O CLERO E O ESPAÇO RELIGIOSO NO QUOTIDIANO DAS PESSOAS DO SÉCULO XVIII

O Clero, a Inquisição e os Autos de Fé

Na obra "Memorial do Convento", de José Saramago, o Clero é frequentemente criticado, mais concretamente, a Inquisição e os Autos de Fé:

  • exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de um regime repressivo entre os seus seguidores;

  • quebra o voto de castidade.

Na obra, é feita uma denuncia ao medo que se vivia na época, devido às perseguições feitas pelo Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). De modo a reforçar estas críticas, o autor usa descrições bastante pormenorizadas que transmitem, ao leitor, um elevado pormenor e objetividade.

Durante o reinado de D. João V, período durante a qual se desenrola a ação da obra, Portugal encontrava-se dominado pela corrente do Iluminismo, cujo principal objetivo era propagar a ideia de que através de conhecimento lógico se poderia atingir o conhecimento verdadeiro. A fim de impedir a disseminação desta ideologia, a Inquisição reforça de forma significativa o seu poder e importância no país, tornando-se o órgão em que se concentra todo o poder soberano, habitualmente pertencente ao rei. Assim, o Clero surge ao longo da obra com um poder completamente extraordinário e dominante ("para o Santo Ofício não há vontades, há só almas").

Ainda criticando a falta de carácter dos membros do Clero, é censurado, nesta obra, o desrespeito pelo celibato e ignorância dos votos feitos por parte dos membros do Clero ao consagrarem-se, dado que os membros do Clero eram atraídos e seduzidos por prazeres mundanos.

Também era usual na época a visita de clérigos a casas, onde eram recebidos por mulheres, o que revela as relações carnais e consentidas dos membros da Igreja ("e foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam").

De acordo com as críticas feitas pelo autor, a Igreja, ao contrário do que era suposto, era a principal causa do agravamento das desigualdades já existentes na sociedade da época. A Inquisição torturava e denunciava todos aqueles que fossem contra as ideias católicas, restringindo assim a liberdade de pensamento dos portugueses. Havia até mesmo uma censura aos sermões dos padres ("e o padre, assim interpelado indiretamente, estremece, levanta-se agitado, vai até à porta, olha para fora, e, tendo voltado, responde em voz baixa").

José Saramago critica ainda as pessoas que fazem festas, devido aos autos de fé, onde são queimadas as pessoas condenadas pela Inquisição, ou seja, onde acabam por morrer pessoas que muitas vezes são inocentes. Uma das maiores causas desta situação é a ignorância do povo, que nada ou pouco instruído se deixava manipular pela Igreja e pelos seus mandamentos antiquados.

Para além da crítica feita às ações da Inquisição, é também referida a falta de caráter do Clero, que utilizava a sua posição hierárquica para explorar economicamente os mais indefesos ("e agora sim, vem aí o caixão, coberto por uma riquíssima tela encarnada, que também cobre o coche de Estado"). A partir da fraqueza dos outros, a Igreja apresentava elevada ostentação ("Sete bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor"). Também com a construção do Convento de Mafra, a Igreja sairia beneficiada, com a extração de lucros da construção ("É um vigário feliz, com a promessa de tão grande convento").

Uma outra referência feita à Igreja na obra são os Franciscanos, que, conscientes da urgência de um herdeiro ao trono português, decidem convencer o rei a construir o Convento de Mafra na previsão de que só assim este viria a ter filhos.

É feita uma sátira religiosa relativa aos tempos de Quaresma, no qual era habitual as pessoas se redimirem pelos seus pecados e demonstrarem as suas penitências e arrependimentos ("Agora é tempo de pagar os cometidos excessos, mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se"). Durante a Quaresma, havia uma maior abundância de alimento para toda a população, mesmo para aquela que passava fome durante o resto do ano. Com isto, José Saramago critica fortemente a disparidade existente entre as condições de cada um ("há quem morra por muito ter comido durante a vida toda" vs. "quem morra por ter comido pouco durante toda a vida"). Com a expressão: "Porém, a Quaresma, como o sol, quando nasce é para todos", o autor pretende denunciar a desigualdade existente entre os ricos (monarquia, nobreza e clero) e os pobres (povo), defendendo a necessidade de existir um maior equilíbrio na sociedade da época. ainda uma crítica à liberdade das mulheres no tempo de Quaresma, uma vez que esta era a única época em que as mulheres podiam sair e sozinhas à igreja ("talvez que o costume de deixar que as mulheres corram as igrejas sozinhas na Quaresma").