(...)
Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça
Vê c’os próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela
Pergunta: como aparece isto aqui?
Tens de tomar o comando.
"Louvor do aprender” por Bertolt Brecht
(tradução de Paulo Quintela,
Revista Vértice, Volume XXXI,
N.º 325, fevereiro 1971)
A missão da universidade integra três vertentes principais, aqui ordenadas por ordem de importância da seguinte forma: ensino e aprendizagem, investigação, ligação à sociedade. Na visão do autor e em breves palavras, a primeira diz respeito à formação integral dos estudantes, a segunda à criação do conhecimento e a terceira ao seu uso como instrumento de valorização social e económica. A generalidade das universidades integra nos seus planos estratégicos estas três vertentes, embora com diferentes pesos -- as universidades que se autoproclamam “research-led” privilegiam a investigação no seu discurso institucional, mas é bom não esquecer que aquela expressão é apenas uma forma abreviada de “research-led teaching” (onde a investigação não constituiu um fim, mas antes um meio para o atingir) e que o principal público-alvo da universidade são os estudantes. A predominância da investigação sobre a vertente de ensino e aprendizagem decorre na generalidade dos casos de uma razão mais prosaica e, na opinião do autor, contraproducente relativamente aos interesses dos estudantes -- a de constituir o critério de avaliação mais relevante nos concursos para a progressão na carreira académica. A discussão das razões que explicam esta posição levar-nos-ia mais longe do que o permitido pelo âmbito deste documento, mas vale ainda assim a pena tecer algumas considerações adicionais que explicam as principais opções tomadas pelo autor ao longo da sua vida profissional.
É interessante assinalar que a conhecida expressão “publish or perish” é comummente usada no sentido de traduzir a importância de publicar os resultados da investigação científica (mesmo que, teoricamente, se pudesse interpretar num sentido mais lato) e que não existe uma expressão equivalente no plano da atividade pedagógica. O serviço Ngram Viewer da Google indica que esta expressão iniciou o seu curso em meados da década de 1940 e começou a ganhar importância a partir de meados da década seguinte, como se ilustra na figura 1, o que induz desde logo a sugestão de estarmos perante uma transformação de paradigmas que decorre de uma visão utilitária do ensino superior, indissociável do esforço de reconstrução que se seguiu à segunda guerra mundial.
Defendendo as as razões que sustentam uma visão utilitária do ensino superior, o autor já considera menos aceitável a preponderância que a investigação veio a assumir nesse contexto. A já assinalada inexistência de uma expressão equivalente para realçar a importância da produção de conteúdos pedagógicos, ou da excelência do trabalho dos professores universitários nesta vertente da sua atuação, é só por si sintomática de um desequilíbrio que se foi consolidando ao longo dos anos e que tem sido reforçado, ao longo da última década, com o impacto mediático dos rankings universitários -- basta citar, como exemplo, que a Times Higher Education (THE), apesar de atribuir iguais pesos (30%) às áreas de “Teaching” e “Research”, atribui depois mais 30% às citações (“Research Influence”), dando também deste modo dupla importância à atividade de investigação. Não devemos no entanto esquecer que os rankings universitários sustentam diversos modelos de negócio e que a principal fonte de receita das empresas que operam neste setor deriva de serviços de comunicação e imagem, que serão tanto mais credíveis quanto mais factuais forem as bases que servem para a ordenação das instituições -- o que é muito mais fácil de conseguir no caso da investigação e das citações, por não faltarem dados públicos nessa área, do que no ensino e aprendizagem, onde é muito mais importante o peso do pouco verificável “inquérito reputacional”. Se a estas reflexões acrescentarmos o facto de os rankings internacionais abrangerem apenas uma pequena parte (5 a 10%?) das universidades existentes, com um enfoque claro nas universidades de elite, resulta daqui uma inevitável desconfiança, não apenas no que respeita a servirem prioritariamente os interesses daqueles que são, em última análise, o seu público-alvo principal (os estudantes), mas também da influência que possam ter sobre opções estratégicas das instituições de ensino superior -- e, entre elas, naturalmente, aquelas que definem o modelo de atividade do pessoal académico.
No seu interessantíssimo e largamente intemporal ensaio intitulado “Missão da Universidade”, Ortega y Gasset reconhece que “a Universidade é distinta, mas inseparável da ciência” (p.87). É no entanto contundente no que respeita à ordenação de prioridades (p. 62): “Desastrosa tem sido a tendência que levou ao predomínio de «investigação» na Universidade. Daí tem resultado a perda do mais importante: a cultura”; e, mais adiante, no 5.º dos seis pontos que elabora para responder à pergunta subjacente ao título (p. 83): “Na seleção do professorado, o dom que mais será tido em conta não deverá ser o prestígio que o candidato acaso possuir como investigador, mas sim o talento sintético e os seus dotes de professor”.
Ao considerar a transformação do modelo de universidade ao longo dos tempos, Ortega y Gasset assinala (p. 30): “se nos reportarmos à época em que a universidade foi criada -- Idade Média --, vemos que o resíduo atual é a humilde sobrevivência do que então constituía, inteira e propriamente, o ensino superior (...) [--] o sistema de ideias sobre o Mundo e a Humanidade que o homem de então possuía. Era, enfim, o repertório de convicções que havia de dirigir efetivamente a sua existência”. Ao refletir sobre a entrada da investigação como componente de missão, o filósofo espanhol afirma o seguinte (p. 32): “Comparada com a medieval, a Universidade contemporânea complicou enormemente o ensino profissional que aquela em germe proporcionava, e adicionou-se a investigação, retirando quase por completo o ensino ou transmissão de cultura. O que foi evidentemente uma barbaridade, cujas funestas consequências estão a ser pagas agora pela Europa”.
A intemporalidade incontestável de muitas das reflexões apresentadas não retira interesse à consideração da época em que este ensaio foi escrito. De acordo com as palavras introdutórias do tradutor para a versão portuguesa, Sant’Anna Dionísio, ele próprio formado no contexto de uma instituição ímpar no panorama pedagógico do ensino superior português -- a primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto --, o ensaio citado foi escrito para apresentação na “Universidade de Espanha perante os escolares madrilenos da generosa e febril geração de 1929”, tendo sido publicado pela primeira vez em 1930, portanto no fim de uma década em que o mundo, não tendo ainda esquecido a devastação criada pela primeira guerra mundial, assistia aos efeitos da crise económica de 1929. E poderá não ter sido por acaso que o tradutor concluiu este seu trabalho em junho de 1945, quando o mundo ensaiava os primeiros passos após uma conflagração de consequências ainda mais funestas…
As críticas ao predomínio da investigação sobre a cultura, tão lamentado por Ortega y Gasset, não foram totalmente esquecidas, mas perderam terreno à medida que a expressão “Publish or Perish” foi ganhando curso na segunda metade do século XX. Em 1977, no primeiro volume das suas “Memórias de um Letrado”, o filósofo Álvaro Ribeiro, ele próprio também formado na primeira Faculdade de Letras portuense e confesso admirador do homem que a criou (Leonardo Coimbra), defende (p. 87) as virtudes de um primeiro ciclo do ensino liceal que oferecesse aos jovens um ano de gramática (“a arte poética, na pura aceção aristotélica”), como preparação para um segundo ano de retórica (“a qual é a de argumentar a favor do pensamento próprio”) e de um terceiro ano de dialética (“que é a arte de refutar o pensamento alheio”). Podemos apenas conjeturar sobre o impacto que uma tal formação de base teria sobre o desenvolvimento intelectual dos jovens que atualmente ingressam no ensino superior, mas não deixam de ser premonitórias, na era do Twitter, as palavras com que Álvaro Ribeiro lamenta um facto que bem poderia reportar-se aos dias de hoje (p. 97): “Qualquer pessoa bruta, rude ou ignara é hoje chamada ou admitida a titubear nos «meios de comunicação social»” -- se algumas frases são plenas de atualidade, esta é certamente uma delas, inevitavelmente acompanhada por tudo o que de bom e de mau isso implica para a democracia… Ou, regressando agora às palavras de Ortega y Gasset, estas diretamente relacionadas com o contexto que aqui mais nos interessa (p. 32): “Este novo bárbaro, é, na verdade, o profissional mais sábio que nunca, mas o mais inculto também -- é o engenheiro, o médico, o advogado, o homem de ciência dos nossos dias”.
Ao entrarmos na década em que as palavras de Ortega y Gasset completarão um século, são, como foi já referido, abundantes os sinais de um predomínio cada vez maior da investigação sobre a formação. Predomínio agora reforçado por uma ânsia de bem aparecer nos rankings internacionais, para os quais contribuem principalmente os índices de produtividade científica. Quererá isto dizer que a transformação de paradigmas, desejável e inevitável por múltiplas razões, desvalorizou definitivamente as reflexões que criticam o predomínio da vertente científica? Não é essa a opinião do autor, nem é essa a conclusão que poderemos tirar se analisarmos a declaração de missão de algumas das mais importantes universidades internacionais. Se considerarmos o caso da Universidade de Oxford, reconhecidamente aceite como uma universidade de excelência à escala global, encontramos a seguinte formulação de missão: “The advancement of learning by teaching and research and its dissemination by every means”. Repare-se que esta formulação não só coloca a aprendizagem à cabeça da missão, mas também coloca a palavra ensino antes da investigação. No caso da Universidade do Porto, a declaração de missão está formulada nos seguintes termos: “A U.Porto tem por missão a criação de conhecimento científico, cultural e artístico, a formação de nível superior fortemente ancorada na investigação, a valorização social e económica do conhecimento e a participação ativa no progresso das comunidades em que se insere.” Do que foi dito até agora depreende-se que o autor destas linhas não formularia a declaração de missão nesta exata forma -- admite naturalmente que se trata de uma escolha legítima, ainda que não fosse a sua, mas não deixa de assinalar que ela contribui para a formulação de critérios de progressão na carreira pouco compatíveis com o discurso que normalmente acompanha a apreciação dos resultados dos inquéritos pedagógicos, ou com a oposição a modelos pedagógicos centrados no professor e baseados em aulas expositivas, certamente menos trabalhosos para todos, mas claramente insuficientes para lidar com os desafios criados pela transformação digital da educação.
Se bem que diretamente relacionado com a vertente pedagógica da nossa missão institucional, o poema de Bertolt Brecht apresentado como citação de abertura traduz de forma admirável um conjunto de vontades que concorrem transversalmente para enriquecer o desempenho da missão no seu todo. É ainda particularmente interessante que a sua tradução tenha sido feita por Paulo Quintela, distinto Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, “mediador entre culturas”, nas suas próprias palavras, “cidadão empenhado e defensor convicto da liberdade de pensamento e expressão”, nas palavras do Instituto Camões, que não deixam dúvidas sobre as prioridades que norteavam a sua atuação: “colocou-se abertamente ao lado dos estudantes nas crises académicas de 1962 e 1969, tendo sido eleito em 1964 sócio honorário da Associação Académica de Coimbra.” As escolhas por ele feitas ao longo da vida explicam que apenas no final da sua carreira tenha ascendido a Professor Catedrático. A apresentação feita pelo Instituto Camões recorda ainda a sua personalidade integral e humanista, citando Manuel Alegre para realçar “o inestimável trabalho de formação teatral, estética, cultural e cívica levado a cabo por Paulo Quintela nos longos ensaios e nas encenações do TEUC: «Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo / como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.»”
As palavras de Bertolt Brecht espelham bem os princípios que na gíria académica são tantas vezes designados por “aprendizagem ativa” e são por isso frequentemente citadas pelo autor deste documento na sua prática letiva. No plano mais abrangente da sua atividade como professor universitário, que transparece naturalmente ao longo destas páginas, tomamos como modelo as palavras com que Manuel Alegre termina o elogio de Paulo Quintela: “tudo pode ser ousado desde que se aprenda a entrar a tempo, a colocar a voz e a não perder a alma.”
A seguir: Atividades científicas -- Produção científica