Flee
[tradução do primeiro capítulo de Flee, de Evan Dara]
[tradução do primeiro capítulo de Flee, de Evan Dara]
38,839
Sempre alguma coisa rolando —
— Tem o festival de utensílios de cozinha lá em Homeport —
— Os ensaios do coro estão pra voltar dia —
— Os Patriots estão indo pra Indianapolis hoje —
— E ah, sabe, o tangelo está bom demais esse ano, incrivelmente docinho e suculento. Ele amadurece na árvore e vem logo ali da Flórida, você só consegue comprar duas semanas por ano, mandam direto de avião e distribuem por toda a região Nordeste em caminhões frigoríficos por mais que seja inverno… E sabe, eu simplesmente sento e fico encharcando a camisa de choro porque a estação dele é tão curta, e ele é tão, mas tão —
— Ioga às duas — bom: Iyengar nas terças-feiras —
— Aí o cara do encanamento vai dar uma olhada no vazamento espirrando pra todo lado atrás do chuveiro. Quer dizer, a minha filha — Jennie — ela simplesmente foi pegar o condicionador e —
— Tem que ajustar aquela planilha da Conoco antes que —
— A minha menininha está pra nascer no —
— É, ela não devia se preocupar com essas coisas, eu falei pra ela, falei direto pra Celia. E ela — opa, espera aí, meu celular —
— E ela estava certa: eu tenho que ser deixar aquilo tudo pra trás. E foi o que eu fiz: coloquei um comentário na minha agenda pra ignorar tudo que tem na minha agenda —
— Saco. Deixei meu kit de hena na casa da Shayna. Idiota, idiota —
— Merda. Tenho que voltar lá fora.
— Hoje está fazendo o quê — menos doze graus…? Menos treze gra—?
— Mais frio que em Copenhague —
— Aí ir na lavandeira — aí pegar o Jack na estação de trem às cinco e quarenta e um —
— Vento vindo do Lake Chamoon que nem eletricidade pura —
— Te dá choque em tudo que não estiver coberto!
— Qualquer coisa que você não cobrir totalmente, por descuido, confiança — idiotice —
— Até entre a luva e a manga. Até na partezinha mais minúsculazinha da tua bochecha, cortando, pinicando —
— Odeio usar essas galochas … cartilagem molenga na tua mão, cheirão medonho de súlfur, puxa aquele monstro por cima da ponta do sapato e não importa o que você faz: gruda; gruda; gruda-puxa—gruda; gruda que nem cimento, como se elas nunca fossem —
— Porra até pod—
— E cara — escurecendo cedo pra caralho. 4 da ta—
— Ouvi dizer que chegou a fazer menos catorze graus em Boston —
— Menos dezesseis graus em Montreal.
— Cara. Será que não dava pra gente importar um carrilhão do bom e velho aquecimento glo—
— E meu contador quer que eu —
— Eu gosto. Gosto do inverno. A cidade volta a ser ela mesma. Ela recupera alguma coisa. Todo aquele lixo? Ele, tipo — some. Dá pra você comprar um bagel de gergelim na Bruegger’s às duas e meia da tarde. O Hank no Shanty’s — no bar lá — ele volta a conversar contigo. Aquelas duas fileiras de carros uma colada na outra na frente do City Market, e os carros sempre se arrastando pela rua… Finalmente! Espaço!
— Dá pra andar pela College Street sem ninguém trombar em você e tropeçar e —
— Bonita coberta de neve —
— Por dois dias até virar lama —
— A cidade toda vira um capuccino — espuma branca nos carros, e nos galhos todos, e em toda tábua cruzada de cerca que você vê, fumaça subindo e vindo da —
— Uma cidade tão, mas tão lindinha —
— Capital da Nova Inglaterra, na minha opinião. Ótima cidade, um lugar ótimo, ótimo pra morar. Três restaurantes tailandeses e todos os caminhos pra passar no Waterfront Park, e no Leddy Park, outra cafeteria pra todos os dias da semana, agora todas tem cestinhas com jornais de graça e aquele Wi-Fi — de graça!
— Palestras e shows na Universidade —
— Gostosinho e quentinho e aconchegante dentro da jaqueta —
— Foi o quê até agora: sessenta centímetros já nesse inverno —?
— Setenta…?
— Fiquei sabendo que foi o pior em sessenta anos. Mas neve do que normalmente cai em —
— Os Jasper estão com dois carros tão cobertos que eles vão simplesmente deixar lá até a primavera!
— Graças a Deus os outros três na garagem ainda estão rodando OK—
— Caminhão lá na I-89 deslizou legal. Aquaplanou (de leve), todo tipo de fumaça saindo —
— Os carros desviando beeeem pra direita pra passar por ele —
— Então hoje é uma noite perfeita pra reunião. Perfeita. Frio lá fora e aqui dentro — quente. Eles servem café de graça e aquelas latonas de biscoito amanteigado, eles montaram a coisa de um jeito que dá pra estacionar de graça no estacionamento bem do lado do salão… O que mais que alguém tem pra fazer numa noite dessa?
— Não dava pra ser melhor: não está nevando —
— Mas porra: olha só quem é que está aqui. Olha quem é que está aqui.
— Porr—
— Aquele papinho de sempre —
— Ã. Hã.
— Como é que pode tão pouca gente —?
— De quebrar o coração —
— E o Rick, que dizer, ele estava com tudo: eu vi placas por tudo na Cherry Street hoje de tarde. E na Biblioteca Fletcher e no Price Chopper e um aviso enorme na Seven Days e… E, quer dizer, pro Rick – eu nunca vi a criatura tão motivada, ele está se esforçando de verdade com essa coisa —
— Nã. Está frio demais. Frio demais pra qualquer um sair da própria —
— E isso de estar tão congelante e tal — isso devia ser marketing pro acordo!
— Se quiser economizar com o aquecimento da sua casa, entra nessa —!
— Qual é – até o prefeito Farina não veio …de novo.
— Me diz alguma coisa que eu não saberia te dizer.
— E olha lá o John Krim Fallows tentando azeitar as coisas —
— Óbvio —
— Cumprimentando todo mundo, sorrisão cheio de dente, dando pra Rachel o café que ele acabou de servir pra si mesmo —
— De terno —
— Então, tem – o quê: onze pessoas aqui? Onze pessoas nesse saguão inteiro? Cabia cento e cinquenta. Ali o Leo e lá o Rick, lá atrás —
— É o Marcus bem lá no fundo …?
— O Marcus Carter está aqui?
— Nã. Não está… Ele —
— Então OK, catorze. Catorze pessoas nessa joça de saguão —
— É de partir o coração do Rick.
— E a Carol, a Carol deu tanto duro pra ele, pra essa —
— O Rick deve estar muito mal —
— Menos até do que na última reunião. Droga. Devia ter umas quarenta, quarenta e cinco pessoas aqui mês passado —
— Quarenta pessoas todas gritando com —
— Não vai tacar o chapéu dessa vez —
— Coitado do Rick. Porra, coitado. Coloca a camisa azul boa dele, passa a camisa, e se veste todo com a gravata azul escura dele de novo, chega até a passar a gilete naquela nojeira do pescoço dele e me digam se eu estiver vendo errado: aquela bota de camurça dele, pra lá de ridícula, ele limpou mesmo —?
— E aí tendo que simplesmente sentar lá na frente com todo aquele xerox que ele imprime —
— Falando com o John Krim Fallows —
— Tipo suplicando pro John Krim Fallows, olhando pro chão, hesitando —
— Eu esperava mesmo que o prefeito Farina estivesse aqui dessa vez.
— E agora: o que é que a gente —
— Isso faz algum sentido pra —
— Diacho, não tem motivo nenhum pra continuar aqui —
— OK, gente, Rick diz.
— OK, ele diz, se levantando, levantando a voz.
— Se levantando mas ainda olhando pro chão —
— Não querendo olhar para as cadeiras vazias, as paredes sem sombras se mexendo —
— E o burburinho que de fato havia no saguão se aquietou —
— Eu sei, Rick diz, eu sei que a gente está todo mundo meio decepcionado aqui essa noite —
— Não é bem isso o que a gente esperava —
— Tirando o cabelo da testa —
— Mas o John fez a gentileza de concordar que a gente devia esperar até quinze pras nove, e ver se quem sabe não é o tempo que está atrasando um pouco as pessoas —
— Certo. Que mal têm outros vinte minutos —
— Enquanto isso, eu pensei que a gente podia…, Rick diz —
— Vocês sabem, Rick diz. Achei que talvez a gente pudesse —
— Fala logo, Ricky, Ezra diz.
— Eu —
— Vamos deixar pra amanhã.
— É —
— Ah, cara, Carol diz, se levantando na primeira fila, e então virando pra olhar o saguão, todos os assentos vazios.
— O que é que você…?, ela diz. Cadê a tua coragem, Ezra? Você vai simplesmente deixar isso aqui andar sem nem —
— Bom. Carol. Quer dizer —
— Isso aqui vale a pena, cara. Isso aqui é importante. Sério – o quê poderia ser mais importante que isso?
— Bom, não parece tão importante assim pra muita —
— Então a gente faz mais, Carol diz. Então a gente se esforça mais. Gente – assim, qual é: eu e o Rick passamos quase dois anos domando esse monstro. Será que não dá pra vocês —
— Está tudo bem, Car, Rick diz.
— Tudo bem.
— E vupt um golpe de silêncio dá a volta, prende o saguão num mata-leão. E nele: um estalo de tábua. O clique de Chris pondo seu copo de plástico numa mesa. Randall fechando devagar o zíper do casaco, aí parando. Ufa. Pesado. Um puxão, uma dentada nas tuas entranhas —
— Vejo vocês na próxima, Ezra diz.
— Obrigado, Rick e Carol, Ezra diz. Obrigado, John.
— Alguém quer dar uma passadinha pela Teoria das Necessidades?, Marcia diz. Alguém quer se juntar pra uma —?
— Não, obrigado, Ezra diz. É… melhor eu já ir pra casa.
— Então, espera aí, OK?, Chris diz. Espera só um minutinho. O que é que a gente vai fazer com …?
— Meu Deus, eu —
— A gente só tem que informar as pessoas.
— A gente tem que fazer as pessoas entenderem que isso aqui é uma coisa boa, Carol diz. Quer dizer, pra cada uma delas pessoalmente. A ideia do Rick é boa mesmo.
— Carol senta na mesa da frente. A gente só precisa deixar claro pras pessoas que um, isso vai fazer elas economizarem dinheiro, e dois, que vai ser bom pra A-burg – pro meio ambien—
— E três, que vai fazer elas economizarem dinheiro, e quatro até cinco milhões, que vai fazer elas economizarem din…
—
— Qual é, Phil…
— O quê. Carol …? Que cara é essa? Que cara é essa?
—
— OK. Desculpa, C.
— Tudo bem, Carol diz. Então. Então como é que a gente —?
— É; como. A gente mostrou isso a torto e a direito —
— A gente vai e fica parado na Church Street importunando as pessoas —?
— Desenha um mapa pra elas —?
— Oferece cerveja —
— Que tal fazer as reuniões na Universidade?, Rick diz. Por que é que a gente não — ?
— Vai atrair mais gente, provavelmente —
— Muito mais gente.
— Não que fosse ser muito dife—
— Mas vários, a maioria dos estudantes aqui – e os professores, também – eles não são de Anderburg. Eles são de outros —
— Hm.
— É…
— Bela ideia enquanto durou, Carol diz…
— Sem falar naquela outra coisa.
— O quê.
— Você sabe.
— O quê
— Você …? A Universidade está interditada.