Por Lucas Costa. 6 de outurbo de 2021
Será que o Facebook é responsável, e em qual grau, pelo desgaste democrático que temos testemunhado nos últimos anos, especialmente pela radicalização ideológica e sua tendência autoritária?
O Facebook traduz, como poucas outras companhias, o modelo bem-sucedido das megacorporações tecnológicas: detém quase um monopólio do setor e dita tendências de demanda (você sabia que PRECISA ter um Oculus e um Ray-ban com câmera?). Seus lucros advêm, principalmente, da venda de anúncios direcionados aos seus usuários, que podem usar a plataforma gratuitamente, mas, em troca, aceitam que a empresa colete informações sobre todas suas interações na internet, nas redes sociais, mas também fora dela. Estes dados são, segundo o contrato estabelecido entre empresa e usuário, usados exclusivamente para que os algoritmos do Facebook apresentem publicidade direcionada para você (ou seja, em tese, eles não têm acesso direto ao que você faz na internet).
Só esta dinâmica, embora legal e consentida, já levanta debates importantes sobre privacidade e controle excessivo de informações por uma única instituição (além do mais, privada). O Facebook se defende alegando que todos ganham: eles, com os lucros da venda de anúncios, os anunciantes que conseguem direcionar sua propaganda para seu nicho de mercado e os usuários que recebem anúncios sobre coisas que lhes interessam, além de usar as redes sociais e demais serviços gratuitamente.
De um lado, o Facebook se tornou tão influente e poderoso que parece ser quase intocável. Por outro lado, e pela mesma razão, tornou-se alvo preferencial, sejam de quem quer atacar modelos semi-monopolistas, ou por quem quer buscar bodes expiatórios para problemas enfrentados pela democracia no século XXI. Até que ponto podemos, de fato, responsabilizar o Facebook?
Já faz alguns anos que o Facebook tem sido objeto de investigações do governo americano, especialmente por questionamentos sobre a forma como a empresa utiliza os dados de seus usuários. Um dos episódios mais famosos, revelado em 2018, foi o escândalo envolvendo a Cambridge Analytica, uma empresa britânica de consultoria política que coletou inadvertidamente, por meio do Facebook, os dados de dezenas de milhões de usuários (70 mi só nos EUA) para traçar perfis e usá-los em campanhas eleitorais (comprovadamente, os dados foram vendidos para a campanha de Donald Trump à presidência, em 2016). Na ocasião, o Facebook permitia que aplicativos de terceiros coletassem informações de seus usuários que usassem estes aplicativos voluntariamente, mas, sem qualquer consentimento, também dos amigos destes usuários.
Lembram daquelas brincadeiras, comuns no Facebook alguns poucos anos atrás, nas quais respondíamos questionários para sabermos “que filósofo famoso você seria?”, “que personagem de Friends você é”, ou “veja sua posição ideológica”? Então, alguns aplicativos que criavam aqueles tipos de “brincadeira”, pediam acesso à algumas informações suas, mas também conseguiam acesso às informações dos seus amigos, mesmo que eles não tivessem usado aquele aplicativo. A Cambridge Analytica, então, cruzava suas respostas no questionário com seus likes na rede. Ao fazer isso em larga escala (estamos falando de dezenas de milhões de usuários) eles descobriam algumas correlações que os permitiam traçar perfis de preferências, podendo estimar melhores estratégias eleitorais, por exemplo. Aliás, uma curiosidade: gostar de Hello Kitty, aquela gatinha sem boca, era associado com ser mais compreensivo, mas menos cuidadoso, diligente e ter menos estabilidade emocional.
Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, foi convocado a testemunhar perante o Congresso americano, admitiu e se desculpou pelas falhas da rede social em proteger informações de seus usuários.
Desde então, o Facebook tem recebido críticas crescentes, não apenas sobre a forma como usa os dados, mas também pela dimensão de seu controle sobre a comunicação de bilhões de usuários. Nesta última semana, uma ex-funcionária da empresa, Frances Haugen, se colocou no centro dos holofotes ao revelar uma série de documentos e resultados de pesquisas realizadas pela empresa (mas não divulgada ao público) que revelariam que o Facebook prioriza os lucros sobre o bem público. As principais alegações acusavam o Facebook de saber que algumas de suas plataformas eram nocivas aos seus usuários e, ainda assim, não fazerem nada sobre isso. Por exemplo, uma das pesquisas mostrou que o Instagram promovia ou intensificava distúrbios alimentares em crianças e adolescentes, além de diminuir a auto-estima e até aumentar a chance de cometer suicídio.
Outra acusação, mais importante para os propósitos deste texto, diz respeito sobre a forma como o Faccebook escolhe ou prioriza as postagens que serão vistas pelos seus usuários. Em janeiro de 2018, Zuckerberg anunciou que o Facebook alteraria seu algoritmo para que os usuários tivessem interações mais significativas, privilegiando o conteúdo produzido ou compartilhado por familiares ou amigos mais próximos. Na verdade, esta alteração reduziu a visualização de postagens elaboradas pela imprensa profissional, ou por órgãos técnicos do governo e aumentou o compartilhamento de fake news e de discursos de ódio. Frances Haugen revelou que o Facebook, por meio de suas próprias pesquisas, sabe disso tudo, mas mantém o modelo, pois este tipo de postagens (notícias falsas e discurso de ódio), tende a mexer com a emoção dos usuários, os deixando mais nervosos e aumentando seu engajamento e, mais importante, o tempo que eles gastam nas plataformas do Facebook (e, consequentemente, os lucros da empresa).
Em resumo, ela acusa a empresa de promover o engajamento de seus usuários com conteúdo nocivo, pois ao fazê-lo, aumenta seus lucros.
Dada a dimensão do Facebook e sua influência sobre os meios de interação entre bilhões de usuários de todo o planeta, parece inescapável o debate sobre seu papel como protagonista no desenvolvimento ou desgaste da democracia. No mínimo, são promotores de fake news e da radicalização política. Mas é possível culpar o Facebook por tudo?
Em primeiro lugar, quase todas as críticas lançadas contra o Facebook também podem e devem se estender aos outros gigantes da tecnologia norte americana, como Google e Apple. Ou seja, o Facebook não está sozinho nesta.
Em segundo lugar, e mais importante, este debate é complexo e conta com diversas camadas. Culpar o Facebook, ignorando problemas estruturais, é como, no futebol, demitir o técnico para esconder o problema mais sério que envolve todo o time (embora, no caso, o técnico seja, de fato, parte importante do problema). Lançar toda a culpa sobre o Facebook é mais fácil do que reconstruir uma sociedade mais democrática, ou mesmo admitir que a radicalização política e a emergência de grupos fascistas nos Estados Unidos, em outras democracias consolidadas, ou no Brasil, é o sintoma de um sistema que está doente como um todo.
Na verdade, fascistas, racistas, misóginos, homofóbicos, intolerantes, enfim, inimigos da pluralidade democrática, sempre existiram. As redes sociais ajudam a expô-los e emancipá-los. Permitem que se congreguem mais facilmente. Que lucrem com o compartilhamento de seu ódio e que, eventualmente, ganhem eleições. Mas, se o principal papel da tecnologia na degradação democrática é possibilitar a reunião destes seres indesejáveis, então, não custa perguntar se seriam as redes sociais ou o sistema que cria estas pessoas o principal responsável pelo problema.
No que pese, a aparentemente inquestionável responsabilidade do Facebook, à luz das acusações recentes, parece-me que culpar exclusivamente o Facebook por facilitar a emancipação de intolerantes é como culpar a existência de livros porque eles permitem que autoritários divulguem suas ideias. O problema maior são seus autores e como são produzidos, não os meios que utilizam para divulgar suas ideias. Se não existissem redes sociais talvez não tivéssemos Trump e Bolsonaro, mas, da mesma forma, se não tivéssemos livros, não teríamos Mein Kampf e, talvez, não tivéssemos Hitler.
Há quem possa argumentar, como o faz a própria Frances Haugen, que não se advoga pelos fins das redes sociais, mas por uma estrutura regulatória mais rígida. Este debate é importante, pois a preservação do Estado de direito democrático pressupõe o respeito às normas que o regem, sendo imprescindível que uma empresa, qualquer empresa, não as viole. Ou seja, é papel do Estado impedir que o Facebook ultrapasse fronteiras legais, seja através da consolidação de um monopólio do setor (o que viola o princípio da competição econômica), da retenção e uso ilegal de informações (o que violaria uma série de direitos fundamentais) ou da promoção seletiva de conteúdos nocivos, apenas porque lhe geram mais lucros.
Mas talvez não seja papel do Estado exigir que o Facebook controle a pertinência do conteúdo político produzido em sua plataforma. Uma proposta interessante seria obrigar o Facebook a divulgar as postagens em ordem cronológica, sem manipular, por meio de seu algoritmo, qual conteúdo deve ser mais visualizado. Ou seja, exigir uma plataforma ideologicamente e politicamente neutra, pois deixou de sê-la, ainda que como efeito colateral da motivação puramente econômica da companhia.
As redes sociais são meios a partir dos quais a política se revela, inclusive com sua pior face. Não cabe ao Facebook ou qualquer outra empresa privada reparar a democracia. Pelo contrário, regulações são necessárias para diminuir o controle do Facebook sobre o conteúdo que ele quer que a gente veja. A democracia precisa ser construída e reconstruída de forma democrática, por meio da participação cidadã e de suas instituições representativas.