Escrito em julho de 2014. Por Lucas Costa
Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.
Nem bem deu tempo de Willianson se surpreender enquanto toda sua face era rasgada e descolada de sua cabeça, sendo sugada para dentro do vortex negro que se formara na folha de papel, deixando no lugar, onde antes se encontrava seu rosto, um buraco escuro onde se viam carne viva, veias rompidas e o crânio sob as camadas orgânicas que o revestiam.
“Os olhos...”, começou a refletir, sem entusiasmo, Sra. Maury, a mais antiga funcionária da casa, responsável pelos aspectos domésticos. Estava varrendo o fundo do enorme quarto de Willianson. “Os olhos”, continuou, “eles continuam. Ficam, pois servem para ver, para se contemplar o que foi de si e o que ficou”. Maury falava sem surpresa sobre que acontecera, sem sequer parar de varrer o pó.
Os olhos de Willianson estavam pendurados pelo nervo ótico que se juntava á fissura de sua cabeça, de onde fora arrancada sua face. E contemplavam com tristeza o reflexo na janela do quarto, o reflexo do que se tornara.
“Não é bonito”, era o jardineiro, Sr. Maxwine, que apareceu na janela do quarto, de repente. “Mas é o que te sobrou de bom”, prosseguiu, “caiu-te a face, e até que sobras um tanto de bom. És, tirando o que se mostra ser, um bom homem”.
Willianson agoniava. Não conseguia falar, mas emitia um grunhido de comovente desespero. Pelo corredor, que terminava no quarto, apareceu correndo Sra. Bovaly. Era baixa e gorda, uma mulher simples e grosseira, mas eficiente camareira. Ela entrou no quarto e com um sorrisinho maldoso contemplou o desespero de seu patrão.
Guilhary, o porteiro da casa, veio atrás pelo mesmo corredor, mas, ao contrário do sadismo de Bovaly e da indiferença de Maury e Maxwine, demonstrava preocupação e tristeza com a condição do “chefinho”, como carinhosamente chamava Willianson. Ao se dirigir ao quarto do patrão, Guilhary deixara o portão da casa aberto e sem proteção. Não demorou para curiosos, vindo de toda a pequena cidade, se espremerem no corredor e no quarto para terem uma visão da desgraça de Willianson.
Alguns riam, outros se impressionavam assustados, as crianças acompanhadas de seus pais choravam diante do macabro espetáculo. A mancha preta que já cobria quase toda a folha da carta, começou a se avolumar, projetando-se para fora do papel, movimentando-se em giros, como um redemoinho. Um grito agudo emergiu, subitamente, de uma das primeiras expectadoras da massa de curiosas. Era Bovary. Um buraco abrira bem no meio de sua barriga e suas tripas foram sugadas pela mancha preta, que agora já tinha tomado todo o papel e passava a se espalhar pela escrivaninha. Veio, anexada às tripas, uma espessa camada de gordura, deixando Bovary caída sobre o chão, como um balão vazio, urrando de dor. Dentro da carcaça que ficou, na fissura de sua barriga, batia ainda um enorme coração, encapado por uma grande massa de banha. O coração parecia lutar para dar cada batida, sob a pressão da jaula de gordura que o revestia. Não mais. O coração parou de bater e foi sugado para dentro da mancha peta que já cobria toda a escrivaninha e começava a se projetar sobre as paredes do quarto. A esta altura, Willianson, todos os curiosos e os funcionários da casa já tinham fugido do quarto e se concentravam no quintal que dava vistas para a janela do cômodo. Alguns, mais curiosos, se debruçavam no parapeito da janela para observar melhor o que acontecia dentro do quarto.
Padre Jonas, que também se encontrava no quintal, pronunciou em tom de sermão: “É tudo uma metáfora divina. A mancha representa a maldade que há dentro de nós! O coração da mulher deu poder a mancha, pois estava impregnado de pecados, era um coração distante de Deus! Os bons de coração serão salvos!”. Cautelosamente, o padre tomou a maior distância da mancha entre todos os curiosos.
Em pouco tempo, a mancha já havia tomado a casa toda e os curiosos, agora muito mais desesperados fugitivos do que curiosos, se distanciavam dela como podiam. Impiedosamente, foram sendo sugados um a um. E cada qual, de forma peculiar. O cientista, por exemplo, teve o cérebro arrancado violentamente de sua cabeça. Ele fazia pesquisas para laboratórios de medicamentos da capital – a pequena e provinciana cidade era um laboratório ideal para seus experimentos.
O padre correu como pôde, mas teve sua língua arrancada. Sentiu-se aliviado, no entanto, com o prognóstico de que pararia naquilo. Mas não demorou até ser devorado por inteiro pela mancha.
Alguns resistiram bastante e até imunes. O banqueiro e o dono da mina de carvão sobreviveram por muito tempo. Pareciam resistentes à mancha, mas, na verdade, apenas eram muito pesados, isto é, havia neles um volume muito elevado de mancha preta. Quando finalmente foram sugados, a mancha tomou proporções continentais. E cresceu em progressão geométrica até tomar todo o globo e depois se dissipar no espaço.
Alguns sobraram. Inclusive Willianson, sem seu rosto. Sobraram padres também, embora todos os bispos tenham sido sugados. Sobraram gente de todas as partes, de todos os tipos, ainda que poucos e mutilados. Era difícil imaginar que a Terra sobreviveria à tragédia, pois uma das condições primeiras para se retomar a vida é a reprodução e pouquíssimos mantiveram seus órgãos genitais.
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Professor Willianson lecionou história da religião na universidade da capital por muitos anos, no final do século XIX. Antes disso, era um garoto humilde, filho de pais pobres na pequena cidade onde voltou a viver depois de sua aposentadoria. Seus pais se sacrificaram muito para que ele pudesse ter estudos. Um dia finalmente conseguiram dar ao seu filho o que nunca sequer puderam sonhar. Willianson foi estudar na grande universidade da capital. Universidade aristocrática, onde só nobres e filhos de grandes burgueses frequentavam. No entanto, Willianson era brilhante e se consolidou como uma prodigiosa exceção.
Até que se tornou um deles. Foi um processo lento e doloroso. Willianson, aos poucos, foi negando os ensinamentos de seus pais, ignorando a humildade que caracterizava os simples camponeses da pequena cidade e que era tão estranha ao centro acadêmico da capital do qual agora ele fazia parte.
Willianson chegou ao cargo máximo, reitor da universidade da capital. Mas o sucesso cobrou seus custos. Não só negou aos ensinamentos dos seus pais, mas negou seus próprios pais. Quando informado pelo seu secretário pessoal que sua mãe estava adoecendo na cama de sua antiga casa, pediu um momento, foi ao banheiro e deixou cair uma lágrima. Limpou-a, saiu do banheiro e pediu para que o secretario cuidasse para que nunca chegasse ao público qualquer notícia de seus pais. Eles morreram e ele sequer deixou seu adeus.
Willianson foi um dos mais importantes nomes que a universidade da capital teve em sua história. Alcançou o ponto máximo de sua carreira. Ele havia se aposentado há uma década, quando se mudou para a pequena cidade onde nascera. Comprou a maior mansão.
Sentou-se na cadeira de seu quarto, diante da escrivaninha. Pegou uma folha branca de papel de carta, na segunda gaveta. Apanhou uma caneta e começou a escrever sua carta de suicídio. Uma tristeza lhe tomou a alma e uma lágrima lhe escorreu no rosto indo em direção ao papel branco. Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.