V.
[tradução do primeiro capítulo the V., primeiro romance de Thomas Pynchon]
[tradução do primeiro capítulo the V., primeiro romance de Thomas Pynchon]
capítulo um
Em que Benny Profane,
um schlemil e ioiô
humano, chega
a um apó-
quiro
V
I
Na véspera de Natal de 1955, Benny Profane, de jeans pretas, jaqueta de camurça, tênis e chapeuzão de caubói, acabou passando por Norfolk, Virgínia. Dado a impulsos sentimentais, pensou em dar uma olhadinha na Cova do Marujo, a taverna dos seus antigos companheiros de bordo na East Main Street. Chegou lá pegando a Arcade, em cuja esquina com a East Main estava sentado um velho cantor de rua com um violão e uma lata vazia de butano para doações. Na rua havia um chefe de máquinas tentando urinar no tanque de um Packard Patrician de 1954 e uns cinco ou seis marujos parados ali em volta dando apoio. O velho estava cantando, num barítono belo e firme:
Toda noite é Natal na nossa velha East Main
Marujos e suas gatinhas todos concordam.
Placas em verde e vermelho
Enchem a cena amiga de brilho
Dizendo bem-vindo do mar seja você.
O saco do Papai Noel tá cheio dos teus desejos:
Que nem champanhe brilham as cervejas,
Garçonetes todas querendo uns beijos,
Todo mundo te lembrando bem
Que é Natal na nossa velha East Main.
“Isso aí, chefe”, gritou um recruta. Profane virou a esquina. Com sua falta de aviso de sempre, a East Main foi para cima dele.
Desde sua baixa da Marinha, Profane ficou trabalhando na construção de estradas e quando não havia trabalho, só viajando, para lá e para cá na costa leste que nem um ioiô; e isso andava assim há mais ou menos um ano e meio. Depois de tanto tempo de pavimentações nomeadas a perder de vista, Profane tinha ficado meio cabreiro com ruas, principalmente com ruas como essa. Elas na verdade tinham todas se fundido numa única Rua abstrata, que lhe dava pesadelos toda noite de lua cheia. A East Main, um gueto de Marujos Bêbados com quem ninguém sabia O Que Fazer, atacava os seus nervos com toda a rispidez com que o sonho de uma noite normal se transforma em pesadelo. Cão em lobo, luz em sombra, vazio em presença à espreita, aqui estavam seu Marujo menor de idade gorfando na rua, sua garçonete com uma hélice de barco tatuada em cada nádega, um pinel em potencial estudando a melhor técnica para pular através de uma janela de vidro laminado (quando gritar Gerônimo? antes ou depois do vidro quebrar?), um grumete bêbado berrando lá no beco porque da última vez que os Guardas Costeiros o pegaram nesse estado puseram ele numa camisa de força. Sob os pés, de vez em quando, vinha pela calçada a vibração de um guarda a uns postes de distância, batucando um Hey Rube com seu cassetete; no alto, deixando o rosto de todo mundo verde e feio, brilhavam lâmpadas de vapor de mercúrio, recuando num V assimétrico até o leste onde está escuro e não há mais bares.
Chegando na Cova do Marujo, Profane se deparou com uma briguinha em curso entre marujos e soldados. Ficou parado na porta observando por um instante; aí, percebendo que já estava com um pé na Cova, se esquivou da briga e ficou mais ou menos pianinho perto do trilho de bronze do balcão.
“Por que é que o homem não consegue viver em paz com seus semelhantes”, se perguntou uma voz atrás da orelha esquerda de Profane. Era Beatrice, a garçonete, menina dos olhos da DesDiv 22, sem falar no antigo navio de Profane, o contratorpedeiro USS Andaime. “Benny”, ela gritou. Eles se acarinharam, tendo se encontrado depois de tanto tempo. Profane começou a rabiscar corações na serragem, atravessados por flechas, com gaivotas levando no bico uma faixa que dizia Querida Beatrice.
A tripulação do Andaime estava ausente, tendo o barco zarpado em direção ao Mediterrâneo dois dias antes no meio de uma tempestade de reclamações da tripulação que se fazia ouvir lá nas Estradas nubladas (dizia a boca do povo) como vozes de um barco fantasma; que se fazia ouvir até em Little Creek. Sendo assim, havia algumas garçonetes a mais do que o normal hoje à noite, servindo mesas na East Main inteira. Pois dizem (e não sem razão) que tão logo um navio como o Andaime reduz todo o cordame, certas esposas de marujos despem suas roupas paisanas e pulam para dentro de uniformes de garçonete, flexionando seus braços de carregar cerveja e ensaiando um sorriso doce de prostituta; até mesmo enquanto a Banda da Estação Naval ainda está tocando “Auld Lang Syne” e os contratorpedeiros cobrem de flocos pretos de fuligem os futuros-cornos em posição máscula de sentido, embarcando com remorsos e um sorrisinho amarelo.
Beatrice trouxe cerveja. Um grito lancinante veio de uma das mesas do fundo, ela se esquivou bruscamente, a cerveja transbordou pela borda do copo.
“Deus do céu”, ela disse, “é o Ploy de novo.” Ploy agora era um engenheiro no draga-minas Impulsivo e um escândalo do tamanho da East Main. Ele tinha um metro e cinquenta e nada quando usava galochas e estava sempre arranjando briga com as maiores pessoas do navio, sabendo que nunca o levariam a sério. Dez meses atrás (logo antes de ser transferido do Andaime) a Marinha tinha decidido remover todos os dentes de Ploy. Furioso, Ploy conseguiu fugir de um chefe paramédico e dois oficiais de odontologia aos socos antes de ficar decidido que ele não estava brincando de manter os dentes. “Mas imagina só”, os oficiais gritavam, tentando não rir, fugindo de seus punhozinhos: “tratamento de canal, abcessos na gengiva…” “Não”, gritava Ploy. No fim tiveram que picá-lo no bíceps com uma injeção de pentotal sódico. Quando despertou, Ploy viu o apocalipse, gritou longas obscenidades. Por dois meses vagou fantasmático pelo Andaime, saltando sem aviso para balançar no mastro feito um orangotango, tentando chutar oficiais na boca.
Ele se prostrava na popa e arengava com qualquer um que ouvisse, soltando o verbo através de gengivas machucadas. Quando a boca sarou o presentearam com um conjunto reluzente e oficial de arcadas superior e inferior. “Ai, Deus”, ele abriu o bocão, e tentou se jogar do navio. Mas foi detido por um negro gargântuo chamado Dahoud. “Ei, carinha”, disse Dahoud, pegando Ploy pela cabeça e examinando aquele espasmo de macacão e desespero cujos pés se debatiam a um metro do convés. “Pra quê você quer fazer uma coisa dessas?”
“Cara, eu quero morrer, só isso”, gritou Ploy.
“Você não sabe”, disse Dahoud, “que a vida é a coisa mais preciosa que você tem?”
“Ha, ha”, disse Ploy por entre as lágrimas. “Por quê?”
“Porque”, disse Dahoud, “sem a vida, você morre.”
“Ah…”, disse Ploy. Ele pensou nisso por uma semana. Se acalmou, foi liberado para desembarcar de novo. Sua transferência ao Impulsivo se tornou realidade. Em pouco tempo, depois do Toque de Recolher, os outros mecânicos começaram a ouvir sons estranhos e ásperos vindos do beliche de Ploy. Isso durou umas duas ou três semanas até uma madrugada quando ali por duas horas alguém acendeu a luz da cabine e lá estava Ploy, sentado de pernas cruzadas em seu beliche, afiando os dentes com uma limazinha. Na próxima noite de pagamento, Ploy sentou numa mesa na Cova do Marujo com um bando de outros mecânicos, mais quieto do que o normal. Ali pelas onze, Beatrice passou pela mesa, levando uma bandeja cheia de copos de cerveja. Alegre, Ploy jogou a cabeça para trás, abriu as mandíbulas, e cravou suas recém-limadas dentaduras no lado direito da bunda da garçonete. Beatrice berrou, copos voaram parabólicos e cintilantes, encharcando a Cova do Marujo com cerveja aguada.
Isso se tornou o passatempo preferido de Ploy. O boato correu por toda a divisão, pelo esquadrão, talvez por toda a DesLant. Gente que não era nem do Impulsivo nem do Andaime vinha assistir. Isso foi motivo de muita briga como a que estava agora em andamento.
“Quem foi que ele pegou”, Profane disse. “Eu não estava olhando.”
“A Beatrice”, disse Beatrice. Sendo Beatrice outra garçonete. A sra. Buffo, dona da Cova do Marujo, cujo primeiro nome também era Beatrice, tinha uma teoria de que assim como toda criancinha pequena chama todas as mulheres de mãe, os marujos, à sua maneira igualmente desamparados, deviam chamar toda garçonete de Beatrice. Para implementar com maior eficiência essa política maternal, ela mandou instalar torneiras customizadas, feitas de espuma de borracha, no formato de peitões. Das oito às nove em noites de pagamento lá ocorria algo que a sra. Buffo chamava de Hora de Mamar. O evento se iniciava com ela emergindo da sala dos fundos trajada num quimono com dragões bordados dado a ela por um admirador na Sétima Frota, levando uma gaita de contramestre à boca e soprando Bocas à Obra. Ao som desse sinal, todo mundo saía correndo e se tivessem a sorte de alcançar uma torneira ganhavam de mamar. Havia sete dessas torneiras, e uma média de duzentos e cinquenta marujos presentes na festança.
A cabeça de Ploy agora surgiu de trás de uma das quinas do balcão. Ele arreganhou os dentes para Profane. “Esse aqui”, Ploy disse, “é meu amigo Dewey Gland, que acabou de embarcar.” Ele apontou para um rebelde esguio com uma cara triste e uma napa enorme que tinha vindo atrás de Ploy, arrastando um violão pela serragem.
“Noite”, disse Dewey Gland. “Eu queria cantar uma musiquinha pra vocês.”
“Pra comemorar a tua transformação em PCD”, disse Ploy. “O Dewey canta pra todo mundo.”
“Isso foi ano passado”, disse Profane.
Mas Dewey Gland apoiou um pé no trilho de bronze do balcão e o violão no joelho e começou a tocar. Depois de oito compassos disso ele cantou, em tempo de valsa:
Pobre Civil Desamparado,
Você vai e a gente fica sem chão.
No porão e no refeitório eles choram pesado,
Até mesmo o mofino capitão.
Você tá fazendo a coisa errada,
Deviam é te dar uma adestrada,
Tuas advertências já passam de um milhão.
Ficarei no mar vinte anos de bom grado,
Nunca serei um Pobre Civil Desamparado.
“Bonita”, disse Profane para dentro do copo de cerveja.
“Ainda não acabou”, disse Dewey Gland.
“Ah”, disse Profane.
Um miasma de maldade de repente envolveu Profane por trás; um braço caiu que nem um saco de batata no seu ombro e para dentro da sua visão periférica se esgueirou um copo de cerveja cercado por um regalo enorme, feito toscamente de pele de babuíno morto.
“Benny. Como é que anda a cafetinagem, hyeugh, hyeugh.”
A risada só podia ter vindo do antigo companheiro de bordo de Profane, Pig Bodine. Profane se virou para olhar. Veio mesmo. Hyeugh, hyeugh descreve uma risada produzida ao colocar a ponta da língua entre os incisivos centrais superiores e espremer sons guturais para fora da garganta. Era, como Pig desejava, horrivelmente obsceno.
“Pigzão. Você não devia estar em trânsito?”
“Me ausentei sem permissão. Pappy Hod, o subsargento, me trouxe até aqui pela colina.” O melhor jeito de fugir da GC é estando sóbrio e com seus semelhantes. Daí a Cova do Marujo.
“Como é que vai o Pappy.”
Pig disse a ele como Pappy Hod e a garçonete com quem ele havia se casado se separaram. Ela tinha ido embora e vindo trabalhar na Cova do Marujo.
Aquela esposa novinha, Paola. Ela tinha dito dezesseis, mas não tinha como saber porque havia nascido logo antes da guerra e o prédio com os registros dela sido destruído, como tantos outros prédios na ilha de Malta.
Profane estava lá quando eles se conheceram: o Metro Bar, na Strait Street. A Tripa. Valletta, Malta.
“Chicago”, de Pappy Hod com sua voz de gângster. “Você já ouviu falar de Chicago”, enquanto isso pondo uma mão sinistra dentro do casaco, um número clássico de Pappy Hod em todo o litoral do Mediterrâneo. Ele puxava um lenço e não um cano ou uma pistola afinal, assoava o nariz e ria de qualquer menina que por acaso estivesse do outro lado da mesa. Filmes americanos tinham dado estereótipos a elas todas, todas menos Paola Maijstral, que continuou olhando para ele naquele dia com as narinas imóveis, sobrancelhas bem centralizadas.
Pappy acabou pegando emprestado quinhentos por setecentos do caixa dois de Mac, o cozinheiro, para trazer Paola para os Estados Unidos.
Talvez só tenha sido um jeito de ela chegar na América — a vista curta de toda garçonete mediterrânea — onde havia comida o bastante, roupas quentinhas, calor o tempo todo, prédios não despedaçados. Pappy mentiria a idade dela para entra com ela no país. Ela poderia ter a idade que quisesse. E você suspeitava qualquer nacionalidade, pois Paola sabia fiapos ao que parecia de todas as línguas.
Pappy Hod tinha descrito Paola para o divertimento dos grumetes no almoxarifado dos contramestres do USS Andaime. Soltando a língua, no entanto, com uma ternura peculiar, como se percebendo aos poucos, quem sabe até enquanto desfiava a história, que o sexo talvez fosse mais misterioso do que ele tinha previsto e que no fim não saberia o placar final porque aquele tipo de placar não se escrevia com números. O que depois de quarenta e cinco anos não era coisa que um safado de um Pappy Hod fosse descobrir.
“Pode crer”, disse Pig aparte. Profane olhou para os fundos da Cova do Marujo e viu Paola se aproximando agora pela fumaça acumulada da noite. Ela parecia uma garçonete da East Main. Como era mesmo aquilo de se fazer de anjo, da vaquinha no presépio?
Ela sorriu para Profane: triste, com esforço.
“Você voltou pra se alistar de novo?”
“Só passando”, Profane disse.
“Vem comigo pra costa oeste”, Pig disse. “Tá pra nascer uma viatura da GC que consiga colar na minha Harley.”
“Olha, olha”, gritou o pequeno Ploy, saltitando que nem saci. “Ainda não, gente. Espera aí.” Ele apontou. A sra. Buffo tinha se materializado no balcão, de kimono. Um silêncio tomou conta do lugar. Houve uma trégua momentânea entre os soldados e os marujos barrando a entrada.
“Meninada”, a sra. Buffo anunciou, “é Véspera de Natal.” Ela sacou a gaita de contramestre e começou a tocar. As primeiras notas tremularam fervorosas e flautescas sobre olhos arregalados e bocas abertas. Todo mundo na Cova do Marujo ouvia embasbacado, percebendo gradualmente que ela estava tocando “It Came Upon a Midnight Clear”, no alcance limitado da gaita de contramestre. Bem do fundo, um jovem reserva que no passado tinha se apresentado em boates pela Filadélfia começou a cantar junto suave. Os olhos de Ploy brilharam. “É a voz de um anjo”, ele disse.
Eles tinham chegado na parte que diz “Paz na terra, bondade aos homens, Do gracioso rei do Paraíso”, quando Pig, um ateísta militante, decidiu que não aguentava mais aquilo. “Isso”, ele anunciou em alto e bom som, “me soa como Bocas à Obra.” A sra. Buffo e o reserva silenciaram. Um segundo se passou antes que qualquer pessoa captasse a mensagem.
“Hora de Mamar!” berrou Ploy.
O que meio que quebrou o feitiço. Os habitantes de pensamento rápido do Impulsivo de algum jeito coalesceram na repentina multidão de nautas animados, ergueram Ploy à força e correram com o camaradinha até o mamilo mais próximo, na vanguarda do ataque.
A sra. Buffo, empolada em seu baluarte como o trompetista de Cracóvia, tomou o impacto total da investida, tombando de costas numa bacia de gelo no que a primeira onda arremeteu contra o bar. Ploy, de mãos esticadas, foi lançado por cima do balcão. Ele se agarrou na alavanca de uma das torneiras e simultaneamente seus camaradas de bordo o soltaram; seu impulso conduziu ele e a alavanca num arco descendente: cerveja começou a jorrar do peito de espuma de borracha numa cascata branca, banhando Ploy, a sra. Buffo e duas dúzias de marujos que tinham chegado atrás do balcão numa ação de flanco e que agora estavam se surrando até perderem os sentidos. O grupo que tinha carregado Ploy se espalhou e tentou encurralar mais torneiras. O primeiro-sargento de Ploy estava de quatro no chão segurando os pés dele, pronto para arrancá-lo dali e pegar sua posição de atacante quando Ploy já tivesse bebido o bastante. O destacamento do Impulsivo, em assalto, tinha formado uma cunha. Na esteira deles e através da brecha escalaram pelo menos mais sessenta marujos espumando, chutando, arranhando, socando, rugindo retumbantes; alguns brandindo garrafas de cerveja para abrir caminho.
Profane estava sentado na ponta do balcão, observando botas de marinheiro feitas à mão, bocas de sino, calças jeans com a barra dobrada; às vezes um rosto babando no fim de um corpo caído; garrafas de cerveja quebradas, tempestadezinhas de serragem.
Logo ele olhou para o lado; Paola estava aqui, com os braços em volta da perna dele, apertando a bochecha contra o jeans preto.
“Que horror”, ela disse.
“Ah”, disse Profane. Ele deu tapinhas da cabeça dela.
“Paz”, ela suspirou. “Não é isso que nós todos queremos, Benny? Só um pouquinho de paz. Ninguém aparecendo do nada e mordendo a tua bunda.”
“Xiu”, disse Profane, “olha: o Dewey Gland acabou de tomar uma pancada com o próprio violão.”
Paola murmurou contra a perna dele. Eles ficaram sentados em silêncio, sem levantar os olhos para observar a carnificina em curso acima deles. A sra. Buffo tinha desatado a chorar. Balbucios não-humanos se chocavam contra e subiam por detrás da velha imitação de mogno do balcão.
Pig tinha posto vinte copos de cerveja de lado e se sentado num parapeito atrás do balcão. Em tempos de crise ele preferia ficar de voyeur. Olhou entusiasmado no que seus camaradas de bordo agarravam os sete gêiseres abaixo dele que nem leitões desmamados. A cerveja tinha encharcado a maior parte da serragem atrás do balcão: lutas e jogos de pernas amadores agora marcavam nela hieróglifos alienígenas.
De fora vinham sirenes, apitos, pés correndo. “Ferrou”, disse Pig. Ele desceu da prateleira, se aprochegou de Profane e Paola na ponta do balcão. “Ei, campeão”, ele disse, descolado e apertando os olhos como se estivesse contra o vento. “O xerife tá chegando.”
“Pelos fundos”, disse Profane.
“Traz a moça”, disse Pig.
Os três correram em zigue-zague através de um salão transbordando de corpos. No caminho eles pegaram Dewey Gland. Na hora em que a Guarda Costeira invadiu a Cova do Marujo, de cassetetes no ar, os quatro se encontravam correndo por um beco paralelo à East Main. “A gente tá indo pra onde?”, Profane disse. “Pra onde a gente tá indo”, disse Pig. “Anda logo”.
II
Onde eles acabaram enfim foi num apartamento em Newport News, habitado por quatro tenentes do WAVE e um operador de manobras nas docas de carvão (amigo do Pig) chamado Morris Teflon, que era uma espécie de pai da casa. A semana entre o Natal e o Dia de Ano-Novo foi passada bebendo a ponto de eles só saberem que estavam bêbados. Ninguém na casa pareceu se incomodar quando todos se alojaram.
Um costume desconfortável de Teflon fez com que Profane e Paola se aproximassem, embora nenhum dos dois quisesse. Teflon tinha uma câmera: Leica, arranjada meio-legalmente no estrangeiro por um amigo da Marinha. Nos finais de semana quando os negócios iam bem e tinha vinho tinto guinéu fluindo para todo lado como a onda de um navio mercante pesado, Teflon pendurava a câmera no pescoço e saía vagando de cama em cama, batendo fotos. Essas ele vendia para marujos ávidos na parte baixa da East Main.
Acontecia que Paola Hod, nascida Maijstral, liberta por vontade própria primeiro da segurança da cama de Pappy Hod e depois do meio-lar da Cova do Marujo, agora estava num estado de choque que havia dotado Profane de todo tipo de talentos curativos e compreensivos que ele na verdade não tinha.
“Você é tudo que me resta”, ela o avisou. “Seja bom pra mim.” Eles se sentavam em volta de uma mesa da cozinha de Teflon: Pig Bodine e Dewey Gland de frente para cada um deles como parceiros de bridge, uma garrafa de vodka no meio. Ninguém falava a não ser para discutir sobre o que iam misturar na vodka na próxima vez quando o que eles tinham acabasse. Aquela semana tentaram leite, sopa de vegetais enlatada, por fim o suco de uma fatia seca de melancia que era a única coisa que tinha sobrado na geladeira de Teflon. Tenta espremer uma melancia num jarrinho um dia quando os teus reflexos não estiverem tão bons. É praticamente impossível. Catar as sementes da vodka também se mostrou uma dificuldade, e resultou numa crescente e mútua antipatia.
Parte do problema era que tanto Pig quanto Dewey estavam de olho em Paola. Toda noite eles abordavam Profane como um comitê e pediam as sobras.
“Ela está tentando se recuperar dos homens”, Profane tentava dizer. Pig ou rejeitava ou tomava isso como uma ofensa a Pappy Hod seu antigo superior.
A verdade é que Profane estava na seca. Embora tenha se tornado difícil dizer o que é que Paola queria.
“O que isso quer dizer”, Profane disse. “Ser bom pra você.”
“O que o Pappy Hod não era”, ela disse. Ele logo abriu mão de tentar decodificar seus vários anseios. Ela vez ou outra aparecia com todo tipo de história estranha de infidelidade, socos-na-boca, abuso bêbado. Tendo se agachado, lascado, escovado, pintado e lascado o convés de novo sob as ordens de Pappy Hod durante quatro anos Profane acreditava em mais ou menos metade. Metade porque uma mulher é só metade de uma coisa que costuma ter dois lados.
Ela ensinou uma canção para eles todos. Aprendida com um paramilitar em baixa da ação francesa na Argélia:
Demain le noir matin,
Je fermerai la porte
Au nez de années mortes;
J’irai par le chemins.
Je Mendierai ma vie
Sur la terre er sur l’onde,
Du vieux au nouveau monde…
Ele era baixo e seu corpo era como a ilha de Malta em si: rocha, um coração inescrutável. Ela só tinha passado uma noite com ele. Depois ele se foi para o Pireu.
Amanhã, a manhã negra, eu fecho a porta na cara dos anos mortos. Vou para a estrada, mendigando por terra e mar, do velho ao novo mundo…
Ela ensinou a progressão dos acordes para Dewey Gland e então todos se sentaram em volta da mesa na cozinha invernal de Teflon, enquanto quatro chamas de gás do fogão consumiam todo o oxigênio deles; e cantaram, e cantaram. Quando Profane olhava para os olhos dela, achava que ela estava sonhando com o paramilitar — provavelmente um homem-sem-política tão corajoso quanto qualquer um é durante o combate: mas cansado, só isso, cansado de realocar vilas nativas e projetar barbaridades pela manhã tão brutais quanto as que vinham da F.L.N. na noite anterior. Ela usava uma Medalha Milagrosa no pescoço (dada a ela, quem sabe, por um marujo qualquer a quem ela lembrava uma boa moça católica lá nos Estados Unidos onde o sexo vem de graça — ou com o casamento?). Que tipo de católica era ela? Profane, que só era metade católico (mãe judia), cuja moralidade era fragmentária (sendo derivada da experiência, que não era muita), se perguntava que argumentos jesuítas antiquados a tinham levado a fugir com ele, se negar a dividir uma cama mas ainda assim pedir que ele “fosse bom”.
Na noite anterior à Véspera de Ano Novo eles saíram vagando da cozinha até uma delicatessen kosher a umas quadras de distância. Ao voltar para a casa de Teflon viram que Pig e Dewey tinham saído: “Fomos encher o caneco”, dizia o recado. O lugar estava todo iluminado de Natal, com um rádio ligado na WAVY e Pat Boone num dos quartos, sons de objetos sendo tacados em outro. De algum jeito o jovem casal tinha dado num quarto escuro com uma cama dentro.
“Não”, ela disse.
“Que quer dizer sim.”
Rangido, fez a cama. Antes que qualquer um se desse conta:
Clique, fez a Leica de Teflon.
Profane fez o que era esperado dele: levantou rugindo da cama, braço terminando num punho. Teflon se esquivou fácil. “Calma, calma”, ele riu.
A privacidade transgredida não era tão importante; mas a interrupção tinha vindo logo antes do Grande Momento.
“Você nem liga”, Teflon estava dizendo a ele. Paola estava se vestindo apressada.
“Lá pra fora na neve”, Profane disse, “é aonde essa câmera, Teflon, vai mandar a gente.”
“Tó:” abriu a câmera, deu o filme para Profane, “se você vai ficar enchendo o saco.”
Profane pegou o filme mas não tinha como baixar a guarda. Então ele botou a roupa e terminou com o chapéu de caubói. Paola tinha vestido um sobretudo marinho, grande demais para ela.
“Lá pra fora”, Profane gritou, “na neve.” Coisa que de fato havia. Eles pegaram uma balsa para Norfolk e se sentaram no último andar bebendo café preto em copos de papel e observando mantos de neve batendo silenciosos contra os janelões. Não tinha mais nada para olhar a não ser um mendigo num banco à frente deles, e um para o outro. O motor baqueava e se esforçava lá embaixo, eles conseguiam sentir pelas nádegas, mas nenhum dos dois conseguia pensar no que dizer.
“Você queria ficar”, ele perguntou.
“Não, não”, ela tremeu, um pé discreto de banco gasto entre eles. Ele não tinha o menor impulso de puxá-la para mais perto. “Você que decide.”
Minha nossa, ele pensou, agora eu tenho uma dependente.
“Por que é que você tá tremendo. Tá quente o bastante aqui.”
Ela fez que não com a cabeça (o que quer que isso significasse), encarando a ponta das galochas. Depois de um tempo Profane se levantou e saiu para o deck.
A neve caindo preguiçosa na água fazia as onze da noite parecerem o crepúsculo ou um eclipse. No alto a cada poucos segundos uma buzina soava para afastar qualquer coisa da rota de colisão. Mas ainda assim como se não houvesse nada nas estradas no fim das contas a não ser barcos, desocupados, inanimados, fazendo ruídos uns para os outros que significavam nada mais que a turbulência dos parafusos ou o sussurro da neve na água. E Profane completamente sozinho ali.
Alguns de nós têm medo de morrer; outros da solidão humana. Profane tinha medo de paisagens terrestres ou marítimas que nem essa, onde nada mais vivia além dele. Parecia que ele sempre estava topando com uma: vira uma esquina na rua, abre uma porta para um deck aberto e lá estava ele, em terra alienígena.
Mas a porta atrás dele se abriu mais uma vez. Logo ele sentiu as mãos sem luva de Paola deslizadas para baixo dos braços dele, a bochecha dela contra as costas. Seu olho da mente de retraiu, observando a natureza morta deles como um desconhecido talvez fizesse. Mas ela não fazia da cena nem um pouco menos alienígena. Eles ficaram desse jeito até o outro lado, a balsa entrou na doca, e correntes tiniram, ignições de carro ganiram, motores ligaram.
Pegaram o ônibus até a cidade, sem falar; pularam perto do Monticello Hotel e foram em direção à East Main para achar Pig e Dewey. A Cova do Marujo estava de luz apagada, a primeira vez que Profane conseguia se lembrar. A polícia deve ter interditado.
Acharam Pig no vizinho Canto do Caipira do Chester. Dewey estava sentado com a banda. “Festa, festa”, gritou Pig.
Uma dúzia de marujos ex-Andaime queriam uma reunião. Pig, nomeando a si mesmo como presidente social, decidiu pelo Susanna Squaducci, um navio italiano de luxo agora nas últimas etapas de construção no pátio de Newport News.
“Voltar pra Newport News?” (Decidindo não contar para Pig do desentendimento com Teflon.) Pois: que nem um ioiô de novo.
“Isso precisa acabar”, ele disse, mas ninguém estava ouvindo. Pig tinha ido dançar o dirty boogie com Paola.
III
Profane dormiu aquela noite na casa de Pig perto das antigas docas, e dormiu sozinho. Paola tinha topado com uma das Beatrices e ido passar a noite com ela, depois de prometer acanhada que iria de par com Profane para a festa de Ano-Novo.
Lá pelas três Profane acordou no chão da cozinha com dor de cabeça. Ar noturno, frio amargo, vazava por baixo da porta e de algum lugar lá fora ele ouvia um rugido grave e persistente. “Pig”, ele coaxou. “Onde é que você guarda a aspirina.” Nenhuma resposta. Profane cambaleou até o outro cômodo. Pig não estava lá. O rugido lá fora se tornou mais ominoso. Profane foi até a janela e viu Pig no beco, sentado na moto e acelerando o motor. A neve caía em pontinhos brilhantes minúsculos, o beco sustentava sua própria curiosa luz de neve: deixando Pig no preto-e-branco das vestes do arlequim e antigos muros de tijolo, polvilhados de neve, num cinza neutro. Pig estava usando uma touca de tricô, puxada por cima do rosto até o pescoço de modo que a cabeça dele aparecia como uma esfera de preto sem-vida. O gás de escape se agitava em nuvens ao redor dele. Profane sentiu um calafrio. “O que é que você tá fazendo, Pig”, ele chamou. Pig não respondeu. O enigma ou a visão sinistra de Pig e aquela Harley-Davidson sozinhos num beco às três da manhã lembrou Profane muito de repente de Rachel, em quem ele não queria pensar, não essa noite no frio amargo, com dor de cabeça, com a neve vazando para dentro do quarto.
Rachel Owlglass era proprietária, em 1954, de um MG. Presente do papai. Depois de dar a ele seu passeio de teste-drive nas imediações da Grand Central (onde ficava o escritório do papai), familiarizando-o com postes telefônicos, hidrantes e um pedestre ou outro, ela levou o carro para passar o verão nas Catskills. Aqui, pequena, enfezada e voluptuosa, Rachel arruava com o tal MG pelas curvas e desvios sanguinários da Rota 17, pavoneando sua bunda arrogante ao ultrapassar carretas de feno, semirreboques estrondosos, antigos roadsters da Ford cheios até a boca de gnomos universitários com corte de cabelo militar.
Profane tinha acabado de sair da marinha e estava trabalhando naquele verão como saladista assistente no Schlozhauer’s Trocadero, a quinze quilômetros de Liberty, Nova York. Seu chefe era um certo Da Conho, um brasileiro maluco que queria ir combater árabes em Israel. Uma noite perto do começo da temporada um fuzileiro naval bêbado tinha aparecido no Fiesta Lounge ou bar do Trocadero, com uma metralhadora calibre .30 na sua mochila de desertor. Ele não tinha muita certeza de como é que tinha topado com a arma exatamente: Da Conho preferia pensar que tinha sido contrabandeada de Parris Island uma peça de cada vez, que é como o Haganá faria. Depois de discutir com o bartender um tanto, que também queria a arma, Da Conho enfim triunfou, trocando por três alcachofras e uma berinjela. À mezuzá pregada acima do refrigerador de vegetais e à bandeira sionista pendurada atrás do bufê de salada Da Conho acrescentou este prêmio. Durante a semana que se passou, quando o chef estava olhando para outro lado, Da Conho montava sua metralhadora, camuflava-a com alface americana, agrião e endívia belga, e fingia metralhar os clientes reunidos no salão. “Plau, plau, plau”, ele fazia, olhando malévolo pela mira, “agora eu te peguei, Abdul Sayid. Plau, plau, porco muçulmano.” A metralhadora de Da Conho era a única no mundo que fazia plau, plau. Ele passava das quatro da manhã limpando-a, sonhando com desertos de aparência lunar, o chiado de música oriental, meninas iemenitas cujas cabeças delicadas estavam cobertas com lenços brancos, cujo ventre ardiam de amor. Ele se perguntava como é que judeus americanos podiam se sentar vangloriosos naquele salão uma refeição depois da outra enquanto a só meio mundo de distância o deserto se movimentava incessante sobre corpos de seus semelhantes. Como é que ele podia notar estômagos sem alma? Arengar com óleo e vinagre, suplicar com palmito. A única voz que ele tinha era a da metralhadora. Será que eles conseguiam ouvir, será que estômagos escutam: não. E você nunca ouve a que te pega. Mirando talvez em qualquer canal alimentar num terno Hart Schaffner & Marx que dava vazão a gorgolejos lascivos para as garçonetes que passavam, aquela arma era um objeto apenas, apontando para onde qualquer desequilíbrio adequado de forças pudesse direcioná-la: mas o que é que guiava os instintos de Da Conho: Abdul Sayid, o canal alimentar, ele próprio? Para quê perguntar. Ele sabia apenas que era um sionista, que sofria, estava confuso, estava se coçando para se plantar até as canelas no solo franco de qualquer kibbutz, a um hemisfério dali.
Profane tinha se perguntado naquela época o que é que havia entre Da Conho e aquela metralhadora. Amor por um objeto, isso ele nunca tinha visto. Quando ele descobriu não muito tempo depois daquilo a mesma coisa com Rachel e o seu MG, ele teve a primeira percepção de que alguma coisa andava rolando por baixo da rosa, talvez por mais tempo e com mais gente do que ele gostaria de pensar.
Ele a conheceu por causa do MG, do mesmo jeito que todo mundo. A coisa quase passou por cima dele. Estava saindo pela porta dos fundos da cozinha um comecinho de tarde carregando uma lata de lixo entupida de folhas de alface que Da Conho julgou inferiores quando de algum ponto à sua direita ele ouviu o rugido sinistro do MG. Profane continuou andando, seguro numa fé de que pedestres carregados têm a preferencial. No segundo seguinte o para-lama direito do carro bateu no traseiro dele. Felizmente, só estava andando a 10 km/h — não rápido o bastante para quebrar alguma coisa, só mandar Profane, lata de lixo e folhas de alface voando numa grande chuva verde.
Ele e Rachel, os dois cobertos de folhas de alface, olharam um para o outro, desconfiados. “Que romântico”, ela disse. “Até onde eu sei você pode muito bem ser o homem dos meus sonhos. Tira essa folha de alface da cara pra eu ver.” Como se tirasse um chapéu — lembrando do seu lugar — ele removeu a folha.
“Não”, ela disse, “não é você.”
“Quem sabe”, disse Profane, “da próxima vez a gente tenta com uma folha de figo.”
“Ha, ha”, ela disse e saiu cantando pneu. Ele encontrou um rastelo e começou a juntar o lixo numa pilha. Refletiu que eis aqui mais um objeto inanimado que quase o tinha matado. Não tinha certeza se com isso queria dizer Rachel ou o carro. Colocou a pilha de folhas de alface na lata e descartou-a nos fundos do estacionamento numa ravinazinha que servia ao Trocadero como um lixão. No que estava voltando para a vozinha Rachel passou de novo. O escapamento adenóide do MG soava como se pudesse ser ouvido lá de Liberty. “Vamos dar um passeio, ô Gordinho”, ela gritou. Profane calculou que podia. Ainda faltava umas horas até ter que ir se preparar para o jantar.
Cinco minutos na Route 17 e ele decidiu que se algum dia voltasse para o Trocadero imutilado e vivo iria esquecer de Rachel e só se interessar dali em diante por meninas calmas e pedestres. Ela dirigia que nem uma desvairada no feriado. Ele não tinha dúvida de que ela conhecia o carro e as próprias habilidades, mas como é que ela sabia, por exemplo, quando passava numa curva cega daquela estrada de pista simples, que o caminhão de leite vindo na outra direção estaria longe o bastante para que ela voltasse voando para a faixa com enormes dois centímetros de folga?
Ele estava com medo demais de morrer para ficar, como normalmente ficava, com vergonha de mulher. Esticou a mão, abriu a bolsa dela, achou um cigarro, acendeu. Ela não percebeu. Dirigia com um só objetivo e ignorava que havia alguém do lado dela. Só falou uma vez, para dizer a ele que tinha um fardo de cerveja gelada no banco de trás. Ele tragou o cigarro dela e pensou se não tinha uma compulsão suicida. Parecia às vezes que ele se punha de propósito na frente de objetos hostis, como se estivesse buscando uma forma de acabar com sua existência de schlimazel. Por que é que ele estava aqui mesmo? Porque Rachel tinha uma bela duma bunda? Deu uma olhadela de canto para a bunda no estofamento de couro, quicando, no compasso do carro; observou o não-tão-simples nem tão harmônico movimento do peito esquerdo dentro do suéter preto que ela estava usando. Ela estacionou enfim numa pedreira abandonada. Nacos irregulares de rocha estavam espalhados pelo chão. Ele não sabia de que tipo, mas era tudo inanimado. Foram por uma estradinha de chão até um ponto plano a dez metros do fundo da pedreira.
Era uma tarde desconfortável. O sol batia de um paraíso sem nuvens, improtetor. Profane, gordo, estava suando. Rachel brincou de Você Conhece as poucas crianças que estudaram na mesma escola que ele e Profane perdeu. Ela falou de todos os encontros que tinha marcado para este verão, todos ao que parece com veteranos de universidades Ivy League. Profane concordava de quando em quando que era maravilhoso.
Ela falou de Bennington, sua alma mater. Falou de si mesma.
Rachel vinha das Cinco Cidades na costa sul de Long Island, uma área que compreende Malverne, Lawrence, Cedarhurst, Hewlett e Woodmere e às vezes Long Beach e Atlantic Beach, embora ninguém nunca tenha pensado em chamar de Sete Cidades. Embora os habitantes não sejam sefarditas, a área parece afligida por uma espécie de incesto geográfico. As Filhas são constrangidas a caminhar recatadas e de olhar apagado como tantas Rapunzéis dentro das fronteiras de um país onde a arquitetura élfica dos restaurantes chineses, dos palácios de frutos do mar e das sinagogas em forma de sobrado é muitas vezes tão enfeitiçante quanto o mar; até que estejam maduras o bastante para serem mandadas para as montanhas e faculdades do Noroeste. Não para caçarem maridos (pois uma certa paridade foi sempre alcançada nas Cinco Cidades donde um bom rapaz pode ser predestinado a marido logo aos dezesseis ou dezessete); mas para serem contempladas com a ilusão de ao menos terem “se aventurado” — tão imprescindível ao desenvolvimento emocional de uma menina.
Só escapam as que têm coragem. Chega domingo à noite, acabado o golfe, tendo as camareiras negras retificado a desordem da festa de ontem, e ido visitar parentes em Lawrence, com o Ed Sullivan ainda a horas de distância, os sangues deste reino saem de suas casas imensas, entram em seus automóveis e seguem até os distritos comerciais. Para se distraírem em meio a vistas ao que parece infinitas de camarão empanado e ovo fu yung; asiáticos se curvam, e sorriem, e batem cílios através do crepúsculo de verão, e nas vozes deles estão as aves do verão. E com a caída da noite vem um breve passeio: o tronco do pai sólido e seguro de si no seu terno J. Press; os olhos das filhas secretos por trás de óculos-de-sol cravejados de strass. E assim como o jaguar deu seu nome ao carro da mãe, ele também deu o padrão de sua pelagem às calças que abrangem seus quadris esguios. Quem é que conseguia escapar? Quem é que ia querer?
Rachel queria. Profane, tendo consertado estradas pelas Cinco Cidades, entendia o porquê.
Quando o sol já estava se pondo eles tinham quase terminado o fardo juntos. Profane estava perniciosamente bêbado. Saiu do carro, vagou para trás de uma árvore e apontou para o oeste, com alguma intenção de mijar no sol para apagá-lo de uma vez por todas, isso sendo de algum jeito sendo importante para ele. (Objetos inanimados podiam fazer o que quisessem. Não que eles quisessem porque coisas não querem; só gente. Mas as coisas fazem o que fazem, e é por isso que Profane estava mijando no sol.)
O sol se pôs; como se ele o tivesse extinguido enfim e persistisse imortal, deus de um mundo escurecido.
Rachel estava observando-o, curiosa. Ele fechou a braguilha e cambaleou de volta à caixa de cerveja. Só duas latas. Ele abriu e deu uma para ela. “Eu apaguei o sol”, ele disse, “a gente brinda.” Ele derramou a maior parte na camisa.
Mais duas latas amassadas caíram no fundo da pedreira, o fardo vazio foi atrás.
Ela não tinha se descolado do carro.
“Benny”, uma unha encostou no rosto dele.
“Quê.”
“Quer ser meu amigo?”
“Você parece que já tem bastante.”
Ela olhou para o chão da pedreira. “Por que é que a gente não finge que o outro não é real”, ela disse: “sem Bennington, sem Schlozhauer’s, e sem Cinco Cidades. Só essa pedreira: as rochas mortas que estavam aqui antes da gente e vão estar depois.”
“Por quê.”
“O mundo não é isso?”
“Eles ensinam isso em Geologia 1 ou alguma coisa assim?”
Ela parecia magoada. “É só uma coisa que eu sei. Benny”, ela chorou — um chorozinho — “seja meu amigo, só isso.”
Ele deu de ombros.
“Me escreve.”
“Olha, não me vai ficar esperando que —”
“Como é a estrada. A tua estrada masculina que eu nunca vou ver, com seus Diesels e poeira, botecos, bares de beira de estrada. É só isso. Como que é pra oeste de Ithaca e sul de Princeton. Lugares que eu não conheço.”
Ele coçou a barriga. “Claro.”
Profane continuou topando com ela no que sobrava do verão pelo menos uma vez por dia. Eles conversavam no carro toda vez, ele tentando achar a chave da ignição dela por trás do capô dos olhos, ela recostada à direita no banco do motorista e falando, falando, nada além de palavras-MG, palavras-inanimadas que ele não tinha muito como rebater.
Logo o que ele tinha medo de que fosse acontecer aconteceu — tomou calote se si mesmo, se apaixonou por Rachel e só ficou surpreso que tinha demorado tanto. Passava as noites deitado no barracão fumando no escuro e interpelava a ponta incandescente de sua bituca. Lá pelas duas da manhã o ocupante do topo do beliche chegava do turno da noite — um certo Duke Wedge, um desperado espinhento do distrito de Chelsea, que sempre queria falar de quantas ele estava comendo, que eram, de fato, várias. Ninava Profane até ele pegar no sono. Uma noite ele de fato deu com Rachel e Wedge, o canalha, no MG estacionado em frente ao chalé dela. Ele voltou para a cama, não se sentindo especialmente traído porque sabia que Wedge não ia conseguir nada. Ficou acordado ainda por cima e se deixou entreter por Wedge quando ele chegou com uma descrição passo-a-passo de como ele quase tinha conseguido mas por pouco não. Como sempre, Profane já estava dormindo na metade.
Ele nunca conseguiu atravessar ou ver por trás do falatório sobre o mundo dela — um mundo de objetos cobiçados ou valorados, uma atmosfera que Profane não conseguia respirar. A última vez que ele a viu foi na noite do Dia do Trabalho. Ela iria embora no dia seguinte. Alguém tinha roubado a arma de Da Conho naquela tarde, logo antes do jantar. Da Conho corria de um lado para o outro aos prantos procurando. O chef falou para Profane preparar saladas. De algum jeito Profane conseguiu pôr morango congelado no molho francês e fígado em cubos na salada Waldorf, além de derrubar por acidente umas duas dúzias de rabanete na fritadeira (ainda que estes tenham levado os clientes ao delírio quando ele os serviu mesmo assim, muito preguiçoso para buscar mais). De tempos em tempos o brasileiro explodia pela cozinha chorando.
Ele nunca achou sua amada metralhadora. Desolado e drenado de nervoso, ele foi demitido no dia seguinte. A temporada tinha acabado de qualquer forma — até onde Profane sabia, Da Conho podia até ter embarcado para Israel, para brincar com as tripas de algum trator, tentando esquecer, como muitos trabalhadores exaustos no exterior, de algum amor lá nos Estados Unidos.
Depois do fim Profane decidiu ir atrás de Rachel. Ela tinha ido embora, ele foi informado, com o capitão da equipe de tiro de besta de Harvard. Profane vagou pelo barracão e encontrou um Wedge cabisbaixo, estranhamente sem-par aquela noite. Até meia-noite eles jogaram vinte e um apostando todos os contraceptivos que Wedge não tinha usado durante o verão. Esses estavam na casa dos cem. Profane pegou cinquenta emprestados e teve uma série de vitórias. Quando rapou Wedge, Wedge correu para pegar mais emprestado. Voltou em cinco minutos, balançando a cabeça. “Ninguém acreditou em mim.” Profane emprestou alguns para ele. À meia-noite Profane informou Wedge de que ele estava num buraco de trinta. Wedge fez um comentário adequado. Profane juntou a pilha de camisinhas. Wedge deu com a cabeça na mesa. “Ele nunca vai usar”, ele disse para a mesa. “Essa é que a bosta. Nunca na vida.”
Profane vagou até o chalé de Rachel de novo. Ouviu água espirrando e gorgolejos do pátio nos fundos e deu a volta para investigar. Lá estava ela lavando o seu carro. De madrugada ainda por cima. Fora isso, ela estava falando com ele.
“Seu garanhão lindo”, ele a ouviu dizer, “eu amo encostar em você.” Quê, ele pensou. “Sabe o que eu sinto quando a gente está na estrada? Sozinhos, só eu e você?” Ela estava acariciando seu para-choque dianteiro com a esponja. “Suas respostas esquisitas, querido, que eu conheço tão bem. O jeito que o teu freio puxa um pouquinho pra esquerda, o jeito que você começa a soluçar a 5000 rpm quando você tá excitado. E você queima óleo quando você está puto comigo, né? Eu sei.” Não havia nada da loucura típica na voz dela; talvez fosse uma brincadeira de menina, mas ainda assim, ele reconheceu, excêntrica. “A gente vai ficar junto pra sempre”, passando um chamois pelo capô, “e cê não precisa se preocupar com aquele Buick preto que a gente viu na estrada hoje. Eca: carro gordo e nojento de mafioso. Eu estava achando que ia ver um corpo voando pela porta de trás, e você? Fora que você é tão angular, um inglês adequado e refinado — e tão, mas tão Ivy que eu nunca conseguiria te largar, meu querido.” Profane se deu conta de que talvez fosse vomitar. Demonstrações públicas de sentimento muitas vezes o afligiam assim. Ela tinha entrado no carro e agora estava espraiada no banco de motorista, com a garganta aberta às constelações de verão. Ele estava prestes a se aproximar quando viu a mão esquerda dela serpentear toda pálida para brincar com o câmbio. Observou e percebeu como é que ela estava tocando-o. Tendo estado agorinha com Wedge ele sacou a conexão. Ele não queria mais ver aquilo. Zanzou por uma colina e floresta adentro e quando voltou ao Trocadero não saberia dizer exatamente por onde tinha andado. Todos os chalés estavam escuros. A recepção ainda estava aberta. O balconista tinha dado uma saída. Profane fuçou as gavetas da escrivaninha até achar uma caixa de tachinhas. Voltou para as cabanas e até três da manhã se moveu entre os corredores banhados de luz estelar entre elas, pendurando um contraceptivo de Wedge em cada porta. Ninguém o interrompeu. Ele se sentiu o Anjo da Morte, marcando a porta das vítimas do amanhã em sangue. O propósito de uma mezuzá era enganar o Anjo de modo que ele passasse reto. Nessas mais ou menos cem cabanas Profane não viu uma mezuzá sequer. Tanto pior.
Aí, depois do verão, vieram as cartas, as dele azedas e cheias de palavras erradas, as dela alternando entre sagazes, desesperadas, passionais. Um ano depois ela se formou na Bennington e veio para Nova York trabalhar de recepcionista numa agência de empregos, e então ele a viu em Nova York, uma ou duas vezes, quando estava passando; e embora eles só pensassem um no outro aleatoriamente, embora sua mão de ioiô costumasse estar ocupada com outras coisas, vez ou outra vinha o puxão invisível e umbilical, assim como hoje mnemônico, excitante, e ele pensava o quão senhor de si mesmo ele era. Por uma coisa ele tinha que dar o crédito a ela, ela nunca chamou aquilo de Relação.
“O que é que é, então”, ele perguntou uma vez.
“Um segredo”, com seu sorrisinho de criança, que como Rodgers e Hammerstein em compasso 3/4 deixava Profane tremelicante e gelationoso.
Ela o visitava de vez em quando, que nem agora, à noite, como uma súcubo, vindo com a neve. Ele não fazia a menor ideia de como manter qualquer uma das duas longe.
IV
Acabou que a festa de Ano Novo viria a dar um fim a todo movimento de ioiô, pelo menos por um tempo. A reunião pousou no Susanna Squaducci, subornou o vigia noturno com uma garrafa de vinho, e permitiu que um grupo de um destróier atracado em doca seca (depois de um bate-boca preliminar) embarcasse.
Paola ficou grudada de início em Profane, que estava de olho numa moça voluptuosa usando um tipo de casaco de pele que dizia ser mulher de um almirante. Havia um rádio portátil, cornetas, vinho, vinho. Dewey Gland decidiu escalar um mastro. O mastro tinha acabado de ser pintando mas Dewey Gland continuou, ficando mais zebresco quanto mais alto subia, com o violão balançando abaixo dele. Quando chegou nas vaus, Dewey se sentou, empunhou o violão e começou a cantar em dialeto caipira:
Depuis que je suis né
J’ai vu mourir des pères,
J’ai vu partir des frères,
Et des enfants pleurer…
O paramilitar de novo. Que assombrou essa semana. Desde que eu nasci (dizia ele), vi pais morrerem, irmãos partirem, criancinhas chorarem….
“Qual é o problema desse pilotozinho”, Profane perguntou a ela da primeira vez em que ela traduziu. “Quem é que nunca viu isso. Não acontece só por causa da guerra. Por que botar a culpa na guerra. Eu nasci numa Hooverville, antes da guerra.”
“É isso”, Paola disse. “Je suis né. Nascer. Você só precisa nascer.”
A voz de Dewey soava como parte de um vento inanimado, tão alto no céu. O que é que houve com Guy Lombardo e “Auld Lang Syne”?
Um minuto 1956 adentro Dewey tinha descido ao convés e Profane estava trepado numa tranca, olhando para Pig e a mulher do almirante, copulando bem ali embaixo. Uma gaivota veio num rasante do céu de neve, circulou, pousou na tranca a trinta centímetros da mão de Profane. “Fala, gaivota”, disse Profane. Gaivota não respondeu.
“Puts, cara”, Profane disse para a noite. “Eu gosto de ver gente jovem se juntar.” Examinou o convés principal. Paola tinha sumido. Todas de uma vez as coisas entraram em erupção. Veio uma sirene, duas, da rua. Carros apareceram rosnando no píer, Chevys cinzentos com Marinha dos EUA escrito nas laterais. Holofotes se acenderam, homenzinhos de chapéu branco e braçadeiras pretas-e-amarelas da GC zanzavam pelo píer. Três foliões em alerta correram pelo bombordo, jogando pranchas na água. Um caminhão de som se uniu aos veículos na doca, cujo número estava quase chegando ao de uma frota completa.
“Certo, homens”, 50 watts de voz incorpórea começou a rugir: “certo, homens”. Isso era mais ou menos a única coisa que tinha para dizer. A mulher do almirante começou a berrar que era o marido dela, enfim pegando-a no flagra. Dois ou três holofotes os pregaram onde estavam (no fogo do pecado), Pig tentando passar todos os treze botões do uniforme pelos buracos certos, o que é praticamente impossível quando você está com pressa. Vivas e risos vindos do píer. Alguns dos Guardas Costeiros estavam subindo que nem ratos pelas amarras. Marujos ex-Andaime, tendo perdido o sono nos decks inferiores, subiram cambaleantes as escadas enquanto Dewey gritava, “Atenção para repelir os invasores”, e brandia seu violão feito um sabre.
Profane observava aquilo tudo e estava meio-preocupado com Paola. Procurou por ela mas os holofotes ficavam se mexendo, ferrando a iluminação do convés principal. Começou a nevar novamente. “Imagina”, disse Profane à gaivota, que estava piscando para ele, “imagina se eu fosse Deus.” Ele se arrastou até a plataforma e deixou de barriga para baixo, só com nariz, olhos e chapéu de caubói aparecendo pela beirada, como um Kilroy horizontal.
“Se eu fosse Deus…” Apontou para um GC; “Zap, GC, acabou pra você.” O GC se ateve ao que estava fazendo: casseteteando a barriga de um operador de sistemas de 110 quilos chamado Patsy Pagano.
A frota no píer foi acrescida de uma carrocinha, que é marinhês para camburão ou víuva-alegre.
“Zap”, disse Profane, “carrocinha, continua andando e cai da beira do píer”, o que ela quase fez mas freou a tempo. “Patsy Pagano, crie asas e saia voando daqui.” Mas uma porrada final derrubou Patsy de uma vez por todas. O GC o deixou ali mesmo. Precisaria de seis homens para movê-lo. “Qual é o problema”, Profane se perguntou. A ave marítima, entediada com isso tudo, saiu em direção à Base Naval. Vai ver, Profane pensou, Deus devia ser mais positivo, em vez de ficar lançando raios o tempo todo. Com cuidado ele apontou um dedo. “Dewey Gland. Cante aquela canção pacifista da Argélia para eles.” Dewey, agora escarranchado numa corda de salvamento, fez uma introdução no mi grave e começou a cantar “Blue Suede Shoes”, à la Elvis Presley. Profane se virou de costas, piscando na neve.
“Bom, quase”, ele disse, para a ave ausente, para a neve. Cobriu o rosto com o chapéu, fechou os olhos. E logo estava dormindo.
O barulho lá embaixo esmoreceu. Corpos foram carregados, empilhados na carrocinha. O caminhão de som, depois de vários rompantes de ruído de feedback, foi desligado e levado embora. Holofotes se apagaram, sirenes sumiram em Doppler na direção do quartel general da guarda costeira.
Profane acordou de manhãzinha, coberto por uma fina camada de neve e sentindo a chegada de uma gripona. Trambecou pelos degraus cobertos de gelo, escorregando um sim, outro não. O navio estava deserto. Ele desceu até os decks inferiores para se aquecer.
Mais uma vez, estava nas tripas de uma coisa inanimada. Barulho alguns decks abaixo: vigia noturno, muito provavelmente. “Nunca dá pra ficar sozinho”, Profane resmungou, atravessando um passadiço na ponta dos pés. Achou uma ratoeira no deck, catou-a com cuidado e tacou na outra ponta do passadiço. A ratoeira acertou uma antepara e desengatilhou com um CLAC bem alto. O som dos passos cessou abrupto. Aí recomeçou, mais cuidadoso, passou sob Profane e subiu uma escada, para onde estava a ratoeira.
“Ha-ha”, disse Profane. Se esgueirou por um canto, encontrou outra ratoeira e soltou numa escotilha. CLAC. Passos tamborilaram escada abaixo.
Quatro ratoeiras depois, Profane se viu na cozinha, onde o vigia havia montado uma cafeteria primitiva. Calculando que o guia ia passar uns minutos confuso, Profane colocou uma panela de água para ferver na chapa aquecedora.
“Ei”, berrou o vigia, dois decks acima.
“Eita”, disse Profane. Ele chispou furtivo da cozinha e foi procurar mais ratoeiras. Achou uma no próximo deck, saiu, tacou para cima num arco invisível. No mínimo estava salvando a vida dos ratos. Um estalo abafado e um grito vieram de cima.
“Meu café”, Profane murmurou, descendo dois degraus de cada vez. Jogou um punhado de pó de café na água fervente e escapuliu pelo outro lado, quase topando com o vigia noturno que estava rondando com uma ratoeira pendurada na manga esquerda. Foi por tão pouco que Profane pôde ver o olhar paciente e martirizado desse vigia. Vigia entrou na cozinha e Profane zarpou. Subiu três decks e aí ouviu os rugidos vindos da cozinha.
“O que é que foi dessa vez?” Entrou por acaso num passadiço delineado de camarotes vazios. Encontrou um pedaço de giz largado por um soldador, escreveu: DANE-SE O SUSANNA SQUADUCCI e ABAIXO SEUS RICOS SACANAS na antepara, assinou O FANTASMA e se sentiu melhor. Quem é que iria velejar até a Itália neste troço? Presidente do conselho, astros do cinema, malfeitores deportados, talvez. “Hoje”, Profane ronronou, “hoje, Susanna, você me pertence.” Dele para marcar, para encher de ratoeiras. Mais do que qualquer passageiro pago viria a fazer por ela. Vagueou pelo passadiço, coletando ratoeiras.
De fora da cozinha ele começou a jogá-las para todo lado. “Ha, ha”, disse o vigia noturno. “Vai, pode fazer barulho. Eu tô tomando o teu café.”
Estava mesmo. Profane sopesou desatento sua única ratoeira remanescente. Ela disparou, pegando três dedos entre a primeira e a segunda junta.
O que é que eu faço, ele se perguntou, dou um grito? Não. O vigia noturno já estava rindo o bastante sem isso. Cerrando os dentes Profane desprendeu a armadilha da mão, engatilhou de novo, jogou na cozinha por uma portinhola e fugiu. Chegando no píer tomou uma bola de neve na nuca, que derrubou o chapéu de caubói. Parou para pegar o chapéu e pensou em devolver o tiro. Não. Continuou correndo.
Paola estava na balsa, esperando. Cruzou o braço com ele no que embarcaram. A única coisa que ele disse foi: “A gente vai descer dessa balsa um dia?”
“Você tá cheio de neve.” Ela estendeu a mão para limpar e e ele quase a beijou. O frio estava amortecendo a lesão da ratoeira. O vento tinha começado a bater, vindo de Norfolk. Nesta travessia eles ficaram do lado de dentro.
Rachel encontrou com ele na rodoviária de Norfolk. Ele estava largado ao lado de Paola num banco de madeira gasto, empalidecido e engordurado por uma geração de bundas quaisquer, com duas passagens só de ida para Nova York, Nova York enfiadas no chapéu de caubói. Estava de olhos fechados, estava tentando dormir. Estava começado a cochilar bem quando o falante chamou o nome dele.
Ele soube na hora, mesmo antes de acordar totalmente, quem é que devia ser. Só um palpite. Andava pensando nela.
“Benny, querido”, Rachel disse, “eu liguei pra todas as rodoviárias do país.” Dava para ouvir uma festa no fundo. Noite de Ano-Novo. Onde ele estava só havia um relógio velho para marcar as horas. E uma dúzia de sem-tetos, largados no banco de madeira, tentando dormir. Esperando por um ônibus de longa distância nem da Greyhound nem da Trailways. Ele os observava e deixava ela falar. Ela estava dizendo “Volta pra casa.” A única que ele deixava dizer isso exceto por uma voz interna que ele preferia renegar como perdulária do que ouvir.
“Sabe —” ele tentou dizer.
“Eu te mando o dinheiro pra passagem.”
Mandava mesmo.
Um som oco e estalado percorreu o chão até ele. Dewey Gland, cabisbaixo e puro-osso, arrastava o violão atrás de si. Profane a interrompeu com delicadeza. “Esse aqui é o meu amigo Dewey Gland”, ele disse, quase sussurrando. “Ele gostaria de te cantar uma cançãozinha.”
Dewey cantou para ela a velha canção da Depressão, “Wanderin’”. Enguias no oceano, enguias no mar, uma ruiva eu inventei de amar….
O cabelo de Rachel era ruivo, rajado de um grisalho prematuro, tão comprido que ela juntava por trás com uma mão, levantava por cima da cabeça e deixava cair para frente sobre seus longos olhos. O que para uma menina de um e quarenta e cinco descalça é um gesto ridículo; ou deveria ser.
Ele sentiu aquele puxão invisível e umbilical no abdômen. Pensou em dedos compridos, através dos quais, talvez, ele pudesse entrever o céu azul, de vez em quando.
E parece que eu nunca vou parar.
“Ela te quer”, Dewey disse. A menina no balcão de Informações estava de cara fechada. De ossos largos, de tez malhada: menina de algum lugar fora da cidade, cujos olhos sonhavam com o sorriso das grelhas dum Buick, shuffleboard sexta à noite em algum bar de beira de estrada.
“Eu te quero”, Rachel disse. Ele raspou o queixo no falante, fazendo sons ásperos com uma barba de três dias. Pensou que bem lá no norte, ao longo de um trecho de oito quilômetros de cabo subterrâneo, devia haver minhocas, trolls cegos, ouvindo em segredo. Trolls conhecem um bom tanto de mágica: será que eles conseguiam modificar palavras, fazer imitações vocais? “Então será que dá para você voltar”, ela disse. Atrás dela ele ouviu alguém gorfando e quem observava, rindo, histericamente. Jazz no toca-discos.
Ele queria dizer, meu Deus, as coisas que a gente quer. Ele disse: “Como é que tá a festa.”
“É na casa do Raoul”, ela disse. Sendo Raoul, Slab e Melvin parte de uma turma de descontentes que alguém tinha tachado de Bando de Doente. Viviam metade do tempo num bar no Lower West Side que se chamava Colher Enferrujada. Ele pensou da Cova do Marujo e não conseguiu ver lá tanta diferença.
“Benny.” Ela nunca tinha chorado, não que ele se lembrasse. Aquilo o deixou preocupado. Mas ela podia estar fingindo. “Ciao”, ela disse. Aquele jeito fajuto, Greenwich Village de evitar uma despedida. Ele desligou.
“Tem uma bela duma briga rolando”, Dewey Gland disse, amuado e abatido. “O Ploy tá tão mamado que pegou e mordeu um fuzileiro na bunda.”
Se você olhar pelo lado para um planeta girando na sua própria órbita, cortar o sol com um espelho e imaginar um fio, fica tudo parecendo um ioiô. O ponto mais distante do sol é chamado de afélio. O ponto mais distante da mão do ioiô é chamado, por analogia, de apóquiro.
Profane e Paola foram para Nova York aquela noite. Dewey Gland voltou para o navio e Profane nunca mais o viu. Pig tinha ido embora de Harley, destino desconhecido. No Greyhound havia um casal jovem que iria, vindo o sono aos outros passageiros, trepar num banco dos fundos; um vendedor de apontador de lápis que tinha visto todo território do país e era capaz de te dar informações interessantes a respeito de qualquer cidade, não importa para qual você estivesse indo; e quatro bebês, cada uma com uma mãe incompetente, espalhados em pontos estratégicos por todo o ônibus, que balbuciavam, arrulhavam, vomitavam, praticavam auto-asfixia, babavam. Pelo menos um deu conta de berrar por todas as doze horas de viagem.
Mais ou menos na altura de Maryland, Profane decidiu acabar com aquilo. “Não que eu esteja tentando me livrar de você”, dando a ela um envelope de passagem com o endereço de Rachel escrito a lápis, “mas eu não sei quanto tempo vou passar na cidade.” Não sabia mesmo.
Ela fez que sim. “Você está apaixonado, então?”
“Ela é uma boa mulher. Vai te arranjar um emprego, achar algum lugar pra você ficar. Não me pergunte se a gente tá apaixonado. Essa palavra não quer dizer nada. Aqui o endereço dela. O IRT sentido West Side vai para lá direto.”
“Do que é que você tem medo.”
“Vai dormir.” Ela dormiu, no ombro de Profane.
Na estação da Thirty-fourth Street, em Nova York, ele bateu uma breve continência para ela. “É capaz que eu apareça por aí. Mas espero que não. É complicado.”
“Será que eu falo pra ela…”
“Ela vai saber. Esse que é o problema. Não tem nada que você — eu — possa dizer que ela não saiba.”
“Me liga, Ben. Por favor. Quem sabe.”
“É”, ele disse a ela, “quem sabe.”
V
Então em janeiro de 1956 Benny Profane apareceu de novo em Nova York. Chegou na cidade na esteira de um feitiço de falsa primavera, achou um colchão num albergue em Downtown chamado Nosso Lar, e um jornal num quiosque da zona norte; perambulou pelas ruas tarde aquela noite estudando os anúncios à luz dos postes. Como sempre ninguém queria ele em especial.
Se houvesse alguém por perto para se lembrar dele, perceberiam de cara que Profane não tinha mudado. Ainda um grande menino ameboide, mole e gordo, cabelo cortado baixo e crescendo irregular, olhos pequenos feito os de um porco e muito espaçados entre si. O trabalho na estrada não tinha feito nada para melhorar o Profane exterior, e nem o interior também. Embora a rua tivesse reivindicado uma boa fração da idade de Profane, ela e ele permaneceram desconhecidos em todos os sentidos. Ruas (estradas, largos, praças, lugares, panoramas) não o haviam ensinado nada: ele não conseguia operar o transporte, o guindaste, o trator, não sabia assentar tijolo, esticar uma fita direto, manter uma mira reta, não tinha nem aprendido a dirigir. Ele andava; andava, ele pensava às vezes, pelas gôndolas de um brilhante e gigantesco supermercado, sua única função sendo querer.
Uma manhã Profane acordou cedo, não conseguiu voltar a dormir e decidiu por impulso passar o dia que nem um ioiô, pegando o metrô de lá para cá sob a Forty-second Street, da Times Square à Grand Central e vice-versa. Foi até o banheiro do Nosso Lar, tropeçando em dois colchões vazios até lá. Se cortou fazendo a barba, teve dificuldade de extrair a lâmina e tirou um bife do dedo. Tomou uma ducha para se livrar do sangue. As maçanetas não viravam. Quando enfim achou um chuveiro que estava funcionando, a água saiu quente e fria num ritmo aleatório. Ficou saltitando, uivando e tremendo, escorregou num sabonete e quase quebrou o pescoço. Se secando, rasgou uma toalha desgastada na metade, tornando-a inútil. Vestiu a camiseta do exército ao contrário, levou dez minutos para fechar a braguilha e outros quinze consertando um cadarço que tinha rasgado enquanto ele amarrava. Todos os restos de suas canções matinais eram palavrões silenciosos. Não era que ele estivesse cansado ou fosse notavelmente descoordenado. Só uma coisa que, sendo um schlemihl, ele sabia há anos: objetos inanimados e ele não podiam viver em paz.
Profane tomou um trem local da Lexington Avenue até a Grand Central. Por acaso, o vagão em que ele entrou estava lotado de todo tipo de gatona estonteante: secretárias em direção ao trabalho e chaves-de-cadeia à escola. Era tudo muito além da conta. Profane se pendurou no corrimão, fraco. Ele era acometido de lua em lua por essas grandes ondas vagas de tesão, mediante as quais toda mulher de uma certa faixa etária e forma física se tornava imediata e impossivelmente desejável. Ele emergia desses feitiços com o globo ocular ainda oscilando e com uma vontade de que o pescoço pudesse girar todos os 360 graus.
O trem depois do rush da manhã é quase vazio, que nem uma praia cheia de lixo depois que os turistas foram todos para casa. Nas horas entre nove e meio-dia os moradores permanentes voltam rastejando de sua margem, tímidos e hesitantes. Desde o nascer do sol todo tipo de abastado preencheu os limites daquele mundo com uma sensação de verão e vida; agora mendigos dormentes e velhinhas vivendo de assistência, que estiveram aqui o tempo todo despercebidos, restabelecem uma espécie de direto à propriedade, e a vinda de uma época de queda.
No seu décimo primeiro ou segundo trânsito Profane adormeceu e sonhou. Foi acordado perto do meio-dia por três guris porto-riquenhos chamados Tolito, José e Kook, diminutivo de Cucarachito. Eles tinham esse número, que era para ganhar dinheiro ainda que soubessem que o metrô na manhã de um dia útil no es bueno para dança e bongôs. José andava com uma lata de café que de ponta cabeça servia para batucar seus merengues e baiões amalucados, e de lado vazio para cima para receber de uma plateia agradecida moedas, fichas de transporte, chiclete, cuspe.
Profane acordou piscando e os observou, pirando para lá e para cá, dando mortais, macaqueando cortejos. Se balançavam nos corrimãos, trepavam nos postes; Tolito tacando Kook com seus sete anos pelo vagão feito um saco de feijão e por trás disso tudo, martelando polirrítmico no compasso da barulheira do trem, José com seu tambor de lata, antebraços e mãos vibrando para além da persistência da visão, e um sorriso incansável estampado na cara, tão largo quanto o West Side.
Passaram a lata no que o trem estava parando na Times Square. Profane fechou os olhos antes que eles chegassem nele. Estavam sentados no banco oposto, contando o butim, os pés balançando. Kook estava no meio, os outros dois estavam tentando empurrá-lo para fora. Dois adolescentes do bairro deles entraram no vagão: calças pretas, camisas pretas, jaquetas pretas de gangue com PLAYBOYS estampado em vermelho escorrendo nas costas. De repente todo o movimento dos três no banco parou. Eles se abraçaram, de olhos arregalados.
Kook, o bebê, não guardava nada para si mesmo. “Maricón!”, ele berrou alegre. Os olhos de Profane se abriram. Os sons dos calcanhares dos meninos mais velhos passaram, indiferentes e em staccato até o próximo vagão. Tolito pôs a mão na cabeça de Kook, tentando enterrá-lo no chão, longe da vista. Kook se soltou. As portas se fecharam, o trem partiu de novo para a Grand Central. Os três voltaram a atenção para Profane.
“Ei, cara”, Kook disse. Profane olhou para ele, meio-cauteloso.
“Por que é que”, José disse. Ele pôs a lata de café distraído sobre a cabeça, onde ela deslizou por sobre as orelhas dele. “Por que é que você não desceu na Times Square.”
“Ele tava dormindo”, Tolito disse.
“Ele é um ioiô”, José disse. “Pode ver.” Eles se esqueceram de Profane por um tempo, passaram para o vagão da frente e fizeram seu número. Voltaram quando o trem estava partindo de novo da Grand Central.
“Viu”, José disse.
“Ei cara”, Kook disse. “Por que isso.”
“Você tá desempregado”, Tolito disse.
“Por que é que você não vai caçar jacaré, que nem o meu irmão”, Kook disse.
“O irmão do Kook atira neles com uma espingarda”, Tolito disse.
“Se você tá precisando de emprego, você devia caçar jacaré”, José disse.
Profane coçou a barriga. Olhou para o chão.
“É fixo”, ele perguntou.
O metrô parou na Times Square, excretou passageiros, mandou mais para dentro, fechou suas portas e saiu rasgando pelo túnel. Veio outro trem, num trilho diferente. Corpos se aglomeraram na luz marrom, um alto-falante anunciou trens. Era hora do almoço. A estação começou a zunir, se encher de ruído e movimento humano. Turistas estavam voltando em hordas. Outro trem chegou, abriu, fechou, foi embora. A pressão nas plataformas de madeira cresceu, junto com um ar de desconforto, fome, bexigas apuradas, sufoco. O primeiro trem retornou.
No meio da multidão que se espremeu para dentro dessa vez estava uma menina usando um casaco preto, com o cabelo solto comprido para fora. Ela procurou em quatro vagões até encontrar Kook, sentado ao lado de Profane, cuidando dele.
“Ele quer ajudar o Angel a matar jacaré’, Kook disse a ela. Profane estava dormindo, deitado diagonal no banco.
Neste sonho, ele estava sozinho, como sempre. Andando numa rua à noite onde não havia nada vivo além de seu próprio campo de visão. Tinha que ser noite naquela rua. As luzes reluziam ininterruptas nos hidrantes; tampas de bueiro largadas na rua. Havia placas em neon espalhadas aqui e ali, soletrando palavras de que ele não se lembraria ao acordar.
De alguma fora tudo se amarrava com uma história que ele tinha ouvido uma vez, de um menino que nasceu com um parafuso de ouro onde o umbigo deveria estar. Durante vinte anos ele se consulta com médicos e especialistas ao redor do mundo, tentando se livrar do parafuso, sem sucesso. Por fim, no Haiti, ele topa com um médico vodu que dá a ele uma poção fedorenta. Ele bebe, adormece e tem um sonho. Nesse sonho ele se vê numa rua, iluminada por lâmpadas verdes. Seguindo as instruções do bruxo, ele vira duas vezes à direita e uma à esquerda a partir de seu ponto de origem, encontra uma árvore crescendo sob o sétimo poste, toda cheia de balões coloridos. No quarto galho de cima para baixo há um balão vermelho; ele estoura o balão e lá dentro há uma chave de fenda com um cabo amarelo de plástico. Com a chave de fenda ele remove o parafuso da barriga, e assim que isso acontece ele desperta do sonho. É de manhã. Ele olha para o umbigo, o parafuso sumiu. Aquela maldição de vinte anos se desfez enfim. Delirando de alegria, pula da cama, e a bunda dele cai.
Para Profane, sozinho na rua, sempre parecia que talvez ele também estivesse procurando alguma coisa para tornar o fato de sua própria desmontagem tão plausível quanto a de qualquer máquina. Era sempre nesse ponto que o começava o medo: aqui o sonho se transformava em pesadelo. Porque agora, se ele continuasse descendo aquela rua, não só a bunda mas também os braços, pernas, cérebro de esponja e o relógio do coração dele devem ser deixados para trás para sujar a calçada, ser largados entre tampas de bueiro.
Era sua casa, a rua iluminada de mercúrio? Será que ele estava voltando como o elefante ao seu cemitério, para se deitar e logo se tornar marfim em cuja corpulência dormiam, latentes, formas requintadas de peças de xadrez, arranhadores de costas, esferas chinesas ocas e ornamentadas, aninhadas uma dentro da outra?
Isso era tudo que havia para sonhar; tudo que sempre houve: a Rua. Logo ele acordou, tendo achado nenhuma chave de fenda, nenhuma chave. Acordou com a visão do rosto de uma menina, perto do dele. Kook estava em segundo plano, de pés espaçados, cabeça pendente. De dois vagões de distância, flutuando sobre a barulheira do metrô passando por suas estações, veio o tilintar metálico de Tolito na lata de café.
O rosto dela era jovem, suave. Ela tinha uma pinta marrom numa bochecha. Estava falando com ele antes que seus olhos se abrissem. Queria que ele fosse para casa com ela. O nome dela era Josefina Mendoza, ela era irmã de Kook, ela morava na zona norte. Ela precisa ajudá-lo. Ele não fazia ideia do que estava acontecendo.
“Quê, moça”, ele disse, “quê.”
“Você por acaso gosta daqui”, ela gritou.
“Eu não gosto não, moça”, disse Profane. O trem estava indo para a Times Square, lotado. Duas velhinhas que foram às compras na Bloomingdale’s estavam encarando hostis da outra ponta do vagão. Fina começou a chorar. As outras crianças voltaram com tudo, cantando. “Socorro”, Profane disse. Não sabia para quem estava pedindo. Tinha acordado amando todas as mulheres na cidade, querendo todas: aqui estava uma querendo levá-lo para casa. O trem parou na Times Square, as portas se abriram. Num vôo, só meio consciente do que estava fazendo, catou Kook num braço e saiu correndo pela porta: Fina, com aves tropicais dando as caras no vestido verde dela sempre que o casaco preto se esvoaçava, foi atrás, de mãos dadas com Tolito e José em fila. Atravessaram a estação correndo, Profane se chocando sedentário contra latas de lixo e máquinas automáticas da Coca-Cola. Kook se soltou e arrancou em zigue-zague pela multidão do meio-dia. “Luis Aparicio”, ele berrou, dando um peixinho em direção a um home plate pessoal: “Luis Aparicio”, arrasando um grupo de escoteiras. No andar de baixo, fazendo conexão com o local da zona norte, um trem estava esperando, Fina e as crianças entraram; no que Profane começou a atravessar as portas se fecharam contra ele, apertando-o no meio. Os olhos de Fina se arregalaram que nem os do irmão. Com um gritinho apavorado ela pegou a mão de Profane e puxou, para dentro de seu tranquilo campo de força. Ele soube tudo de uma vez: aqui, por enquanto, Profane o schlemihl podia se mover ágil e certeiro. No trajeto todo para casa Kook cantou “Tienes Mi Corazón”, uma canção de amor que tinha ouvido num filme uma vez.
Eles moravam na zona norte, nas ruas oitenta, entre a Amsterdam Avenue e a Broadway. Fina, Kook, mãe, pai, e outro irmão chamado Angel. Às vezes o amigo de Angel, Geronimo, vinha dormir no piso da cozinha. O velho vivia de assistência do governo. A mãe se apaixonou por Profane na hora. Deram a banheira para ele.
No dia seguinte Kook o encontrou dormindo lá e abriu a água gelada. “Jesus meu Deus”, Profane gritou, acordando atabalhoado.
“Cara, vai arranjar um emprego”, Kook disse. “A Fina que mandou.” Profane pulou da banheira e saiu perseguindo Kook pelo apartamentinho, deixando um rastro de água. Na sala de estar ele tropeçou em Angel e Geronimo, que estavam lá deitados bebendo vinho e falando das meninas que eles iam ficar olhando aquele dia no Riverside Park. Kook escapou, rindo e berrando “Luis Aparicio.” Profane ficou lá deitado com o nariz colado no chão. “Toma um vinhozinho”, Angel disse.
Umas poucas horas depois, eles todos desceram cambando os degraus do antigo casarão, terrivelmente bêbados. Angel e Geronimo estavam discutindo se estava ou não estava frio demais para as meninas estarem no parque. Andaram para o oeste pelo meio da rua. O céu estava fechado e desolador. Profane ficava trombando com os carros. Na esquina eles invadiram uma banquinha de cachorro-quente e beberam piña colada para ficarem sóbrios. Não adiantou. Chegaram até a Riverside Drive, onde Geronimo colapsou. Profane e Angel o levantaram e atravessaram a rua correndo carregando-o que nem um aríete, colina abaixo e parque adentro. Profane tropeçou numa pedra e os três saíram voando. Ficaram deitados na grama congelada enquanto um bando de crianças usando casacos pesados de lã corriam para lá e para cá por cima deles, brincando de tacar e pegar um saco amarelo claro de feijão. Geronimo começou a cantar.
“Cara”, Angel disse, “olha aquela ali.” Ela vinha andando com um poodle de cara cruel. Jovem, com cabelos compridos que dançavam e cintilavam contra a lapela do seu casaco. Geronimo interrompeu a canção para dizer “Coño” e balançar os dedos. Então continuou, cantando agora para ela. Ela não percebeu nenhum deles, mas continuou indo ao norte, serena e sorrindo para as árvores despidas. Os olhos deles foram atrás até ela sumir. Ficaram tristes.
Angel suspirou. “Tem tantas”, ele disse. “Tantas milhares e mais milhares de meninas. Aqui em Nova York, e lá em Boston, onde eu estive uma vez e em outras milhares de cidades…. Eu fico acabado.”
“Lá em Jersey também”, disse Profane. “Eu trabalhei em Jersey.”
“Bastante coisa boa em Jersey”, Angel disse.
“Na estrada”, disse Profane. “Elas estavam sempre de carro.”
“Eu e o Geronimo trabalhamos no esgoto”, Angel disse. “De baixo da rua. Não tem nada pra ver lá.”
“De baixo da rua”, Profane repetiu um minuto depois: “de baixo da Rua.”
Geronimo parou de cantar e contou para Profane como é que era. Ele lembrava dos filhotinhos de jacaré? Ano passado, ou talvez ano retrasado, crianças por toda Nueva York compraram uns jacarézinhos de estimação. A Macy’s estava vendendo por cinquenta centavos, toda criança, parecia, tinha que ter um. Mas logo as crianças se entediaram deles. Algumas abandonaram os bichos na rua, mas a maioria jogava na privada. E eles tinham crescido e se reproduzido, se alimentado de ratos e dejetos, de modo que agora eles se moviam grandes, cegos, albinos, por todo o sistema de esgoto. Lá embaixo, só Deus sabia quantos tinha. Alguns haviam se tornado canibais porque nos seus bairros todos os ratos tinham sido comidos, ou fugido aterrorizados.
Desde o escândalo do esgoto no ano passado, o Departamento estava atento. Recrutavam voluntários para descer de espingarda e se livrar dos jacarés. Não muitos tinham se voluntariado. Quem tinha logo desistiu. Ele e Angel, Geronimo disse com orgulho, estavam lá há três meses mais do que qualquer outro.
Profane, de repente, estava sóbrio. “Será que eles ainda estão precisando de gente”, ele disse devagar. Angel começou a cantar. Profane rolou e ficou olhando para Geronimo. “Hein?”
“Lógico”, Geronimo disse. “Você já usou uma espingarda alguma vez?”
Profane disse que sim. Nunca tinha usado, e nunca usaria, não no nível da rua. Mas uma espingarda de baixo da rua, de baixo da Rua, talvez ficasse tudo bem. Era podia acabar se matando mas talvez ficasse tudo bem. Ele podia tentar.
“Vou falar com o sr. Zeitsuss, o chefe”, disse Geronimo.
O saco de feijão pairou por um instante alegre e reluzente no ar. “Olha, olha”, as criancinhas gritaram: “olha ele caindo!”