CENÁRIOS DO PASSADO, RESISTÊNCIA DO PRESENTE

Por Edno Paulino de Luna

Prof. de Geografia

Mestre em Educação

Diretor de Cultura



Quando um rio corta, corta-se de vez

O discurso-rio de água que ele fazia;

Cortado, a água se quebra em pedaços,

Em poços de água, em água paralítica.

Em situação de poço, a água equivale

A uma palavra em situação dicionária:

Isolada, estanque no poço dela mesma,

E porque assim estanque, estancada;

E mais: porque assim estancada, muda,

E muda porque com nenhuma comunica,

Porque cortou-se a sintaxe desse rio,

O fio de água por que ele discorria.

João Cabral de Melo Neto

É lamentável o que tem ocorrido em muitos lugares do estado da Paraíba no que tange o patrimônio histórico. Pois, em se tratando dessas questões percebe-se o casario antigo esquecido; as memórias não escritas; os folguedos e festas convertidos a um passado na memória dos anciãos e anciãs que se vão a cada curva chamada ano, mês ou dia. Por assim dizer, deve se atentar para o que pode ser chamado de remanescentes históricos, resquícios do passado que necessitam de ações urgentes em prol de sua preservação e, por conseguinte, sua revitalização.

Para que esses temas sejam considerados e valorizados [...] é preciso que seja exposto, discutido e dialogado. Fazer com que o “rio do discurso” flua, siga seus meandros e alcance o máximo de pessoas e que se traduza em um compartilhar de conhecimentos, de saberes entre povo e ciência.

[...]. A não valorização do patrimônio histórico e dos elementos que constroem/compõem a memória de um povo permite que o tempo apague os traços de suas histórias por meio da nebulosidade da desinformação, sem que os munícipes usufruam de seus significados e vantagens que tais conhecimentos podem gerar, como se apresentam adiante.

[...].Os casarões são marcos da história em Sobrado, o que torna possível observar a presença de um patrimônio edificado sensível à memória do município. Desses traços que rememoram meados do século [XVIII] XIX na paisagem urbana, em sua rua principal, Manoel de Sales, se encontra um conjunto de casas antigas que atravessaram as décadas nos diversos momentos da história sempre assumindo funções que vão de prédio público à residência.

Numa análise superficial da paisagem, podem-se detectar vestígios de três períodos da história do município fazendo um exercício muito simples no centro da cidade. Talvez, essa forma de análise, – algo que soa como pragmatismo metodológico para acepções primeiras daquilo que se propõe nesse estudo [ensaio] – possa ser um exercício interessante para se realizar também noutros lugares. Parar defronte à igreja matriz (Foto 1), também uma das unidades dessa herança histórica do município, – concluída por volta de 1891, mesmo ano em que fora instalado o Cartório de Paz desse município (FERREIRA, 2009) – , observar cada fachada, cada telhado daquele entorno. O que torna possível comparar as diferentes formas das residências novas e mais antigas, ou seja, é um exercício ligeiro, sem grande apuro técnico, mas facilmente exequível e convidativo até.

Foto 1: Igreja matriz de Sobrado. Fonte: Edno Paulino de Luna.

Nesse olhar contemplativo pode ser percebido que a paisagem fala, se apressa em querer dizer algo que está ali implícito, necessitando fazer-se o exercício de ler os elementos que permitem engendrar estudos voltados para a compreensão de como se deu a formação do antigo povoado do Sobrado. São símbolos e signos que permitem a busca por vieses investigativos para entender estruturas da sociedade da época, incluindo as mudanças que ocorreram na economia, sociedade e cultura naquele tempo.

Tais observações implicam em provocações, anseios por compreender como esse povoado, hoje município, pode buscar alternativas para uma valorização de sua cultura e patrimônio histórico, em prol de atividades que possam movimentar ou criar uma nova dinâmica no setor econômico [comércio e turismo], por exemplo, além do âmbito da educação. Portanto, desse lugar de observador, pode ser realizada uma leitura bastante ampla, que vai desde a apreciação dos elementos construtivos e decorativos, até percepção da harmonia nos traços arquitetônicos característicos de uma época, região ou técnica construtiva peculiar local, dentre outras nuances que exigem um olhar cuidadoso.

De princípio, entende-se que os contornos das janelas e as figuras geométricas de uma fachada (Foto 2), além da espessura das paredes, o formato dos telhados (Foto 3), a data na fachada (Foto 4), são registros de um passado que podem enriquecer o turismo e fomentar a educação patrimonial, atraindo futuros investimentos no setor da cultura e demais áreas, se constituindo uma alternativa viável para consolidar o lugar do patrimônio edificado na cultura local e na história do município e do munícipe.

Foto 2: Antiga residência (a).

Fonte: Edno Paulino de Luna.

Foto 4: Antiga residência (c), situada na rua Júlio Guabiraba, que pertenceu a Família Silva Sales.

Fonte: Edno Paulino de Luna.

Foto 3: Antiga residência (b), datada de 1896, ano de sua reforma.

Fonte: Edno Paulino de Luna

Além do conjunto centenário que compreende as casas, a igreja matriz de denominação católica e o galpão, há outro grupo de residências que remetem a década de 1970 [ou décadas anteriores/próximas] e outro mais recente. Não fosse a presença dos casarões, o olhar investigativo, possivelmente não teria a acuidade de perceber tais momentos históricos, que para melhor compreensão classificaremos a seguir:

Os antigos casarões servem de parâmetro comparativo entre as demais casas do centro de Sobrado, contribuindo para a elaboração do quadro acima. Não se quer, no entanto, traçar um estudo arquitetônico, porém como é elencado desde o início, elaborar reflexões sobre o assunto e que possam provocar posteriores investigações.

Existe uma série de documentos que foram registrados em livros e pequenas brochuras dos senhores Juraci Marques e Adauto Ramos se constituem subsídios, ou mesmo, um rumo inicial para o processo de futuras pesquisas somadas a essa paisagem urbana. Porém, é necessário que todos esses conhecimentos alcancem algo mais além da mesa dos pesquisadores, que sejam informações difundidas e disponíveis para todos e, nesse sentido, faz-se necessário que esses conhecimentos façam parte dos eventos, dos movimentos e ações públicas do município. Assim como muitas cidades brasileiras que aproveitaram sua história de maneira multidisciplinar e multifatorial (economicamente, culturalmente, socialmente). Trata-se, portanto de um ponto de vista aqui traçado, acreditar que assim deve se proceder para o estabelecimento de uma história dinâmica, viva.

O quadro apresentado demarca alguns períodos da história do município segundo os estilos e ou técnicas construtivas, mas, não contém a precisa exatidão dos marcos desta história secular, porém é-nos o pontapé inicial, o ponto de partida para futuras investigações. Todavia, o que se quer é tão somente demonstrar a riqueza de informações aparentemente escondidas, não valorizadas. Está latente na paisagem, mas, implícita no que diz respeito ao seu significado para esse pequeno lugarejo.

Sobre a memória registrada, há que se valorizar o que diz Patativa do Assaré, poeta cearense de reconhecida palavra na Cultura Popular brasileira, sobretudo, nordestina. O autor diz: “Poeta, Cantô da rua, Que na cidade nasceu, Cante a cidade que é sua, Que eu canto o sertão que é meu. [...]” (ASSARÉ, 2003, p. 25). Nesse sentido, ao ponderar acerca do significado de se promover um ativismo em prol da cultura do município de Sobrado, há de se ter cuidado de não recair numa dicotomia, sobretudo, por questões de ordem local, popular e coisas relacionadas ao que se propaga de forma massiva, cultura de massa, outras manifestações, por exemplo.

Por esse viés, aponte-se para o fato de que por meio das novas tecnologias de comunicação, em especial pela interatividade que permite o acesso às mais diversas manifestações culturais espalhadas por todo o globo. Dessa forma, o ativismo pró-cultura não pode assumir quaisquer valores de ordem etnocêntrica, embora pareça ser “comum”, porém, não pode ser “normal/natural”:


[...] O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão a considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais (LARAIA, 2009, p. 68, 72-73).


Eis que está posto um problema. O que pode se observar no município de Sobrado como foco de necessária observação não repousa em um pressuposto de viés etnocêntrico, mas está centrado no fator cultura de massa versus cultura local e assim segue-se todo um pensamento que configura uma demanda educativa, ou seja, uma ação de ordem pedagógica.

O escritor Juraci Marques é autor de obras voltadas para a construção da memória documental do município de Sobrado, além da Microrregião Sapé. Publicou o livro Sobrado dos Meus Ancestrais, em 2011, também a obra Sobrado: o velho cartório de paz (1891-1900) e O processo Histórico de Sapé que cita a Vila do Sobrado configuram valiosos materiais investigativos para [...] dar continuidade aos estudos históricos e multidisciplinares acerca do município, sua memória e gente. Sobre o autor, deve ser lembrado que Juraci Marques pertence a uma das principais famílias que viveram no antigo lugarejo [...].

Nessas obras residem as informações sobre a forma de como o declínio econômico dessa antiga vila decorreu da evolução política e econômica do Município de Sapé, sobretudo, quando se construiu a linha férrea por volta dos últimos 30 anos do século XIX, quando cita 1871 como data inicial. (FERREIRA, 2013, p. 31). Até onde pode ser investigado, os sapeenses não dispõem de edificações tão antigas em seu núcleo urbano quanto as de seu velho distrito, Sobrado.

[...] não se trata de apenas escrever/registrar a história local e mapear as manifestações culturais, o peso recai sobre a responsabilidade de tornar tudo isso notório, palpável no cotidiano [das] pessoas ou serão apenas palavras estanques, rios sem discurso, como disse o poeta João Cabral de Melo Neto e, como bem salienta Bosi (1994, p. 81), “existe uma memória voltada para a ação, feita de hábitos e uma outra que simplesmente revive o passado [...]”.

É preciso ainda, já incorrendo na redundância, que o conhecimento (da cultura e da memória registrada) redunde em ação. A ação pedagógica, a ação transformadora e que intervenha – no mais afável e amoroso sentido desta palavra – na vida da sociedade. Assim:


Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. (FREIRE, 2002, p. 38).


Sobrado Antigo, Sobrado Distrito e Sobrado Emancipado são períodos que certamente podem ser demarcados e problematizados até que se chegue a ações capazes de desvelar a importância histórica desse município dentro dos seus respectivos contextos, promover uma educação que valorize os saberes do povo e das suas tradições, que preserve suas manifestações culturais sob a égide do respeito combativo ao etnocentrismo pondo em equilíbrio a cultura regional/local frente a cultura de massa.


Do ponto de vista epistemológico, a razão transformadora orienta a existência do conhecimento para as necessárias transformações da vida. [...] Mas a ciência “abstrata” que, simplesmente, leva ao estudo do fenômeno fora da realidade, conforme a imagem de Japiassu (1976, p. 14), é algo parecido com cegos que são conduzidos por outros cegos. E, mais: “A ciência é a consciência do mundo. A doença do mundo moderno corresponde a um fracasso, a uma demissão do saber” (FELIPE; MELO NETO, p. 236, 246-247, no prelo).


Dessa forma, o que fica à superfície é que o problema não está no fato das pessoas, principalmente as mais jovens, saberem e consumirem o que o “mundo” via internet os oferece. A questão é saber da “História do Brasil” e o nome dos quatro componentes do “The Beatles” e esquecer a própria história, a saber, a que está intrinsecamente ligada à condição pessoal da vida, aquela que se vive em um contexto local. E nessa concepção, há aqui uma defesa de ações projetadas que possuidoras de temáticas que ecoem sobre a cultura local, história, patrimônio material e imaterial desses lugares espremidos nos recônditos da macro história.

Nesse entendimento, é possível a criação de eventos como feiras, festivais de música, saraus poéticos, encontros literários, fóruns de debates, festas de rua, homenagens, efemérides, bibliotecas ou estantes com a temática específica, museus, memoriais, galerias, encontro com artistas locais/ regionais, estudos/oficinas e apresentação com brincantes de folguedos locais/regionais etc. Dessa forma, dinamizar a tônica de uma educação que reverbere em ações é “tocar no assunto”, criar a atmosfera, colocar-se de maneira contrária ao desconhecimento, porque é no “não saber” onde reside o preconceito, a apatia, a desvalorização.

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Fonte: LUNA, Edno paulino de. Sobrado/PB, nos recônditos da macrohistória: da necessidade de uma educação revitalizadora da memória e patrimônio, in SOUZA, Alexandre Soares. Caminhos da Construção Compartilhada do Conhecimento: Experiências e Reflexões (livro eletrônico). / Alexandre Soares de Sousa...[et al.]; organizado por: Pedro José Santos Carneiro Cruz. - 1. ed. - João Pessoa, PB: Editora do CCTA, Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2020, p. 17-30.