A Frolic of His Own
[tradução do trecho de abertura de A Frolic of His Own, quarto romance de William Gaddis]
[tradução do trecho de abertura de A Frolic of His Own, quarto romance de William Gaddis]
Justiça? — Justiça você vai ter na próxima vida, nessa aqui o que você tem é a lei.
— Sim claro que o Oscar quer as duas. Quer dizer o jeito que ele fala de ordem? Ela tirou o pé do caminho da ameaça de um velhinho remando numa cadeira de rodas, — que tudo que ele quer é algum tipo de ordem?
— Faz o trem chegar na hora, essa era a…
— Eu não estou falando de trens, Harry.
— Eu estou falando de fascismo, é aí que vai dar essa obsessão por ordem. O resto é teatro.
— Não mas você sabe o que ele quer de verdade?
— Aqueles que aparecem no tribunal exigindo justiça, tudo que eles querem é o cheque de um milhão.
— Não é só o dinheiro não, o que eles querem de verdade…
— É o dinheiro, Christina, é sempre o dinheiro. O resto é só teatro, agora escuta.
— O que eles querem mesmo, teus fascistas, o Oscar, todo mundo quer dizer qual é o sentido disso tudo? Ela bateu um pé intransigente contra os ritmos tilintantes de marimba vazando para dentro da sala de espera de algum lugar perto das cortinas, onde a cadeira de rodas havia colidido com um radiador e repousado. Trens? fascismo? Porque isso aqui não tem nada a ver com nada disso, nem com ‘a opulência de assentos luxuosos de veludo, espetáculos brilhantes e cantoria gloriosa’ a não ser que isso seja só o jeito deles tentarem ser levados a sério também — porque o dinheiro é só um metro não é. É a única referência comum que as pessoas tem pra fazer outras pessoas levarem elas tão a sério quanto elas levam elas mesmas, quer dizer é só isso que elas querem não é? Pensa um pouco, Harry.
— Eu já pensei, agora escuta. Quanto tempo vai demorar. Eu preciso estar no tribunal daqui a uma hora.
— Ele está na terapia eles disseram, não deve demorar muito. A enfermeira falou que ele está num estado de agitação elevada.
— Já viu diferente?
— Mas meu Deus dá pra culpar? Ela estava fuçando fundo na sacola de mercado no chão entre eles — depois de ser atropelado, ainda?
— Parece que ele está planejando ficar um bom tempo.
— Mas claro que ele queria o roupão e os pijamas dele, o resto é correio, anotações, jornais, como é que ele acha que vai conseguir trabalhar por aqui.
— Provavelmente do mesmo jeito que ele trabalha em qualquer lugar.
— E você tem que começar com isso? Quer dizer é por isso que eu te pedi para parar aqui e ir ver ele né? mostrar um pouco de preocupação com um parente? Talvez você podia até fingir que foi ideia tua, aqui… pegando o que quer que fosse numa embalagem brilhante, — você podia dar isso para ele.
— O que…
— É só um pote de gengibre em conserva, do tipo que ele gosta com as torradas de manhã. Eu não tenho a menor dúvida que tudo que dão pra ele aqui é aquela Kraft horrorosa é de uva porque é roxa.
— Não me diga que você acha que ele vai cair nessa? que eu fui comprar gengibre em conserva para ele comer com torrada no café da manhã?
— Acho que ele vai achar que foi muito bacana da sua parte.
— Foi mesmo. Eu peguei uma cópia da Opinião no caso Szyrk para ele.
— Isso foi muito bacana da sua parte Harry, foi só da parte errada. Você sabe que ele e o papai quase não concordam mais em nada do jeito que as coisas estão, você acha que essa história imbecil do cachorro por toda parte nos jornais vai ajudar em alguma coisa?
— E mais alguma coisa aqui sobre aquele blockbuster da Guerra Civil, é capaz que ele queira o…
— Mas meu Deus você não vai mostrar isso para ele! Eu não te falei agorinha que ele está num estado de agitação elevada? Já não está bom? Quando eu fui lá pegar as coisas dele a grama estava sem cortar, aquela varanda ainda não consertaram eu não sei o que é que mantém aquilo em pé, ele ia mandar pintar o portão da garagem e ninguém encostou naquilo, o jeito que ele falou por meses de mandar consertar a ignição daquele carro horrível, e aí claro que a Lily chegou, era tudo que eu precisava. Numa BMW. Será que você pode parar de batucar assim com os dedos, e não dá para fazer nada com essa música horrorosa? As mãos dele agarraram a valise deitada no colo, e ela fechou as pernas como se em restrição contra o tum, tum, tum tum tum, tum sendo acompanhado sem grande sucesso por golpes da cadeira de rodas. — Uma BMW novinha, daqui a pouco ela chega. Eu não queria contar pra ela o que aconteceu mas é claro que eu sabia que o Oscar ia ficar furioso se eu não contasse, é que nem todo o resto. Eu achei que fosse uma corretora chegando mas acontece que ele nunca nem ligou para ela, mas bem que fez. Não dá pra imaginar ninguém que queira comprar a casa do jeito que ela estava hoje de manhã.
— Exatamente.
— O que isso quer dizer, exatamente. É o papai que anda gralhando de vender a casa afinal.
— Que o Oscar não quer vender a casa.
— Bom eu sei disso Harry meu Deus, a gente já falou disso um milhão de vezes. Quer dizer a gente costumava falar de um de nós comprar a parte do outro quando a gente era menor, mas se alguma coisa acontecesse com ele e a casa ficasse para mim ele ficava violento porque ela tinha sido da mãe dele quando o papai casou com ela e ele dizia que ia voltar e me assombrar, ele pulava de trás da porta para me mostrar o que ele ia fazer, me agarrando e fazendo cócegas até eu gritar, até eu não conseguir mais respirar até, até alguém chegar, até minha mãe chegar e pegar ele, ou o papai. Era só disso que ele tinha medo. Do papai.
— Não parece muito saudável, se você quer saber.
— Bom, eu não quero saber. Quer dizer a gente ainda era criança, afinal.
— Exatamente.
A música tinha entrado num passo latino avivada por trancos e solavancos erráticos e mãos abruptas balançando no ar na cadeira de rodas a que ela tinha dado as costas, deixando uma perna para trás na sua impaciência, e que teatro, se fosse assim, ‘o amor verdadeiro contra o ódio familiar’? uma ‘história trágica de laços familiares e superstição’? batendo o pé desafiador atrás dela — mas onde é que ele achava que ia arranjar o dinheiro, se ele não casasse com uma ricaça que nem o papai fez. Quer dizer dá pra ver porque os pais da Lily desistiram dela, ele me contou que o pai dela tá deixando todo o dinheiro com o irmão dela, contornando os impostos sobre herança no caso dele morrer, então é claro que ela se imagina casada com o Oscar e indo morar com ele na hora se ela conseguir resolver esse divórcio um dia, o que claro que ela não consegue. Onde é que você está indo.
— Olha ele ainda vai ficar aqui um tempo, acho que é melhor eu voltar outro dia da semana quando ele…
— Você pode vir outro dia também Harry, quer dizer essa coisa toda vai fazer vocês dois poderem se aproximar um pouco né, passar um tempo só conversando? Porque eu ainda acho que ele pagou as despesas todas do primeiro advogado dela quando ela contratou essa segunda, idade pra ser filha do Oscar e ela já deu conta de um caos de um casamento e esse caos do divórcio e um caos de família e agora esse caos todo que ela se meteu com a bolsa roubada? É claro que não vão dar um centavo pra ela, não mas o Oscar vai, emprestando dinheiro como se ela pudesse pagar enquanto ele passou meses falando em consertar a ignição daquele carro, o jeito que ele fala dos próprios dentes, será que o carro vai durar o bastante pra poder justificar os pneus novos. Dois mil dólares pra arrumar os dentes mas não, não ele dá pra Lily mas ele mesmo não meu Deus! O que foi que aconteceu!
— Mulher saindo do elevador, bateu de frente com aquela enfermeira com uma bandeja de frasquinhos de sangue e espera, Christina espera fica sentada, não…
— Mas é a Trish! e lá se foi. — Trish!
— Meu Deus. Tina que fofa, como é que você sabia que eu ia estar aqui, olha só isso. O chão todo sujo de sangue e cacos de vidro, é que nem lá em casa.
— Mas ei espera, teu casaco tá todo sujo espera, enfermeira?
— Enfermeira! De quem é que é esse sangue não, não encosta Tina vai que você pega alguma coisa, enfermeira? Não dá pra fazer alguma coisa?
— Venha cá por favor, senhora, que a gente vai, Jim? Cadê o Jim. Fala pra ele trazer um esfregão eu preciso ir lavar as mãos, fala pra ele usar as luvas.
— Será que esse sangue vai sair do meu, aonde é que ela foi. Não, acho que é melhor só queimar logo, que nem aquele piso no foyer de cima que não sai nunca, que nem mancha de vinho numa mesa de mármore as pessoas não prestam atenção, aparecer com que cara na frente do sorrisinho daquela vagaba na lavandeira depois da última vez ela me vem com cela va devenir une habitude Madame? e espalhar a coisa pelo Upper East Side inteiro, que legal da sua parte estar aqui Tina. Sempre pensando nos outros.
— Não, é o Oscar, um acidente de carro, ele foi atopelado por…
— Mas que safo! Quer dizer ele consegue uns milhões num processo não consegue, se você for ler sobre esses prêmios maravilhosos que tão dando todo dia no jornal? Ele ainda tá naquele negócio terrível de escritor ou professor ou sei lá? Agora ele vai se arranjar não vai, eu nunca me esqueço daquela vez que ele levou a gente pra praia no Bailey’s e perdeu o, meu Deus olha isso! Ela esticou a ponta de um salto 38 extra-fino sob um peau-de-soie malva, — olha!
— Mas que lindos, lindos de mo…
— Mas você não está vendo? ali na ponta, o sangue?
— É só uma manchinha, ninguém vai…
— Você acha que o Gianni ia me vender outro par se eles vissem isso? Ela pegou no ombro mais próximo, — só deixa eu me apoiar…
— É só manchinha, não…
— Você não acha que eu posso continuar com eles né, espalhando sabe Deus que doença pela cidade inteira? descalçando um, depois o outro, — quer dizer eles formam um conjuntinho com o casaco pra começo de conversa, vai ver eles deram um par desses chinelos de papel pro Oscar que nem aquele maluco lá na cadeira de rodas balançando os braços conduzindo a música não Tina não olha agora, um sujeito até que estiloso ali na porta te olhando torto.
— Onde, o que ah, ah é o Harry. Harry? Harry essa é a Trish, a gente foi pro colégio.
E no que ele chegou perto o bastante — Ah! pegando a mão dele, — e ele é teu médico?
— É meu marido, Trish, Harry Lutz. Ele é advogado, a gente…
— Tina eu nem imaginava que você tinha um marido!
— Bom, eu não tinha um ano atrás, a gente…
— Mas que espertinha você. Casando dentro da família, quer dizer, que ele não vai te mandar aquelas contas ridículas e depois te processar que nem o meu faz o tempo todo, porque eu tenho que ligar pro Bunker assim que eu piso em casa. É claro que eu ia odiar um processo por causa desse caos todo mas afinal ele é um dos diretores do hospital não é? e não é como se eu não tivesse dado aqueles bailes beneficentes chiquérrimos todo santo ano até aquela noite quando eles arrancaram os diamantes do meu pescoço e levaram o clipe de dinheiro do Bunker, o clipe dourado de dinheiro que ele tinha ganhado do pai dele com o formatinho de um pinico era o valor sentimental sabe, ele passou semanas fazendo propaganda da coisa e agora é só esporte casual e a gente chama de Festa do Inverno pra não ostentar o que é simplesmente incoerente não é, quer dizer o Harry Winston não aceita convite pra um almoço de igreja em Kalamazoo e o Gianni não vai me costurar uma echarpe se eles vissem esse casaco agora cheio do sangue de sei lá quem espalhando sei lá o quê, essa nova depravação que eles inventaram só pra botar no da gente que achava que a má notícia duma boa foda passava com penicilina mas não é mais que nem aquele tal senhor Jheejheeboy horroroso né, fazer carreira casando com a gente a gente era só umas colegiais de merda mas até depois da formatura, agora você não se atreva a encostar em ninguém mais novo que trinta Tina eu tenho que falar com você.
— Sim mas só, Harry? Harry espera um pouquinho…
— Porque quer dizer se casar na nossa idade Tina, de repente é metade da diversão pelo dobro do preço você me liga?
Maracas, bongôs, chica chica boom chic, ele tinha ido o mais longe da comoção na cadeira de rodas que a sala de espera permitia, parado lá batucando com os dedos na pasta quando uma enfermeira cutucou seu braço, apontando no fim do corredor o quarto — seis doze B.
— Christina?
— Sim já estou indo. E essa sacola de compras você, ah você já pegou. Trish? Me liga?
— Beijos pro Oscar, e Tina? Eu queria dizer que horror essa coisa do teu pai, em todos os jornais com aquele cachorro horrível, e você liga? Alguém devia dar um tiro nele, enfermeira? Você vai me deixar parada aqui desse jeito?
— Aqui, por aqui… no fim do corredor, — e ainda fala da Lily…
— E o que é que tem a Lily! Marchando em frente — não, tem dois tipos de gente no mundo Harry, um pega e o outro dá, pensa nisso. E não ache que aqueles bailes que a Trish dá são coisa ruim, não. O terceiro marido dela era dono de metade da madeira do Maine, e do outro lado tem a Lily arrancando dinheiro do coitado do Oscar enquanto ele não conserta nem os dentes, que nem aquele carro, comprando pneus novos pro carro não desmanchar na rua.
— Que nem… tirando ela do caminho no que uma enfermeira ia chegando com uma cadeira de rodas por trás deles.
— Que nem o quê.
— Parkinson’s, no que a cadeira de rodas passou com gestos silenciosos de uma mão, tiques da cabeça, — paralisia, Christina. Paralisia.
612 B: na primeira cama uma figura inerte jazia absorta no caos de um relatório de tráfego dum rádio portátil; e além da cortina fechada em meio a um acúmulo de jornais, — Até que enfim.
— A gente ficou lá esperando por horas Oscar, eles disseram que você estava na terapia ou coisa assim.
— Você acha que eu ia estar lá fora jogando beisebol? Me alcança aquele copo de água fazendo favor. Oi Harry.
— O Harry quis dar um pulinho e te ver Oscar, ele trouxe…
— Você trouxe minhas cartas? e os papéis?
— Eu ia trazer mas achei que eles só iam te deixar pra baixo. Mas claro que você está com tudo aqui.
— Eu não falei de jornais, né? É claro que estou pra baixo. Você viu aquele item Harry?
— Item? Como é que ele não ia ver, a coisa pegou primeira página inteira! Ela veio costeando o pé da cama juntando os jornais, floreando a manchete, — alguém devia era dar um tiro nele, olha só isso!
SAIA DAQUI, CÃO DOS INFERNOS
— Você acha que não vão? Ele se sentou na única cadeira, abrindo a pasta no colo, — policiais, bombeiros, lanternas, cachorro-quente, algodão doce, você viu o noticiário ontem à noite Oscar? Estrelas e Listras e o pessoal de bem com fardos de cerveja nas mãos, o cão na picape com o mostruário das armas atrás do banco, já devem estar queimando uma efígie do sujeito lá, ele…
— Era de se esperar, ser um juiz federal naquele lugar esquisito Oscar tira a tua perna do caminho.
— Não dá, espera, esses jornais, o que é que você está fazendo…
— Jogando fora, você já leu tudo não leu? Se você quiser continuar assim, o Harry te trouxe uma cópia da Opinião do papai que deu nessa coisa toda, isso é que…
— Não é por isso que eu estou assim! Tem alguma coisa num dos jornais, será que dá pra você só deixar eles aí? Alguma coisa sobre aquele filmão da Guerra Civil, alguém processando aquele tal de Kiester que dirigiu, você viu isso Harry? aquele que fez aquele filme da África com aqueles efeitos especiais que faziam as pessoas desmaiarem na sala?
— Esses processos dão que nem mato, Oscar. Perturbação da ordem, gente que quer uma grana pra sumir, escuta eu preciso ir pro centro, o…
— Não mas se ele roubou minha ideia, a mesma história mesmíssima, até a batalha é a mesma não é uma, só uma perturbação aconteceu mesmo, não era meu avô que estava lá?
— Oscar não tem como, não dá pra você ser dono da Guerra Civil. Não dá pra registrar direitos autorais sobre a história, nem sobre uma ideia agora olha, tá aqui a Opinião do teu pai. É um baita livro pra ler antes de dormir, dá pra ver que se eles pegassem lá esse tal Szyrk não precisava queimar efígie nenhuma.
— Não mas Harry?
Ele estava de pé, fechando a pasta com um estalo, — sendo sincero eu acho que vão revogar o recurso, uma atmosfera tóxica que nem aquela lá e os jornais já estão querendo queimar a cara dele só por ele ter mais de noventa anos…
— Harry!
— Racista, esquerdista, algum podre eles vão achar pra acabar com as chances dele na segunda instância e uma reforma não ajuda em nada.
— Será que dá pra você sentar um pouco? O Oscar tá te perguntando uma coisa.
— O quê Christina, o quê. Eu acabei de falar que lei de direitos autorais não é minha área e…
— Vai ver não é isso que ele quer saber.
— Então o que é que ele quer saber!
— Ele está esperando o cara do seguro chegar pra falar do acidente e ele me disse que queria tua ajuda.
— Olha eu acabei de falar que eu sou da advocacia corporativa, e não um desses cachorros que saem correndo atrás da ambulância eu nem sei o que foi que aconteceu, agora me deixa…
— Eu te falei o que aconteceu. Ele estava falando de consertar a ignição daquele carro há séculos, o jeito que ele fala de arrumar os dentes mas ele…
— Oscar que merda aconteceu afinal.
— Bom esse carro não é novo, quer dizer eu nem comprei novo e há um mês mais ou menos a ignição quebrou e a mecânica especializada estava em falta, eles precisavam mandar trazer uma nova mas ainda não chegou e eles me mostraram como dar a partida colocando a ponta de um fio na bateria e eu sempre faço isso pelo lado mas dessa vez…
— Ele estava bem na frente do carro Harry. Quando o carro ligou de repente ele engatou e quer dizer por que é que você estava na frente do carro Oscar, como é que..
— Porque tinha uma poça bem ali do lado e eu não queria sujar meus…
— Olha ninguém vai perguntar isso pra ele, Christina. O seguro cobre o dono do carro então é só ele processar o dono.
— Mas o dono é ele Harry, o carro é dele ele é o dono.
— O seguro do dono provavelmente ia querer pegar o motorista.
— Mas não tinha motorista nenhum essa que é a questão! O carro atropelou ele e não tinha ninguém dirigindo.
— Deixa que eles se preocupam com isso, processa o fabricante por produto danificado, não tinha como estar engatado se não não dava a partida, provavelmente a única prova que eles iam querer, só o incidente em si. Res ipsa loquitur Oscar, que nem o candelabro caindo na tua cabeça. Que carro que é.
— É um carro japonês um vermelho, vai saber o que deu nele de comprar um vermelho.
— Quando você compra usando nem sempre dá para escolher a cor Christina, eu vi o anúncio no jornal e quando eu…
— Escuta Oscar eu preciso ir pro centro, tomara que na próxima eu te veja jogando beisebol… com uma batidinha no ombro supino e — tomara que não tenha nada por baixo dessa gaze, isso aí já dava um belo dum processo. Christina? Não quero me atrasar. Ah e Oscar? Ele já estava meio para fora da porta, — não assine nada.
— Por que é que ele quer me ver jogando beisebol? Eu nunca, ai! Quê que você tá fazendo!
— Só levantando um pouquinho a tua cama, deitado desse jeito parece que a gente tá falando com um cadáver.
— Sim mas para com isso, para! Assim tá bom já, escuta eu estou com cinco costelas trincadas e esse ombro lateja que nem um, é que nem um espeto de churrasco queimando e minha perna, eu não consigo nem…
— Sim, sim eu já sei disso tudo, você me falou no telefone. Eles não te dão nada pra dor nesse lugar? E esses travesseiros…
— Por favor não mexa neles!
— Quer dizer parece que eles não dão a mínima pro que acontece com você, deitado aqui nessa bagunça. Eu te trouxe teu roupão e uns pijamas, pelo menos assim você não vai precisar ver ninguém usando esse troço que mais parece um manto.
— Por que você diz isso.
— Digo o quê.
— Um manto. E deitado aqui parecendo um cadáver.
— Bom, parece que você tá pronto pra corrida de sacos, melhorou? E assim alguém vem? te ver?
— É isso que eu estou te falando. Ontem à noites, um cara num terno preto que eu achei que era um, que fosse uma daquelas visitas da igreja mas não era, eu estava morrendo de medo, ele ai!
— Bom se você parasse de se mexer, será que dá pra você ficar parado? Ela bateu o lençol, prendeu no canto da cama. — Quem era.
— Por causa dos remédios que eles me dão, acho que é meperidina, é como se minha memória estivesse esburacada e as coisas que estão acontecendo comigo na verdade estão acontecendo com outra pessoa, porque você é a própria memória e…
— Bom mas quem era, um terno preto o Harry anda de terno preto, sobretudo preto sapato preto e o Harry não mete medo em ninguém.
— Não foi isso que eu disse Christina, isso foi só o porquê de eu achar que era uma visita da igreja mas ele ficou falando de mensagens pro além e eu, cada vez mais eu só conseguia pensar naquele desconhecido misterioso oferecendo dinheiro pro Mozart compor um réquiem quando ele me perguntou se eu estava no estágio terminal e me ofereceu dinheiro pra…
— Mas meu Deus é claro que são essas drogas que tão te dando, foi só uma alucinação ninguém veio te oferecer dinheiro pra compor um réquiem, agora…
— Ele estava aqui! Ele estava aqui pode perguntar pra enfermeira, liga pra enfermeira e…
— E ele te ofereceu dinheiro.
— Para levar mensagens pro além, isso.
— Ah, é.
— Sim, é! Ele coloca anúncios no jornal, ele lê o obituário e encontra gente que perdeu um ente querido e eles pagam cinquenta dólares pra quem está pelas últimas pra mandar uma mensagem pro além quando a pessoa chega lá e a gente divide. Eu ia ficar com vinte e cinco por cada mensagem que eu levasse e, quer dizer você ia, quando eu partisse, e aí ele perguntou se eu falo espanhol e onde ficava a ala de caridade onde quem sabe ele conseguia achar uns porto-riquenhos, entende?
— Não, que besteira mórbida.
— Aquele desconhecido misterioso oferecendo dinheiro pro Mozart compor um réquiem e ele achando que o réquiem era dele? para a morte dele mesmo? enquanto ele estava desesperado tentando terminar A Flauta Mágica? Você trouxe aqueles jornais? aquelas notas que eu te pedi?
— Oscar você não vai morrer, você só está quebrado e como é que você acha que vai trabalhar aqui deitado desse jeito pra começo de conversa, isso tá pior que aquela dor no teu braço esquerdo quando você estava tentando terminar a monografia sobre Rousseau e morrendo de preocupação com a passagem pra efetivo? Porque se você tivesse um infarto não ia importar de nada ser efetivado ou não, né? Ela puxou para fora o roupão com o revestimento de retalhos gasto e alguma coisa bege todo braços e pernas de Hong Kong, com a mão no fundo da sacola de compras procurando — essas notas, foi o que eu consegui achar no meio daquela tua biblioteca, aquelas pilhas de jornal velho por que é que você não recorta o que te interessa em vez de só sublinhar com um lápis vermelho e deixar o jornal inteiro lá, é que nem todo o resto. Esse lugar tá um chiqueiro, não que ninguém vá aparecer pra olhar. Você nem ligou pra aquela corretora ainda.
— A gente precisa conversar sobre isso Christina, o mercado imobiliário está frio e essa inflação…
— Conversar sobre isso, meu Deus a gente está conversando faz séculos desde que você se escondeu atrás da porta da despensa pra me assustar não tem nada a ver com o mercado imobiliário, aquilo não é uma casa, é um canto. Alguém que vá gastar dois milhões de dólares não tá procurando um…
— Dois milhões e quatrocentos, a gente tinha dito dois milhões e quatrocentos mas…
— Tá bom dois milhões e quatrocentos! Você acha que alguém vai gastar dois milhões e quatrocentos numa casa que dava pra um faz-tudo consertar até morrer? Você vai ficar deitado aqui esperando alguém aparecer lá e aquele teto da varanda cair na cabeça da pessoa aí é você que vai levar um processo nas costas, já que você anda tão fã deles. Tá aqui tua correspondência. Onde eu deixo.
— Onde você quiser só, eu só tenho que alcançar, cadê meus óculos?
— Bem aqui onde eu deixei, com os teus jornais sagrados. Achei que a gente já tinha pago o encanador.
— Eu achei melhor esperar até o fim do mês quando…
— E aquela gente da poda? Eles deviam é pagar a gente, aqueles galhos quebrados na frente da garagem, você falou com eles?
— Bom eu, não exatamente, não.
— Não exatamente? Quer dizer ou você falou ou não.
— Bom eu liguei mas estava ocupado, tudo está, desde que você foi embora tentando fazer utdo sozinho e terminar meu trabalho, foi…
— Quanto tempo demora pra passar um cheque, você sabe que vai pagar mais cedo ou mais tarde mas você simplesmente não consegue abrir mão até o último segundo né? Quer dizer ninguém te pediu pra fazer tudo sozinho Oscar sério, desde que eu me casei você anda agindo como se o Harry tivesse vindo e roubado uma diarista de você. Nós somos todos meio que família agora e dava pra você se esforçar só mais um pouquinho, não dava? Ele está até aqui de trabalho hoje no tribunal mas ele tirou um tempo pra comprar uma cópia da Opinião do papai e vir até aqui te ver, que nem alguém da família quer dizer isso não foi bem bacana?
— Mas ele não tem cara de ninguém da família, nem do lado da tua mãe, e eu não acho que o papai…
— Ele já conheceu o papai, ano passado quando ele precisou ir pra Washington, não foi lá um grande sucesso mas nem dá para dizer que a culpa é do Harry, dá? se você lembrar de como o papai estava? E eu fui e contratei uma diarista pra você, não contratei? Duas, depois que você falou que a primeira queimou as tuas meias, e o que foi que aconteceu com essa última? Não tem nem rastro dela por lá.
— Se você quiser um rastro dela olha aquela jarra Sung na sala. Ela encheu ela de água gelada pra colocar uns ramos de cerejeira que a Lily trouxe e claro que a água infiltrou na terracota e destruiu completamente o verniz. Mil anos daquele verniz iridescente lindo e uma mulher abestalhada consegue destruir a coisa num dia.
— Vou procurar outra pra você, agora…
— Outra? Você acha que dá pra simplesmente ir numa loja qualquer e comprar uma jarra legítima da dinastia Su…
— Uma diarista Oscar, outra diarista, e por que é que a Lily levou ramos de cerejeira pra lá, as coisas já não tão uma bagunça enorme sem ramos de cerejeira? Você reclama de desordem mas abre a porta pro caos em pessoa, quer dizer ela com certeza não parece com ninguém da família se é nisso que você fica pensando, chegando aqui hoje de manhã numa BMW nova como se ela fosse a dona do lugar. Ele deve aparecer a qualquer minuto. Contei pra ela o que houve.
— Uma BMW nova?
— Você tá aqui todo amassado por causa daquele acidente por tabela enquanto ela anda por aí numa…
— Não mas de quem é a BMW?
— Eu é que não sei, quer dizer eu nem quero saber, você quer? Pensa um pouco Oscar, porque acho que você devia mesmo pensar um pouco, uma blusa levinha desabotoada até a metade, cabelo loiro balançando no vento e tanto batom que dava pra pintar uma casa vou deixar tuas cartas bem aqui. E mais tarde trago uns cheques pra você, certeza que você tá sem. Quem é John Knize.
— Quem é quem?
— Tem uma carta aqui de um tal de John Knize. Quer que eu abra?
— Ah, não deve ser só alguém que…
— Caro Professor Crease, ele tem uma daquelas máquinas de escrever horrorosas que imprime em cursiva. Quiçá minha carta anterior não chegou ao senhor. Estou pesquisando material para um livro sobre o tribunal de Holmes, do qual entendo que seu avô, o Meritíssimo Juiz Thomas Crease, foi um membro vivaz, bem conhecido pelos conflitos com seu colega Meritítssimo Juiz Holmes apesar de dizerem que eles foram bons amigos durante a experiência de juventude compartilhada durante a Guerra Civil, tendo ambos sofrido ferimentos, pelo que sei, em Ball’s Bluff e Antietam. Tendo em vista que seu avô viveu até a idade de noventa e seis ocorreu a mim que talvez você tenha o conhecido bem durante sua infância e, você não tá pensando em ver esse sujeito, né?
— Achei que pudesse ajudar com…
— Bom seja lá o que você achou, só não esqueça que ninguém aparece do nada pra vir te ajudar, as pessoas só se ajudam, quer dizer não me diga que você se imagina sentando pra conversar com esse estranho completo contando como o vovô fazia cavalinho com você quando você tinha cinco anos e soltava a matraca sobre a Guerra Civil? Esses jornais que você me fez arrastar até aqui porque você tem medo que alguém roube de você e o Harry tá certo afinal, o resto é só teatro. Eu sou a Rainha da Noite e aqui está o seu mensageiro misterioso assombrando as alas na caça de um caso terminal, adulando um réquiem pro velho Conde fingir que foi ele mesmo que compôs, tentando me assustar quando a gente era criança dizendo que você ia voltar e assombrar aquele canto a coisa que eu senti lá hoje de manhã, a névoa simplesmente subindo do lago e de repente os cisnes, toda uma revoada de cisnes chegando mais perto tão quietos, tão quietos, e do outro lado do lago aqueles vermelhos e castanhos…
— Onde as sebes tem secado às margens do…
— Exatamente! a carta que ela estava amassando foi ao chão no que ela se levantou. — Sozinho, pálido e vagarosamente passando, quer dizer se o Keats te visse assim. Querem te deixar aqui mais quanto tempo.
— Eles ainda não sabem. Me alcança meus óculos? Depende de quando eu conseguir andar de novo se eu conseguir, se eu conseguir Christina, nem isso eles sabem ainda.
— Bom eu espero que só te soltem quando você conseguir, como é que eles querem que você ande por aquela casa numa cadeira de rodas sem quebrar o pescoço? Ela esticou a mão até onde ele havia colocado os óculos com alguma dificuldade, e os tirou do rosto dele. — Você consegue ver alguma coisa por essas lentes? molhando um lenço no copo d’água — pra não falar em ler, você já pensou em fazer isso por conta própria? e ela encaixou as lentes brilhantes de volta no nariz dele — apesar que essa faixa não ajuda em nada. Vai ficar cicatriz?
— Provavelmente, eles disseram…
— Tadinho do Oscar. Ela se abaixou para dar um beijo na testa dele. — Talvez faça o teu rosto ter um caráterzinho, que nem o Heidelberg. Vou começar a procurar uma diarista nova.
— Sim mas, Christina? Se o Harry não se importar quer dizer, se ele estiver ocupado ou alguma coisa assim? Eu só achei que você podia ir lá e passar um tempo comigo? Só ate, e espera, esse creme de ervilha com presunto que deram pra gente ontem à noite…
— A gente ainda vai precisar de uma diarista, ah e esqueci de dizer, a Trish te mandou um beijo, a Trish Hemsley? Ela sempre gostou de você viu, é uma pena você nunca ter ido atrás Oscar, ela podia ser uma baita ajuda. Você se importa se eu levar esses? dobrando os chinelos de papel que ela tinha acabdo de achar no criado-mudo, — quer dizer não é como se você fosse sair andando por aí. abrindo a cortina, além de um concerto vivaz de doze quilômetros de congestionamento na saída pra ponte George Washington por causa de um trailer capotado, pegando o braço de uma enfermeira passando pela porta com — aquela cama de lá, do senhor Crease? Ele está meio ansioso com o cardápio do jantar, e essa tal medicação que vocês estão dando pra ele será que não dava pra falar com o médico, ele está vendo homenzinhos de terno preto virem pedir pra ele levar mensagens pro além e ele não trouxe nem uma muda… vindo pelo corredor e — meu Deus do céu… tarde demais pra virar de costas, — oi Lily.
— Ah! Ele está bem?
— Se ele estivesse bem ele não estaria aqui, né? Seis doze B, e por favor deixe ele descansar.
— Ah sim eu, mas Christina?
— O que foi.
— É só, eu só queria que você gostasse de mim.
— Eu também, Lily.
612 B: passando pelo concerto de metais na ponta dos pés com um suspiro apologético, atravessando a cortina com — ai Oscar! Você está bem? e uma mancha de batom na faixa. — Está doendo?
— Sim.
— Onde, a faixa no teu rosto?
— Tudo.
— Ai Oscar. Você quer alguma coisa? Eu ia te trazer umas flores mas aí eu vi que só tinha quatro dólares.
— Olha na minha carteira. Naquela gaveta do criado-mudo, Lily?
— Sim, sim você quer alguma coisa?
— Onde foi que você arranjou uma BMW nova.
— Onde foi que você ouviu isso. Posso pegar cinquenta?
— A Christina disse que você passou em casa numa BMW nova.
— É só de uma pessoa que eu peguei emprestado Oscar. Pra vir te ver, eu só queria que ela não me odiasse tanto. Ela sempre faz eu me sentir como se, ela é tão superior e inteligentes e as roupas dela, ela está sempre tão linda pra alguém da idade dela e…
A mão dela tremeu no ar e ele a pegou. — É só que você é meio nova, eu acho que ela se preocupa com você, esse divórcio e os problemas com a tua família, e…
— A culpa não é minha! Ela pegou a mão de volta, — não é verdade Oscar? Porque é disso que eu tenho que falar com você.
— O que foi dessa vez.
— Porque é essa advogada. Elas quer mais dois mil e quinhentos dólares Oscar eu não sei mais o quê fazer.
— Dois mil e quinhentos é, mas a gente já fez um adiantamento de três mil depois que a gente quitou o primeiro.
— Sim mas agora ela está dizendo que eu devo esses dois mil e quinhentos ou ela não vai liberar todos esses papéis.
— Todos esses papéis quais, onde.
— Pra esse outro advogado. Porque já que ela largou o caso e eu preciso de outro advogado ela disse que esse outro não pode ser o advogado da causa enquanto eu não pagar ela e ela devolver esses papéis todos.
— Não espera como assim, ela largou o caso.
— Porque ela disse que você ficava interferindo escrevendo um monte de cartas pra ela ligando e falando o que ela tinha que fazer no acordo de separação e tudo mais então ela está largando o caso, a culpa não é minha né?
— Bom mas ela não pode. Ela não pode Lily, ela não pode ir embora assim sem mais nem menos. Cinco mil e quinhentos dólares por isso, esse acordo de separação enorme e deturpado ela estava roendo as unhas pra abrir mão de tudo e nem isso foi assinado, é ridículo. Ela não pode.
— Mas eu perguntei pra esse advogado novo e ele disse que ela pode Oscar.
— Que advogado novo.
— Bom eu contratei um advogado homem de novo, que nem antes, então…
— É ridículo, não. Não, a gente pode levar isso pra arbitragem, levar a coisa toda pra um comitê e…
— Mas ele disse que esses comitês são só esses outros advogados e eles tem que se proteger porque vai que um deles é o próximo então…
— Quem disse! E e daí que ela pode largar, escuta eu nem sei quanto vai dar a conta desse hospital, um corretor vai passar aqui mais tarde e eu nem tenho certeza se o seguro vai cobrir, não dá para pedir pro teu irmão? Eu mal posso passar um cheque de um dólar, esse dinheiro todo que ele está ganhando do teu pai pro governo não mexer, não dá para pedir pro Bobbie?
— O Bobbie só quer comprar um Porsche… A cabeça dela se abaixou para descansar no canto da cama, — é que eu me canso tanto, Oscar… e a mão foi atrás, se enfiando por baixo do lençol. — Tudo é o Bobbie, tudo é pro Bobbie, nem falar comigo eles falam e eles entraram pra alguma igreja lá, foi a única carta que eles me mandaram falando da glória da salvação e como eu ia ser feliz se eu só aceitasse o Senhor enquanto essa mulher que roubou minha bolsa está por aí fingindo ser eu com todos os meus cartões e tudo e ela usou meu cartão do banco antes que eu conseguisse cancelar então esses outros cheques bem reais que eu passei foram em branco, eu não consigo nem provar que eu sou eu e ela está aí comprando passagens de avião vai ver ela está em Paris agorinha fingindo ser eu e eu nem sei o que é que eu ando fazendo por lá até que chega a conta desse sapato de lagarto que eu comprei numa loja em Beverly Hills que eu sempre quis ir, e é bizarro.
A mão dele tinha se abaixado para fazer cafuné nela, um dedo passou pela orelha, correu a linha da sobrancelha dela; a mão dela foi mais fundo, acariciando uma colina sob o lençol. — A gente resolve isso assim que…
— Mas ela vai ver que não é tão fácil ser eu, que não é essa diversão toda ser eu que nem ela pensou, tá doendo?
— Só, toma cuidado, eu…
— Beijinho da mamãe pra curar?
— Não, não aqui não, não agora não…
— Mas você não vai se sentir melhor? Cadê um lenço, preciso tirar esse batom.
— Não, não agora não, uma enfermeira pode aparecer e…
— A gente pode só fingir que eu estou arrumando o lençol…
Uma batida soou na cortina. — Ei!
— Mas que, quem…
— Manda ela pra cá!
— Quem você, do que é que você está falando!
— Ela bem sabe! e outra batida na cortina, — se você não sabe então manda ela pra cá. Ei, Mamãe?
— Era só o que me, ai!
— Oscar não tente, fica quietinho que eu acho que ouvi alguém. É melhor eu ir mesmo.
— Espera quem é.
— É só um cara Oscar, é melhor eu ir. Te vejo loguinho.
— Que cara. Num terno preto? Lily espera, como você vai pra casa.
— Nesse carro que eu emprestei.
— Mas espera, de quem é.
— Esse advogado novo… e ela apertou a mão dele, deixou uma mancha de batom nela e passou pela cortina, passou pela cama ao lado com um sussurro vivaz, — Seu velho safado.
E vindo da porta, — Senhor Crease?
— Volta aqui, espera. Espera quem é que…
— Frank Gribble, da Ace Worldwide Fidelity, posso entrar? num terno preto, — como estamos. Posso me sentar? e ele já tinha se sentado, alisando uma pasta de plástico no colo, — espero que o senhor não esteja com dores? e ele tirou um caderno amarelo, — agora. Não vamos gastar muito do seu tempo, senhor Crease. Se você puder apenas me dizer o que ocorreu.
— Claro que eu posso, eu…
— Nas suas próprias palavras.
— Sim, claro. A ignição do carro não estava funcionando. Eu tinha que dar a partida abrindo o capô e encostando um fio da bobina no lado positivo da bateria.
— Se não me engano, é o que chamam de ligação direta. Nós sempre recebemos relatórios de carros roubados desta maneira, prossiga por favor.
— O carro era meu, senhor Gribble.
— Ah sim, sim eu não quis….
— O freio estava engatado. Eu encostei o fio, o motor ligou, o carro passou pra primeira e me atropelou.
— Certo. Então supõe-se que você estava na frente do carro? Por que você estava na frente do carro, senhor Crease.
— Porque tinha uma poça de lama do lado do carro senhor Gribble, e eu achei melhor não arriscar a combinação de água e eletricidade. Mas isso é tudo irrelevante não é. O seguro cobre o proprietário do carro, não cobre?
— Mas o proprietário não é o senhor?
— Eu também sou a vítima senhor Gribble. Agora como eu entendo o plano seria que o seguro do proprietário buscasse um recurso contra o motorista, mas…
— Mas não havia motorista nenhum.
— O que me parece que deixaria aberta a possibilidade de processar o fabricante por produto defeituoso? O carro passou pra primeira por vontade própria não passou? Se tivesse na primeira desde o começo não teria nem dado a partida para começo de conversa. Res ipsa loquitur senhor Gribble, que nem o candelabro caindo na sua cabeça.
— Bom sim seria um pouco difícil, se nós conseguíssemos achar casos parecidos e nós teríamos que averiguar o carro, não é.
— Averiguar o carro é claro, eu só quero justiça afinal de contas.
— Ele está estacionado na sua, no local do acidente eu não estou achando o, que tipo de carro é.
— Mipro Sesa.
— Eu não estou brincando senhor Crease.
— Nem eu! É um carro japonês, um Mipro Sesa.
— Ah. Ah sim, sim perdão, é difícil conhecer tantos modelos hoje em dia. Nós recebemos uma família toda morta num Tipro Caesar e eu cometi um erro parecido. Creio que já demos conta por todas as preliminares senhor Crease, eu não quero te deixar cansado. Nós retornaremos prontamente, não creio que haverá problema algum aqui com as suas despesas hospitalares e acho que até consigo encaixar seu aluguel de televisão sem que ninguém perceba, não senhor. Nosso único problema agora é te proporcionar os melhores cuidados, se você puder só assinar bem aqui embaixo e logo logo você já estará de pé pronto para ir, aqui minha caneta…
— E jogar beisebol?
— Bem aqui embaixo sim, apenas uma formalidade.
— Bem da grande, senhor Gribble. Eu não assino nada sem ler.
— Ah, se você, fique à vontade. Eu só não quis gastar o seu tempo, eu vi o carrinho de bandejas no corredor e parece que estão preparando uma bela surpresa para você. Eu posso ficar lendo o jornal enquanto você…
— É melhor você voltar mais tarde pra buscar, umas outras coisas que eu tenho que resolver antes, aqueles papéis ali no criado mudo, se você puder alcançar pra mim.
— Isso? Parece um documento legal, eu devia ter percebido. Você é advogado, senhor Crease?
— Obrigado. Não, eu só brinco, senhor Gribble, eu só brinco. Boa noite.
— Você só brinca, é? veio de trás da cortina por sobre notícias entusiasmadas de uma colisão de seis carros na Route 4. — Queria eu brincar um pouquinho, coisinha totosa aquela.
— Fique quieto.
— Só uma brincadinha, uma brincadinha só…
— Cala a boca! e ele se recostou nos travesseiros, ajeitando os óculos o melhor que podia, improvisando alguma mesura flácida de dignidade à altura das páginas diante dele. E então nós bem podemos começar essa triste história com o documento que colocou tudo em andamento ou, melhor, que ao menos deu ritmo aos eventos seguintes, esparramado por assim dizer nos jornais, já que ele não tinha nada que ver diretamente com eles, muito menos com seus participantes remotos, distantes em todos os sentidos senão pelo abraço histórico da lei civil em sua tentativa magistral de lhes impor a ordem? ou seria antes de resgatar a ordem do caos degradante da vida cotidiana nessa oportunidade repentina, como crê Christina, de ser levado a sério perante o mundo, numa proporção quase inversa ao seu lugar nele, seus próprios nomes na verdade e a natureza inconsequente de suas tarefas originais, como aquela mulher pretendendo não mais longe que Far Rockaway de repente elevada ao status de marco pelo Juiz Cardozo em Palsgraf v. Ferrovia de Long Island, ou o mero transeunte tornado eterno pelo Barão Pollack em Byrne v. Boadle abordoado por um barril de farinha donde a doutrina de res ipsa loquitur proposta por Harry numa imagem mais adequada àquelas pessoas não naturais acomodadas, numa proporção quase inversa aos milhões, bilhões em acordos, no fútil ápice legal do anonimato empresarial, nas mãos de Harry transformada no candelabro que ele largou aqui no caminho de Oscar, dobrando seu joelho bom, afofando o travesseio, ajeitando mais uma vez os óculos, lambendo o dedão para folhear a capa de Szyrk v. Vilarejo de Tatamount et al., Tribunal de Distrito dos Estados Unidos, Distrito Sul da Virgínia, No. 105-87, assombrado pela sensação de que ‘talvez a realidade não exista mesmo, a não ser nas palavras em que ela se apresenta.’