Histórias do Não ver - PARTE 1
Inspirado no trabalho de Cao Guimarães, as fotos foram tiradas em um cômodo da casa de cada aluna. De olhos vendados, fotografaram o espaço ao seu redor e escreveram um texto sobre suas sensações nesse momento, sem imagem.
Priscilla Pinheiro
outras cores passam a respirar quando a gente fecha os olhos
Alessandra Krueger
Sentir a terra, o infinito das coisas, regar... Há muitos sentimentos em mim, leves, pesados e abstratos.
Carol Piloto
Terra firme: sentir os pés no chão me trouxe segurança, enquanto levantar a cabeça pro alto me deu liberdade.
Emile Castro
A única forma que tinha de voltar, era fechar meus olhos e imaginar. A saudade é saborosa, mas se perde na falta, é o que resta no desespero.
Cleyce NC
O olho nem tudo vê, ás vezes a mão enxerga o toque, sente o verde e as folhas que escorrem pelo braço e partem para uma breve viagem.
Tatiana Tavares
Toda manhã é um mistério. É recomeço e tem até cheiro. O vento é diferente e a posição do sol também. Se eu pudesse dizer um momento que eu sou realmente feliz eu diria que é de manhã: nela cabe todas as esperanças. É a parte ingênua do dia.
Letícia Ramalho
fecho os olhos no quarto, e a girar perco a noção de tempo e espaço, começo a me perguntar: onde estou? quem sou? faço cliques no celular, ao abrir os olhos vejo a minha foto de frente pro espelho, por fim me pergunto, quem realmente sou?
Karla Cristine
giro, giro
tonta, tonta
aperta o dedo
no fotilho
um tiro no escuro
desequilíbrio
sim
Karine Gallas
Desde pequena sempre achei que entre todos os 05 sentidos que temos, ser privada da visão talvez fosse a maior prova que um ser humano possa ter. Não ver a luz e todas as suas nuances em mim é paralisia! A luz que entra meio disforme e sem foco me traduz esta sensação de não ver!
Mayara Torres
Por mais que saibamos que não há controle sobre tudo, não há como controlar tudo, tentamos e tentamos e tentamos. Acabamos percebendo como os cômodos aumentam de profundidade, o que visualmente era perto se torna distante. E o tal do controle se esvai novamente, daquela que achava que por ser vidente possuía o controle, meramente uma ilusão de perspectiva.
Alexandra M
Ando muito assustada, sentimento de corpo frágil, bicho acuado. Quando tem incêndio na floresta, onça corre e ai de quem ela esbarrar no caminho. Não sou onça, mas ando tentando me defender de qualquer outra queda nesses tempos. Já são tantas. Fechar os olhos não foi fácil, palpitou medo. Andei já com o trajeto na cabeça para o meu lugar preferido da casa. Onde todo dia deixo o sol me banhar em vida. No caminho, apesar de todo o cuidado e trajeto traçado, topei com uma viga, um lustre. Acho que a vida é assim e que trapaceei um pouco.
Elisa Maria
no breu senti só o gosto do danoninho
meus pés tocaram o lodo no fundo do anel de cimento
piscina pra criança em água de flor
frango sem corinho
quantas horas esperando o girassol se mexer
depois desistir e arrancar uma semente pro papagaio
nasceu o sol
me acordaram pra catar acerola
Renata Rodrigues
eu sigo em busca da luz
sinto o calor
uma espécie de vibração
algo que toca a pele
ir sem saber
é bem melhor
que encontrar a saída
Lia Mota
Te dei tchau naquela manhã mas a vontade era dizer: dorme mais uma noite aqui comigo. Não sei se pela companhia ou se pelo medo de ficar sozinha. Já havia tempos que meu maxilar doía. Diz a Letícia que é acúmulo do que a boca não botou pra fora. Como óleo que se coloca nas engrenagens, tu me adentrou e destravou. Hoje minha boca umedece só de sentir teu cheiro. É a vontade de me afogar no teu corpo enquanto ele boia na minha cama.
Celina Lima
o ambiente mais fofo da casa
é aonde se transmite o amor
através da preparação dos alimentos
é aonde confraternizamos todos os dias
a nossa união e o peso que é estar/viver em isolamento
celebramos enfim, pela saúde que nos é dada, mediante ao ambiente desolador que vivenciamos nos últimos tempos, tempos sombrios...
mas festejar a vida, alimentar a alma e a barriga é o que nos resta.
Raquel Procópio
sentei na cama do meu quarto, respirei
não enxerguei
fiquei próxima de mim
“little girl blue” – diz a música da Janis Joplin
que bate lá na alma, é percebida
nessa captura desprendida
eu tento esquecer da ferida
que segue pendurada
amargurada
Sabrina Barreto
Parei por alguns minutos …
Fechei meus olhos e tentei sentir o tempo.
Delicadamente, o vento entrou pela varanda me dizendo que o mundo gira, o tempo passa e as coisas mudam.
Observei pequenas coisas grandiosas…
O balançar da rede, o cheiro do feijão temperado com carinho e meu cachorro com olhar fixo na porta, indicando alguém prestes a chegar.
Era o amor …
Abri meus olhos e segui o conselho do vento.
Patrícia Costa
Faz barulho.
Aqui dentro, faz barulho.
Há muitas vozes.
E não são minhas.
Há muita palavras.
E não são minhas.
Recordo, exatamente, o seu olhar.
A sua dicção firme.
Calafrio...
Eu não quero te ouvir!
Ana Beatriz
O tempo parou!
Os olhos descansaram por ficar longe das telas
Senti o vento esbarrando em mim ou eu nele..
Minha atenção foi de encontro as folhas das árvores que dançavam
O cachorro do vizinho late e ganha minha atenção..seguida da porta batendo
Senti que posso fazer o que eu quiser nessa vida e que liberdade gritava no meu peito,junto com a saudade da amada...e que saudade!!!
Comecei a dançar a dança da vida loucamente e a fotografar no meio desse giro esse espaço e suas paredes que me assistem há tanto tempo.
Beatriz Caldas
Há um espectro invisível
Em cada canto abarrotado
De cores, imagens, objetos, papéis
A mesa de centro
Que não é centrada
E quase caiu quando bati
Com um chute certeiro porque podia
Jurar que não estava ali
Até a cadeira de estudos
E a mala que nunca desfiz
Os posters, as fotos, as polaroids
Captam tudo que o olho vê
E o que não vê
É a aura espectral
Da energia que circula em prateleiras lotadas
E não consegue fluir
Pâmela Soares
Abrir passagem
Tatear sentidos
Para existir no mundo
Que só traz desgosto
Como quando eu era criança
E brincava aqui
Sem entender muito
O que a vida exigiria de mim
Mais adiante
Abrir passagem
Para o desconhecido
Que dá sentido
Às coisas que não servem mais
Bruna Mabellz
Quase agosto a gosto.
Era o sol tinindo e o vento gelado
Quase meio dia
no coração da geografia.
A guia de uma cega cor amarelo piçarra, do alto pedregoso
o movimento é descer...
o susto, a topada.
O despertar de alerta, o devenir.
A cerca farpada, o capim afiado.
No ar, mais umidade e o canto
denuncia de pássaros pelo
alheio que se aproxima.
Chego, enfim, num encontro com
a água.
Quase a fundo, afundo...
dezembro a pouca distância daqui.
Renata Pereira
Às Cegas
São dias repetidos
a segunda parece sexta,
a quarta domingo
Será que abriu um espaço no meio tempo?
Esse local é o de convivência
Às vezes sem presença
Pois nos aprisionamos
em ¼ da nossa mente
Uma sala qualquer
De uma república mineira qualquer
Mas tem muito de mim aqui...
Aproveito esse momento/processo
Pra me despedir
Que momentos felizes vivi aqui.
Lizi
Vastidão conhecida
Lençóis que já enxugaram prantos
Já secaram gozos
E cobriram cantos
Elementos luminosos revelam meu corpo
cansado
pequeno
maravilhosamente cheio de mim
olho pro lado, o lençol do meu amado
aguarda-o, como eu também,
para o inebriante cheiro que
exala da boca de nosso
Curumin
olhos externos fitam o teto
aquário, jogo de dois tempos
o passado e o futuro: sem ponte pro presente
cabeça de bicho-ar não para
mira tudo
sem mirar nada
Annanda Vieira
inteira
é a forma correta de se estar frente a deus
em tudo
silente
atenta ao chamado da vida que
- ao chão -
ainda fala
presente
são longos
os tempos marcados pela dança
tilintada das pimenteiras
no fim das horas
só cabe a nós fazer macias
as rugas na memória
do nosso
Tempo
Lávnis
Vendo os meus olhos
E continuo vendo
Vendo o que antes
De olhos abertos
Com meus óculos de grau
Eu não conseguia ver
Vendo pra ver
Ouvir
Sentir
De outras formas
Aguçando os meus sentidos
Vendo os meus olhos E continuo vendo
Sem a venda
O quarto estava claro
A luz da janela não era tão contrastante
Sim, a foto foi contra a luz
Assim como usar a venda para fotografar
Dois paradoxos
Porém
Às vezes é preciso que vendemos os olhos
Para ver
Fora da janela.
Marília Camelo
retorno
o quarto. o lugar em que, na fuga, seria seu esconderijo. onde se espalhava e se deixava ser quem pensava que conhecia. chega, olha: ufa! aqui é meu. pronto. só meu. pronto. sou eu.
o resto é a casa. é dela, mas não só dela. a casa foi onde se percebeu com medo. se fosse só medo, mas era também aflição. se fosse só medo e aflição, mas era também nojo. se fosse só medo, aflição e nojo, mas era também pânico, agonia. era sufocamento. era raiva. era ódio. era vontade de chorar, de arranhar a face com força. era a mão tremendo e o coração querendo furar o peito.
era tudo. era nada.
então, sai daí. levanta e corre! foge de novo! corre agora e escapa de ti! como? não dá! se não dá, então volta. volta pra dentro, cava todas as feridas de novo, abre o caixão das tuas memórias mortas e desenterra a pessoa que tu enterrou tão fundo que se esqueceu que existia.
era nada. era tudo.
o quarto. o lugar onde se espalha e se deixa ser. chega, olha: ufa! aqui é meu. pronto. só meu. pronto. sou eu.
o resto é a casa. e o quarto faz parte dela.
Mariana Maia
Privilégio
O vento sussurrava
Como sempre fez nesses 26 anos que passei dentro dessa casa
Eu chamo de casa, sabe
Mas na verdade é um apartamento
Pouco mais de 70m2
Optei por estar vendada no meu quarto
Mas poderia escolher qualquer cômodo
Todos me trazem memórias
Eu consigo ver em cada objeto
Em cada mancha na parede
Em cada pessoa que passa
Dessa vez eu não via
Mas parecia saber onde tudo estava
Colocava a mão à frente apenas para evitar qualquer acidente
Pois em algum lugar do chão estava o espelho quebrado e o ventilador em cima da cadeira
E na bancada os frascos de vidro no meio da bagunça e o notebook na beira
O receio de quebrar
De machucar
De doer
Me fez ser lenta
Tatear tudo o que não via
E estar atenta
Ao som que o vento fazia ao passar pela brecha da janela
O mesmo som que me agrada e ao mesmo tempo me aterroriza
Sei que sentirei falta
Tudo daqui fará falta
Afinal,
Ter um quarto só meu foi um dos poucos privilégios que tive por ter nascido mulher