Os Campos Santos: anotações a partir de visitas

A visita a um cemitério sempre se constituiu numa atitude solene e revestida de tristeza. A lembrança do ente querido ali sepultado sempre evoca sentimentos de saudade, dor e compaixão. O dia 2 de novembro, popularizado como "dia das almas" faz com que os cemitérios tornem-se grandes campos floridos, tal a determinação de muitos em, de alguma forma, prestar um tributo anualmente àquela pessoa amada que teve naquele pedaço de solo sua última morada terrena.

Mas com o passar do tempo os cemitérios ganharam um outro papel na história social além daquele tradicional depositário dos finados. Alguns historiadores arriscam dizer que a partir da análise em um cemitério é possível identificar o tecido social e as estruturas sociais de uma cidade. Isto é, a partir das construções e da qualidade dos túmulos é possível identificar-se o nível econômico da população. Já a grafia dos nomes nas lápides aponta para a predominância étnica na localidade, permitindo assim conhecer as principais famílias que compõem a comunidade. É por essa possibilidade de ter os cemitérios como instrumentos colaboradores da interpretação da história social, particularmente da História da Família e da Genealogia, que cada vez mais esses locais de quietude e paz tornam-se importantes pontos de visitação dos historiadores e pesquisadores, nascendo daí a alcunha de "ratos de cemitério".

Mas o que encontra um "rato de cemitério" em suas investidas? Nos cemitérios das colônias alemãs da região da grande Florianópolis, região esta que tem sido objeto de nossos estudos, podemos encontrar verdadeiras preciosidades, desde túmulos centenários que se mantém de pé até os dias de hoje, resistindo às intempéries do tempo, até verdadeiras moradas, construções sofisticadas que demonstram a intenção dos familiares "sobreviventes" em dar proteção aos seus finados. Sim, o apego e carinho dos familiares por aquele ou aquela que se está despedindo levam a verdadeiras declarações de amor esculpidas nas lápides dos túmulos. O "ruhe sanft" ou descanse em paz, em português, é muito mais que o desejo dos familiares ao finado; é também uma petição aos céus para que o sepultado encontre um repouso tranqüilo não somente no campo terreno, mas também no seu encontro com o transcendente e a divindade. Em outros túmulos a lápide tornou-se pequena para acomodar as palavras ou textos bíblicos deixados pelo familiares. Muitas vezes traduzem, esses dizeres, a religiosidade e a forma como vivia o falecido, sua proximidade com a fé, com o sagrado, constituindo-se essas palavras num verdadeiro testemunho para aqueles que visitam aquele campo santo.

Aliás, a religiosidade é algo que muito aflora quando da morte de um ente querido. Um sepultamento parece ser sempre um catalisador e motivador de sentimentos religiosos, um espaço pedagógico para reflexão sobre os destinos da vida. Por isso, cremos que os dizeres impressos nas lápides, de certa forma, refletem e transmitem esses sentimentos.

Tomemos como exemplo a figura da mãe, aquele parente que todos nós temos, como ela é venerada e como é difícil a separação de seus cuidados, sua atenção, seu amor. As expressões "querida mamaezinha", "inesquecível mãe e esposa", entre outras, tão comuns em alguns cemitérios, são somente amostras deixadas nos túmulos, de como os familiares tentam, mesmo pós morte, prestar um tributo àquela que foi a geradora da vida.

De outra parte, no passado, nos primeiros tempos, a religião foi um instrumento de divisão entre os paroquianos. Enquanto na base da comunidade quase sempre havia um respeito mútuo entre as religiões predominantes, católica e evangélica, até porque adeptos desses diferentes credos eram vizinhos, faziam comércio, reuniam-se em atividades sociais conjuntas, não poucas vezes uniam-se em casamento jovens de diferentes credos, o mesmo não se confirmava no campo eclesiástico, isto é, entre as lideranças das duas confissões. Atritos entre pastores e padres destoavam da quase harmonia e ecumenismo existente entre os colonos. Parece-nos que a necessidade de auxílio e convívio mútuo no dia a dia entre os colonos motivava e levava a atitudes de respeito e consideração também no campo religioso.

Já nos primeiros tempos, quando a religião oficial era o catolicismo e quando começaram a chegar os primeiros acatólicos ao Brasil, o quadro era diferente. Por ser o catolicismo a religião oficial, qualquer outra casa de oração protestante não poderia ter aparência externa de templo, isto é, nenhuma construção poderia abrigar cruz ou sino sobre seu telhado. Também as celebrações deveriam ser realizadas em ambiente fechado e o proselitismo era proibido.

Inevitavelmente essas posturas e normas governamentais tiveram seus reflexos na prática da religião predominante, no que tange ao tratamento com os não católicos. Assim, os primeiros casamentos entre não católicos não tinham valor jurídico, por assim dizer, já que sua confessionalidade não era reconhecida, o que tornava a vida conjugal desses pioneiros um constante adultério, enquanto os filhos daí surgidos eram considerados frutos de união não legalizada.

Assim sendo, o destino de não católicos quando do falecimento não tinha sorte melhor. Como os cemitérios eram paroquiais, isto é, sob o comando e cuidados da Igreja e não públicos e municipais como nos dias de hoje, havia também dificuldades quando do falecimento de pessoas de confissão que não a oficial. Assim, era necessário que o sacerdote "desbenzesse" uma parte do campo santo, sempre nos fundos do terreno, para ali poder ser sepultada aquela alma que destoava do oficialismo religioso.

Outras vezes esses hereges - assim eram chamados - foram sepultados fora dos muros do cemitério e em outras ocasiões alguns finados teriam sido enterrados de costas para a nascente do sol, contrariando a prática comum de sepultar os queridos com os pés na direção solar. Esse costume tem seu apoio na idéia de que os falecidos deviam ser sepultados com os pés na direção do rei sol, pois é para lá que as almas dos mortos se dirigem, representando o sol a luz divina, o Deus Eterno.

Evidentemente que todas essas práticas são fruto de um contexto, fruto de idéias predominantes naquele tempo, do "zeitgeist", o espírito de época então vigente. Por isso, entendemos que não nos cabe tecer juízo sobre aquelas práticas, mas apenas relatá-las como ingredientes importantes na análise e história de nossas comunidades nos primeiros tempos da colonização de nosso país.

Mais tarde, com a chegada cada vez mais intensa de imigrantes de outras confissões, o próprio clero foi assumindo novas posturas e também, em função dessa nova configuração religiosa da população das colônias, novas leis e normas foram sendo criadas.

Todavia, em função de que os cemitérios faziam conjunto com o templo religioso, sendo edificado sempre ao seu lado, permaneceu a separação entre católicos e protestantes, cada qual sepultando seus mortos no cemitério específico.

Mas, apesar de todos esses percalços que a nossa história nos legou, o fato é que o campo santos continua sendo, além de um aliado dos ratos de cemitérios, também um local de silêncio e oração junto à sepultura do familiar falecido. As felizes recordações dos dias passados junto àquele que agora jaz no túmulo misturam-se com a imaginação que logo vem a mente quando da passagem por sepulturas de crianças ceifadas precocemente, mesmo que desconhecidas ao visitante. Impossível ficar insensível quando se imagina tanto sofrimento causado por esses fatos. É o sentimento que logo invade o visitante ao ver, por exemplo, as quatro crianças da família Baumann sepultadas no cemitério de Rio do Poncho (Mantelfluss), cemitério este que tem a peculiaridade de possuir mais de 160 túmulos e serem todos, sem exceção, de pessoas de origem alemã, a grande maioria de confissão luterana. Ali tiveram por última morada terrena as irmãos Guilhermina, Bertha e Bernardo, sepultados nos dias primeiro, 3 e 5 de janeiro de 1901, respectivamente. Foram crianças vitimadas pela gripe espanhola, que tragou muitas vidas no início do século. Podemos imaginar o sofrimento dos pais Augusto Baumann e Francisca Epping, ao irem ao cemitério deixar a filhinha de pouco menos de 7 anos e com intervalo de dois dias ter que voltar novamente para sepultar mais dois filhos, um de quatro anos e outro de apenas 6 meses. Podemos imaginar a dor dos pais ao deixarem o primeiro filho junto ao túmulo e certamente o pensamento que logo lhes invadiu, qual seja, quem dos outros filhos também contaminados teria destino semelhante àquele que acabaram de despedir-se.

Não, os primeiros tempos de nossos antepassados na colônia não foram tempos fáceis. Lançados no meio da floresta virgem com o objetivo de desbravá-la e povoá-la, o imigrante passou muitas privações. Desassistidos de um amparo mais efetivo por parte das autoridades governamentais que os convocaram a povoar o imenso território brasileiro, os colonos aqui chegados foram entregues a sua própria sorte. O confronto com os silvícolas, ameaçados estes pela invasão de suas terras, até então somente por eles habitada, ceifou vidas de colonos, além da perda de plantações e criações.

A falta de assistência médica, se por um lado forçou os colonos a buscarem na natureza, através de raízes e plantas, os remédios que lhe eram necessários, de outra parte levou as taxas de mortalidade a níveis bastante altos, pois é o que percebemos nas estatísticas auferidas a partir dos livros de registro de óbitos das igrejas e dos cartórios.

Já o descaso no que concerne à assistência religiosa podemos comprovar pela primeira visita pastoral de um sacerdote à colônia São Pedro d´Alcântara, ocorrida somente em maio de 1845, na pessoa do arcipreste Joaquim Gomes de Oliveira Paiva, que a descreve em Colonisação Allemã de São Pedro de Alcântara, publicado em 1929. Esta colônia já havia sido fundada em 1829 por colonos teutos chegados ao Rio de Janeiro no ano anterior, vindos em sua maioria das regiões do Hundsrück e Eifel, sendo na sua quase totalidade de confissão católica.

Se não bastassem os cortes nos subsídios de manutenção dos primeiros colonos ali chegados, entregando-os à própria sorte, em meio a um mundo completamente desconhecido, com doenças e adversidades incomuns na Europa, os primeiros desbravadores viram-se privados também de algo que para eles era de um valor inestimável, qual seja, a assistência espiritual de uma sacerdote.

Devemos lembrar que para os primeiros imigrantes, a religião, isto é sua fé, sempre foi algo que deu coragem e ânimo para enfrentar os desafios que a vida lhes impôs, desde a audácia da decisão de imigrar até a resistência a todas as dificuldades que a nova vida no Brasil lhes impôs.

É certo que com a ausência do sacerdote e a assistência religiosa regular, a religiosidade do colono não acabou. O que percebemos é que, em meio a essa dificuldade, a necessidade fez aflorar o espírito comunitário e associativo do colono, tomando ele próprio a iniciativa de realizar os serviços religiosos elementares, o levantamento de templos, casa pastoral e assim por diante.

No caso da colônia São Pedro de Alcântara, até estabelecer-se um sacerdote fixo naquela freguesia, os batismos e casamentos foram realizados na vila de São José, o que obrigava os primeiros colonos daquela comunidade teuta a deslocarem-se no lombo de seus animais, através das precárias estradas que levavam ao litoral, para que ali, na vila já fundada no século passado por açorianos, o sacerdote oficiasse os sacramentos. Esse mesmo sacerdote também já havia prestado serviços, nos primeiros tempos, aos colonos de confissão luterana que estabeleceram-se e fundaram a colônia Santa Isabel em 1847, hoje pertencente ao município de Águas Mornas.

Vemos, assim, que a carência de um ministro cristão não foi exclusividade dos católicos, pois esta que foi a primeira comunidade luterana em Santa Catarina somente recebeu um pastor permanente em 1861 com a chegada de Carl Wagner. Essa situação, como vimos, obrigava os colonos, zelosos em tornar seus filhos cristãos e seus casamentos abençoados, a buscarem os serviços do sacerdote católico. Anteriormente, as famílias luteranas que vieram para São Pedro d'Alcântara em 1829, os Lukas e os Wagner, já haviam se servido dos préstimos religiosos dos padres católicos da Vila de São José, batizando ali seus filhos.

A partir desses relatos de privações pelas quais passaram nossos ancestrais em nossas colônias é que vemos justificável a reverência e o tributo que se presta a esses pioneiros, seja através das festas comemorativas que relembram seus primeiros tempos, seja através da conservação dos túmulos centenários que guardam seus restos mortais.

Nesse sentido, entendemos como louvável atitudes de comunidades como a de Santa Isabel, em Águas Mornas, onde o zelo dos paroquianos, tanto católicos como evangélicos, fez com que seus cemitérios fossem completamente restaurados e pintados.

Outra iniciativa digna de nosso aplauso é a que vem sendo tomada pela administração municipal de São Pedro d'Alcântara, dentro de uma programação mais extensa alusiva aos 170 anos de fundação daquela colônia, hoje município. Trata-se de um levantamento das anotações contidas nas lápides de todos os túmulos nos vários cemitérios pertencentes ao território do município. Uma planta baixa, na verdade, com vista a preservar aquelas informações contidas nos túmulos que vão se deteriorando com a passagem do tempo. Após esse levantamento objetiva-se colher o maior número possível de informações daquela pessoa ali sepultada, agregando, assim, outros dados que podem servir de subsídio para a elaboração das genealogias.

Concluindo, percebemos como os cemitérios, principalmente os mais antigos, outrora pouco visitados e até desprezados, vêm ganhando a atenção da comunidade e das autoridades, haja vista seu relevante papel como fonte primária que muito pode contribuir na elaboração e no resgate da História da Família.

José Raulino Jungklaus(1)

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(1) José Raulino Jungklaus, dedica-se ao estudo das genealogias e Histórias das famílias oriundas das colônias São Pedro de Alcântara, Theresópolis e Santa Isabel.