Início da viagem para Roma

Quando foi decidido navegarmos para a Itália, entregaram Paulo e alguns outros prisioneiros a um centurião, de nome Júlio, da coorte Augusta. Embarcando em um navio de Adramítio, que iria navegar por lugares da [costa da] Ásia, zarpamos, estando conosco Aristarco, macedônio de Tessalônica. Atos 27:1 a 2

Escusado dizer que recebeu a notícia com serenidade. Depois de um entendimento com Lucas, pediu que a Igreja de Jerusalém fosse avisada, bem como a de Sidom, onde o navio, certo, haveria de receber carga e passageiros. Todos os amigos de Cesareia foram mobilizados no serviço das comovedoras mensagens que o ex-rabino dirigiu às amadas igrejas, menos Timóteo, Lucas e Aristarco, que se propunham acompanhá-lo à capital do Império.

Os dias correram céleres, até que chegou o momento em que o centurião Júlio com a sua escolta foi buscar os prisioneiros para a viagem tormentosa. O centurião tinha plenos poderes para determinar todas as providências e, logo, evidenciando simpatia pelo Apóstolo, ordenou fosse ele conduzido à embarcação desalgemado, em contraste com os demais prisioneiros.

O tecelão de Tarso, apoiado ao braço de Lucas, reviu, placidamente, a tela clara e barulhenta das ruas, afagando a esperança de uma vida mais alta, em que os homens pudessem gozar fraternidade em nome do Senhor Jesus. Seu coração mergulhava em doces reflexões e preces ardentes, quando foi surpreendido com a compacta multidão que se premia e agitava na extensa praça à beira-mar.

Filas de velhos, de jovens e crianças aglomeraram-se junto dele, a poucos metros da praia. À frente, Tiago, alquebrado e velhinho, vindo de Jerusalém com grande sacrifício, por trazer-lhe o ósculo fraternal. O ardente defensor da gentilidade não conseguiu dominar a emoção. Bandos de crianças atiraram-lhe flores. O filho de Alfeu, reconhecendo a nobreza daquele espírito heroico, tomou-lhe a destra e beijou-a com efusão. Ali estava com todos os cristãos de Jerusalém, em condições de fazer a viagem. Ali estavam confrades de Jope, de Lida, de Antipátride, de todos os quadrantes provinciais. As crianças da gentilidade uniam-se aos pequeninos judeus, que saudavam carinhosamente o Apóstolo prisioneiro. Velhos aleijados aproximavam-se respeitosos e exclamavam:

— Não deveríeis partir!...

Mulheres humildes agradeciam os benefícios recebidos de suas mãos. Doentes curados comentavam a colônia de trabalho que ele sugerira e ajudara a fundar na Igreja de Jerusalém e proclamavam sua gratidão em altas vozes. Os gentios, convertidos ao Evangelho, beijavam-lhe as mãos, murmurando:

— Quem nos ensinará, doravante, a sermos filhos do Altíssimo?

Meninos amorosos apegavam-se-lhe à túnica, sob os olhares de mães consternadas.

Todos lhe pediam que ficasse, que não partisse, que voltasse breve para os serviços abençoados de Jesus.

Subitamente, recordou a velha cena da prisão de Pedro, quando, ele, Paulo, arvorado em verdugo dos discípulos do Evangelho, visitara a Igreja de Jerusalém, chefiando uma expedição punitiva. Aqueles carinhos do povo lhe falavam brandamente à alma. Significavam que já não era o algoz implacável que, até então, não pudera compreender a Misericórdia Divina; traduziam a quitação do seu débito com a alma do povo. De consciência um tanto aliviada, recordou-se de Abigail e começou a chorar. Sentia-se, ali, como no seio dos “filhos do Calvário” que o abraçavam reconhecidos. Aqueles mendigos, aqueles aleijados, aquelas criancinhas eram a sua família. Naquele inesquecível minuto da sua vida, sentia-se plenamente identificado no ritmo da harmonia universal. Brisas suaves de mundos diferentes balsamizavam-lhe a alma, como se houvesse atingido uma região divina, depois de vencer grande batalha. Pela primeira vez, alguns pequeninos chamaram-lhe “pai”. Inclinou-se, com mais ternura, para as criancinhas que o rodeavam. Interpretava todos os episódios daquela hora inolvidável como uma bênção de Jesus que o ligava a todos os seres. À sua frente, o oceano em calma assemelhava-se a um caminho infinito e promissor de misteriosas e inefáveis belezas.

Júlio, o centurião da guarda, aproximou-se comovido e falou com brandura:

— Infelizmente, chegou o momento de partir.

E, testemunha das manifestações tributadas ao Apóstolo, também ele tinha os olhos úmidos. Muitos réus se lhe haviam já deparado naquelas circunstâncias e eram todos revoltados, desesperados, ou penitentes arrependidos. Aquele, porém, estava sereno e quase feliz. Júbilo indizível lhe transbordava dos olhos brilhantes. Além disso, sabia que aquele homem, dedicado ao bem de todas as criaturas, não cometera falta alguma. Por isso mesmo, conservou-se ao seu lado, como querendo compartilhar dos transportes afetuosos do povo, como a demonstrar a consideração que lhe merecia.

O Apóstolo dos Gentios abraçou os amigos pela última vez. Todos choravam discretamente, à maneira dos sinceros discípulos de Jesus, que não pranteiam sem consolo: as mães ajoelhavam-se com os filhinhos na areia alva, os velhos, apoiando-se a rudes cajados, com imenso esforço. Todos os que abraçavam o campeão do Evangelho punham-se de joelhos, rogando ao Senhor que abençoasse o seu novo roteiro.

Concluindo as despedidas, Paulo acentuava com serenidade heroica:

— Choremos de alegria, irmãos! Não há maior glória neste mundo que a de estar o homem a caminho de Cristo Jesus!... O Mestre foi ao encontro do Pai pelos martírios da Cruz! Abençoemos nossa cruz de cada dia. É preciso trazermos as marcas do Senhor Jesus! Não acredito possa voltar aqui, com este alquebrado corpo de minhas lutas materiais. Espero que o Senhor me conceda o derradeiro testemunho em Roma; entretanto, estarei convosco pelo coração; voltarei às nossas Igrejas em Espírito; cooperarei no vosso esforço nos dias mais amargos. A morte não nos separará, tal como não separou o Senhor da comunidade dos discípulos. Nunca estaremos distantes uns dos outros e, por isso mesmo, prometeu Jesus que estaria ao nosso lado até o fim dos séculos!...

Júlio ouviu a exortação comovidamente. Lucas e Aristarco soluçavam baixinho.

A seguir, o Apóstolo tomou o braço do médico amigo e, seguido de perto pelo centurião, caminhou resoluto e sereno em demanda do barco.

Centenas de pessoas acompanharam as manobras da largada, em santificado recolhimento regado de lágrimas e preces. Enquanto o navio se afastava lento, Paulo e os companheiros contemplavam Cesareia, de olhos umedecidos. A multidão silenciosa, dos que ficavam em pranto, acenava e ondeava na praia que a distância, aos poucos, diluía. Jubiloso e reconhecido, Paulo de Tarso descansava o olhar no campo de suas lutas acerbas, meditando nos longos anos de viltas e reparações necessárias. Recordava a infância, os primeiros sonhos da juventude, as inquietações da mocidade, os serviços dignificantes do Cristo, sentindo que deixava a Palestina para sempre. Grandiosos pensamentos o empolgavam, quando Lucas se aproximou e, apontando a distância os amigos que continuavam genuflexos, exclamou brandamente:

— Poucos fatos me comoveram tanto no mundo como este! Registrarei nas minhas anotações como foste amado por quantos receberam das tuas mãos fraternais o benefício de Jesus!...

Paulo pareceu ponderar profundamente a advertência e acentuou:

— Não, Lucas. Não escrevas sobre virtudes que não tenho. Se me amas, não deves expor meu nome a falsos julgamentos. Deves falar, isso sim, das perseguições por mim movidas aos seguidores do Santo Evangelho; do favor que o Mestre me dispensou às portas de Damasco, para que os homens mais empedernidos não desesperem da salvação e aguardem a sua misericórdia no momento justo; citarás os combates que temos travado desde o primeiro instante, em face das imposições do farisaísmo e das hipocrisias do nosso tempo; comentarás os obstáculos vencidos, as humilhações dolorosas, as dificuldades sem conta, para que os futuros discípulos não esperem a redenção espiritual com o repouso falso do mundo, confiantes no favor incompreensível dos deuses, e sim com trabalhos ásperos, com sacrifícios abençoados pelo aperfeiçoamento de si mesmos; falarás de nossos recontros com os homens poderosos e cultos; de nossos serviços junto dos desfavorecidos da sorte, para que os seguidores do Evangelho, no futuro, não se arreceiem das situações mais difíceis e escabrosas, conscientes de que os mensageiros do Mestre os assistirão, sempre que se tornem instrumentos legítimos da fraternidade e do amor, ao longo dos caminhos que se desdobram à evolução da Humanidade.

E, depois de longa pausa, em que observou a atenção com que Lucas lhe acompanhou os inspirados raciocínios, prosseguiu em tom sereno e firme:

— Cala sempre, porém, as considerações, os favores que tenhamos recolhido na tarefa, porque esse galardão só pertence a Jesus. Foi Ele quem removeu nossas misérias angustiosas, enchendo o nosso vácuo; foi sua mão que nos tomou caridosamente e nos reconduziu ao caminho santo. Não me contaste tuas lutas amargurosas no passado distante? Não te contei como fui perverso e ignorante em outros tempos? Assim como iluminou minhas veredas sombrias, às portas de Damasco, levou-te Ele à Igreja de Antioquia, para que lhe ouvisses as Verdades eternais. Por mais que tenhamos estudado, sentimos um abismo entre nós e a sabedoria eterna; por mais que tenhamos trabalhado, não nos encontramos dignos daquele que nos assiste e guia desde o primeiro instante da nossa vida. Nada possuímos de nós mesmos!... O Senhor enche o vácuo de nossa alma e opera o bem que não possuímos. Esses velhinhos trêmulos que nos abraçaram em lágrimas, as crianças que nos beijaram com ternura, fizeram-no ao Cristo. Tiago e os companheiros não vieram de Jerusalém tão só para manifestar-nos sua fraternidade afetuosa, vieram trazer testemunhos de amor ao Mestre que nos reuniu na mesma vibração de solidariedade sacrossanta, embora não saibam traduzir o mecanismo oculto dessas emoções grandiosas e sublimes. No meio de tudo isso, Lucas, fomos apenas míseros servos que se aproveitaram dos bens do Senhor para pagar as próprias dívidas. Ele nos deu a Misericórdia para que a Justiça se cumprisse. Esses júbilos e essas emoções divinas lhe pertencem... Não tenhamos, portanto, a mínima preocupação de relatar episódios que deixariam uma porta aberta para a vaidade incompreensível. Que nos baste a profunda convicção de havermos liquidado nossos débitos clamorosos...

Lucas ouviu admirado essas considerações oportunas e justas, sem saber definir a surpresa que lhe causavam.

— Tens razão — disse finalmente —, somos fracos demais para nos atribuirmos qualquer valor.

— Além disso — acrescentou Paulo —, a batalha do Cristo está começada. Toda vitória pertencerá ao seu amor, e não ao nosso esforço de servos endividados... Escreve, portanto, tuas anotações do modo mais simples e nada comentes que não seja para glorificação do Mestre no seu Evangelho imortal!...

Enquanto Lucas procurava Aristarco para transmitir-lhe aquelas sugestões sábias e afetuosas, o ex-rabino continuava fitando o casario de Cesareia, que se apagava agora no horizonte. A embarcação navegava suavemente, afastando-se da costa... Por longas horas, deixou-se ficar ali, meditando o passado que lhe surgia aos olhos espirituais, qual imenso crepúsculo. Mergulhado nas reminiscências entrecortadas de preces a Jesus, ali permaneceu em significativo silêncio, até que começaram a brilhar no firmamento muito azul os primeiros astros da noite.

(Paulo e Estêvão. FEB Editora. Segunda parte – Cap. 8, p. 434 a 439)