O POVO E A (RE)ESCRITA DA HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO MONUMENTO

O ESPAÇO

  • Este capítulo passa-se em Mafra, espaço desmoderado do rei, onde habitam milhares de trabalhadores que vieram, voluntariamente ou forçados, das suas terras de origem para trabalhar na construção do Convento.

  • Este espaço representa o esforço desmedido, a doença e a morte, mas também a solidariedade, companheirismo e cumplicidade dos trabalhadores.

O QUE É UMA EPOPEIA?

  • Uma epopeia é um género poético de origem grega, estruturado em versos e estrofes, caracterizado por acontecimentos históricos ou míticos, exaltando as ações heróicas e grandiosas sobre elementos considerados fundamentais a dada cultura.

Em “Memorial do Convento”, a epopeia é reconhecida pelo transporte de uma pedra enorme de Pêro Pinheiro até Mafra, na qual o herói é o povo.

Nesta narrativa, é também notório que o narrador tem um discurso que lhe permite revisitar o passado e recuperar vidas que a História esqueceu, revelando-se quase sempre omnisciente.

SOBRE O CAPÍTULO XlX

O capítulo XIX é considerado um dos mais importantes da obra, uma vez que todo o seu conteúdo nos remete para o título, “Memorial do Convento”, memórias de um povo que lá trabalhou, morreu e sobreviveu. Simbolicamente, relata a dictomia presente nos estratos sociais e, portanto, a desigualdade a que o povo foi submetido. Este capítulo serve, também, para reescrever a história uma vez esta atribui a construção do convento a D. João V e não ao povo que se sacrificou e morreu para construir este monumento. De forma a glorificar todos os homens que trabalharam para que o convento fosse edificado, o narrador encontra um nome próprio para cada letra do alfabeto, sendo esta a melhor maneira de mostrar aos leitores que quem merece imortalização são todos os homens do povo e não o rei que só mandou construir, explorar e maltratar para satisfazer os seus caprichos: “[...] ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados.” (p.162).

Neste capítulo, é consagrada a saga heroica do transporte de uma pedra enorme de Pêro Pinheiro para Mafra num percurso de 15 km. Esta pedra destinava-se à construção da varanda central do Convento e por isso tinha de ser una para simbolizar o poder do rei. Todos se admiraram com a pedra, tendo os homens dado “um gemido de espanto” ao verem aquela “brutidão de mármore” (p.163). Este espanto está associado ao tamanho absurdo da pedra (7 metros de comprimento por 3 metros de largura, 64 centímetros de espessura e 31 toneladas) e o gemido com a antecipação do trabalho e sofrimento que iriam ser necessários para a transportar. Para a deslocar foram necessários 8 dias, 400 bois, 600 homens e um carro com dimensões especialíssimas (nau da Índia).

Na passagem "Tantas horas de esforço para tão pouco andar, tanto suor, tanto medo, [...]. Os homens deitam-se no chão, sem forças, ficam arquejando de barriga par sima, olhando o céu que devagar vai escurecendo."(p.171), é percetível o esforço árduo, o suor e o sacrifício dos homens que, pela sobrevivência, trabalharam sem descanso para tornar possível o cumprimento da promessa do rei.

PERSONAGENS

Francisco Marques

  • Ao longo desta parte da obra surge uma nova personagem: Francisco Marques. Francisco era um dos trabalhadores que tinha ido a Pêro Pinheiro buscar a pedra e era especialista em colocar calços, que serviam para travar o deslocamento da nau da Índia quando o caminho era a descer.

Num dos dias houve um desencontro e este morre no caminho esmagado pelo carro que tinha resvalado numa descida, "Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim se lembrando da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira roda por cima, mais de duas mil arrobas só a pedra, se ainda estamos lembrados."(p.175).

O narrador utiliza o exemplo de Francisco para simbolizar todos aqueles que morreram no caminho por causa de uma pedra e das vontades do Rei.

Manuel Milho

  • Neste capítulo, Manuel Milho retoma a história, passando este a ser o narrador até ao final da narrativa. Manuel contava um bocado de uma história todos os dias à noite de forma a fazer esquecer os trabalhadores do sofrimento de carregar a pedra desde Pêro Pinheiro a Mafra, "(..) Manuel Milho que contou uma história, Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palácio,(...)"(p.169).

Tratava-se de uma história de uma rainha que não sabia se gostava de ser rainha porque não sabia o que era ser mulher. Então, falou com um eremita que a aconselhou a largar tudo e a ir procurar as respostas. E assim foi. O rei, humilhado por ter sido deixado, mandou homens a fio procurar a rainha e o eremita, embora sem sucesso, nunca se chegando a saber se o eremita chegou a ser homem e a rainha mulher.

Assim, a moral desta história passa por reconhecer que cada um é aquilo que as condições e as circunstâncias sociais lhe permitem ser, sendo que o mais importante está na existência humana e na sua essência. Isto está bem presente na diferença entre a rainha e o povo: apesar da rainha ter estatuto e ser considerada superior ao povo, não sabia se queria ter esse papel, o que demonstra mediocridade por parte dela, ao invés do povo, que era uma classe considerada inferior mas bem ciente do que era.

Deste modo, a principal função do narrador nesta parte é realçar o povo e eleger os seus heróis, construtores da História, ainda que condene as diferenças sociais da época, daí surgir a narração da história proferida por Manuel Milho.


Todas as páginas referidas ao longo da parte do povo e a (re)escrita da história da construção do monumento correspondem ao seguinte pdf da obra Memorial do Convento: