INTERTEXTUALIDADE


A intertextualidade é a relação entre textos literários através de citações, alusões ou até mesmo comentários que remetem para a obra original, de forma a que o leitor reconheça a relação entre os assuntos abordados nos textos literários.

José Saramago interliga vários autores e obras ao longo da sua obra “Memorial do Convento”. No decorrer desta, são retomados vários ditados populares, feitas alusões a histórias bíblicas e utilizadas expressões de grandes nomes da literatura. Estas podem ser agrupadas em diferentes tipos de intertexto saramaguiano:


Intertexto bíblico-religioso ✟:

Ao longo da obra, José Saramago faz várias referências a histórias e passagens bíblicas. Para além da referência a Adão e Eva, faz alusões a parábolas bíblicas, como na passagem "Vaidade das vaidades, disse Salomão, e D. João V repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade." (p.196), referência bíblica, do livro do Eclesiastes, sobre a denúncia da vaidade, aplicada ironicamente a D. João V, que a subverte, considerando-a edificante e símbolo do poder. São também citadas palavras de Jesus Cristo registadas nos Evangelhos como: “não tentarás o Senhor teu Deus” (p.153) e “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (p.198).


Intertexto literário ✎✉:

No campo de intertexto literário, os exemplos são múltiplos, salientando-se cenários de literatura portuguesa clássica e moderna. Em Memorial do Convento, abundam situações de autores clássicos, dos quais se destacam Padre António Vieira e Luís de Camões, duas figuras de enorme relevo na literatura portuguesa.

Relativamente a Padre António Vieira, existem diversas referências à sua obra, como a passagem: "Da sua gaiola de madeira pregou o celebrante ao mar de gente, se tosse o mar de peixes, que formoso sermão se teria podido repetir aqui" (p.153), na qual José Saramago faz referência ao Sermão de Santo António aos peixes, de Padre António Vieira, sendo estas palavras enunciadas ao padre que da capela profere o seu sermão, ao qual poucos prestam atenção, pois são homens e não peixes.

No que diz respeito a Luís de Camões, são inúmeras as referências à sua obra Os Lusíadas, por exemplo no excerto: “Uns dias antes dera-se em Mafra um milagre,(...), foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos” (p.85).

O narrador parodia o episódio do Adamastor de Os Lusíadas, comparando a força da tempestade ao poder do Gigante, que simboliza as dificuldades e os obstáculos enfrentados pelos portugueses na empresa dos Descobrimentos, referindo-se, neste passo, aos trabalhos dos homens que carregaram a pedra até Mafra somente por um capricho do rei.

Intertexto popular ☻:

O intertexto popular é representado neste universo de relações intertextuais por intermédio de contos populares e manipulação de provérbios e aforismos. Na história contada por Manuel Milho que começa por “Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palácio” (p.169), à semelhança de qualquer outro conto popular, também esta história começa com o tradicional “Era uma vez”.

Encontramos provérbios populares e aforismos utilizados na forma tradicional, como é o caso de: “nem sempre galinha, nem sempre sardinha” (p.205), “o mal e o bem à face vem” (p.192) e “a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas” (p.44).

Por vezes, estes são modificados, como são exemplos as passagens: "Ainda agora a procissão vai na praça" (p.3), uma vez que o ditado original é “ainda a procissão vai no adro"; "o cântaro está à espera da fonte" (p.4), que corresponde a uma adaptação de “tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia deixa lá a asa”. Outro exemplo é a frase "Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco" (p.130), na qual o narrador brinca com o provérbio "De génio e de louco, todos temos um pouco", para salientar a coragem, a genialidade e a loucura dos três "voadores" no voo inaugural da passarola.


Observamos, assim, que Memorial do Convento se afigura como uma obra incontornável nos estudos da intertextualidade, devido aos seus múltiplos exemplos e referências que completam e tornam esta obra única.

RECURSOS EXPRESSIVOS

Ao longo da obra "Memorial do Convento", o autor recorre frequentemente a diversos recursos expressivos.

ANÁFORA

"agora vai à casa do noviciado da Companhia de Jesus, agora à igreja paroquial de S. Paulo, agora faz a novena de S. Francisco Xavier, agora visita a imagem de Nossa Senhora das Necessidades, agora vai ao convento de S. Bento dos Loios” – página 70

Com este recurso expressivo, o escritor pretende fazer uma descrição da rotina utilizando o estilo barroco, isto é, o estilo exagerado de dizer por muitas palavras o que se poderia dizer por poucas. Neste exemplo em concreto, são abordados também temas religiosos de uma forma excessiva, sendo esta uma característica do estilo barroco.

"é o que dizem... é o que dizem... é o que dizem... é o que dizem” – página 128

Através desta anáfora, José Saramago pretende reforçar o seu pedido ao Anjo Custódio, para que a viagem do Padre Bartolomeu, Blimunda e Baltasar seja realizada com sucesso, referindo figuras da Igreja Católica para os auxiliar.


METÁFORA

“O cântaro está à espera da fonte.” – página 4

Relativamente a este recurso expressivo, o autor utiliza a palavra cântaro de forma a representar o papel que a rainha D. Maria Ana Josefa desempenha ao estar à espera do seu marido, D. João V, no seu quarto, enquanto este, por sua vez, é representado pela fonte que se desloca até ela.

A passarola (...) é agora uma torre em ruínas, uma babel cortada a meio voo" – página 60

Esta metáfora pretende demonstrar o quão a passarola estava desconstruída, sendo que Padre Bartolomeu viaja para a Holanda, a fim de descobrir o segredo do éter.

ENUMERAÇÃO

"vai escriturando no rol os bens e as riquezas, de Macau as sedas, os estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pimenta, o cobre, o âmbar cinzento, o ouro…” – página 151

Esta enumeração pretende listar, intensificando e dando ênfase aos bens e riquezas de Macau.

“cordas, panos, arames, ferros confundidos– página 60

Com esta enumeração o autor pretende reforçar o péssimo estado em que se encontrava a passarola.

IRONIA

porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim” – página 3

A ironia é usada para fazer uma crítica à sociedade da época, visto que as mulheres eram vistas como sendo inferiores aos homens e qualquer problema de esterilidade existente assumia-se automaticamente que surgia na mulher e não no homem.

“Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei” – página 4

Nesta ironia, José Saramago critica a opulência do rei e da nobreza, por oposição à extrema miséria do povo que se sacrificou para tornar possível a construção do Convento de Mafra, somente por um capricho do rei.

COMPARAÇÃO

“passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas… – página 4

A comparação aqui utilizada pretende referir a importância do momento de intimidade que iria acontecer entre o rei e a rainha e que a preparação deste momento era tão ao pormenor e cerimoniosa, que até as roupas eram comparadas a relíquias de santas.

“empoleirado em andas como uma cegonha negra” – página 7

O autor compara D. Francisco com uma cegonha negra, na medida em que tal como o andar de uma cegonha possa parecer estranho e o voar é elegante, também D. Maria Ana sonha com o seu cunhado, mas no entanto, os seus sonhos deixam-na atormentada com receio de estar a cometer um crime.

ANTÍTESE

A obra é longa, a vida é curta” – página 190

Com este recurso expressivo, o escritor estabelece um contraste entre a duração da obra e da vida, sendo a obra longa e a vida conhecida como sendo “curta”.

"ficava o ar azulado de fumo, e cheiroso, nem parecia a fétida cidade dos dias saudáveis.” – página 118

Através desta antítese, José Saramago pretende realçar o contraste entre o ar cheiroso de alecrim que passava pelos quartos dos doentes e a epidemia que se instalava em Lisboa, a qual estava a espalhar danos na cidade.

HIPÁLAGE

de coração manso e alegre vontade– página 218

Este recurso expressivo tem o papel de adjetivar inversamente os nomes, de maneira a produzir efeitos de sentido mais expressivos no texto.

nem Romeu que, descendo, colhe o debruçado beijo de Julieta" – página 228

Nesta hipálage o autor pretende reforçar a ideia da função de Romeu, atribuindo ao beijo de Julieta o mesmo cenário de outono onde Baltasar e Blimunda se abraçam debaixo de uma árvore.

Todas as páginas referidas ao longo da parte da intertextualidade e dos recursos expressivos correspondem ao seguinte pdf da obra Memorial do Convento: