Histórias do Não ver - PARTE 2
Inspirado no trabalho de Cao Guimarães, as fotos foram tiradas em um cômodo da casa de cada aluna. De olhos vendados, fotografaram o espaço ao seu redor e escreveram um texto sobre suas sensações nesse momento, sem imagem.
Samara Macêdo
Mariana Torres
Refúgio
Paula Geórgia Fernandes
Virgínia Deolics
Confesso que me senti incomodada com essa experiência, pois o fato de sair pela casa com os olhos vendados não e muito bom não. Também me incomodou pelo fato de minha vó materna ter morrido cega. As imagens que fiz ficaram todas assim borradas.
Angelique Abreu
De olhos vendados e com passos vacilantes vou "desbravando" o pequeno espaço de morada. O que tinha como certeza vai se esvaindo à cada esbarrão nas paredes ou nos poucos móveis pelo caminho. Saio clicando a câmera do celular às cegas, respiração suspensa. Certeza nenhuma de nada.
Ruth Aragão
singular e anônima.
correspondência incompleta;
cenas de agosto;
rebuliço.
revelação instantânea;
personagem confessa.
Afinal, isto sou eu.
Luiza Helena Amorim
E se meus pés se transformassem nos meus olhos? Eu veria com outras sensibilidades, experimentaria camadas do real que se escondem, muitas vezes, dentro da embalagem enganosa das aparências. Faria outros itinerários pela cidade. Pisaria mais na areia da praia que no concreto. Teria a liberdade do descalço, ao invés do masoquismo do salto agulha. Confiaria mais no tangível do que nessa realidade virtual que se mostra caçadora de "likes". Sonharia outros sonhos.
Jéssica Batista
Hoje a gente trocou de lugar, você foi meus olhos, minha guia.
Me empresta essa visão tão cansada que tanto já viu do mundo.
Hoje tua mão me guia, a pele enrugada de toque afável, me guia para eu não errar o ponto, o traço e o passo, assim como quando eu era criança tu a me amparar.
Mão que já trabalharam na lavoura plantando e colhendo, braço forte na enxada, mão que já construíram uma casa, um lar, já embalaram o sono e afagaram choros.
São minhas guias hoje e sempre, tecendo pontos, afetos e contos na trama da minha vida.
Vivi Bizarria
voltei a infância, cabra cega, uma das brincadeiras que eu mais gostava, mas tinha medo também. pensava que a qualquer momento poderia tropeçar, uma pedra no caminho ou alguém me puxar. corri atrás do meu filho com a venda, e quem cai é ele e bate a cabeça... as perninhas tortas dele e minhas faz eu lembrar como eu tropeçava também. e o dia todo é isso, eu arrumo e ele espalha os brinquedos, às vezes deixo do jeito que tá a bagunça, mas não consigo dormir sem arrumar. ele pega na minha mão como se ele tivesse com a venda, mas no fundo sou eu que preciso dele.
Mabi Meneses
Confesso que achei que seria mais fácil, afinal foram apenas 60s e a minha síndrome do Pânico já não me incomodava há um tempo, porém quando coloquei a venda tudo mudou, as pernas ficaram bambas e eu nem sabia mais o que fazer, só me deixei guiar pelos meus sentidos e pela vontade de enfrentar os medos, no fim eu já não estava tão assustada e mesmo com o medo fui capaz de completar o desafio, a foto escolhida não ficou não nítida, mas é a que mais significa, é o meu cantinho de paz, o cantinho em que guardo minhas memórias com as pessoas que amo, quando vi a foto já sabia que seria ela a escolhida, ter medo é normal, confortar ele e se pôr à prova é essencial!
Melissa Gurgel
Eu cheguei no natal para passar o carnaval que ficamos juntos
e tudo indica que ficarei até o dia das crianças
ambos dias de festa que quero celebrar contigo nesse espaço delimitado
tu me ensinou a tocar através da experiência
eu te ensinei a ouvir
tu se certifica da minha presença mas
eu já vou partir
espero que tu venha comigo
ainda espero que nosso amor sobreviva
nem que seja para morrer mais tarde
Viviane Siade
ao vendar os olhos tantas dúvidas, se a câmera tá ligada, se vou conseguir respirar, aí você lembra que fechou os olhos e não o nariz… saí andando pela casa, tensa e tentando desconstruir alguns condicionamentos do meu corpo sobre a câmera. depois de fotografar 15 anos diariamente penso que esse é meu maior desafio, o desafio de relaxar, de desprender. andando pela casa nesse tipo de tentativa me senti roubada pela casa. pelo espaço, como se o exercício quisesse tirar de mim a imagem desconhecida, ao invés de eu tirar as imagens da casa, a casa tirar as imagens de mim…
essa fotografia mostra o canto atrás da porta de entrada da casa onde estão as bikes e ao lado o lugar de criação, onde se faz música, onde danço, onde trabalhamos, tá tudo bagunçado da falta de tempo…mas a bike, a porta de saída, o quarto que chamamos de laboratório me traz o sentimento da liberdade que amo.
Roberta Felix
chego em casa depois da primeira manhã de trabalho presencial em cinco meses. almoço, banho, então deixo meu corpo rodar sem ver e faço uma pausa no meio do dia. atenta aos outros sentidos, me dou conta de que posso perceber os ambientes pela temperatura. à vontade, o corpo escolhe ir aonde tem luz, calor e vento. procura a janela por onde o sol chega ao quarto. de olhos fechados a luz me faz imaginar ou enxergar cores em contraste. mais calor, menos calor. então me inclino para a cama e a referência de espaço muda. procuro a luz com as mãos tocando a cama, os tecidos. mudo o ponto de vista pra tentar ver o que eu afinal não veria de nenhum modo que não fosse pela fotografia: apontei a câmera para mim e fiz alguns autorretratos cegos. ao abrir os olhos e refazer o percurso pela tela do telefone móvel, encontrei mais ou menos o que tinha imaginado. mas o autorretrato me surpreendeu. eu parecia envolvida por uma onda. eu queria mesmo estar perto do mar.
Ana Cíntia
Com os olhos fechados procuro a luz. Caminho no quarto escuro na intenção de abrir as cortinas, sentir o sol da manhã iluminar e aquecer meu rosto. Entre tropeços e batidas na mobília, encontro o tecido que escondia a janela e o sol. Como um eclipse que se finda, desencoberto devagar aquele que vem a ser o meu quadro de luz. Sinto o sol tocando minha face e estico os braços na tentativa de tocá-lo também. Distante demais. Seria loucura, até. Tocar o que poderia me queimar. Então me aproximo e toco a janela. Aquela barreira de vidro que me separa do mundo lá fora. Que me impede de sentir o vento e o cheiro das plantas. Com os olhos fechados procuro os outros sentidos. Reflito sobre as possibilidades que ainda existem para mim. Posso sentir o calor do sol tocar a minha pele. Posso ouvir o bem-te-vi cantando. Sinto a dor dos tropeços. Mas gostaria de ver cada ato dessa peça novamente, e apreciar cada coisa pela luz que o forma. Abro os olhos. A luz os atinge. Rápido os fecho novamente.
Thaís Nozue
Quinta-feira
Na quarentena, escolhi quinta como meu dia de folga, um dia pra curar ressaca. Mas não ressaca de bebida e sim ressaca de vida.
só que hoje, não. hoje foi cura de festa, cura de gim. cura de mim.
Sabe aquele dia de terapia que você tem certeza de que não vai ter nada pra dizer? Pois é. Ontem achei que ficaria calada, que seria um encontro ruim e que talvez fosse melhor cancelar. Chorei duas vezes. Depois resolvi participar da festa online de aniversário de um grande amigo.
Bebi.
Não comi.
Quase 40 e ainda dá dessas, Thaís? Mas precisava. Precisava expurgar os fantasmas que foram cutucados na terapia.
Eles ainda estão aqui. Parece que se agarraram na minha alma. Só que o gim, o álcool desinfetou, descortinou o que estava escondido. E agora é lidar com eles. Convidar para um papo, um gin e ver aonde isso tudo vai dar.
Wilma Frias
de olhos vendados
tento
capturar uma imagem
coração acelerado
não consigo respirar
porque não consigo ver
aflição
o corpo sente o espaço
a mente acelera
lembra
tem pessoas que vivem assim
cala
para fazer o corpo sentir
os espaços se tornam desconhecidos
escuridão
a casa não é a mesma
os passos se tornam curtos
na imensidão escura
preciso capturar o que o olho não vê
o corpo tem memória
procura o que está acostumado a habitar
estar perto do espaço de afeto