BELISÁRIO PIMENTA
Em Coimbra, aos 3 de Outubro de 1879, nasceu Belisário Pimenta, no 2º. andar do prédio nº. 11 da Praça Velha, onde estava instalada a Tipografia Auxiliar de Escritório. Era dono do prédio seu avô materno, Manuel Caetano da Silva. Esta tipografia, que teve uma larga influência na determinação dos pendores intelectuais do nosso biografado tinha no rés-do-chão as máquinas tipográficas, ficando no primeiro andar a oficina de composição e os escritórios com o balcão da venda. Quanto ao armazém do papel e arquivo da tipografia, ficava no Beco dos Prazeres, ligando com o Largo do Romal. Enfim, no verdadeiro coração da “Baixa” coimbrã. Entre os tipógrafos que se tornaram conhecidos naquela oficina, temos notícia dos seguintes, que tiveram até à sua acção política: José Pereira da Cruz, o “Cruz do Janeiro”, Pedro Cardoso, Luís Cardoso, João Gomes Pais, etc.
Por volta de 1893, os pais de Belisário Pimenta, com os seus três filhos, mudaram-se para uma nova casa, que tinham mandado construir na Rua de Tomar, recentemente aberta na chamada Quinta de Santa Cruz, conforme o plano iniciado pelo “Dr. Lourenço de Almeida Azevedo”.
Frequentou o colégio externato do Padre Ricardo Simões dos Reis, no lado norte da Avenida Sá da Bandeira, e depois transitou para o liceu, que estava instalado no Edifício de S. Bento.
Belisário Pimenta diz em determinada altura[“Boletim da Academia de História”, Lisboa, 30, 1966, p. 87]: “Em Coimbra, onde decorreram essas duas décadas da minha vida, e quando os meus ouvidos começaram a ouvir e os olhos a ver o que se passava já não havia o “grande tumulto mental” do tempo de Eça de Queiroz, mas havia, no campo das Ideias, certo movimento literário da chamada “geração de Noventa” eivada de tradicionalismos e, simultaneamente, alguma excitação política da geração inconformista ou revolucionária que, ao longo dos vinte anos seguintes, prepararia (ou ajudaria a preparar) a mudança de regime. E mais adiante, escrevia ainda Belisário Pimenta, ao dar entrada em 28 de Janeiro de 1966 na Academia Portuguesa da História: “Eu conheci os principais vultos de uma outra geração através de pessoa de família com que eles convivia e alguns dos quais, pela vida fora, ficou amigo. Lembro-me bem das ironias, às vezes um tanto cáusticas, de Agostinho de Campos; da alegria, optimismo e desembaraço de Alberto de Oliveira; da memória prodigiosa de Carlos Mesquita e, como superior a todos, as atitudes olímpicas de Eugénio de Castro, com colarinhos muito altos forrados de preto e a contar anedotas de Verlaine e outros simbolistas com quem convivera em Paris; e ainda me lembro de António Nobre com os seus grandes olhos nostálgicos a contemplar a grande curva do Mondego, a montante da cidade, quase afogado, então, em pujantes sinceirais. Lembro-me igualmente da palavra fluente e vibrante de António José de Almeida, da compostura e bom senso de Augusto Barreto, João de Meneses e Silvestre Falcão — e talvez mais alguns.
Lá fora, nessa mesma altura e ao longo da última década do século, vinha o sopro violento da agitação libertária, com livros doutrinários de mistura com rudes ecos da chamada propaganda pelo facto. E em Coimbra, grande parte da mocidade impressionava-se com isso; e uma carta que o príncipe Kropotkine dirigiu aos novos de todo o Mundo e foi espalhada em quase todas as línguas, deixou fundos e duradoiros sulcos na imaginação generosa e até na consciência de muitos rapazes”.
Seguia, depois, a carreira militar e, quando cadete na Escola Prática de Infantaria de Mafra, aqui conheceu em 1902, D. Amélia Deidâmia de Almeida Possidónio da Silva, com quem veio casar aos 22 de Outubro de 1908, de cujo matrimónio nasceu a única filha, D. Maria Helena, hoje ilustre professora do ensino liceal em Lisboa e que continuou, de forma verdadeiramente notável, a bibliografia de seu ilustre Pai, que adiante temos a honra de publicar.
Em 1903, foi promovido a alferes; e, em 1910, passou a ser comissário da Polícia em Coimbra, quando era seu Governador Civil Fernandes Costa, de quem era um excelente amigo. Os acontecimentos políticos do País repercutiam-se naturalmente na cidade universitária e daí as dificuldades que teve de vencer sempre com maior aprumo e tacto.
A sua vida militar decorreu ainda pelas seguintes cidades e vilas: Valença, 1907; Portalegre, 1910; Castelo Branco, 1914; Lagos, 1915; Porto, 1919; durante o movimento da “Monarquia do Norte”; Penafiel, 1932; Abrantes, 1936; Leiria, 1937-1939.
Belisário Pimenta escreveu um volume, que não foi publicado, sobre a sua vida militar e no qual dá circunstanciada relação da sua actividade.
No ano de 1913, publica o seu primeiro grande artigo sobre um assunto histórico: o combate de 24 de Julho de 1828 na Cruz de Mourouços, que tem o nº. 209 na relação que adiante se publica.
Neste mesmo ano, publicou também o seu primeiro trabalho sobre Miranda do Corvo, tema que foi uma das suas predilecções e que cultivou até ao fim da sua vida.
Os sucessos políticos de 1926 determinaram por alguns anos o seu afastamento do serviço activo, o que acarretou vários dissabores e prejuízos financeiros. Teve, no entanto, a compensação de poder dispor de mais tempo para os seus trabalhos de investigação.
No ano de 1939, já coronel de infantaria, participou nos estágios em Caxias para o generalato e nos quais obteve muito boas informações; mas viu-se então forçado, por circunstâncias estranhas à vida militar, a passar à situação de “reserva”. Este facto marcou-o profundamente, deixando-lhe, como facilmente se compreende, uma mágoa indelével, se bem que nunca a tivesse confessado nem mesmo aos seus familiares!
Possuía como condecorações a medalha de ouro de comportamento exemplar e era grande-oficial da Ordem Militar de Avis.
Às 17 horas do dia 11 de Novembro de 1969, no nº. 41 da Rua de Santo Amaro, à Estrela, em Lisboa, após uma nevrite, falecia Belisário Pimenta, que manteve uma perfeita lucidez até ao termo da sua existência.
Belisário Pimenta tinha uma curiosidade intelectual insaciável, tendo a preocupação de nunca se desatualizar no capítulo da cultura. Como nota significativa, contemos esta: Sua filha comprou-lhe em Paris um livro de poemas de Louis Aragon, que trazia na cinta esta indicação: “Vient de paraître”. Contente, trouxe-lho de presente. Ao entregar-lho, porém, logo verificou, desolada, que o pai já o possuía, adquirido na velha Livraria Cunha, em Coimbra…
O nosso biografado mantinha sólidas amizades, que sempre soube cultivar com aquela lisura e elegância de maneiras e que tanta distinção imprimiam à sua presença. Assim, manteve estreitos laços de boa camaradagem intelectual com Augusto Casimiro, Horácio Assis Gonçalves, Vitorino Nemésio, António Nogueira Gonçalves, Álvaro Viana de Lemos, António da Costa Rodrigues, Armando de Macedo, Geraldino de Brites, Francisco de Azevedo Gomes, Manuel de Oliveira Leite, Álvaro Pacífico de Sousa, José Ribeiro da Costa Júnior, Gilberto de Aragão. Manteve também assídua correspondência com Henrique de Campos Ferreira Lima, Helder Ribeiro, Henrique Pires Monteiro, José Garibaldi, Luís Varela Pinto.
Desde muito cedo começou a frequentar as bibliotecas e arquivos, em longo peregrinar. Tinha 11 anos de idade quando começou a formar a sua biblioteca pessoal, que ultrapassava no momento do seu falecimento oito mil obras. Os primeiros livros que teve foram as obras completas de Alexandre Herculano, oferecidas pelo seu tio Alberto Caetano da Silva, como presente de anos.
No Arquivo da Universidade de Coimbra, gastou longas horas de trabalho insano em busca de documentos; e tão grato lhe ficou que em 1966 lhe ofereceu setenta e dois volumes de cópias de documentação, além de muita correspondência.
Quanto à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, onde trabalhou igualmente durante tantos anos, chamava-lhe “a sua outra Casa”, pois sensibilizava-o muito a maneira como aqui o recebiam, onde dispunha até de um pequeno gabinete para os seus trabalhos de longa pesquisa. Em sinal de reconhecimento, deixou-lhe uma série de importantes documentos para a história do País nos dois primeiros quartéis do Séc. XX, os quais só poderão ser consultados em 1989.
A arte foi sempre em Belisário Pimenta uma constante. Interessou-se pela música, pintura, arquitectura, etc., e chegou até a praticar, nos seus tempos de juventude, a gravura artística, havendo igualmente coleccionado gravuras antigas e modernas.
Aliás, foi sempre um coleccionador requintado, havendo juntado, entre outras coisas, ex-libris, jornais de existência efémera, púcaros de barro de todas as olarias portuguesas, colecção esta que tem originalidade e interesse. Fez parte do Conselho de Arte e Arqueologia, de que foi vogal desde 1918 e seu presidente, por votação, de 1927 a 1929.
Dotado de extrema bondade e altamente tolerante, tinha sempre uma palavra, um gesto em prol daqueles que dele se abeirassem e estivessem em dificuldade.
Coimbra marcou sempre um lugar especial no seu espírito e juntou uma série de elementos sobre a vida da cidade, que ele não via crescer com bons olhos quando tal crescimento defendesse a tranquilidade da paisagem.
As viagens foram igualmente um dos seus grandes prazeres, percorrendo o País e parte da Espanha, como se fosse uma permanente alegria, observando aspectos, estudando monumentos, vendo paisagens.
Extremamente metódico, tudo assentava e apontara, de maneira a, no momento próprio, esses registos aparecerem com inteira oportunidade. Tinha horas para tudo: refeições, leituras, repouso, investigações. A parte da manhã dedicava-a a escrever e a pôr a sua correspondência em dia, bem como as da tarde, após o chá e ainda as da noite, pois nunca se deitava antes da meia noite. Lia muito, fazendo-se sempre acompanhar de um livro que tinha um papel dentro onde tomava as suas notas; e raros são os livros da sua biblioteca que não têm notas marginais apostas pelo seu punho.
…………………[in: "Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra". vol., 31, 1974]