mostrava sinais de arrogância ao delatar seus irmãos e ao se gabar dos sonhos que prediziam sua posição de elevadíssima autoridade no futuro. Na verdade, ele era tão chato, que os irmãos não o suportaram e quiseram se livrar dele. Pedro teve uma longa lista de atos impulsivos na direção errada, desde ideias inconsequentes, como armar um acampamento no monte da transfiguração, até a tentativa de dissuadir Jesus do plano de salvação, ou a tentativa de defender Jesus com a espada no Monte das Oliveiras.
De todos estes, o impulso de Moisés é o mais fácil de entender. Ele havia estudado na melhor universidade do mundo no seu tempo e foi treinado na casa do Faraó especificamente para a liderança. Aos 40 anos, ele tinha idade madura, mas não era muito velho, e tinha aprendido tudo o que precisava para ser um perfeito líder no sentido humano – falando e agindo com reconhecida autoridade. Ele mesmo se sentia tão pronto que não entendia porque Deus não colocava o seu plano de libertação imediatamente em ação. Afinal, ele via o sofrimento do povo escravizado, sentia compaixão e estava ansioso por assumir o seu papel de líder do povo de Deus. Moisés tentou dar uma “mãozinha” no plano de Deus e liderar o começo de uma rebelião, atacando um opressor egípcio, mas o tiro saiu pela culatra. O que poderia estar faltando? Porque Deus não considerava Moisés pronto para a missão? Acontece que ele ainda precisava aprender uma última lição, a lição mais difícil.
Moisés, o líder nato e treinado, talvez o maior líder de todos os tempos, precisou de 40 anos para aprender uma única lição: humildade perante Deus. Quando ele finalmente estava pronto, não parecia o mesmo a olhos humanos. Ele era como uma sombra do líder autoconfiante e orgulhoso do passado. Porém, para Deus, ele finalmente estava pronto para assumir sua tarefa; e serviu fielmente por mais 40 anos, só falhando uma vez, o que lhe custou a entrada em Canaã.
Este parece ser um padrão comum entre os líderes do povo de Deus, que é preciso um longo tempo para aprender a ser humilde. Por exemplo, Abraão só recebeu o filho da promessa aos 100 anos, depois de passar para além do limite biológico que lhe permitia ter uma esperança racional.
José precisou amargar muitos anos na prisão até aprender a verdadeira humildade. E aprendeu tão bem que o poder não lhe subiu à cabeça, quando ele teve oportunidade de se vingar dos seus irmãos. Certamente, não havia mais nada da arrogância de sua juventude, quando os abraçou e chorou ao revelar-se a eles como o segundo homem mais poderoso do mundo na sua época. Assim como Moisés, 40 anos também foram necessários para ensinar humildade à nação de Israel (Dt 8.2), a quem Deus escolheu para liderar os que o adoravam de todas as nações naquele tempo. Durante estes 40 anos, Josué também aprendeu a humildade, que o preparou para suceder Moisés.
Em outros casos, Deus achou melhor um tratamento contínuo para combater o orgulho. Por exemplo, Davi teve uma vida de constantes lutas e conflitos que lhe trouxeram frequentes angústias e preveniram que sua alma se exaltasse, como vemos nos Salmos, a despeito de todas as suas conquistas.
Elias não teve um minuto de folga para curtir a tremenda vitória sobre os profetas de Baal, mas teve que logo correr por sua vida e se refugiar no monte Sinai – e continuou vivendo sob constante ameaça de morte. Tal jugo foi comum a todos os profetas.
Já no Novo Testamento, vemos como Pedro teve que ser repreendido diversas vezes por seus impulsos. No entanto, foi o evento da negação de Cristo que lhe ensinou humildade e dependência da graça. Nenhum dos eventos anteriores tinham-no movido da atitude de líder entre os apóstolos, sempre o primeiro a tomar iniciativa. Mas depois da negação, o seu espírito estava tão alquebrado que Jesus precisou repetir três vezes o seu chamado para reestabelecer a certeza no coração de Pedro. Já Paulo foi deixado com um permanente “espinho na carne” para combater a soberba.
Com todos esses exemplos, fica mais fácil entender o que Jesus quer dizer em Mateus 18: aquele que se humilhar como uma criança, esse é o maior no reino dos céus.
Porque é tão difícil e tão demorado ensinar a humildade a uma pessoa líder? Líderes são obstinados e não raramente são chamados de “sabe-tudo”. Mas eles cedo aprendem que é exatamente esta habilidade de tomar decisão e apontar uma direção, quando outros estão em dúvida e desorientados, que fazem as pessoas seguir um líder.
Os liderados podem ter opiniões conflitantes, ou nenhuma opinião, mas do líder, seja ele democrático ou autocrático, espera-se uma posição clara. Além disso, sempre haverá opiniões divergentes e muitas vezes o líder será acusado e ofendido pelos que são de opinião contrária. Após um tempo, a pessoa líder acaba se acostumando com isso, porque faz parte do papel de liderança tomar decisões impopulares quando elas são corretas e necessárias. O líder tem convicção de que o futuro provará que ele tinha razão e tem esperança de que todos os liderados, mesmo os que agora discordam, irão lhe agradecer no futuro. Todavia, essa obstinação, que o líder prefere chamar de “força interior” ou zelo, às vezes é abusada, quando se deixa levar pela arrogância de quem pensa estar sempre com a razão e não necessita de conselho ou admoestação de outros. Essa obstinação sempre é inapropriada quando é contrária à vontade e instrução clara de Deus – como quando Moisés feriu a rocha em Meribá.
O verdadeiro benefício da humildade se revela nas situações que não são óbvias violações da vontade de Deus. Sem humildade, Moisés talvez não ouvisse à crítica de seu sogro e talvez não delegasse a função de juiz do povo a auxiliares (Ex 18). Ou, qual líder sem humildade, que ao ouvir o desabafo justo de Deus, dizendo que iria destruir os liderados e enaltecer a descendência do próprio líder (Nm 14.12), responderia corretamente e intercederia em favor dos liderados como fez Moisés?
"O SENHOR Deus me disse: ‘Eu lhe ensinarei o caminho por onde você deve ir
eu vou guiá-lo e orientá-lo’" (Sl 32.8)
Se grandes heróis da fé precisaram de muitos anos para aprenderem a ser humildes, que chance têm os líderes de hoje? Eles têm a promessa de que Deus vai ensiná-los e guiá-los na direção certa (Sl 25.12 e Sl 32.8). E, por causa desta promessa, eles podem pedir conselho com confiança de que Deus vai atender, porque esse pedido é agradável a Deus (Tg 4.3).
Porém, onde Deus é fiel, nós infelizmente não somos. Muito deixamos de receber porque não pedimos (Tg 4.2). Exatamente por causa da aparente incompatibilidade entre liderança e humildade, que vimos acima, não vamos encontrar muitos líderes se ajoelhando, erguendo as mãos e pedindo a Deus mais humildade. Do ponto de vista deles, seriam melhores líderes se apenas tivessem mais sabedoria para tomar a decisão certa na hora certa. O plano funcionaria se apenas eles tivessem mais persuasão e pudessem convencer os outros da importância dos seus planos e ideias, da certeza de que eles darão certo. Os líderes sentem impulso de orar por esses dons e por mais perseverança, coragem, força de caráter e de vontade, fé, inteligência, saúde e coisas assim. Note que todas as características nesta lista são consideradas positivas e geralmente associadas a pessoas vencedoras. Em contraste, a humildade tende a ser considerada uma característica negativa, junto com a incerteza, fraqueza de espírito e fragilidade que são geralmente associadas a pessoas perdedoras.
Com certeza, ao fugir da presença de Faraó, após sua malograda tentativa de liderar uma rebelião dos hebreus, Moisés refletiu sobre as causas de seu plano ter falhado. Podemos imaginar muitas coisas que passaram por sua cabeça, mas é quase certo que ele não tenha pensado: se eu apenas tivesse sido humilde, Deus poderia ter me usado para liderar o povo...
Participei de diversos cursos de liderança cristã e li diversos livros sobre o assunto, mas em nenhum deles foi incluída a humildade como tópico. Alguns falam da necessidade do líder ser compassivo, outros ensinam como Deus é forte na nossa fraqueza, mas essa é geralmente associada a limitações da capacidade do líder. Talvez a humildade seja uma lição que não possa ser ensinada, mas precisa ser aprendida na prática e através de um longo período de tempo.
"Não seja uma pessoa sem juízo como o cavalo ou a mula,
que precisam ser guiados com cabresto e rédeas para que obedeçam.” (Sl 32.9)
Felizmente, aos líderes chamados, Deus fez ainda outra promessa, escondida no tom ameaçador do versículo seguinte à promessa no Salmo 32: “se você for teimoso, como o cavalo ou a mula, eu vou ser forçado a usar o freio e o cabresto para guiá-lo na direção certa”. Por muito tempo, li este versículo como uma ameaça que segue uma promessa, como tantas vezes Deus faz nos Salmos (cf. Sl 18.27). Hoje, vejo este versículo como mais uma promessa de um Deus que é Pai e que se importa verdadeiramente conosco.
Ainda que o líder falhe em buscar a orientação de Deus, falhe em pedir o que ele realmente precisa, como a humildade, o bom Pai não vai deixá-lo seguir no caminho errado. O processo pode ser demorado e doloroso – e muito! Mas, ao líder fiel, é um consolo saber que o Senhor não vai deixar de discipliná-lo (Dt 8.5, Pv 13.24), se necessário, para conduzi-lo no caminho certo. Porque ele sofre o mesmo dilema de Paulo (Rm 7) na luta entre a carne e o espírito e, ainda que saiba toda a teoria sobre humildade, ele encontra na sua carne a relutância de ser humilde. O zelo pelo plano e pela vontade de Deus faz o líder cristão aceitar a disciplina de Deus, ainda que dolorosa, para ajudá-lo a aprender a lição mais difícil: humildade!
"O temor do Senhor é a instrução da sabedoria,
e a humildade precede a honra.” (Pv 15.33)
"Deus resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a sua graça.
Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus,
para que ele, em tempo oportuno, vos exalte." (1Pe 5.5,6)
(Carlos Lange, cientista, professor, é membro da Riverbend Lutheran Church em Edmonton, Canadá.)
(Publicado no Mensageiro Luterano, Julho, 2011)