Façamos o que já é um esforço de memória.
Quando celebrámos, ou em casa ou com amigos ou na rua, a entrada do novo ano de 2020, se alguém nos dissesse que dentro de três meses as escolas fechariam, as ruas estariam vazias, as lojas fechadas, as estradas sem veículos, e do nosso quotidiano fariam agora parte, a tempo inteiro, objetos como a máscara, o frasco de gel desinfetante, as luvas de latex, provavelmente acharíamos que quem assim antevia o futuro, ali ao virar da esquina, tinha visto demasiados filmes-catástrofe de Hollywood ou, pelo menos, teria exagerado nos festejos de fim de ano.
E, no entanto, em breve, o inimaginável começava a acontecer. Primeiro lá longe, a dar uma falsa sensação de segurança, mas depois cá dentro, ao nosso lado, muitas vezes sem protagonistas concretos, apenas a crueza dos números, para logo depois, para muitos de nós, o impensável ter um nome, um rosto concreto e definido, alguém a quem chamávamos pai, mãe, avô, avó, amiga, amigo.
No nosso dia a dia passou a ser muito difícil viver e trabalhar, em ambiente urbano ou periurbano, sem ter à mão o computador, o tablet e o “telemóvel esperto” e as nossas conversas encheram-se de velhas/novas palavras que, sem pedir licença ou aprovação, entraram e se instalaram no nosso vocabulário comum: pandemia, confinamento, quarentena, teste, isolamento, distância social, síncrona, assíncrona, a lista continua, criando, frequentemente, dificuldades de comunicação. Por exemplo, a palavra mais pesquisada no dicionário Priberam (mais de 14 milhões de utilizadores), nos primeiros três meses de 2021, foi a velha e banal palavra “postigo”, só que, desta feita, com um renovado e ansiado significado.
Passado mais de um ano, dois confinamentos e dois encerramentos da escola depois, habituámo-nos, sempre que necessário, a vermo-nos uns aos outros dentro de um retângulo cheio de outros retângulos; entendemos que a corrente de ar na sala de aula de janelas e portas abertas seja mais benéfica do que prejudicial; aceitámos que o cotovelo contra cotovelo, o punho contra punho seja o abraço e o beijo possível, para já; escrutinamos o espaço à nossa volta medindo mentalmente a distância de conforto e segurança; censuramos interiormente quem usa a máscara para segurar o queixo ou quem arrogantemente a dispensa; contamos com o incómodo de uma zaragatoa invasiva como condição para podermos ir a um concerto ou viajar.
E isto acontece, não porque nos tenhamos tornado cidadãos e cidadãs obedientes de regras impostas, mas porque a nossa resposta à maior crise das nossas vidas está a seguir um percurso, um padrão, que outras grandes crises da História já permitiram estabelecer e que poderemos dividir em 5 estádios: negação, ansiedade, adaptação, reavaliação e “novo normal”.
Não sabemos o que nos reserva o futuro próximo e ninguém credível se atreve, hoje, a vaticinar que mundo e país teremos quando regressarmos à escola, em setembro, para mais um ano letivo.
Uma coisa é certa: neste momento vivemos entre o terceiro e o quarto estádios que mencionei.
Adaptámo-nos, apoiámo-nos, inovámos, reavaliámos.
Com resiliência e esperança.
Acreditemos que em setembro possamos entrar, confiantes, na pós crise, no novo normal, em que assimilados velhos e novos comportamentos tenhamos condições para encarar o futuro que, como lembra o poeta, “Sai da Fenda e da Ferida”.
Bom trabalho (ainda) e boas férias!
António Fonseca Andrade
(Diretor da Escola Secundária Avelar Brotero)