09/07/2020
Falar em fim do mundo é moda desde antes de 2012, ano em que o calendário Maia previa o encerramento das nossas atividades. Já vimos filmes como O Dia Depois de Amanhã, Fim dos Tempos, 2012 e uma penca de variações (um dos meus preferidos é a comédia É O Fim).
Mas o autor brasileiro de terror Marcos DeBrito teve uma ideia nova para representar esse momento especial em que a gente sai de cena. Em vez de explorar as respostas destruidoras da natureza ou a invasão aniquiladora de extraterrestres, ele criou uma história que imagina a nossa decadência por aquilo que nos é tão antigo quanto nossa própria identidade: a crença religiosa.
O apocalipse bíblico visto a partir da ótica de um ator que sempre interpretou Jesus é a proposta de Apocalipse Segundo Fausto, novo livro do Marcos que entrou em pré-venda nesta semana pela Editora Coerência (para comprar, é só clicar aqui). Esse ator, tão semelhante à imagem de Cristo e por isso venerado por multidões, começa a ser perseguido a partir do momento em que pequenos chifres nascem em sua testa e ele é visto como uma ameaça ao ser humano.
“O livro propõe uma situação de fim do mundo a partir de uma histeria coletiva, e a gente está vivendo uma histeria coletiva. A gente tem uma pandemia acontecendo, e em vez de as pessoas aceitarem que é uma pandemia, ficarem em casa, respeitarem e esperarem passar, não: elas fazem disso um circo. E o livro é exatamente assim”.
O que é uma coincidência, já que DeBrito começou a pensar na história em 2010, e só foi retomar o processo e terminar em 2018. Na conversa que teve comigo, o premiado cineasta que virou romancista me contou como foi a travessia dos filmes para os livros, explicou o gosto por construir histórias de terror com bases católicas, relatou como é sobreviver de arte num Brasil que abandonou a cultura e falou sobre seu novo longa-metragem, As Almas Que Dançam No Escuro.
Victor Bonini: Você já deve ter ouvido mil vezes que 2020 parece o fim do mundo. Como autor de Apocalipse Segundo Fausto, que se passa justamente no fim do mundo, você vê semelhanças entre a sua literatura e a realidade?
Marcos DeBrito: Quando eu terminei o livro, há dois anos, o momento de mundo não era semelhante ao de hoje, mas é engraçada a coincidência. O livro propõe uma situação de fim do mundo a partir de uma histeria coletiva, e a gente está vivendo uma histeria coletiva. A gente tem uma pandemia acontecendo, e em vez de as pessoas aceitarem que é uma pandemia, ficarem em casa, respeitarem e esperarem passar, não: elas fazem disso um circo. E o livro é exatamente assim. Tem as coisas mais loucas acontecendo no universo, e as pessoas sabem que são impotentes em frente a elas, então elas criam todo um circo pra tentar combater. E é um circo totalmente errado. Elas acabam se ferrando, vão caindo mais na hipocrisia, no pecado – e a partir daí não dá para contar mais senão é spoiler.
VB: Como surgiu a ideia de escrever o livro?
MDB: Eu tive a ideia de escrever o Apocalipse Segundo Fausto depois de uma aula que eu tive com o Leandro Karnal e com o Luiz Felipe Pondé sobre o filme Anticristo, de Lars von Trier. Quando eu estava assistindo a aula, o Pondé falou uma frase que até virou a epígrafe do livro: "O verdadeiro anticristo não surgirá como o antagonista místico do Messias, mas como aquele que trará desordem a um mundo perto do fim." Eu fiquei com isso na cabeça durante muito tempo, e decidi que queria escrever a minha versão sobre o anticristo a partir dessa premissa, de uma desordem generalizada que algum evento mundial pudesse iniciar. E coincidentemente nesse mesmo ano – acho que foi em 2010 – estava muito na moda uns vídeos na internet de pessoas que ouviam barulhos metálicos vindos do céu, no mundo inteiro, e ninguém conseguia identificar o que eram esses barulhos. Usei isso como o pontapé inicial para a histeria em massa que levaria à desordem mundial, já que esses sons ganharam inclusive o nome de trombetas do apocalipse.
VB: Ou seja, você já tinha a imagem para criar o cenário.
MDB: Exato. A partir daí, eu criei o meu protagonista. Ele é um ator que fisicamente lembra muito a imagem renascentista de Jesus, e por isso ele vira famoso justamente por interpretar Cristo em várias peças e filmes. O nome desse ator é Fausto Macário, ou seja, duas ligações com a ideia do homem que vende a alma ao diabo. Pois as pessoas veneram ele, idolatram, acham até que ele pode ser o Messias porque ele é tão parecido e interpreta tão bem Jesus… Só que quando começam a crescer chifres na testa dele, essa mesma massa que o venerava começa a achar que ele é o falso profeta, porque o falso profeta bíblico tem chifres de cordeiro. Ele então passa a ser visto como alguém que anuncia o anticristo, que trará o fim do mundo.
VB: Um dos seus curtas, Apóstolos (que você, leitor, pode assistir clicando aqui ou no botão aqui embaixo), também usa referências religiosas para criar uma história de terror. Alguma relação?
MDB: O Apóstolos foi um aproveitamento da pesquisa que eu fiz para esse livro. Eu comecei a escrever o Apocalipse Segundo Fausto lá por 2010 como roteiro para cinema, e precisava fazer muita pesquisa porque ele tem toda uma base base bíblica e católica por trás, ainda mais por causa das trombetas do apocalipse. Comecei a juntar várias referências cristãs e daí, com base nisso, eu criei o Apóstolos, que é semelhante nessa questão de fazer uma crítica à hipocrisia religiosa. Mas as duas histórias são muito diferentes na narrativa e no estilo, com o Apóstolos indo pela fantasia – é um cara sem cabeça que bota a cabeça dos outros para se transformar nos Apóstolos de Cristo – enquanto no Apocalipse o protagonista é uma pessoa normal, que beira muito aquela dúvida: será que ele está tendo um pesadelo? Ou será que tudo isso é real?
VB: Por que esse gosto por referências religiosas?
MDB: Eu fui criado na religião católica, então eu gosto de falar com uma propriedade que eu tenho de família e de criação. Às vezes, as pessoas perguntam por que eu não falo de outra religião. Eu digo: porque eu não tenho propriedade pra falar das outras, eu não conheço a realidade delas. Se eu fosse muçulmano, eu escreveria sobre Maomé sem medo algum, como eu gosto de fazer com a religião católica. O que eu faço, na verdade, é identificar os discursos que me soam falsos e tentar trazer uma discussão moral por trás delas. Apocalipse Segundo Fausto tem muito isso da adoração, da veneração e de colocar a culpa no que é divino pelo seu fracasso. Você idolatra uma figura maior e ao mesmo tempo começa a repudiá-la e botar nela a culpa de todos os próprios pecados, como se o seu destino estivesse nas mãos de uma entidade divina que ou deseja o seu mal ou deseja o seu bem. Eu acho isso uma covardia, então reinterpreto passagens bíblicas para trazer esse debate.
VB: Serve como provocação também?
MDB: Não, eu não faço pra provocar, até porque eu tenho a minha própria religiosidade. No fundo, a essência de todas as religiosidades é a mesma coisa. Você pode chamar a força criadora do universo de diferentes formas, seja Deus, seja Big Bang, seja qualquer coisa. O que eu gosto não é de confrontar a verdade bíblica, mas é de encontrar um ponto de discussão. Eu não quero chegar e dizer: "Vocês estão errados porque isso significa isso e fim". Eu acho até rude fazer isso e não é no que acredito como forma de persuasão. Prefiro mostrar evidências para que as outras pessoas com quem estou discutindo – lendo meus livros ou vendo meus filmes – tirem uma conclusão a partir dessa informação. E isso tanto para a religião quanto para a ciência. Eu apresento a unidade cósmica e a divina como se fossem um certo sinônimo.
VB: Mas você ainda enquadra Apocalipse Segundo Fausto como terror?
MDB: Sim. O Apocalipse é o meu trabalho mais autoral, mais maduro, e eu enquadro como terror. Eu chamo de terror católico, que é um subgênero dentro do terror religioso – mais conhecido pelos filmes de exorcismo, por exemplo. E dentro desse imaginário religioso, eu trago as figuras de maior horror: o diabo e o fim do mundo. Ao mesmo tempo, o livro se aproxima ao que se chama hoje de pós-terror.
VB: O que é o pós-terror?
MDB: Pós-terror é a história (geralmente o filme) que não se sustenta a partir do susto, puro e simples. Você pode ver a coisa mais escabrosa, mas ela não vai te assustar. Ela vai, isso sim, te aterrorizar a um nível extremo: você vai ter medo de continuar enxergando aquilo, mas nunca vai te dar um susto. Ou seja, ele troca o medo momentâneo e o sentimento efêmero por um terror profundo. Aqui, o terror está relacionado à hipocrisia da religião e às escolhas que cada um faz em momentos de sobrevivência. Sabe aquela coisa que entre a vida e a morte até o ateu reza? Então, a cada trombeta no livro, o mundo acaba mais um pouco, com terremotos, prédios despencando, pessoas morrendo. Aí todo mundo vira religioso porque a teologia apresenta a salvação que a ciência não encontrou.
VB: Já que você falou em cinema: você começou sua carreira como cineasta e depois fez a travessia para a literatura. Como foi essa migração?
MDB: Minha paixão desde pequeno sempre foi o cinema. Só depois de começar a escrever livros é que eu descobri que a minha paixão é por contar histórias, independentemente do meio. Mas eu só fui descobrir isso porque o cinema no Brasil é muito caro. Quando eu terminei de escrever o meu primeiro roteiro de um longa, que depois deu origem ao livro À Sombra da Lua, eu fui orçar o filme e ele estava na casa dos 12 ou 13 milhões de reais. E isso há um tempão. Então imagina, não era um filme padrão Brasil de orçamento. Eu nunca conseguiria fazer esse filme. Hoje daria, estou atrás de uma série, inclusive. Mas na época não dava e eu pensei: "Eu gosto tanto dessa história que eu preciso levar para as pessoas de alguma forma". Eu resolvi adaptar para um romance, sendo que eu tinha conhecimento zero do mercado editorial, não conhecia ninguém do ramo, mas resolvi escrever e enviar para editoras. Acabei sendo aceito pela Rocco. Foi uma surpresa porque na época não existiam Faro Editorial nem DarkSide, ou seja, eram poucas editoras que publicavam o gênero.
VB: E assim que você entrou no mercado editorial…
MDB: Pra mim foi uma mudança de chave na minha cabeça, para o bem, porque eu me senti abraçado pelo mercado editorial. Mas também foi complicado. Eu apresentei meu livro seguinte, O Escravo de Capela, e a Rocco não aceitou. Falaram que era muito pesado. Aí eu fui atrás da Faro, e foi a melhor coisa que me aconteceu, porque eu considero o Escravo como o livro que fez o meu nome no mercado. O Pedro Almeida, editor da Faro, incentiva os autores nacionais e divulga muito. Desde o Escravo, publiquei com eles também A Casa dos Pesadelos e o Vozes do Joelma (junto com o Marcus Barcelos, o Rodrigo de Oliveira, o Tiago Toy e você, Victor Bonini). Desde então, eu comecei a adaptar todos os meus roteiros para livros, e tenho escrito livros novos. Hoje, considero que estou mais autor do que cineasta.
VB: Você pensa em se dedicar mais a uma carreira do que a outra?
MDB: Não, pelo contrário, vou seguir com os dois ao mesmo tempo. Eu só abri o horizonte. Por sinal, vou estrear agora o meu terceiro longa metragem, mas é sempre com muita luta, sempre com muito prejuízo, sempre com muitos amigos me respaldando, me ajudando, acreditando no projeto... E isso cansa, porque cansa sentir que você está se aproveitando da boa vontade de outras pessoas. E cinema não dá para fazer com uma pessoa só. Livro dá. Além disso, eu sou um cara solitário, eu gosto dessa parte solitária da criação. Apesar de ser cineasta de formação e de ter trabalhos consideráveis, premiados no ramo, é na literatura onde eu tenho mais trabalhos comerciais e onde eu fiquei mais conhecido. Mas eu tento levar os dois sempre.
VB: Você falou que vai lançar seu terceiro longa?
MDB: Eu to terminando de finalizar o meu novo filme, As Almas que Dançam no Escuro. A previsão era que ele fosse lançado em outubro, mas como teve a pandemia e vários filmes foram adiados com os cinemas fechados, nós vamos aguardar um pouco. Talvez a gente não lance mais este ano para participar de alguns festivais no ano que vem porque o Almas tem uma pegada de festival. Semelhante ao Apocalipse, ele é um terror um pouco mais autoral, não é de susto.
VB: Sinopse rápida?
MDB: Depois de perder a filha, um pai enlutado cai em desgraça e parte na busca de um possível culpado pelo assassinato. Conforme esse pai vai descobrindo a vida secreta que a filha levava antes de morrer, ele chega numa casa noturna chamada Clube Inferno. Lá, conhece um enigmático e misterioso anfitrião que diz que vai ajudá-lo em sua busca – mas em troca de algo. E esse algo pode ser a danação da sua alma para sempre.
VB: Como é que surgiu a produção desse filme num momento em que a cultura do Brasil é vista como abandonada?
MDB: A distribuidora, Encripta, me convidou no ano passado a fazer um longa que estreasse este ano. Eu falei: "Tá, mas pra isso eu preciso começar a gravar já em dezembro". Fora que o dinheiro era baixo: no orçamento deles, eu precisava de no mínimo um zero a mais à direita. Só que aí eu pensei naquela lógica: a gente está no pior momento do cinema nacional desde o Collor. O governo atual destruiu alguns meios de fomento e os filmes que estavam aprovados na lei do Audiovisual foram cancelados quando virou o ano. Tiveram que ser reapresentados e essa reapresentação foi mediante as novas regras do governo. E como a gente está vivendo uma era das trevas do cinema nacional, eu pensei: "Vou investir para ser um desses guerreiros, de rebeldia mesmo".
VB: Nada de filme cristão, filme família…?
MDB: Como, se nem eles respeitam essa moral? Não, eu vou fazer o filme que eu quero nesse momento de crise e vou estrear neste momento também. É um cinema de resistência. É muito importante fazer cinema nessa época, por mais difícil que seja, então eu conversei com meu produtor e com a equipe, que foi extremamente profissional, e fizemos com esse espírito.
VB: E gravou em dezembro?
MDB: Sim, por sorte, senão eu não filmava mais por causa da pandemia. Não pode mais gravar agora e eu não teria como filmar no futuro por causa da equipe. O bom é que eu estou usando os dias da quarentena, trancado em casa, para finalizar o filme todo. Foi uma boa coincidência: eu literalmente sobrevivi de cinema justamente na hora em que o cinema sofre tanto.
VB: Bom, e dá para pensar em lançamento do Apocalipse Segundo Fausto neste momento?
MDB: Acho que no mínimo depois da segunda metade de agosto. Estamos esperando normalizar. E a pré-venda, que começou esta semana, prevê cerca de 45 dias para envio. Então vai dar mais ou menos o tempo. Vamos vendo a situação e decidindo o que dá para fazer.