Conto

"Conto é tudo aquilo que o autor quer chamar de conto."

Mário de Andrade

Vamos começar nossos estudos pelo gênero conto.  Abaixo um conto de Moacyr Scliar:  


NÓS, O PISTOLEIRO, NÃO DEVEMOS TER PIEDADE

Nós estamos numa pequena cidade do Texas, em 1880.

Nós somos um temível pistoleiro.

Nós estamos num bar, Tomamos uísque a pequenos goles.

Nós temos um olhar soturno. Passado terrível. Muitas mortes. Remorsos.

A porta se abre.

Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós, o pistoleiro, com desrespeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar as esporas.

Nós continuamos bebendo o uísque a pequenos goles.

O mejicano dá-nos uma bofetada.

Quer morrer, este Alonso.

Nós não queriamos matar mais ninguém.

Abriremos uma exceção para Alonso, cão mejicano.

Combinamos o encontro fatídico para o dia seguinte, ao raiar do sol.

Alonso dá-nos mais uma bofetada e vai-se.

Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Depois atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos.

Caminhamos lentamente, arrastando os pés, até nosso hotel.

A população olha-nos. Sabem que somos um temível pistoleiro, Pobre mexicano, pobre Alonso.

Amanhã. Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos sem ao menos tirar as botas.

Ficamos a olhar o teto, a fumar, a pensar. Fumamos muito. Pensamos pouco: muitas mortes. Remorsos.

E já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos cinturão. Examinamos revolveres. Inspeção de rotina, completada em poucos minutos.

Descemos. A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos a população. O vento sopra, levantando turbilhões de poeira.

Mesmo vento, mesmo oeste. Rotina. Alonso já nos espera. Quer morrer, este mejicano.

Está rindo. É manhã. Amanhã não rirá.

Colocamo-nos frente a ele. Um pistoleiro de olhar soturno, passado terrível, muitas mortes.

Vemos um mejicano.

Pobre diabo.

Comia tortillas, já não comerá.

Tem mulher e cinco filhos pelo que informaram, um pedaço de terra e uma guitarra. A mulher e os filhos enterrarão o cadáver, fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz, as trouxas de roupa à cabeça.

A mulher ficará tuberculosa.A filha mais velha será prostituta.Um filho ladrão. Outro morrerá. E outro morrerá. E outro morrerá.

Os olhos se nos turvam. Remorsos.

Uma lágrima cai sobre o chão poeirento.

O mejicano já não ri. Aguarda o momento de ser morto.

Já é manhã, mas ainda não o executamos.

Pobre Alonso. A unica exceção. Uma bofetada, outra bofetada.

Ninguém deu duas bofetadas num pistoleiro.

Não comerá mais tortillas. Os dentes podres daquele homem. O olhar aterrorizado. Nosso olhar turvado: novas lágrimas, lágrimas frescas.

Não conseguimos sacar nossos revolveres, como de rotina.

E assim vamos vendo Alonso puxar sua arma, vamos ouvindo o disparo, podemos até imaginar a bala vindo ao nosso coração, sentimos dor intensa, lento tombamos.

Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.


Para saber mais sobre o autor e suas obras, acesse o link:

http://www.elfikurten.com.br/2013/08/moacyr-scliar-uma-vida-entre-medicina-e.html

http://www.moacyrscliar.com/obras/contos/

A seguir uma indicação de links de diferentes materiais para você acessar sobre esse gênero textual, que sempre traz uma interessante e nova história para os leitores.

"Escrevo pelo prazer de criar situações e personagens (nesta ordem, infelizmente)."

                  Moacyr Scliar

"Dizem que os jovens não gostam de ler. Não é verdade. Jovens leem, sim, e leem com prazer, desde que sejam bem motivados. Disso posso dar um exemplo pessoal: na minha turma de colégio tínhamos grandes leitores. Tínhamos não, temos: muitos de nós continuamos amigos e, quando nos reunimos, agora com nossas mulheres e nossos filhos, sempre falamos dos livros que estamos lendo, dos livros que já lemos um dia – livros que, garanto a vocês, fizeram nossa cabeça. A gente aprendeu muita coisa com a leitura, muita coisa que vem nos ajudando pela vida afora. E, muito importante, aprendemos com prazer e emoção. Como dizia o professor Jaime: livro bom é aquele que emociona, que diverte – e que ensina a gente a viver."

 Moacyr Scliar, em "Ciumento de carteirinha", 2006, p. 9.

Clique nos links abaixo para saber mais sobre os elementos que compõe um conto:

Clique no link  e faça o download do livro:  Cem_melhores_contos_brasileiros_do_século_-_Italo_Moriconi 

Conversando sobre as características do gênero conto

HEIDI STRECKER é escritora e crítica literária. Tem nome de livro infantil, que sua mãe descobriu numa biblioteca. Desde cedo gostou de escola pois seu pai fundou uma, em que era professor e diretor. Confundiu estudar com brincar.

Formou-se em letras e em filosofia pela USP e cursou teoria literária na Unicamp. Já deu aulas de redação e de filosofia, foi coordenadora e gestora no Colégio Modelo, em São Paulo. Fundou e dirigiu a ONG Centro de Alfabetização Natural. É autora de muitos livros e coautora de obras didáticas adotadas pelo Ministério da Educação para escolas de todo país.

Autora do livro de contos Silêncio: doze histórias universais sobre a morte, com Ilan Brenman, recebeu o selo de “Altamente Recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. 

De acordo com  a escritora e crítica literária, Heidi Strecker,  "o conto é uma obra de ficção, um texto ficcional. Cria um universo de seres e acontecimentos de ficção, de fantasia ou imaginação. Como todos os textos de ficção, o conto apresenta um narrador, personagens, ponto de vista e enredo."

Abaixo o que segue é a publicação da Página 3, Pedagogia e Comunicação, do site UOL, que você pode acessar pelo link da página:

https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/conto-caracteristicas-do-genero-literario.htm 

Classicamente, diz-se que o conto se define pela sua pequena extensão. Mais curto que a novela ou o romance, o conto tem uma estrutura fechada, desenvolve uma história e tem apenas um clímax. Num romance, a trama desdobra-se em conflitos secundários, o que não acontece com o conto. O conto é conciso. 

Grande flexibilidade

Por outro lado, o conto é um gênero literário que apresenta uma grande flexibilidade, podendo se aproximar da poesia e da crônica. Os historiadores afirmam que os ancestrais do conto são o mito, a lenda, a parábola, o conto de fadas e mesmo a anedota.

O primeiro passo para a compreensão de um conto é fazer uma leitura corrida do texto, do começo ao fim. Através dela verificamos a extensão do conto, a quantidade de parágrafos, as linhas gerais da história, a linguagem empregada pelo autor. Enfim, pegamos o "tom" do texto.

 Primeiros passos

Podemos perguntar também: Quem é o autor do texto? Seja na internet, numa enciclopédia ou mesmo nos livros didáticos, é bom fazer uma pesquisa sobre o autor do conto, conhecer um pouco sua biografia. É um autor contemporâneo ou mais antigo? É um autor brasileiro ou estrangeiro?

O conto quase nunca é publicado isoladamente. Geralmente ele faz parte de uma obra maior. Por exemplo, o conto "Uma Galinha", de Clarice Lispector, faz parte do livro "Laços de Família".

Seguindo adiante

Depois dessas primeiras informações, podemos fazer uma leitura mais atenta do conto: elucidar vocábulos e expressões desconhecidas, esclarecer alusões e referências contidas no texto. Também podemos pensar no título do conto. Porque o autor escolheu este título? Este esforço de compreensão qualifica - e muito - a leitura. Torna o leitor mais sensível, mais esperto.

O passo seguinte é fazer a análise do texto. No momento da análise o leitor tem contato com as estruturas da obra, com a sua composição, com a sua organização interna. Para analisar o texto, é bom observar alguns aspectos da sua composição. Algumas perguntas são muito importantes: Quem? O que? Quando? Onde? Como?

Formular as perguntas e obter as respostas ajuda a conhecer o conto por dentro:

Fonte: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/conto-caracteristicas-do-genero-literario.htm

Praticando a leitura

Procure seguir as orientações apresentadas na sessão anterior e faça a leitura do conto "Venha ver o pôr-do-sol da autora Lygia Fagundes Telles. Para essa leitura ficar ainda mais interessante, vou propor a você um jogo. Caso aceite, peço que siga as instruções abaixo:

ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.

– Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

– Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

– Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?

– Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hein?!

– Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.

– Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

– Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

– Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

– Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…

– E você acha que eu iria?

– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. – Você fez bem em vir.

– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

– Mas eu pago.

– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

– Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

– É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo…

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

– É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

– Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

– Ele é tão rico assim?

– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

– Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano.

– É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.

– Mais alguns passos…

– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

– A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

– Sua prima também?

– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

– Vocês se amaram?

– Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o

– Eu gostei de você, Ricardo.

– E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

– Esfriou, não? Vamos embora.

– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

– Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?

– Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

– E lá embaixo?

– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

– Todas estas gavetas estão cheias?

– Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

– Vamos, Ricardo, vamos.

– Você está com medo?

– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

– Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

– Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.

[...] Lygia Fagundes Telles In:.Venha ver o pôr-do-sol e outros contos, 2008.


(A sua leitura foi interrompida neste ponto da narrativa para que possa fazer um exercício que ajuda a aprimorar a sua competência leitura. Escreva em seu caderno como imagina que será o desfecho desse conto. O que acontecerá às personagens? Qual terá sido a intenção de Ricardo ao levar a ex-namorada no cemitério?)

Para conferir o final original do conto, acesse o blog:

https://francisprofessora.blogspot.com.br/p/dicas-de-leitura.html


Orientações:


Conto do escritor mineiro Luiz Vilela

Um peixe 

      Virou a capanga de cabeça para baixo, e os peixes espalharam-se pela pia. Ele ficou olhando, e foi então que notou que a traíra ainda estava viva. Era o maior peixe de todos ali, mas não chegava a ser grande: pouco mais de um palmo. Ela estava mexendo, suas guelras mexiam-se devagar, quando todos os outros peixes já estavam mortos. Como que ela podia durar tanto tempo assim fora d'água?..

     Teve então uma ideia: abrir a torneira, para ver o que acontecia. Tirou para fora os outros peixes: lambaris, chorões, piaus; dentro do tanque deixou só a traíra. E então abriu a torneira: a água espalhou-se e, quando cobriu a traíra, ela deu uma rabanada e disparou, ele levou um susto – ela estava muito mais viva do que ele pensara, muito mais viva. Ele riu, ficou alegre e divertido, olhando a traíra, que agora tinha parado num canto, o rabo oscilando de leve, a água continuando a jorrar da torneira. Quando o tanque se encheu, ele fechou-a.

     – E agora? – disse para o peixe. – Quê que eu faço com você?... 

     Enfiou o dedo na água: a traíra deu uma corrida, assustada, e ele tirou o dedo depressa.

  – Você tá com fome?... E as minhocas que você me roubou no rio? Eu sei que era você;devagarzinho, sem a gente sentir... Agora está aí,né?... Tá vendo o resultado?...

    O peixe, quieto num canto, parecia escutar.

    Podia dar alguma coisa para ele comer. Talvez pão. Foi olhar na lata: havia acabado. Que mais? Se a mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia – a mãe era boa para dar ideias. Mas ele estava sozinho.Não conseguia lembrar de outra coisa. O jeito era ir comprar um pão na padaria. Mas sujo assim de barro,a roupa molhada, imunda?...

      – Dane-se – disse, e foi.

     Era domingo à noite, o quarteirão movimentado, rapazes no footing, bares cheios. Enquanto ele andava, foi pensando no que acontecera. No começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas oque faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente;mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas oque faria com ela? Poderia criá-la; por que não? Havia o tanquinho do quintal, tanquinho que a mãe uma vez mandara fazer para criar patos. Estava entupido de terra, mas ele poderia desentupi-lo,arranjar tudo; ficaria cem por cento. É, é isso o que faria. Deixaria a traíra numa lata d'água até o dia seguinte e, de manhã, logo que se levantasse, iria mexer com isso. 

       Enquanto era atendido na padaria, ficou olhando para o movimento, os ruídos, o vozerio do bar em frente. E então pensou na traíra, sua trairinha,deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa escura. Era até meio besta como ele estava alegre com aquilo. E logo um peixe feio como traíra,isso é que era o mais engraçado.

       Toda manhã – ia pensando, de volta para casa– ele desceria ao quintal, levando pedacinhos de pão para ela. Além disso, arrancaria minhocas, e de vezem quando pegaria alguns insetos. Uma coisa que podia fazer também era pescar depois outra traíra e trazer para fazer companhia a ela; um peixe sozinho num tanque era algo muito solitário.

         A empregada já havia chegado e estava no portão, olhando o movimento.

         – Que peixada bonita você pegou...

         – Você viu?

         – Uma beleza... Tem até uma trairinha.

         – Ela foi difícil de pegar, quase que ela escapole; ela não estava bem fisgada.

         – Traíra é duro de morrer, hem?

        – Duro de morrer?...

        Ele parou.

     – Uai, essa que você pegou estava vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro.Ela estava toda folgada, nadando.

        – E aí?

     – Aí? Uai, aí eu escorri a água para ela morrer;mas você pensa que ela morreu? Morreu nada! Traíra é duro de morrer, nunca vi um peixe assim. Eu soqueia ponta da faca naquelas coisas que faz o peixe nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou mexendo? Aí eu peguei o cabo da faca e esmaguei a cabeça dele, e foi aí que ele morreu. Mas custou, ô peixinho duro de morrer! Quê que você está me olhando?

      – Por nada.

      – Você não está acreditando? Juro; pode ir lá na cozinha ver: ela está lá do jeitinho que eu deixei.

      Ele foi caminhando para dentro.

      – Vou ficar aqui mais um pouco – disse a empregada. – Depois vou arrumar os peixes, viu?

      – Sei.

     Acendeu a luz da sala. Deixou o pão em cimada mesa e sentou-se. Só então notou como estava cansado.

(VILELA, Luiz. . 7ª ed. São Paulo: Ática,2007. p. 36-38.) 

Conto Popular

Contos de Fadas

O Velho e o Neto

Era uma vez um velho muito velho, quase cego e surdo, com os joelhos tremendo. Quando se sentava à mesa

para comer, mal conseguia segurar a colher. Derramava sopa na toalha e, quando, afinal, acertava a boca,deixava sempre cair um bocado pelos cantos.

O filho e a nora dele achavam que era uma porcaria e ficavam com nojo. Finalmente, acabaram fazendo o velho se sentar num canto atrás do fogão. Levavam comida para ele numa tigela de barro e - o que era pior - nem lhe davam bastante.


O velho olhava para a mesa com os olhos compridos, muitas vezes cheios de lágrimas.

Um dia, suas mãos tremeram tanto que ele deixou a tigela cair no chão e ela se quebrou.


A mulher ralhou com ele, que não disse nada, só suspirou.

Depois ela comprou uma gamela de madeira bem baratinha e era aí que ele tinha que comer.


Um dia, quando estavam todos sentados na cozinha, o neto do velho, que era um menino de oito anos, estava brincando com uns pedaços de pau.

- O que é que você está fazendo? - perguntou o pai.

O menino respondeu:

- Estou fazendo um cocho, para papai e mamãe poderem comer quando eu crescer.


O marido e a mulher se olharam durante algum tempo e caíram no choro. Depois disso, trouxeram o avô de volta para a mesa. Desde então passaram a comer todos juntos e, mesmo quando o velho derramava alguma coisa, ninguém dizia nada.


[Irmãos Grimm

Tradução Ana Maria Machado

ilustração: Norman Rockwell]

Fonte: http://grupocontoaconto.blogspot.com.br/2008/10/o-velho-e-o-neto.html



Um avô e seu neto 

Esta é uma história muito simples. Fala do amor entre um avô e seu neto, que é como a magia que existe entre a noite e a Lua. Os avós sabem de muitas coisas. Os avós guardam a infância deles na memória, com seus rios azuis, suas ruas de barro, chapéus, cavalos, lampiões. Um mundo tão antigo que já quase não cabe mais neste nosso mundo. 

Quando um avô morre, esse mundo antigo morre com ele, assim como todos os cavalos, rios azuis, ruas de barro. Por isso eu, particularmente, acho que os avós nunca deveriam morrer. Mas, para que as coisas que eles guardam lá no fundo deles – essa poeira encantada de outros tempos – não desapareçam completamente, existe os netos. 

E assim como às vezes a gente para pra ver uma estrela ou um pássaro, alguns netos param e ouvem essa música secreta que sai de dentro dos avós. Eles viveram uma vida inteira... e quantas malas e armários poderiam encher com suas aventuras? 

O avô tinha a barriga grande. O neto achava que havia um Sol lá dentro, ou uma fábrica de alegria. O avô ria tanto! Mas um dia o avô parou de trabalhar. Era como se a barriga tivesse diminuído, ou uma nuvem tivesse escondido o Sol. O neto passava a mão nos cabelos do peito do avô. Os avós são tão lindos com seus cabelos brancos... 

Quando o avô estava feliz, contava histórias malucas: de elefantes cantores de ópera, de crocodilos vendedores. Mas, quando se lembrava que não podia mais trabalhar, que se não fizesse bastante barulho ninguém se lembraria mais dele, aí só contava histórias da sua vida. (O neto ouvia ). 

De um país lá longe. Tão longe que se tinha de atravessar o mar. Fazia frio naquele país. Naquela época o avô era criança, era pobre. O pai dele tocava violino. A mãe cozinhava. Um tio morava numa casinha branca no alto de uma colina. O tio fazia panelas de barro. 

Um dia, o avô, que naquele país lá longe era criança, foi visitar o tio que morava na colina. Precisava atravessar a cidade inteira. O avô saiu de casa bem cedinho. O tio era esquisito. Gostava de morar afastado, longe das ruas apinhadas de gente. 

Durante a noite tinha nevado. As carroças cheias de verduras não podiam passar. (O neto ouvia.) O avô estava indo escondido da mãe. Era muito perigoso. Finalmente o avô atravessou a ponte. O rio estava congelado lá embaixo. Parecia que tinha adormecido e já não podia correr para lugar nenhum. 

A subida para a casa do tio estava escorregadia. Mas o avô conseguiu chegar. O tio ficou feliz. Ele tinha um forno grande de queimar o barro. Tinha um torno. Parecia mágica. 

O tio pegava um pedaço de barro e fazia um prato, uma moringa, um bule. O avô dava nome para todas aquelas coisas. Era como se fossem vivas. (O neto ouvia.) Fazia o bule se casar com a manteigueira. E o dia passou voando na casa desse tio, lá no alto da colina. Quando o avô se lembrou de que era preciso voltar, a noite já estava chegando. Tinha de se apressar. O tio deu um presente para o avô levar para casa. Era um cavalo de barro. Ia dentro de uma caixa. Agora o avô possuía um cavalo, e se sentia mais rico que um rei. Levava a caixa com todo cuidado. Seu cavalo não podia cair de jeito nenhum. (O neto ouvia.) 

De repente, embaixo da neve, viu uma coisa brilhando. Era uma moeda de ouro. O avô se esqueceu do presente, se esqueceu de tudo. Ele tentava cavar, mas não conseguia. Então teve uma ideia tão boa que nem dava pra acreditar: era só fazer xixi em cima da neve que cobria a moeda. O xixi era quente e derretia a neve. Aí o avô piscou um olho e deu uma risada na cara do neto. “ É verdade, vô, essa história da moeda?” 

“Pode ser que sim, pode ser que não. Nunca se sabe”, respondeu o avô. Mas se nessa época eu tivesse uma moeda de ouro...”e voltando a contar histórias malucas, sem pé nem cabeça, de bichos fantásticos. Sua barriga novamente engoliria o Sol. 

Contou ao neto que um dia tiveram de partir. Ia haver uma guerra. O avô já tinha catorze anos. As guerras são tão tristes... Devia ser proibidas em todas as línguas da Terra. Se o avô não tivesse vindo com sua mãe, seu pai e seus irmãos, o neto não existiria. 

O neto ouvia assombrado e via o navio se afastando do cais. Um navio cheio de gente, com o avô lá dentro. Tantas vezes o avô contou essa história que o neto até sabia de que lado soprava o vento. 

O avô gostou muito de chegar num país cheio de sol. Mas às vezes lembrava do tio que morava no alto da colina... 

Depois o avô cresceu. Teve uma loja, uma mulher, quatro filhos. Aí os filhos cresceram.

E o avô teve um neto...


 Roseana Murray 

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