DESCARTES - Penso, logo existo
Segunda Meditação
Da natureza do espírito humano
1. A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas que, de agora em diante, não está mais em meu poder esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que forma poderia resolvê-las (...). Esforçar- me-ei, não obstante, e seguirei mais uma vez a mesma via que percorri ontem, afastando-me de tudo aquilo em que eu puder imaginar a menor dúvida, tal como se soubesse que isso fosse absolutamente falso; e continuarei sempre por esse caminho até que tenha encontrado algo de certo ou, pelo menos, se outra coisa não for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada de certo no mundo. 2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de sua posição e transportá-lo para outro local, nada pedia senão um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for feliz o bastante para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.
3. Suponho, então, que todas as coisas que vejo são falsas (...). O que, portanto, poderá ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa, a não ser que não há nada de certo no mundo.
4. Diante disso, como é que sei se não há alguma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não há algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito esses pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez eu seja capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu, então, pelo menos, não sou algo? Ocorre que já neguei que eu tivesse algum sentido ou algum corpo. Hesito, no entanto, pois o que se segue disso? Sou de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Eu já me persuadira, contudo, de que não havia nada no mundo, de que não havia céu algum, terra alguma, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi, então, de que eu tampouco existia? Com certeza, não; eu existia sem dúvida, se me persuadi de algo ou se apenas pensei algo. Há, porém, algum não sei qual enganador muito poderoso e muito ardiloso que emprega toda a sua destreza em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, que ele me engane quanto quiser, não poderá jamais fazer que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. Desse modo, após ter pensado bem nisso e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, é preciso, enfim, concluir e ter por constante que esta proposição, Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito.
5. Não conheço, porém, ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou. Por isso, daqui para frente é preciso que eu atente com todo cuidado para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim e, assim, não me equivocar sobre este conhecimento que sustento ser mais certo e mais evidente que todos os que tive até então. (...)
7. Ora, o que sou eu, eu que agora suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e toda a sua destreza em enganar-me? Posso estar seguro de possuir a menor de todas as coisas que acima atribuí à natureza corpórea? Detenho-me a pensar nisso com atenção, passo e repasso todas essas coisas em meu espírito, e não encontro nenhuma que eu possa dizer estar em mim. Não é necessário que me detenha a enumerá-las. Passemos, então, aos atributos da alma, e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e andar; mas, se é verdade que não tenho corpo, é verdade também que não posso andar nem me alimentar. Um outro é sentir; mas tampouco se pode sentir sem o corpo; além disso, pensei sentir em outros tempos várias coisas durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido de fato. Um outro é pensar; e noto aqui que o pensamento é um atributo que me pertence: só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois talvez poderia ocorrer que, se eu cessasse de pensar, cessaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Eu nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: não sou, então, falando com precisão, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação para procurar saber se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros a que chamam corpo humano; não sou um ar sutil e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, já que supus que tudo isso não era nada e que, sem mudar essa suposição, noto que não deixo de estar certo de que sou alguma coisa.
Fonte: DESCARTES. Segunda Meditação. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED – Pr. 2009, pp