Abdias do Nascimento

Abdias Nascimento já foi descrito como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX. Ele foi Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, EUA, onde fundou a cátedra de Culturas Africanas no Novo Mundo do Centro de Estudos Portorriquenhos, Departamento de Estudos Americanos. Foi professor visitante na Escola de Artes Dramáticas da Universidade Yale (1969-70); Visiting Fellow no Centro para as Humanidades, Universidade Wesleyan (1970-71); professor visitante do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade Temple, Filadélfia (1990-91) e professor visitante no Departamento de Línguas e Literaturas Africanas da Universidade Obafemi Awolowo, Ilé-Ifé, Nigéria (1976-77).

Abdias Nascimento recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília, da Universidade do Estado da Bahia, e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, Nigéria.

Nasceu em março de 1914 em Franca, Estado de São Paulo, neto de africanos escravizados. Seu pai era sapateiro e músico; sua mãe doceira. Sua família era tão pobre que, mesmo sendo filho de sapateiro, passou a infância descalço. Trabalhou desde os sete anos de idade. Completou o segundo grau, com diploma em contabilidade, em 1928. Formou-se como economista pela Universidade do Rio de Janeiro em 1938. Fez pós-graduação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1957, e em Estudos do Mar (Instituto de Oceanografia, 1961).

Alistando-se no Exército, Abdias Nascimento saiu de Franca em 1929 e foi para a capital paulista, onde participou da Frente Negra Brasileira da década dos 1930. Foi organizador do Congresso Afro-Campineiro, que protestou contra a discriminação racial e discutiu as relações raciais na cidade de Campinas, interior do Estado de São Paulo, em 1938. Participou dos movimentos de protesto contra o regime do Estado Novo, o que lhe valeu uma prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional. Por resistir à discriminação racial na capital de São Paulo, foi preso na Penitenciária de Carandiru por dois anos. Em 1943, fundou naquela instituição o Teatro do Sentenciado, cujos integrantes, todos prisioneiros, criavam, ensaiavam e apresentavam seus próprios espetáculos teatrais; também ajudou a fundar o jornal dos prisioneiros.

Fundou no Rio de Janeiro, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, entidade que rompeu a barreira racial no teatro brasileiro. Foi a primeira entidade afro-brasileira a ligar a luta pelos direitos civis e humanos dos negros à recuperação e valorização da herança cultural africana. Denunciando a segregação no teatro brasileiro, sobretudo a prática de pintar atores brancos de negro para desempenharem papéis dramáticos, o TEN oferecia cursos de alfabetização e de cultura geral a seus integrantes: empregados domésticos, trabalhadores e operários, desempregados e funcionários públicos diversos. Formou a primeira geração de atores e atrizes negros e favoreceu a criação de uma dramaturgia que focalizasse a cultura e a experiência de vida dos afro-brasileiros.

Sob a liderança de Abdias, o TEN organizou a Convenção Nacional do Negro (Rio de Janeiro/ São Paulo, 1945-46), que propôs à Assembléia Nacional Constituinte a inclusão de um dispositivo constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-Pátria e uma série de medidas afirmativas anti-discriminatórias. O TEN realizou também a Conferência Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949), e o 1o Congresso do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950).

Abdias Nascimento foi um dos principais organizadores do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, entidade que lutou pela libertação dos presos políticos do Estado Novo, e editou o jornal Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro. À frente do TEN, ele organizou, ainda, exposições artísticas e concursos de beleza. O Concurso de Artes Plásticas sobre o tema do Cristo Negro, organizado pelo TEN, realizou-se na ocasião do 36o Congresso Eucarístico Mundial no Rio de Janeiro.

À frente do TEN, Abdias mantinha contato com os movimentos de libertação africanos e com o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele e os artistas e intelectuais associados ao TEN eram os principais, talvez os únicos, partidários no Brasil do movimento da Negritude liderado por Léopold Senghor, Aimé Cesaire e Léon Damas. Entretanto, eles foram excluídos da delegação oficial brasileira ao 1o Festival Mundial das Artes Negras (FESMAN), realizado no Senegal como afirmação internacional do Presidente Senhor do valor da cultura africana e da Negritude. A Carta Aberta a Dacar, escrita por Abdias Nascimento, denunciava o processo que levou a essa exclusão e foi publicada na prestigiosa revista Présence Africaine. Trata-se do primeiro protesto de um intelectual afro-brasileiro a ser ouvido por um público africano mundial contra a discriminação racial no Brasil.

Entre 1950 e 1968, Abdias Nascimento era o curador fundador do projeto de Museu de Arte Negra, iniciativa do Teatro Experimental do Negro em cumprimento de uma resolução do Congresso do Negro Brasileiro de 1950. A exposição inaugural se realizou no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, no ano de 1968.

Nesse período, Abdias atuava no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principal força política de oposição ao regime autoritário instituído pelo golpe militar de 1964.

Pouco depois de inaugurar a exposição do Museu de Arte Negra, Abdias Nascimento viajou aos Estados Unidos, com apoio da Fundação Fairfield, com o objetivo de realizar intercâmbio entre os movimentos norte-americano e brasileiro de promoção dos direitos civis e direitos humanos da população negra. Alvo da repressão policial do regime militar, ele não pôde retornar ao país em razão das medidas autoritárias do Ato Institucional n. 5, promulgado em dezembro daquele ano. Durante 13 anos, viveu no exílio nos Estados Unidos e na Nigéria.

Abdias Nascimento participou de inúmeros eventos do mundo africano e em outros organizados por entidades afro-americanos dos Estados Unidos. Assim, ele introduziu a população negra do Brasil ao palco da história africana mundial. Até então, os eventos internacionais africanos não incluíam quase nenhuma representação da América Central ou do Sul. Abdias Nascimento participou da reunião preparatória (Jamaica, 1973) e do 6o° Congresso Pan-Africano (Dar-es-Salaam, 1974). Participou do Encontro sobre Alternativas do Mundo Africano e 1o Congresso da União de Escritores Africanos (Dacar, 1976), bem como do 1o° e do 2o° Congressos de Cultura Negra das Américas (Cali, Colômbia, 1977; Panamá, 1980). Neste último, foi eleito vice-presidente e coordenador do 3oº Congresso de Cultura Negra das Américas.

Durante o período de exílio, desenvolveu sua extensa obra de artista visual. Sua pintura trabalha temas da cultura religiosa da diáspora africana e da resistência à escravidão e ao racismo. Suas telas foram largamente exibidas nos Estados Unidos em galerias, museus, universidades e centros culturais como o Studio Museum in Harlem, Universidades Yale e Howard, o Museu da Associação dos Artistas Afro-Americanos, o Museu Ilê-Ifé de Filadélfia, o Centro Cultural do Inner City de Los Angeles, e muitos outros .

Em 1978, voltou ao Brasil e participou dos protestos e atos públicos e das reuniões de fundação do Movimento Negro Unificado contra o Racismo e a Discriminação Racial, hoje MNU. Também ajudou a criar o Memorial Zumbi, organização nacional que reunia entidades de promoção dos direitos civis e humanos da população negra de todo o pais; ele serviu como o seu presidente de 1989 até 1998.

Retornando definitivamente ao Brasil em 1981, fundou o IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, que organizou o 3o° Congresso de Cultura Negra nas Américas (São Paulo, 1982) e o Seminário Nacional sobre 100 Anos da Luta de Namíbia pela Independência (Rio de Janeiro, 1984). Estes eventos foram as primeiras oportunidades em que o Brasil recebeu uma representação do Congresso Nacional Africano (ANC) da África do Sul e da Organização do Povo do Sudoeste da África (SWAPO) da Namíbia. O Ipeafro criou um dos primeiros cursos de preparação de professores para a introdução da história e da cultura africanas e afro-brasileiras no currículo escolar, o curso Sankofa que se realizou na Pontifícia Universidade Católica e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no período de 1984 a 1995.

Durante o exílio, Abdias Nascimento trabalhou com Leonel de Moura Brizola para criar a organização que viria o Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Brasil. Como resultado dos esforços pioneiros de Abdias, o partido incluiu a questão do racismo e da discriminação racial como prioridade no seu programa político nacional. Abdias Nascimento também liderou a organização do movimento negro dentro do partido. Entretanto, ele trabalhou de forma consistente para fazer da luta pelos direitos civis e humanos dos descendentes africanos uma causa suprapartidária e uma questão política nacional.

Candidato nas primeiras eleições do processo de abertura democrática (para governos estaduais e municipais e para o Congresso nacional), Abdias Nascimento assumiu em 1983 como primeiro deputado negro a defender a causa coletiva da população de origem africana no parlamento brasileiro. Na Câmara dos Deputados, ele introduziu projetos pioneiros de legislação antidiscriminatória e apresentou as primeiras propostas de ação afirmativa. Como integrante da Comissão das Relações Exteriores, ele propôs e articulou medidas contra o Apartheid, de apoio ao Congresso Nacional Africano (ANC) da África do Sul e ao movimento pela independência da Namíbia liderado por SWAPO, advogando o rompimento de relações com o regime sul-africano do Apartheid.

Como parlamentar brasileiro, Abdias Nascimento participou dos simpósios regionais e internacionais das Nações Unidas em apoio à Luta do Povo da Namíbia pela sua Independência (San José, Costa Rica, 1983; Nova Iorque, 1984). Também foi um dos principais atores no processo de criação da Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura para assuntos afro-brasileiros, bem como na instituição do Dia Nacional da Consciência Negra, dia 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares. Com o tempo, esta data tornou-se feriado oficial em diversos municípios e Estados da Federação e hoje é reconhecido e comemorado em escolas e centros culturais em todo o país.

Em 1988, Abdias Nascimento proferiu a conferência inaugural da série W. E. B. Du Bois de palestras internacionais, organizado e patrocinado pelo Centro Cultural Pan-Africanos de Acra, Gana. No próximo ano, serviu como consultor da UNESCO para o desenvolvimento das artes dramáticas e do teatro angolano em Luanda. Participou da diretoria internacional do Festival Pan-Africano de Cultura (FESPAC) e do Memorial Gorée, ambos sediados em Dacar, Senegal. Ele também participou da diretoria internacional fundadora do Instituto dos Povos Negros, criado em 1987, pelo Governo de Burkina Faso com apoio da UNESCO.

Em 1991, Abdias Nascimento se tornou o primeiro senador afrodescendente a dedicar o seu mandato à promoção dos direitos civis e humanos do povo negro do Brasil. O governador do Rio de Janeiro, Leonel de Moura Brizola, o nomeou titular da nova Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Governo daquele Estado, posição que desempenhou até 1994.

Terminado o seu mandato no Senado Federal, em 1999, Abdias assumiu como primeiro titular da nova Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1995, foi eleito Patrono do Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, realizado no Parlamento Latino-Americano em São Paulo, na ocasião do 3o° Centenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares.

Com um comentário ao Artigo 4o da Declaração de Direitos Humanos, participou do volume organizado e publicado pelo Conselho Federal da OAB por ocasião dos cinquenta anos desse documento da ONU em 1998. Entre os outros comentaristas estavam personalidades como o rabino Henry Sobel, o prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel, Evandro Lins e Silva, Dalmo de Abreu Dallari, João Luiz Duboc Pinaud.

Abdias Nascimento participou da Iniciativa Comparativa sobre Relações Humanas no Brasil, na África do Sul e nos Estados Unidos, organizado pela Fundação Sulista de Educação de Atlanta, EUA, envolvendo pesquisadores e intelectuais destacados, em parceria com a sociedade civil organizada desses três países em uma série de reuniões, enquetes e eventos que produziu uma série de publicações sob o título Além do Racismo (www.beyondracism.org). O projeto desempenhou um papel importante na construção de pontes e intercâmbios, preparando o caminho para a participação desses países na 3a Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, a Xenofobia, e Outras Formas Correlatas de Intolerância realizado em Durban, África do Sul, em 2001.

No processo nacional de organização da participação brasileira na Conferência de Durban, Abdias Nascimento atuou com destaque, e no Fórum das ONGs dessa Conferência ele foi um dos conferencistas principais (Keynote Speaker).

No ano de 2001, o Centro Schomburg de Pesquisa das Culturas Negras, do sistema de Bibliotecas Públicas do Município de Nova Iorque em Harlem, homenageou Abdias Nascimento com o Prémio da Herança Africana Mundial. Realizado na sede da ONU no 75o° aniversário do Centro Schomburg, o prêmio foi criado para reconhecer, naquela ocasião, seis personalidades destacadas do mundo africano, incluindo também Katherine Dunham, Dorothy Height, Amadou Mahtar M’Bow, Billy Taylor e Gordon Parks.

Abdias Nascimento também recebeu o prêmio UNESCO na categoria “Direitos Humanos e Cultura” (2001), bem como o Prêmio Comemorativo da ONU por Serviços Relevantes em Direitos Humanos (2003).

Bicentenário da Revolução do Haiti, o ano 2004 foi definido pela comunidade internacional como Ano Internacional de Celebração da Luta contra a Escravidão e de sua Abolição. Nessa ocasião, a UNESCO criou um prêmio para reconhecer dois intelectuais ativistas que dedicaram as suas vidas a essa luta e à luta contra o racismo e a discriminação racial. As duas personalidades homenageadas com esse prêmio em dezembro de 2004, na sede da UNESCO em Paris, foram Abdias Nascimento e Aimé Cesaire.

O ano de 2004, por ocasião dos seus 90 anos, o Ipeafro realizou uma exposição retrospectiva e um colóquio internacional sobre a vida e obra de Abdias Nascimento no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. A exposição circulou em Brasília e em Salvador, Bahia, onde foi realizada como parte da 2a Conferência Mundial de Intelectuais Africanos e da Diáspora (2006), iniciativa da União Africana e do Governo Brasileiro. Nessa ocasião, Abdias Nascimento recebeu do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a mais alta honraria outorgada pelo Governo do Brasil, a Ordem do Rio Branco no Grau de Comendador.

A Câmara dos Vereadores do Município de Salvador outorgou-lhe a cidadania soteropolitana e a Medalha Zumbi dos Palmares (2007). Ele recebeu homenagem do 4o° Festival Internacional de Cinema Negro (São Paulo), bem como o Prêmio Ori da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro pelo conjunto de sua obra literária.

No ano de 2007, o Ministério da Cultura outorgou-lhe a Grã Cruz da Ordem do Mérito Cultural, e em 2009 ele recebeu do Ministério do Trabalho a Grã Cruz da Ordem do Mérito do Trabalho. Ambos são as mais altas honrarias do Governo Federal do Brasil em suas respectivas áreas.

A Universidade Obafemi Awolowo, de Ilé-Ifé, Nigéria, outorgou-lhe, em 2007, o título de Doutor em Letras, Honoris Causa.

O Conselho Nacional de Prevenção da Discriminação, do Governo Federal do México, outorgou a Abdias Nascimento o seu prêmio em reconhecimento à contribuição destacada à prevenção da discriminação racial na América Latina (2008).

Abdias Nascimento é autor de dezenas de livros publicados, em inglês e em português, e além do já mencionado jornal Quilombo editou duas revistas, Afrodiáspora (1983-87) e Thoth (1997-99). Sua peça teatral Sortilégio (Mistério Negro) (1959) constitui um marco nas obras de arte que tratam os temas das relações raciais e da identidade e cultura afro-brasileiras. Após sete anos de censura policial, estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1957 e foi produzido em inglês, nos Estados Unidos, em duas ocasiões (Universidade do Estado de Nova Iorque, 1971; Inner City Cultural Center, Los Angeles, 1975). Sua antologia Dramas para Negros e Prólogo para Brancos (1961) é a primeira coleção de obras teatrais sobre o mesmo tema e seu livro de poesia Axés do Sangue e da Esperança: Orikis (1983) constitui um marco na literatura afro-brasileira.

Depois de seu retorno ao Brasil em 1981, continuou a exibir suas obras artísticas no Brasil e no exterior .


ABDIAS, Nascimento. In: PERSONALIDADES. Ipeafro.

Disponível em: ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento/