Entrevista: Andrea Nunes
STF SOB ATAQUE
Anos antes do inquérito das fake news do Supremo Tribunal Federal, a literatura já tinha colocado a Corte Suprema como alvo.
18/06/2020
Conspirações à brasileira: comparada a Umberto Eco, Andrea Nunes escreve o chamado romance policial erudito, subgênero do italiano, mas com DNA regional. Crédito: Andrea Nunes
Na semana em que o ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal autorizou a prisão da extremista Sara Winter e de outras cinco pessoas no inquérito das fake news – aquele que apura uma rede de ataques a autoridades financiada por militantes bolsonaristas – é impossível não se lembrar de que a Corte Suprema já esteve sob ataque antes. E não, não estou me referindo aos fogos de artifício que os membros do acampamento "300 pelo Brasil" lançaram contra o prédio do STF ao serem expulsos do acampamento em apoio ao Presidente Jair Bolsonaro.
Eu me refiro ao romance policial A Corte Infiltrada, escrito pela promotora de justiça de Pernambuco Andrea Nunes, lançado originalmente em 2014 e reeditado pela Buzz em 2017. Com temperos de Umberto Eco e Dan Brown – apesar de Andrea gostar mais do primeiro do que do segundo –, o romance começa com o assassinato de um monge budista, mas logo se mostra mais do que um policial tradicional: parte para uma conspiração em que uma organização criminosa quer se infiltrar no STF, e para isso desenvolve uma tecnologia que alia telecomunicações com neurociência. Espere mensagens subliminares, o uso de símbolos como pistas, passagens secretas e um final ousado.
E apesar de a história ter sido pensada em 2014, Andrea diz que os ataques imaginados em seu livro e os que são atualmente sofridos pela corte não são assim tão diferentes. "O que acontece hoje é o uso de um instrumento tecnológico, que são as fake news, para manipular o pensamento em larga escala. Fazem isso por via ilícita para que as pessoas desacreditem no sistema que legitima a nossa própria democracia", diz a autora.
Na entrevista abaixo, Andrea detalha os ataques ao STF – o literário e o real –, fala sobre a infiltração de organizações criminosas no poder, descreve seus hábitos incomuns de escrita e explica por que decidiu dedicar seu Prêmio ABERST de melhor romance policial por Jogo de Cena, em 2019, à escritora Anna Katharine Green, que morreu há 85 anos.
Victor Bonini: A Corte Infiltrada não poderia ser mais atual: mostra o Supremo Tribunal Federal sob ataque de um grupo que quer manipular opiniões alheias. Por que você decidiu escrever sobre isso há seis anos?
Andrea Nunes: A gente vive num regime democrático e o STF é um guardião dos valores democráticos que a gente escolheu enquanto civilização, no caso, como nação. Ele é um muro para determinadas distorções nos nossos sistemas, protegendo princípios da constituição contra ódios e paixões políticas, aventuras econômicas milagrosas e destruição de valores. Quanto mais forte for a democracia, mais a Corte Suprema vai exercer um papel importante. O Supremo, portanto, se torna um alvo prioritário de quem pretendem inviabilizar o poder para atender seus interesses. Eu queria mostrar pras pessoas que existem movimentos de infiltração das organizações criminosas nas instituições de poder. Eu via que – e isso está no livro – essas organizações criminosas já estavam financiando tanto terceiros para ocuparem cargos estratégicos como seus próprios elementos para irem às universidades e se tornarem juízes, promotores e, assim, entrar no sistema. Uma vez dentro, eles querem desestabilizar o Supremo de alguma maneira. No livro, é por meio de uma arma tecnológica que pretende manipular os ministros.
VB: Você vê paralelos com os ataques hoje sofridos pelo STF?
AN: Curiosamente, o que temos hoje não é uma situação tão diferente. Nós temos o uso de um instrumento tecnológico, que são as fake news, para manipular o pensamento em larga escala, manipulando as próprias pessoas, o povo enquanto poder originário. As fake news são uma via ilícita criada para que as pessoas desacreditem no sistema que legitima a nossa própria democracia. Então de uma forma ou de outra, o que eu desenhei ali é um retrato menor do que está acontecendo hoje, em outra escala.
Crédito: Buzz Editora
VB: Em A Corte Infiltrada, uma personagem sua diz que achou Brasília uma capital medieval, com reis protegidos por soldados. A Andrea também acha isso?
AN: A gente está vivendo um momento muito preocupante no nosso país, e eu acho que o medieval está cada vez mais presente, ainda mais em Brasília. Abordei isso no livro de uma forma mais estética, falando sobre reis encastelados e soldados guardando esses reis, mas isso hoje se aplica também às próprias crenças das pessoas. As pessoas parecem ter uma tendência de voltar a pensar como na era medieval. São posicionamentos com aspectos medievais, e com respaldo de setores da população.
VB: Como foi a pesquisa para escrever A Corte Infiltrada?
AN: Essa ideia da infiltração do crime organizado nas instituições de poder estava prestes a explodir. Era uma realidade que eu tinha conhecimento por conta do trabalho, porque realmente é com o que eu lido sendo promotora de justiça de defesa do patrimônio público. E eu percebia que eu não conseguia, eu não tinha competência para envolver a sociedade nesse debate. Eu tentava dar palestra em escola, tentava dar palestra em universidade, tentava me inserir em algum seminário, mas nunca tinha um público legal, porque ninguém quer ver aquela promotora de justiça com o dedo em riste e de toga falando com linguajar técnico.
VB: A sua saída foi a literatura?
AN: Eu vi uma vez uma coisa que me chamou atenção no prefácio de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, que diz que existem muitas maneiras de se dizer a verdade, e que talvez uma das mais persuasivas seja contando uma mentira. Com essa frase dele – que também é promotor de justiça – eu tomei pra mim que a ficção é um caminho pra você falar as suas verdades, para você chegar nas pessoas e passar seu ponto de vista de uma maneira mais lúdica, mais fácil. E deu certo. Quando eu decidi escrever um romance policial com essa questão da infiltração do crime organizado nas instituições de poder, várias portas se abriram pra que eu conseguisse conversar com o público, dentro e fora do Brasil, sobre essa realidade. Logo depois que eu lancei o livro, começaram desdobramentos de investigações de corrupção e eu fui cada vez mais sendo chamada para falar exatamente sobre aquelas coisas que eu queria falar antes e ninguém queria ouvir.
VB: E por que o romance policial, e não outro gênero?
AN: Primeiro tem influência da minha adolescência – eu fui uma leitora inveterada de Agatha Christie. Outra que tem o fascínio com o universo do crime devido à minha própria profissão, e eu tinha facilidade de falar dele. E por último, e talvez mais importante, é o fato de o romance policial ter um formato mais palatável para você alcançar as pessoas. Fui numa linha mais moderna, sem seguir aquele esquema antigo ortodoxo de resolução do crime, detetive e assassino, sem lugar para outros temas. Entrei mais na fórmula de Umberto Eco do romance policial erudito, enxertando outras questões, como inquietações político-filosóficas e colocando coisas mais profundas para alargar o universo do livro. Por isso eu digo que os meus romances policiais são feitos em camadas. Quem não tem familiaridade com tal temática pode consumir como se ele fosse um simples romance policial, ou pode identificar nele diversas questões da filosofia contemporânea, da filosofia pós-moderna, questões políticas e éticas que o livro traz. Ah, e com um assassino para a pessoa querer descobrir no final! Fica mais fácil passar sua mensagem assim.
VB: Sua obra tem muitas semelhanças com a de Dan Brown e com os livros policiais de Umberto Eco. São influências para você?
AN: Umberto Eco sim. Dan Brown… Mais ou menos. Gosto de aprofundar o psicológico dos personagens, com conflitos internos, e Dan Brown privilegia mais a ação, sem tanta complexidade psicológica. Mas, claro, há grande semelhança, até porque o próprio Dan Brown já disse que tinha como inspiração Umberto Eco. Eu jamais teria a ousadia de dizer que a minha literatura parece com a de Umberto Eco, mas eu tive como inspiração o romance policial erudito, que ele lançou como subgênero. Era aquilo que eu queria fazer com meus livros policiais e eu não tinha encontrado espaço ainda. A meu ver, é construir uma trama policial sem as limitações de poder inserir outros elementos. Eco faz isso em O Nome da Rosa e Pêndulo de Foucault. Foi uma fórmula legal, e eu tento trazer isso pros meus livros.
VB: E não só isso. Os seus livros têm um DNA brasileiro, como em Jogo de Cena (2019), que mistura folclore com a crise mundial do petróleo.
AN: É, então, eu gosto de me diferenciar de Dan Brown por causa dessa pegada do Brasil, do que está pegando na política brasileira. E também tem um caráter regional. Eu acho que o escritor tem a responsabilidade de problematizar questões que estão relacionadas com a nossa cultura, com a nossa geração, e Jogo de Cena tem muito esse propósito de problematizar o Brasil. Alguns blogs colocam minha literatura como pós-colonial por ter essa coisa abrasileirada, esse sotaque pernambucano.
O troféu ABERST de melhor romance policial de 2019 com o livro Jogo de Cena. Crédito: Andrea Nunes
VB: Jogo de Cena, por sinal, te rendeu o Prêmio ABERST de literatura de melhor romance policial de 2019. Como foi?
AN: Foi uma coisa bem emocionante mesmo. E na hora de receber, eu quis fazer uma homenagem à mãe do romance policial, Anna Katharine Green, que é muito pouco reconhecida nos estudos do romance policial. Ela foi praticamente contemporânea de Edgar Allan Poe, usou elementos que influenciaram Agatha Christie, e mesmo assim é incrivelmente desconhecida. No Brasil, ela só veio a ser conhecida quando a Cláudia Lemes traduziu a obra dela, que saiu pela Monomito, e eu achei super incrível. Quando eu ganhei o prêmio, eu disse que queria dedicar à Anna Katharine Green e a todas as mulheres que não tiveram o seu talento reconhecido ao longo da história, que tiveram essa dificuldade de ter visibilidade e que fizeram primeiro, fizeram melhor, fizeram mais bonito. Esse prêmio foi para elas. E quando eu vi, tinha mulher chorando na plateia.
VB: Na nova era medieval, você acha que o feminismo avança?
AN: Mesmo com todos esses retrocessos tanto no Brasil quanto no mundo, a gente percebe alguns movimentos bem vigorosos, como a questão racial nos Estados Unidos, que leva pessoas pras ruas. Eu vejo um levante feminista, que é essa valorização da autoria feminina, no sentido de resgatar autoras que a gente tinha e que nunca foram reconhecidas, nunca foram lidas. Eu acho que a autoria feminina, apesar dos pesares, vive um momento bem melhor que os outros que antecederam esse momento, por várias circunstâncias, incluindo porque hoje a mulher ocupa diversas funções no mercado de trabalho que a tornam apta a escrever sobre o que ela vivencia. No romance policial brasileiro, por exemplo, tem a Vivianne Geber, oficial da Marinha que escreve sobre espionagem com submarinos. Quer dizer, se a mulher não tivesse esse espaço no mercado de trabalho, a Vivianne estaria no cantinho dela reclusa sem escrever do que ela não conhece.
VB: Você está conseguindo produzir agora na quarentena?
AN: Agora estou. Mas a quarentena veio num momento meio delicado pra mim porque eu perdi minha mãe no começo do ano e eu estou num processo bem doido porque eu emendei um luto numa pandemia. Foi complicado, mas nesse último mês eu consegui retomar um projeto que eu tinha começado no final do ano passado. É um livro novo na mesma linha de Jogo de Cena e A Corte Infiltrada.
VB: Então ficar em casa ajudou?
AN: Eu sempre preciso de um pouco de recolhimento para criar. Na minha vida normal era sempre na madrugada, e no começo da quarentena foi difícil por causa do luto, que me impediu de escrever. Mas então eu tive um empurrãozinho quando a minha agente literária, Luciana Villas-Boas, me procurou com um projeto pequeno, da Storytel (de audiolivros) para fazer contos por uma boa causa, em favor da quarentena. O nome do projeto é "Vai ficar tudo bem", e ele quebrou a minha inércia e me estimulou a produzir.
VB: Mas em condições normais você escreve de madrugada?
AN: Eu tenho meu trabalho como promotora de justiça, tenho duas filhas – uma na universidade e outra na escola –, tenho meu marido. Ou seja, vida louca. E eu preciso de recolhimento para criar. Normalmente eu escolhia a madrugada porque não tinha outra hora para desenvolver melhor o texto.
VB: E você não ficava com sono no dia seguinte?
AN: Ficava, mas o café é meu companheiro, e quando eu me empolgo o sono desaparece. Você começa, vai avançando e de repente consegue chegar àquilo que queria, o tom que queria, e o sono se vai. Mas sim, no dia seguinte você sente. É malabarismo.
VB: E quando sai o próximo livro?
AN: Ano que vem.