27/08/2020
Você já ouviu falar em romance de espionagem no Brasil?
Eu, pelo menos, cresci acostumado com histórias desse tipo importadas da Europa e da América do Norte. Compreensível: historicamente, essas são regiões que aprimoraram técnicas de espionagem como instrumento para vencer guerras e coletar informações em momentos de crises políticas.
E no Brasil? Houve algo na nossa história que transbordou para uma literatura de espiões? Temos no Brasil tradição com romances desse gênero? Pela pesquisa que fiz na internet sobre o nosso passado, a resposta é não.
Mas o que encontrei sobre o nosso presente me deixou animado. Os romances de espionagem têm florescido nos últimos anos, especialmente na figura de duas autoras contemporâneas: Andrea Nunes (que já entrevistei na primeira edição desta Newsletter) e Vivianne Geber, que está com livro novo em pré-venda.
Só pra contextualizar: em Missão Pré-Sal 2025 (Editora Record, 2015), estreia da Vivianne na literatura, o oficial da Marinha brasileira Rodolfo Ruppel é enviado a Londres para recuperar informações roubadas sobre um submarino avançadíssimo que o Brasil pretende construir para proteger o nosso pré-sal. Seguindo instruções criptografadas na tela Os girassóis, de Van Gogh, o oficial cruza caminhos com outros espiões (entre eles, a brasileira Victoria Borges) e se vê no meio de uma trama internacional inesperada.
A pegada brazuca do romance é totalmente inspirada na realidade. Isso porque a própria Vivanne é capitã de fragata da Marinha brasileira – o equivalente a tenente-coronel do Exército. Há mais de 20 anos ela trabalha como assessora jurídica. "Tento trazer essa minha experiência profissional para os meus livros. Não que eles sejam baseados em casos reais, mas tem todo um contexto real. Ainda é um livro de ficção, mas numa contextualização real", a Vivianne me contou na conversa que tivemos pelo telefone.
Agora, ela lança seu segundo romance, Missão Terra Firme, que traz o mesmo Rodolfo Ruppel em Frankfurt descobrindo uma rede de espionagem industrial com consequências até o Brasil, envolvendo o tráfico sexual de crianças e adolescentes no Pará. Mas desta vez, as instruções para a missão estão escondidas em sinfonias de Beethoven. O livro, que sai pelo novo selo m0rgue da editora Lendari, entrou em pré-venda neste mês.
Na conversa que teve comigo, a Vivianne me contou em que momentos as vidas de escritora e de oficial da Marinha se encontram, quais são seus ídolos no gênero da espionagem, como ela migrou do linguajar jurídico para o texto literário e como as referências culturais remetem ao sonho que ela tinha quando adolescente: o de ser pintora e cantora.
Victor Bonini: Só pra começar, acho o máximo você ser uma escritora que é oficial da Marinha. Como você chegou no cargo?
Vivianne Geber: Eu fiz faculdade de direito e estava na época de fazer vários concursos. O da Marinha era um deles, não foi nada programado. Mas entrei e estou há mais de 20 anos já. Hoje sou capitã de fragata (como se fosse o tenente-coronel do exército). Eu fui assessora jurídica esse tempo todo, até que em 2010 o meu marido, que também é da Marinha, foi transferido para Londres. Eu tirei uma licença sem vencimentos para poder acompanhar, não tinha outro jeito. Aí quando eu me vi lá em Londres cheia de tempo, eu comecei a escrever. Ou seja, eu não entrei na literatura porque dizia "Ah, sempre quis escrever desde pequena", não, foi porque eu estava com muito tempo. Tempo que eu nunca tive, porque eu sempre trabalhei muito.
VB: Imagino que como assessora jurídica, você já estava acostumada a escrever bastante, né?
VG: Pois é, eu escrevo muito no trabalho – pareceres e essas coisas que o pessoal de direito tem que escrever e ler. Então eu resolvi me aventurar na ficção. Falei: "Vou tentar", e escrever uma coisa que eu soubesse. Por isso o meu livro tem esse ambiente militar, a minha protagonista já foi militar e o meu protagonista é militar. Eu tento escrever sobre coisas que eu tenho algum conhecimento técnico e outras que eu posso até não ter, coisas que não são do meu ambiente especificamente, mas eu pesquiso e eu pergunto para colegas. Por estar nessa área, eu consigo pesquisar com mais facilidade.
VB: Eu acho muito interessante ler livros de autores que têm formação e experiência de vida que fogem daquele estereótipo (quase sempre errado) do escritor, aquela imagem do cara das humanas que fica trancado num escritório. Você acha que o fato de você ser da Marinha e isso transparecer na sua obra é um chamariz pro leitor?
VG: Para mim como leitora, eu acho que esse quê a mais é um grande atrativo. Por exemplo, ao ler um livro do John le Carré e saber que ele foi do MI6 (o serviço secreto de inteligência britânico), você fica pensando se o que ele está descrevendo é real, se algo de parecido aconteceu de verdade. Dá um suspense incrível a mais. Tento trazer a minha experiência profissional para os meus livros por isso. Não que eles sejam baseados em casos reais, mas tem todo um contexto real. Ainda é um livro de ficção, mas numa contextualização real.
VB: E como é que você fez essa transição do linguajar jurídico para o texto literário?
VG: Lá em Londres, eu fiz dois cursos de creative writing, dois cursinhos que me deram uma luz, porque de fato é bem diferente você fazer ofício e você escrever ficção. Mas além disso, eu sempre li muito também, e os livros policiais de espionagem são os que eu mais adoro. Eu leio muito mesmo, e isso acabou me dando uma boa noção. Lógico, não adianta só ler pra saber escrever, mas ajuda muito. E depois eu também fiz o curso da Cláudia Lemes (que já foi entrevistada aqui na Newsletter). Estou fazendo ainda, acabando agora. Estou há nove meses nesse curso com ela, porque ela vai prorrogando e eu continuo. Me ajuda muito. Quem ler Missão Pré-Sal 2025 e em seguida Missão Terra Firme vai perceber a diferença. Eu estou mais madura, aprendi muita coisa desde o início da carreira.
VB: Mas voltando ao seu primeiro livro, você escreveu em Londres?
VG: Isso, e como eu estava lá, decidi que o livro se passaria em Londres. Eu estava gostando muito e usei a cidade como instrumento. Aí quando eu voltei pro Brasil, em 2012, eu estava com o Missão Pré-Sal 2025 pronto na mão. Eu conheci a Luciana Villas-Boas (agente literária), mandei o romance e ela gostou. Eu falo isso tudo resumidamente, mas demorou bastante. A Luciana me apresentou pra Record, que foi a casa que lançou o livro em 2015.
VB: Você já começou a escrever o próximo em seguida?
VG: Não. Eu até tinha as ideias, mas eu não comecei logo porque eu custei a me adaptar na volta ao Brasil e na volta ao trabalho. Em Londres, eu tinha todo o tempo do mundo pra escrever, e aqui de volta eu me vi sem tempo nenhum. Eu conseguia fazer um esqueleto do livro, mas eu não conseguia parar pra escrever. Eu vi que eu ia precisar me adaptar. E apesar de eu ser militar, eu não sou muito disciplinada, só no trabalho! Fora, a minha vida é totalmente bagunçada. Comecei a escrever um pouco de madrugada, um pouco no final de semana, e assim o livro novo saiu.
VB: Ele ficou bastante tempo no forno?
VG: Ficou. Na verdade, eu acho que terminei o Missão Terra Firme em 2018. Terminei não, né, porque você sempre mexe, aí depois deixa o livro descansando um tempo, depois volta e mexe mais um pouquinho... Mas assim, a história mesmo estava toda pronta e escrita há dois anos.
VB: Interessante você falar isso. O Stephen King menciona esse costume em Sobre a Escrita. Ele diz que gosta de deixar o livro descansando "como uma massa de pão entre uma sova e outra". Rolou uma inspiração nos métodos dele?
VG: Não de propósito. Na verdade, foi o tempo que levou para a preparação. Mas foi bom porque depois de ter terminado de escrever, eu me inscrevi no curso de escrita e com o que eu aprendi deu para aprimorar o livro. Ou seja, eu concluí que sim, vale a pena deixar o texto descansando um pouquinho. Você sempre acaba mudando alguma coisa pra melhor.
VB: Você se aguentou nesses dois anos ou foi só ansiedade até chegar à editora Lendari?
VG: Eu sou muito ansiosa. A gente quer escrever o livro e publicar no dia seguinte, só que não é assim, a vida na literatura é lenta. Eu cheguei na Lendari por um processo seletivo que eles fizeram quando a editora anunciou o lançamento de um selo novo, o m0rgue. Eu vi que a editora era a Cláudia Lemes e eu fiquei muito a fim de que ela editasse meu livro porque acho ela incrível. É uma das autoras nacionais que mais admiro. Então eu participei do processo seletivo, mandei book proposal, o livro, tudo, e esperei. Disseram que iam escolher dois livros. Escolheram o meu e o da Fabiana Ferraz. Seremos as primeiras do selo, que é voltado para romances policiais, suspenses e thrillers. É bacana porque vai ser estreia.
VB: Mas antes do Missão Terra Firme você também lançou um conto que une os dois livros, certo?
VG: É, o Vida Secreta - Entre Missões. Eu escrevi bem rápido, depois de ter terminado o Missão Terra Firme, e lancei para não dar um intervalo tão grande entre um livro e outro. Então eu pensei em usar uma personagem do livro e montar uma outra história que fosse independente, mas tivesse relação com os livros. Inicialmente eu até pensei em uma trilogia dos livros, mas no final eles viraram histórias independentes com os mesmos personagens.
VB: Quais são as suas referências de romance de espionagem? Algum do Brasil?
VG: É difícil encontrar autores desse gênero por aqui. Tirando a Andrea Nunes, com um perfil de espionagem nos livros dela, é raro achar. Eu acabo lendo literatura estrangeira. O meu querido hoje na espionagem contemporânea é o americano Daniel Silva. Leio tudo dele, mas gosto também do John le Carré, Ken Follett, Tom Clancy, Frederick Forsyth…
VB: Qual foi o primeiro livro desse gênero que você leu e te abriu essa porta?
VG: Foi O Homem de São Petersburgo, do Ken Follett. Mas eu pensei que queria seguir lendo, porque eu na época não tinha pensado em ser escritora não. Eram livros que eu devorava. Eu sempre li muito policial, desde adolescente, de Agatha Christie a O Escaravelho do Diabo.
VB: Falando em referências, você tem Van Gogh no primeiro livro, Beethoven no segundo...
VG: Eu gosto muito de fazer essas referências porque antes de entrar pra Marinha, eu queria ser cantora, pintora, já quis ser de tudo na área das artes. Eu sempre tento colocar uma coisa assim para inspirar as pessoas a irem atrás e se interessarem também por essas formas de cultura. Talvez também pra deixar um contraste psicológico: um clima de suspense com uma aura artística.
VB: Bom, 2020 não é o ano do planejamento, mas vocês têm alguma expectativa de lançamento do Missão Terra Firma?
VG: A pré-venda começou este mês com lançamento previsto para outubro, novembro ou quando der. Com a pandemia, tudo fica um pouco mais difícil, e nessas horas a gente tem que ser criativo pra poder vender livro. O bom é que eu estou tendo uma resposta bem legal. As pessoas que leram o Pré-Sal sempre me cobravam o segundo livro e ficaram felizes. É uma cobrança boa de ter, porque te incentiva. Espero que dê tudo certo!