Oblivion
[tradução do conto Oblivion, da coletânea homônima, de David Foster Wallace]
[tradução do conto Oblivion, da coletânea homônima, de David Foster Wallace]
Felizmente, o padrasto de Hope e eu tínhamos acabado de completar os nove ‘primeiros’ e estávamos lavando nossas bolas no pino do décimo buraco quando a tempestade começou, e eu consegui levá-lo para dentro do restaurante do clube antes que o pior do vento e da chuva da tempestade iniciasse, e devolver o carrinho enquanto meu sogro postiço se secava, trocava de roupa e falava com sua esposa no telefone sobre mais um ajuste na agenda de sua manhã devido a nós termos ‘feito’ somente nove buracos. O velho quisera inicialmente dar a primeira tacada quase ao amanhecer, e eu tinha me visto incapaz de explicar porque isso poderia representar uma penúria possivelmente insustentável sem abrir toda a ‘caixa de Pandora’ do conflito na frente de Hope, que estava lá na mesa do restaurante na noite anterior enquanto nós finalizávamos os combinados; e agora, no átrio do restaurante, havia um ar de, por assim dizer, ressentimento ‘triunfante’ na postura do médico aposentado no corredor de telefones quando eu o encontrei lá, com uma muda nova de roupas exceto por sua viseira e sapato de travas, que ele também tinha usado quando nos trouxe ao Clube Raritan às 7:40 da manhã, insistindo que a gente viesse no seu Saab coupé vermelho malgrado fosse o meu próprio veículo que tivesse o adesivo para estacionamento dos ‘Membros’, que resultou em atrasos administrativos ao estacionar que fizeram com que nós perdêssemos nossa ‘Hora da primeira tacada’ marcada, somando-se à incompletude da nossa rodada.
E então fomos acomodados, o padrasto de Hope e eu, numa mesa ao lado da janela no Salão do 19º Buraco, catando pequenas coisinhas salgadas da tigela da mesa enquanto esperávamos a filha mais nova do Jack Bogen trazer os chopes que ‘o Pai’ (que era como Hope, assim como todos seus ‘verdadeiros’ e ‘meio-’ irmãos e seus respectivos cônjuges, se referiam a ele, apesar de que eu mesmo tinha meu próprio pai em Wilkes Barre, e, a bem da verdade, fazia questão de tentar evitar me referir ao Dr. Sipe diretamente sempre que possível) tinha pedido. O velho septuagenário tinha novamente feito questão de se referir ao chope Feigenspan como ‘[um] P.O.N.’, e eu tive portanto que explicar as origens do termo giriesco para Audrey Bogen enquanto ‘o Pai’ examinava seu relógio de pulso alemão e levava-o até a orelha, expressando preocupação sobre o dano causado pela umidade da tempestade e comentando mais uma vez o preço do relógio. A chuva pesada e torrencial batia contra a grande ‘bay window’ do Salão do 19º Buraco e escorria pelas vidraças chumbadas em lâminas lustrosas que se sobrepunham complexamente, e o som no vidro e nos toldos de pano era muito semelhante a um Lava-carros mecanizado ou ‘automático’; e, com toda a madeira fina e importada e luz baixa e aromas de bebidas e loção pós-barba e brilhantina e tabacos finos e importados e roupas esportivas masculinas úmidas, a sensação no 19º Buraco era ao mesmo tempo quente e confortável e ‘aconchegante’ e também ainda algo restritiva, não dessemelhante ao colo de um adulto dominador. Foi mais ou menos aí que uma nova onda de desorientação e, num certo sentido, percepção sensória distorcida ou ‘alterada’ por quase sete meses de uma perturbação severa do sono veio mais uma vez, como tinha vindo no fairway do quarto buraco com resultados tão constrangedores, cujos sintomas e sensações eram quase impossíveis de se descrever, exceto talvez por se dizer que quando esses períodos chegavam eles não eram dessemelhantes a um terremoto ou ‘tsunami’ cerebral, um, por assim dizer, ‘neuro-protesto’ ou ‘-revolta’ contra as condições de estresse emocional e privação crônica de sono sob as quais foram forçados a funcionar. No momento presente, tudo nas cores do 19º Buraco de repente pareceu se avivar fora de controle e se tornar mais saturado, o ambiente visual parecia pulsar ou latejar vagamente, e objetos individuais pareciam, paradoxalmente, tanto retroceder e se tornarem distantes quanto ao mesmo tempo entrar num foco visual antinatural e se tornarem muito, muito precisamente configurados e delineados, não dessemelhantes a cenas numa pintura a óleo vitoriana. (Hope e sua meia-irmã mais nova, Meredith, co-gerenciaram juntas uma vez uma galeria em Colts Neck.) Os distintivos brasão e lema do Clube Raritan, por exemplo, pareciam ao mesmo tempo retroceder e entrar num foco quase excruciante na parede oposta do ‘Buraco’, abaixo de um tarpão empalhado perceptualmente minúsculo do qual cada escama imbricada parecia contornada ou silhuetada num detalhamento quase ‘fotorrealista’. Havia as mais pedestres tontura e náusea, também. Eu agarrei as laterais ‘esbarbotadas’ ou chanfradas da pequena mesa de bordo numa demonstração de sofrimento enquanto ‘o Pai’ examinava o conteúdo da tigela de aperitivos, tocando o conteúdo da tigela com o dedo enquanto mexia nele. Foi aí que eu tentei trazer para a conversa com o Dr. Sipe (Sipe sendo o nome original ou ‘de solteira’ da minha esposa), em algum tipo de confidência ‘masculina’ ou ‘familiar’, o conflito conjugal estranho e absurdamente frustrante entre Hope e eu a respeito da questão do meu suposto ‘ronco’.
Diante do que: ‘Nem gaste o meu tempo mencionando isso, já que todo homem sabe o quão absurdo e trivial é esse problema comparado a tantos outros conflitos e problemas conjugais. Em outras palavras, “de minimis non curat”, ou, a questão inteira é, no fim das contas, mesquinha demais para mim’ — pois tal era o teor ou ‘tom’ do gesto desdenhoso que o padrasto de Hope fez em resposta a minha abordagem desse assunto delicado, fazendo o gesto derrisório que todos os outros irmãos da minha esposa ainda associam a ele desde a infância, e que seu meio-irmão mais velho, Paul, um empresário bem-sucedido na área de cobranças médicas e dentais automatizadas e terceirizadas, consegue imitar tão sinistramente bem até hoje quando nossas famílias todas se reúnem durante o fim de ano na casa de praia extraordinária do Paul e de sua esposa Theresa em Sea Girt, onde a rebentação de inverno troa contra as rochas da torre do farol que a Guarda Costeira fechou depois que o G.P.S. ou navegação ‘por satélite’ tornou suas funções redundantes, e onde todos os ‘verdadeiros’ e ‘meio-’ irmãos e seus cônjuges e famílias se reunirão com suéteres noruegueses e garrafas térmicas isoladas cheias de cidra quente nos afloramentos de basalto em meio aos gritos pulsantes de gaivotas para assistir às ondas troantes e às luzes distantes da balsa de Point Pleasant se movendo rumo norte no canal Intercostal em direção a Staten Island, a vista toda cinza chumbo e bordôs profundos e, em segredo para mim mesmo, extremamente desoladora. Conscientemente ou não, é um gesto idealmente projetado para fazer seu recipiente se sentir feito um imbecil ou chato completo, e a opinião do ‘Pai’ sobre mim e meu lugar na ‘dinâmica familiar’ geral nunca foi o que se poderia chamar de bem disfarçada. Audrey Bogen, com quem nossa própria Audrey tinha brincado bastante quando elas eram criancinhas pequenas antes dos casos do Jack Bogen virem à tona e elas tomarem caminhos tão radicalmente diferentes na vida, e que agora já era mãe ‘solteira’ e uma garçonete veterana no 19º Buraco do Clube Raritan (ela era, para muitas das adolescentes núbeis no círculo de amigas da nossa própria Audrey, uma espécie de conto de terror, já que um de seus filhos era claramente interracial), agora apareceu com nossas cervejas Feigenspan numa bandejinha de carvalho claro, e o padrasto de Hope exerceu uma prerrogativa exclusiva de homens de idade avançada com mulheres mais jovens, que era olhar de maneira aberta e especulativa para o rosto, uniforme e corpo físico da garçonete jovem e voluptuosa no que ela colocou na mesa os canecos congelados e declarou suas intenções de nos trazer mais petiscos. Com sua idade avançada e senescência física, em outras palavras, fazendo a franqueza de seu olhar — o que, em Wilkes Barre durante minha própria juventude, se chamava ‘Secar a mulher’ — parecer ingênua, infantil e aparentemente quase ‘inocente’ ou inofensiva para as jovens mulheres ao invés de salaz ou lasciva. Essa era uma qualidade (ou, por assim dizer, a falta de) de que eu mesmo era, é claro, cônscio ou ciente demais, já que, assim como nossa própria Audrey tinha entrado numa adolescência cuja deflagração, em meninas de hoje em dia, parece chegar cada vez mais cedo, e tinha fisicamente ‘amadurecido’ ou (na expressão da minha esposa) ‘ench[ido]’, também, é claro, tinham amadurecido as outras meninas do grupo de amigas com quem ela ‘saía’ ou que ela levava para casa ou junto nas férias na praia e\ou em passeios de canoa no interior em junho, julho ou princípios de agosto; e, no caso de algumas das mais prematuramente ‘maduras’ ou voluptuosas dessas amigas, o conflito entre o impulso natural ou pulsão instintiva de olhar para elas como faria qualquer homem adulto, ‘de sangue quente’, v. as óbvias restrições sociais erigidas pelo meu papel como pai adotivo da amiga delas, tornava-se, em alguns casos, tão constrangedor ou doloroso que eu mal conseguia me forçar a olhar para elas ou nem mesmo reconhecer sua presença, fenômeno que nossa Audrey, o que não é de surpreender, raramente percebia, mas que às vezes irritava Hope a tal ponto que uma ou duas vezes, durante discussões conjugais, ela riu da minha desorientação dolorida, e declarou que preferiria — ou o termo que ela usou talvez fosse melhor descrito por ‘respeitaria’ mais — se eu simplesmente, descaradamente ficasse olhando ou babando ao invés de fingir aquela evasão ferida e afetadamente casual como se esperasse enganar qualquer pessoa com olhos na cara enquanto ela observava minha triste pantomima com pena e nojo. Por causa do severo distúrbio de sono, de discórdia com Hope e problemas no meu departamento da companhia na qual eu trabalhava como Supervisor Assistente de Sistemas (que fornecia instalações e sistemas terceirizados de armazenamento de dados e documentos para várias pequenas e médias seguradoras na região da costa leste), minha perturbação crônica tinha chegado a um ponto em que às vezes eu me sentia prestes a chorar, o que, é claro, no 19º Buraco com o padrasto de Hope, seria uma casualidade impensável. Às vezes, normalmente enquanto estava no carro, eu ficava com medo de ter um infarto. Depois, num previsível mas muito mais perturbador estágio da onda de desorientação, veio a aparição de um tableau ou ‘retrato’ mental alucinatório, estranho e estático, uma ‘cena’, Fata morgana ou ‘visão’ de um telefone público numa fileira linear ou ‘corredor’ de telefones públicos de um aeroporto ou estação de trem, tocando. Viajantes passam apressados lateralmente pela fileira de telefones, alguns carregando ou puxando bagagem ‘de bordo’ e outros bens pessoais, andando ou passando apressados enquanto o telefone, que permanece no centro de visão da cena ou tableau, toca sem parar, persistentemente, mas ninguém o atende, sem que nenhum dos outros telefones do ‘corredor’ de telefones esteja sendo usado e nenhum dos passageiros aéreos ou ferroviários reconheça nem ao menos dando uma olhadela para o telefone que toca, sobre o que há de repente algo terrivelmente ‘comovedor’ ou penetrante, desamparado, melancólico ou até agourento, um telefone publico que toca sem parar e não é atendido, em que tudo parece ou aparenta ocorrer sem parar e num, por assim dizer, ‘destempo’, e é acompanhado por um incongruente odor de açafrão.
O padrasto de Hope, um executivo médico veterano na Seguradora Prudential, Inc. — ou, ‘A Rocha’, como é muitas vezes conhecida popularmente — assim como seu próprio pai antes dele evidentemente foi, também, além de ser nascido e ter sido criado no distrito histórico de ‘Fourth Ward’, conhecia o chope Feigenspan por sua marca original, ‘Pride of Newark’ (ou, ‘P.O.N.’), e fazia questão de se referir a ele de nenhuma outra maneira, também fingindo limpar seu lábio superior com o punho depois de beber, à maneira dos ‘trabalhadores’ da cidade, enfiando a mão no bolso do colete e tirando sua caixa de charutos e cortador, além de seu elegante e modernístico isqueiro dourado, um presente de sua esposa (e gravado de acordo), e dando início ao ritual de se preparar para fumar um caro charuto Cohiba com seu chope, pedindo com um gesto peremptório na direção do bar por um cinzeiro, momento em que eu notei mais uma vez o quão excessivamente magra, amarelada e, por assim dizer, escarótica ou ressecada parecia a carne de sua mão e de seu pulso esquerdo no ar. Suas orelhas, que sempre foram um tanto grandes e protuberantes, estavam rosadas devido ao esforço recente. Diante da pergunta se, pensando bem, ele achava que fumar um charuto assim tão cedo talvez fosse uma boa ideia, o Dr. Sipe, que estava para completar 76 anos de idade no próximo 6 de julho (sua pedra zodiacal era conhecida como ‘o Rubi’), respondeu que o indicador exclusivo de ele desejar minha opinião a respeito de seus hábitos pessoais consistiria nele explicitamente vir até mim e pedir por isso, diante do que eu limpei a garganta de leve e dei de ombros ou sorri, evitando os olhos escuros de Audrey Bogen (os olhos da nossa própria Audrey sendo cinzas esverdeados ou, dependendo da luz, ‘Mel’) no que ela colocava na mesa um potinho de nozes muito brilhantes e um cinzeiro de vidro translúcido em cujo fundo estava reproduzido o brasão do Clube Raritan, cinzeiro esse que o Dr. Sipe puxou para perto de si e girou levemente para satisfazer algum obscuro critério em seu ritual de degustação de um charuto. Já por duas vezes eu tinha bocejado de maneira tão violenta que um estalo e uma dor repentina e, por assim dizer, ‘lancinante’ se manifestaram logo abaixo da minha orelha esquerda. ‘O Pai’, cuja saúde física em seus mínimos detalhes era um tópico de colóquio interminável entre seus diferentes filhos, tinha ao que parece sofrido diversos derrames minúsculos e muito localizados no curso dos últimos vários anos — ou, na linguagem das subscrições de planos de saúde, ‘Acidentes isquêmicos transientes’ — que o irmão mais novo de Hope, ‘Chip’ (cujo nome de batismo é Chester) tinha confirmado, na maneira neutra, quase fria ou subjugada aparentemente característica de neurologistas clínicos de qualquer lugar, que eram quase ‘de se esperar’ para um septuagenário do sexo masculino com o histórico e condição do Dr. Sipe, e eram, evidentemente, de pouca importância individual, significando pouco mais para uma sintomatologia que tonturas transientes ou distorção sensória. Empiricamente, o resultado nítido disso era que ‘o Pai’ agora era um daquele tipo particular de homens idosos (ou, como alguns preferem, ‘Senhores’) bem de vida que parecem bem conservados e até mesmo algo distintos vistos de uma certa distância, mas cujos olhos, numa proximidade maior, revelam uma sutil falta de foco, e cuja expressão facial ou emoção é, de alguma maneira sutil mas inconfundível, ‘estranha’, resultando num semblante ou ‘aparência perversa’ permanente que às vezes amedrontava seus netos mais novos. (Isso tudo a despeito do fato de que nossa própria Audrey, que agora está com 19 anos e é a segunda neta mais velha do Dr. Sipe, nunca, por outro lado, tinha relatado sentir medo ou se assustar com seu ‘Avovô [um apelido infantil que pegou]’, que, por sua vez, se referia a Audrey como — sem dar mostra de qualquer ironia ou autoconsciência — ‘Minha Princesinha’, e tinha, junto com sua esposa, ‘mimado’ Audrey com tão extravagante e excessiva leniência a ponto de às vezes causar atrito entre Hope e essa última Sra. Sipe, as duas não sendo [como Hope diria] as ‘mais próximas das amigas’ para começo de conversa. [Por um consenso mútuo ou tácito, nossa Audrey de modo geral se referia à Hope como ‘Mãe’ ou ‘Mamãe’ e a mim como ‘Randall’, ‘Randy’, ou, quando estava nervosa ou tentando defender algum argumento irônico na luta perene por controle juvenil v. independência, como ‘Sr. Napier’, ‘Sr. e Sra. Napier’ ou (com um nítido sarcasmo) como ‘a Dupla Dinâmica’.]) Além das quatro gritantes manchas pré-cancerosas, ou lesões ou ‘ceratonese’ na sua testa, foi apenas nos últimos anos, também, que a boca do padrasto de Hope desenvolveu o hábito de continuar se mexendo levemente depois que ele parava de falar, como se estivesse saboreando o gosto das palavras ou reprisando-as em silêncio, e esses pequenos movimentos às vezes lembravam os de algum tipo de animal pequeno que foi abatido ou atropelado e continua se contorcendo encharcado na estrada, o que era, no mínimo, perturbador. Tem também o problema ou questão das costas curvadas e da consequente cabeça de pombo do ‘Pai’, que faz com que ele pareça estar enfiando o rosto e a boca diretamente em você de uma maneira agressiva, quase predatória, o que é também perturbador, o que talvez seja uma questão de postura geriátrica ou hérnia de disco ou mesmo o início de uma verdadeira ‘corcunda’ ou ‘corcova’, que nitidamente fere tanto sua vaidade quanto sua sensibilidade e que ninguém na ‘família’ tem permissão em circunstância alguma para mencionar exceto por sua esposa, que de repente cutuca ou empurra impaciente sua cabeça de pombo e diz a ele, ‘Pelo amor de Deus, Edmund, se endireita’, num tom de voz que deixa todo mundo na mesa desconfortável. Então um quadro associativo extremamente breve e quase ‘estroboscópico’ em que o padrasto de Hope e ela, em algum ponto no tempo passado ou distantemente anterior, estão sentados juntos num coupé ou carro esportivo desconhecido que está acelerando numa estrada interestadual campestre ou marcadamente mal mantida na luz pegajosa de agosto ou dos fins de julho, e uma cena interior de um ‘Pai’ algo mais jovem e inescarótico, com seu cabelo cinza chumbo, bigode pequeno e cruel e manoplas finas de pelica ou luvas ‘de motorista’, dirigindo o carro, assim como visões do panorama exterior e a linha divisória central ou meridiana se distendendo e passando num ritmo de velocidade antinatural, como se o carro estivesse viajando rápido demais para as condições remanescentes da estrada, e de uma Hope mais jovem e perceptivelmente mais esbelta e voluptuosa aplicando produtos cosméticos enquanto se olha no espelhinho embutido no parassol ou quebra-sol no que ‘o Pai’, postura ereta e distinta e olhando de maneira estólida à frente na estrada, diz a ela que não é bem desgosto ou ‘reprovação’ do sujeito per se, enquanto o veículo potente some adiante na miragem de fins do verão, todo o breve quadro ou ‘visão interior’ ou tableau tão ligeiro e incôngruo que só pode ser, por assim dizer, ‘visto’ em retrospecto.
Segundo meu próprio relógio de bolso, pouco mais de cinco ou seis minutos tinham se passado desde que nós entramos no 19º Buraco. A chuva na janela convexa e com pinázios e de vidro da janela vinha no que agora pareciam ser ‘pulsos’ ou ‘ondas’ vasculares ou peristálticas, e durante as paradas ou baixas breves e rítmicas destes pulsos, era possível ver o bosque ‘torto’ da fairway do décimo-oitavo buraco se curvando e retorcendo sob os ventos agressivos da tempestade, assim como quartetos de jogadores pequenos e achatados pela perspectiva correndo com esforço até seus carrinhos ou procurando abrigo na loja de artigos de golfe, com as travas de seus sapatos produzindo os passos exageradamente altos de homens quase correndo sem sair do lugar. Os que estavam de chapéu o seguravam com uma mão. O longo balcão de mogno e as mesas do 19º Buraco começaram a encher gradativamente no que cada vez mais homens perseguidos em várias partes do campo pela tempestade entravam para se esquentar e esperar a chuva passar antes de voltarem para casa e o que seja que restasse de suas famílias. A mão do ‘Pai’ tremia enquanto ele manipulava o cortador, o que supostamente exigia grande precisão. Boa parte da conversa dos mais recentes ingressantes parecia ser a respeito de relâmpagos e perguntando se alguém tinha visto ou ouvido relâmpagos no campo, além de quem dentre os membros regulares do Clube Raritan talvez ainda estivesse ‘lá fora’. O rosto de muitos dos homens parecia atipicamente liso e rosado, suas cores vívidas por causa da adrenalina da fuga repentina. Atuarialmente, relâmpagos matam em média mais de 300 habitantes de nações industrializadas ocidentais per annum, mais que a média de mortes acidentais devidas a passeios recreativos de barco ou ferroadas de inseto somadas, e uma parcela considerável dessas eletrocussões ocorre nos campos de golfe da nação.
Desde que Audrey se graduou como segunda melhor de sua turma e deixou o ‘ninho’ do lar para cursar seu primeiro ano de faculdade fora do estado na Bryn Mawr (apesar de ela nos ligar religiosamente uma ou duas vezes por semana) no último outono, o único grande conflito conjugal entre eu e minha esposa agora tem sido a respeito do fato de que ela agora de repente diz que eu ‘ronco’, e que esse suposto ‘ronco’ estava impedindo ou privando-a de um sono muito necessário. Eu estou, por exemplo, deitado quieto de barriga para cima com os braços e as mãos cruzados sobre o peito (que é o meu jeito costumeiro de me preparar para gradativamente relaxar e cair no sono), e nosso quarto no segundo andar estaria agradavelmente escuro e quieto, com luzes refratadas do leve tráfego no cruzamento residencial quieto ou ‘abafado’ abaixo percorrendo devagar as paredes do quarto e se alongando, distendendo-se ou colapsando de maneira interessante nos ângulos norte e leste das paredes, eu mesmo gradativamente relaxando e descendo em incrementos pacíficos em direção a uma boa noite de sono, até que Hope de repente grita enfurecida no escuro, alegando que meu ‘ronco’ está fazendo com que seja impossível para ela dormir, e insistindo que eu ou vire de lado ou saia e vá dormir no quarto ‘de hóspedes’ (que é, por um acordo tácito, como agora nos referimos ao antigo quarto de infância de Audrey) e ‘pelo amor de Deus’ deixe ela em ‘paz’. Isso agora ocorre quase toda noite — mais de uma vez em certas noites — e é intensamente frustrante e perturbador. No meu estado relaxado, a repentina veemência dos gritos dela inunda meu sistema nervoso com adrenalina, cortisol ou outros hormônios relacionados ao estresse, e a violência com que ela senta se debatendo na sua cama — além de uma nota de profunda irritação ou mesmo hostilidade na sua voz, como se isso fosse uma questão que vinha a irritando em silêncio por anos e ela tivesse enfim chegado ao fim da ‘linha’ ou ‘à gota d’água’ — produzem em mim um conjunto de respostas naturais e fisiológicas ao ‘estresse’ que, subsequentemente, fazem com que seja quase impossível que eu caia no sono, às vezes por horas ou até mais.
No passado, em particular durante resfriados, ou nos meses de verão de alguns anos de calendário quando a ‘contagem de pólen’ está alta e minha rinite alérgica está ativa ou severa (eu sofro de rinite alérgica, e na minha infância, em Wilkes Barre, minha irmã [cujas alergias eram ainda mais severas que as minhas, além de sofrer de asma congênita] e eu tivemos que ser levados por nossa mãe duas vezes por semana ao pediatra local para tomar vacinas de alergia por vários anos), eu, é verdade, sofri acessos ocasionais de ronco que perturbaram ou despertaram Hope no curso do nosso casamento. Mas esses acessos ou episódios foram sempre resolvidos com facilidade quando ela sugeria com delicadeza que eu me virasse de lado, o que eu sempre, de imediato e sem objetar, fiz, muitas vezes resolvendo o problema sem que nenhum de nós despertasse totalmente — a conversa toda era amigável, e tão pouco digna de nota que Hope muitas vezes podia fazer eu me virar de lado sem me acordar ou causar qualquer transtorno ou incômodo em nenhum de nós.
Portanto não era, eu tinha originalmente planejado asseverar ou durante os ‘últimos’ nove buracos ou no 19º Buraco, que eu dissesse, como fazem alguns maridos, que eu nunca ‘roncava’, nem que não estivesse disposto a me virar de um lado ou de outro ou ser razoável e fazer o necessário para acomodar Hope quando algo muito de vez em quando fazia com que eu tossisse asperamente, gargarejasse, sibilasse ou respirasse de qualquer maneira obstruída enquanto dormia. E sim que a fonte verdadeira, mais irritante ou ‘paradoxal’ do conflito conjugal presente é que eu, na realidade, ainda nem estou dormindo de verdade nos momentos em que minha esposa grita agora de repente sobre meu ‘ronco’ e sua perturbação quase toda noite desde que nossa Audrey saiu de casa. É quase sempre dentro de pouco mais de cerca de uma hora depois de nos recolhermos (depois de ler em nossas camas por aproximadamente uma meia hora, o que é uma espécie de ‘rito’ ou costume conjugal), momento em que eu ainda estou deitado supino com os braços cruzados e os olhos ou fechados ou relaxadamente observando os ângulos das paredes e do teto e as luzes exteriores se distendendo através das persianas, ainda consciente de todo som mas lentamente relaxando e ‘sossegando’ e descendo gradativamente em direção ao sono, mas ainda não dormindo de fato. Quando ela agora grita.
O problema, em outras palavras, é que Hope (que é famosa por cair no sono assim que fecha seu ‘livre de chevet’ da vez, recoloca-o no seu criado-mudo e apaga a luz da arandela de aço escovado acima de sua cama — em oposição a mim, que tive um sono difícil e algo, por assim dizer, ‘frágil’ e ‘delicado’ da minha infância adiante) é quem está, a bem da verdade, dormindo nestes momentos, e sonhando, sonhos estes que consistem nitidamente, ao menos em parte, na crença e percepção algo paradoxais de que sou eu quem está dormindo e ‘roncando’ tão alto que — como ela diz — ‘pare[ço] um caminhão’.
Eu, é claro, tenho meus defeitos pessoais, como todos ou a maioria dos maridos; mas ‘roncar’ durante os meses de clima frio do ano (como a maioria, minha rinite alérgica é sazonal ou, mais tecnicamente, uma resposta ‘autoimune do sistema’ a certos tipos de pólen) não é um deles. Não, é claro, que isso fosse necessariamente constituir uma ‘falha’ de verdade, já que não seria uma ação que eu estaria realizando de maneira ‘consciente’ ou sobre a qual teria qualquer controle. Mas eu não ronco. Nem é habitual que eu esteja incorreto ou confuso sobre eu mesmo estar dormindo ou não — e é um fato estabelecido no nosso casamento que eu demoro muito mais para realmente cair no sono do que Hope ou minha primeira esposa de outrora (nós dois rimos disso muitas vezes), assim como para acordar totalmente. Hope, especialmente, transita com rapidez entre estados de consciência que, para mim, são — devido, talvez, ao estresse da profissão — uma dificuldade. Poderia-se apontar, por exemplo, para o fato de que sou quase sempre eu quem dirige quando viajamos juntos a qualquer distância considerável, ou que com frequência sou eu quem precisa despertar ou sacudi-la com delicadeza para que ela acorde na praia, ou no sofá da sala de TV, ou muitas vezes ao final de uma longa peça de música ou teatro.
Desde o outono passado, no entanto, ela simplesmente não dá ouvidos à razão. Ela assevera com convicção, em outras palavras, que meu putativo ‘ronco’ é uma realidade da vigília e não seu próprio sonho. E no escuro do nosso quarto, quando ela de repente acorda e grita de um jeito que eu mesmo levanto num sobressalto, com adrenalina correndo pelo meu sistema (igual a quando o telefone toca à noite, seu sinal ou ‘toque’ agora perfurante de uma maneira que a luz do dia nunca lhe confere), existe na sua reclamação sobre meu ‘ronco’ uma nota quase histérica que deixa perfeitamente nítido que ela estava dormindo, ou pelo menos estava no tipo de estado onírico de semi-vigília em que algumas pessoas ‘“falam” dormindo’, confabulando passado e presente e verdade e sonho, e ‘acreditando’ em tudo isso de tal maneira que ela simplesmente não dá ouvidos à razão em tal estado.
E mesmo assim eu me recusei em grande medida a condescender ou acalmá-la a respeito de algo que simplesmente não era verdade. Há, até mesmo no casamento, um limite. Depois de um período inicial no outono do ano passado em que tentei argumentar ou discutir de maneira razoável com Hope ‘in loco’ no quarto escuro, informando a ela que eu na realidade ainda não estava dormindo e que ela tinha que simplesmente voltar a dormir e esquecer tudo aquilo, que era só um sonho (uma resposta que a deixava tão irritada e exasperada, entretanto, que sua voz começava a subir aguda num ‘tom’ que me perturbava tanto que qualquer chance de realmente dormir pelas próximas horas se tornava impossível), eu então, subsequentemente, tentei ou tencionei me recusar a responder ‘in loco’ ou reconhecer de qualquer maneira a existência das reclamações sobre eu não deixar ela dormir, esperando ao invés disso a manhã do dia seguinte para admoestar que eu nem estava dormindo ainda, e para mencionar com calma que seus sonhos agitados com meu ‘ronco’ estavam piorando e se tornando mais frequentes, e para insistir que ela marcasse alguma espécie de consulta e talvez pedisse um remédio. E no entanto Hope se manteve completamente contumaz e inflexível nesse quesito, insistindo que era eu quem era ‘quem está dormindo’, e que se eu não pudesse ou não quisesse reconhecer isso, minha recusa de ‘confiar’ nela indicava que eu deveria estar ‘irritado com[ ela]’ por causa de alguma coisa, ou talvez inconscientemente quisesse ‘magoar’ ela, e que se alguém ali precisava ‘marcar uma consulta’ era eu, coisa que segundo Hope eu não hesitaria em fazer se meu respeito e preocupação por ela fossem minimamente mais importantes do que minha própria insistência egoísta em ter ‘razão’. Pior, em certas manhãs, era quando ela, por assim dizer, ‘imitava’ algo que sua irmã ‘verdadeira’ ou biológica, Vivian (uma loura ‘platinada’ divorciada duas vezes e devota de vários supostos grupos e movimentos de ‘apoio’ ou ‘auto-ajuda’, de quem Hope era extremamente próxima antes delas ‘brigarem’) costumava dizer e me acusava de estar ‘em negação’, uma acusação contra a qual toda negação era vista, é claro, como evidência a seu próprio favor, o que é de enlouquecer. Uma ou duas vezes, no entanto, nos primeiros meses de inverno, eu devo admitir que cedi e levei, com um gemido ou um suspiro de frustração, a roupa de cama da minha própria cama para o quarto ‘de hóspedes’ no fim do corredor e tentei ‘apagar’ ou dormir ali em meio a todos os babados em tons pastel, incensos de açafrão e detritos encaixotados da adolescência recente da nossa Audrey, deitado perfeitamente parado e imóvel e mal respirando, e me esforçando para ouvir, do outro lado do corredor, qualquer som de Hope talvez mais uma vez sentando de repente e acusando uma cama agora vazia e desocupada de ‘roncar’ e ‘não deixar [ela] dormir’ — o que seria a prova indiscutível de quem estava dormindo e quem era meramente o sujeito inocente do sonho alheio em que não se consegue dormir. Deitado lá sozinho, eu como que me prefigurava ouvindo os gritos irritados e as reclamações e levantando num instante para atravessar com rapidez o corredor, explodindo pela porta do nosso quarto com algo similar a um triunfante ‘Aha!’ — tão cheio de hormônios frustrados e magoados, no entanto, e devotando tanto esforço e concentração aguda para ouvir com vigilância qualquer som ou movimento vindo do nosso quarto, que eu mal conseguia um instante ou ‘pingo’ de sono a noite inteira na antiga cama da Audrey, e ainda tinha, contudo, que mesmo assim levantar e prosseguir cambaleante tentando lidar com minhas responsabilidades profissionais no trabalho e os longos trajetos de ida e vinda no dia seguinte com todo meu corpo, mente e psiquê à beira do que parecia ser um quase completo colapso. Era, eu tinha, é claro, consciência, talvez mesquinho estar tão fixado em vindicação ou ‘provas’, mas, a essa altura do conflito, eu muitas vezes ‘não era’ ou ‘estava além de’ mim mesmo por causa da frustração, cólera ou raiva e fadiga. É preciso entender (como era minha intenção original de tentar explicar ao padrasto dela) que embora, como em qualquer casamento, Hope e eu tivéssemos tido lá os nossos conflitos e períodos conjugais difíceis, a nítida veemência, raiva e perseguição com que ela agora rejeitava minhas contestações de estar acordado nos momentos cruciais dos supostos ‘roncos’ eram inéditas, e, durante as primeiras várias semanas de sonhos e acusações, eu fiquei preocupado em primeiro lugar com a própria Hope, e com medo de ela estar tendo mais dificuldade de aceitar que nossa Audrey ‘saiu do ninho’ do que pareceu de início (malgrado fosse Hope, ainda mais que a própria Audrey, quem insistiu ou ‘fez pressão’ por uma faculdade fora do estado, sendo que as relativamente próximas Bryn Mawr e Sarah Lawrence College tinham sido as escolhas tacitamente aceitas por Audrey e eu como um meio-termo ou [na linguagem do regulamento de seguradoras] uma ‘adimplência técnica’ a essa prioridade), e que essa dificuldade ou dor se manifestasse como interrupções do sono e raiva ou culpa inconscientes ou direcionadas equivocadamente contra mim. (Audrey é filha de Hope de seu primeiro e curto casamento, mas ela ainda era uma criancinha quando o meu próprio divórcio de Naomi foi dito ‘Finalizado, a mensa et thoro’ e Hope e eu pudemos nos casar, o que vai fazer dezesseis anos no próximo 9 de agosto. Para todos os efeitos práticos, ela é, essencialmente, ‘minha’ filha também, e eu também tive dificuldade com sua ausência física e com os novos horários e silêncios estranhos da casa e a gama de reajustes, também, como tentei repetidas vezes assegurar à Hope.) Depois que um pouco mais de tempo se passou, no entanto, e todas tentativas de discutir o conflito de maneira racional ou induzir a Hope a considerar a mera possibilidade de que fosse ela, e não eu, quem estava na realidade dormindo quando o suposto problema do ‘ronco’ se manifestava levavam-na a se entrincheirar ou se ‘enrijecer’ na sua própria posição — sendo a essência de sua posição que eu estava sendo irracionalmente ‘teimoso’ ou ‘desconfiado’ daquilo que ela conseguia nitidamente ouvir com ouvidos que a terra há de comer — eu essencialmente desisti, então, de dizer ou fazer qualquer coisa num espírito de reagir ou objetar ‘in loco’ quando ela de repente se sentava na cama com violência do outro lado do quarto (com o rosto muitas vezes não-humano e espectral sob a luz fraca do quarto por causa do creme emoliente branco que usava para dormir durante os meses frios e secos do ano, e distorcido antipaticamente por irritação e cólera) para me acusar de estar ‘roncando que nem um trator’ e exigir que eu me virasse imediatamente ou fosse exilado mais uma vez à antiga cama de Audrey. Em vez disso, eu agora ficava perfeitamente parado, quieto e imóvel, de olhos fechados, pantomimando um homem profundamente adormecido que não a ouvia e nem mesmo reconhecia sua presença, até que por fim suas súplicas e vituperações iam sumindo e ela voltava a se deitar com um profundo e cáustico suspiro. Então eu continuava deitado supino e imóvel no meu pijama de flanela ou acetato azul claro, parado e quieto como um ‘túmulo’, esperando em silêncio pela mudança na respiração de Hope e pelos leves, pequenos sons de mastigação ou bruxismo que ela fazia enquanto dormia que indicavam que ela tinha novamente pegado no sono. Mesmo então, no entanto, às vezes ela agora mais uma vez acorda num salto poucos momentos depois, mais uma vez se sentando e me acusando de estar ‘roncando’ e exigindo com raiva que eu faça algo para deter ou impedir isso para que ela enfim fique em ‘paz’ e consiga dormir.
A essa altura, o aguaceiro da tempestade de primavera tinha baixado ou refluído ao ponto que os sons dos impactos de gotículas individuais eram individualmente enumeráveis contra o toldo de lona listrada das grandes bay windows do 19º Buraco — discretamente audíveis, no caso, mas em suma arrítmicos e não o que se poderia chamar de agradáveis ou calmantes; as gotas maiores soavam quase sinistras ou, por assim dizer, quase ‘brutais’ na força de seu impacto. Lá dentro, o pai de Hope se recostava inclinado de leve para o lado na sua pesada cadeira ‘de capitão’, passando o fino charuto sobre seu lábio superior para saborear o olor enquanto procurava num bolso lateral (é por isso que ele está inclinado; não é uma distorção) o estojo especial de seu cortador gravado com suas iniciais. Sem informar Hope (uma omissão que foi, eu confesso, mesquinha, e de que eu muito provavelmente não estava disposto, naquela altura do conflito, a lhe dar a ‘satisfação), eu, durante meu exame físico anual, pedi uma indicação para o clínico geral do plano de saúde da nossa seguradora de um dos ‘otorrinos’ designados pelo plano, que então subsequentemente examinou minhas cavidades e seios nasais, traqueia, adenoide e palato ‘mole’, e declarou que não via indícios de qualquer coisa incomum ou fora do normal. Depois eu, no entanto, cometi o erro de ‘jogar’ esse atestado de saúde ‘na cara’ de Hope durante uma das cada vez mais pesadas e incômodas discussões (que muitas vezes ocorriam durante o café da manhã do dia seguinte) a respeito da suposta questão do ‘ronco’, diante do que Hope se apoderou do fato de eu não ter lhe contado da indicação do ‘otorrino’ como prova de que eu ‘… s[abia] que o ronco [era] real’, e que estava preocupado com isso em segredo, e que não quis falar para ela da consulta antes disso por medo de que o diagnóstico do especialista fosse identificar algo de errado no meu palato ‘mole’ ou nas cavidades nasais e que eu tivesse que admitir abertamente a ela que o ‘ronco [era] real’ e que todas minhas acusações de que ela estava dormindo e simplesmente sonhando que eu estava roncando tinham sido meramente nada além de uma ‘negação’ egoísta e uma ‘projeção’ do problema contra a ‘vítima’ daquilo (se referindo, é claro, a si própria). Essas curtas e duras discussões — que vinham em ondas ou feixes durante todos os meses de inverno e começo de primavera, e na maior parte tendiam a ocorrer ou ‘entrar em erupção’ no café da manhã, alimentadas por uma noite insone e pela angústia de ter que se deparar com as demandas do dia vindouro não tendo dormido o suficiente, e muitas vezes eram tão duras e incômodas que eu então passaria a subsequentes ida ao trabalho e as primeiras várias horas numa espécie de torpor emocional, ‘reprisando’ mentalmente a discussão e concebendo novas maneiras de apresentar ou organizar as provas ou pegar Hope numa contradição lógica, às vezes chegando ao ponto de interromper o trabalho para anotar essas ideias ou réplicas incisivas nas margens do meu day planner profissional para possível uso futuro — eram aterrorizantes na repentina irritação e na velocidade com que se agravavam em intensidade e ‘spleen’, assim como no modo como o rosto seco, escuro, estreito, cada vez mais extenuado de Hope do outro lado da mesa às vezes se tornava quase irreconhecível, retorcido, distorcido e até algo repugnante por sua raiva e suspeita empedernida; e, de minha parte, eu devo confessar que, pelo menos uma ou duas vezes, eu cheguei mesmo a sentir um ímpeto de bater ou dar um empurrão nela ou virar a mesa ou balcão do café da manhã furioso, tão ‘fora de mim’ estava eu na fúria irracional por causa da estranha, empedernida, amargurada e irracional renitenção com a qual ela se recusava completamente a considerar — a sequer reconhecer a mera possibilidade, apesar de todas as réplicas e respostas razoáveis, argumentos racionais, provas, fatos incontestáveis e citações de precedente (houve, durante nosso casamento, outros conflitos em que Hope estava profundamente convencida da validade de sua posição, mas tivera que aquiescer diante das subsequentes provas de que ela, na realidade, estava errada, e tivera então que se desculpar) que eu apresentava — que era eu quem estava acordado e ela que estava — ‘quem sabe’ — dormindo, e que a questão do ‘ronco’ era de fato na realidade um ‘problema [dela]’ e só podia realmente ser resolvida de fato se ela ‘marcasse algum tipo [médico, ou até psiquiátrico] de consulta’. Minhas mãos às vezes literalmente tremiam ou vibravam de frustração e fadiga derivada da desorientação quando eu dava partida no carro, com uma série de ‘imagens’ ou distorções alucinatórias velozes, indistintas e indesejadas muitas vezes também se movendo em sucessão rápida e arrítmica pelo meu ‘olho da mente’ enquanto eu subia a Garden State Parkway até o trabalho. (Numa das mais pesadas e perturbadoras dessas discussões, eu tinha falado do exame do otorrino apenas para provar que ao menos eu, diferente de Hope, estava disposto a considerar ao menos a possibilidade de que eu de alguma forma estivesse errado e pudesse na realidade estar de alguma forma ‘roncando’ de verdade, e assim que qualquer acordo ou resolução viável seria impossível a não ser que houvesse ao menos alguma ligeira reciprocidade quanto à nossa disposição a aceitar, malgrado a informação dos nossos sentidos, ao menos a ‘possibilidade teórica’ de que nós pudéssemos estar errados a respeito de quem está dormindo e sonhando e\ou ‘roncando’ e quem não está.)
Além disso, a essa altura, nossa rotina (ou, ‘ritual’) de preparação para nos recolhermos e ir dormir no quarto tinha também muitas vezes se tornado quase indescritivelmente tensa e desagradável. Hope muitas vezes fingia que não me via e nem falava comigo, e quando, do meu lado do quarto, ela ‘me pegava olhando para ela’ enquanto ela emergia do closet ou do banheiro ou aplicava emoliente diante do espelho iluminado de sua ‘penteadeira’ esmaltada bege, sua expressão era muitas vezes a de alguém que observa um estranho inconveniente. (O padrasto e as irmãs adotivas de Hope, Meredith e Denise [ou, para conhecidos, ‘Donni’], também tinham um talento para essa expressão, como eu percebi pela primeira vez quando fui apresentado pela primeira vez ou inicialmente à sua família, o que ocorreu num juntar na grande casa de estilo vitoriano do Dr. Sipe e de sua esposa no distrito histórico de ‘Fourth Ward’ em West Newark, durante o quê, em dois momentos diferentes, ‘o Pai’ me fez algum tipo de pergunta pessoal ou biográfica e então, no meio da minha tentativa de responder, me interrompeu para indicar publicamente que estava perdendo a paciência ou desejava que eu ‘fosse direto ao assunto’ de uma maneira mais brusca ou ao que tudo indica eficiente.) Muitas vezes, quando as luzes do quarto agora estão apagadas, eu estou tão extenuado e tenso que qualquer provável perspectiva de cair no sono no futuro próximo desaparece de todo, apesar do fato de que muitas vezes eu agora estava tão exausto a ponto de literalmente tremer e minha visão, como mencionado, regularmente entrava e saía de diferentes estágios de foco exagerado, profundidade e fluxo abstrato ou ‘retroussage’ — por exemplo, a forma como o rosto antes jovial, voluptuoso e inocente de Audrey Bogen parecia tremer ou estremecer à beira de explodir em cacos abstratos quando ela trouxe o cinzeiro do Dr. Sipe, que era formado de vidro preto e pesado e gravado com o brasão heráldico e o lema em latim do Clube Raritan — ‘Resurgam!’ — num vermelho vírido.
Além, claro, do fato de que as absurdas efemeridade, trivialidade e o óbvio deslocamento ou projeção de todo o conflito do ‘ronco’ — de que, entre Hope e eu, só eu parecia realmente ter noção ou estar frustrado com o absurdo e a irrelevância do conflito todo — pioravam tudo ainda mais. Eu mesmo simplesmente não conseguia acreditar que a relação entre Hope e eu nesse momento crucial, de ‘ninho vazio’ do nosso casamento pudesse soçobrar por uma questão tão trivial, questão que, mesmo em uniões muito menos felizes ou viáveis do que a nossa, deve, na maior parte, ser resolvida ou ‘elaborada’ logo no começo da relação. Assim como conflitos em relação a, por exemplo, diferentes ‘estilos’ comunicativos de parceiros, quantidades de tempo passado juntos em oposição a fisicamente separados, divisão de responsabilidades pelas tarefas de casa e assim por diante, a compatibilidade recíproca de ‘estilos’ e disposições para se dormir é simplesmente parte do acordo doméstico de viver com um cônjuge, como, é claro, quase todo homem com qualquer experiência de vida sabe. Eu não consegui, por semanas ou até meses a fio, nem mesmo abordar a questão do conflito com amigos pessoais ou com familiares. Parecia simplesmente tolo demais para se acreditar. Eu até cheguei ao ponto de tentar me consultar ou ‘ir’ num terapeuta de casais profissional — novamente, uma ação que realizei por conta própria e, por assim dizer, ‘sub-rosa’, já que sabia muito bem o que Hope, seu padrasto, e o grosso de sua família verdadeira e adotiva (à exceção de Vivian, cujas memórias supostamente ‘Recuperadas’ e histéricas acusações em público na reunião de férias da família estendida na extraordinária casa de praia de Paul e Theresa na enseada de Manasquan tinham levado a ela e Hope ‘estarem brigadas’ e à tácita proibição de toda a família estendida de qualquer menção ao assunto todo, além de quais eram os sentimentos do próprio Dr. Sipe a respeito da questão da ‘terapia’ ser coberta como dispensa médica para propósitos de planos e ‘seguros’ de saúde, que eram bem conhecidos e escandalosos) achavam vis à vis a questão da ‘terapia’, e sabia também, àquela altura, que a maneira ríspida e contraída com que Hope se recusaria, caso eu abordasse a questão, a sequer considerar ‘ir’ no terapeuta comigo como um ‘casal’ me deixariam mais uma vez frustrado ou irritado, e simplesmente agravariam ou aumentariam o escopo do conflito conjugal — apenas para, em consequência disso, para minha considerável lástima, repetidamente ter, suportar ou aturar uma série de conversas ‘terapêuticas’ como, em substância, a seguinte:
‘Mas o ronco não é o problema de verdade, Randall, você não acha?’
‘Mas eu nunca em nenhum momento sugeri que isso fosse o problema de verdade.’
‘Afinal de contas, com ou sem rinite alérgica, tem muito homem que ronca.’
‘E fosse eu um deles [alguém que ‘roncava’ mesmo durante estações em que rinite alérgica não era um problema, no caso], eu cederia [às acusações de Hope, no caso] sem hesitar.’
‘Por que é tão importante para você se você está ou não roncando?’
‘A questão toda é que isso não é importante para mim. Essa é a questão toda. Se eu estivesse, de fato, ‘roncando’ de verdade, não teria problema nenhum em admitir, assumir a responsabilidade e tomar qualquer providência necessária e razoável para resolver o suposto problema.’
‘Acho que eu ainda não entendi muito bem. Como você pode ter certeza se você está roncando ou não? Se você está roncando, então por definição você está dormindo.’
‘Mas [tentando responder]…’
‘Quer dizer, quem é que pode saber?’
‘Mas [ficando cada vez mais frustrado a essa altura] a questão é bem essa, que eu tentei explicar aqui já sabe lá quantas vezes: é justamente quando eu não estou de fato dormindo ainda que ela me acusa.’
‘Por que você está ficando tão irritado? Você dá algum valor especial a essa questão de estar roncando ou não?’
‘Se eu estou, nos seus termos, “ficando irritado”, talvez seja porque estou um tanto incomodado, impaciente ou frustrado com esse tipo de conversa. A questão toda é que eu enfaticamente não dou nenhum valor especial ao suposto problema do “ronco”. A questão é que se eu estivesse de fato “roncando”, eu ia admitir e simplesmente me virar de costas para ela ou até me oferecer para ir dormir na cama da Audrey e não ia pensar duas vezes sobre isso além de um certo arrependimento natural de ter em qualquer grau perturbado ou “atrapalhado” o descanso da Hope. Mas eu sei, no entanto, que você precisa estar dormindo para “roncar”, e que eu sei quando eu estou dormindo e quando não estou, e aquilo a que eu dou “valor” é minha recusa de acalmar alguém que está sendo não só irracional mas teimosa que nem uma mula e obtusa ao me acusar de alguma coisa que eu preciso estar dormindo para ser culpado de fazer quando na verdade eu nem estou dormindo, devido em grande parte ao quanto eu estou tenso e exausto por causa de todo o conflito absurdo para começo de conversa.’
O terapeuta do plano, que parecia estar, no máximo, com seus trinta e poucos anos, e usava óculos, tinha uma testa larga que era abobadada de uma maneira que sugeria profunda reflexão, aparência que era, como foi se revelando aos poucos, enganosa.
‘E não há chance — só, Randall, como possiblidade — nenhuma chance ou possiblidade, por mais remota, de que você possa estar sendo, como você diz, de alguma maneira teimoso ou uma mula a respeito desse conflito no seu relacionamento com a Sra. Napier?’
‘Agora eu preciso confessar que estou ficando frustrado ou até, se é que dá para dizer, um tanto irritado ou exasperado, porque a questão toda, a raiz inteira da injustiça e da minha frustração ou até raiva de Hope, é que eu mesmo estou disposto a examinar essa possiblidade. Que sou eu que estou aqui, examinando a possibilidade, como você pode muito bem perceber. Você está vendo minha esposa aqui? Por acaso ela está disposta a “se abrir” e olhar para a coisa com um terceiro?’
‘E posso perguntar o porquê dessa coisa com os dedos?’
‘Mas não, Ed [o terapeuta do plano praticamente insistiu em ser chamado pelo primeiro nome], se você me permite, o fato é que Hope está agora mesmo voltando da aula de spinning ou do salão e está muito provavelmente na banheira remoendo sozinha o conflito e reforçando sua posição e se preparando para outra rodada infinita do conflito na primeira vez em que ela sonhar de novo que eu não estou deixando ela dormir e roubando sua jovialidade, vivacidade e seus encantos de filhinha, enquanto isso euzinho estou sentado aqui num escritório sem ventilação tendo que responder se eu estou sendo “uma mula”’.
‘Então, se eu estou te ouvindo bem, o problema de verdade é uma questão de justiça. Sua esposa não está sendo justa.’
‘O problema de verdade é que é bizarro, surreal, um pesadelo quase literalmente “de olhos abertos”. Minha esposa agora é uma desconhecida. Ela diz que sabe melhor que eu até se eu estou acordado. É menos injusto do que aparentemente quase totalmente insano. Eu sei se eu estou aqui sentado tendo essa conversa. Eu sei que eu não estou sonhando. Duvidar disso é insanidade. Mas isso, ao que parece, é o que ela está fazendo.’
‘Então a Sra. Napier podia até negar que você esteja aqui, você acha.’
‘Não é essa a questão. A questão de eu estar aqui ou não é só uma analogia para ilustrar o fato de que eu sei se eu estou dormindo ou não, exatamente como você. Duvidar disso seria o caminho para a insanidade, não é verdade? Será que pelo menos nisso a gente pode concordar?’
‘Randall, então fique tranquilo, mais uma vez, porque eu não estou aqui para discordar de você, mas simplesmente tentando ver se eu entendo direito isso tudo. Quando você está dormindo, você consegue saber de verdade que está dormindo?’ … E assim por diante. Minhas mãos muitas vezes doíam de me agarrar no volante do carro quando eu então retomava ou continuava o trajeto para casa pela Garden State Parkway do escritório do terapeuta de casais num pequeno agrupamento (ou, ‘complexo’) de consultórios médicos ou odontológicos no subúrbio de Red Bank. De maneira mais geral, eu muitas vezes comecei a ficar com receio ou medo de sucumbir à privação de sono ou fadiga e acabar dormindo no voltante e atravessando ou ‘pulando’ o canteiro central dando de frente com o trânsito contrário, cuja consequência trágica eu já tinha visto muitas vezes nos meus muitos anos indo de carro ao trabalho.
Então, enquanto eu estava sentado com o Dr. Sipe na mesa do que os membros do Clube Raritan muitas vezes chamam simplesmente de ‘19’ ou ‘o Buraco’, outro indesejado ou involuntário quadro interior ou, por assim dizer, ‘imagem’ ou cena alucinatória de mim mesmo de pé, quando menino ou criança, numa superfície precária ou inclinada no pé de algo que lembrava uma escadinha ou escadinha de corda ou corda, olhando para cima com um medo infantil, a escadaria, escadinha ou corda descendo de algum ponto na penumbra, além ou acima do grande ícone ou estátua ou ‘busto’ de pedra de alguém imenso e mal iluminado demais para que seu restante pudesse ser visto no alto (ou, ‘descoberto’), eu mesmo precariamente de pé numa elevação no grande colo de granito da estátua com uma ou duas mãos pegando ou agarrando a ponta da corda, olhando para cima, assim como com a mão pesada de alguém muito maior que eu atrás de mim sobre meus ombros e costas e uma voz dominante ou ‘troante’ vindo da escuridão da grande cabeça de pedra no alto repetindo em tom de ordem ‘A corda’, e a mão empurrando ou balançando e dizendo ‘… de Deus…’ e\ou ‘… Hope’ várias vezes. ‘O Pai’ — cuja área de especialidade na Prudential é (ou melhor, era) algo chamado ‘Medicina Demográfica’, o que envolvia ele claramente nunca ter, durante toda sua carreira, nenhuma vez encostado fisicamente num paciente — sempre me considerou uma espécie de chato e\ou fresco, alguém ao mesmo tempo saliente e irrelevante, o equivalente humano de uma mosca ou de um nervo pinçado, e praticamente não se esforçava para disfarçar essa opinião, ainda que como ‘Avovô’ ele tenha sido sempre muito afetuoso e bondoso com nossa Audrey, o que para Hope e eu significa muito. Quando se concentra na ponta cortada para acender o charuto, ele parece brevemente ser estrábico ou ‘vesgo’, e a mão que segura o isqueiro treme muito, e naquele instante ele parece nenhum dia mais novo do que é, talvez até mais velho. A ponta extirpada tinha sumido. O ambiente todo parecia de certa forma ameaçadoramente comprimido. Ele e eu ambos olhamos para a ponta vermelha no que ele aproximou o Ronson prateado do charuto e tragou e exalou, tentando acendê-lo de uma maneira que durasse. Seus pulsos e mãos eram amarelados e algo manchados, não dessemelhantes a um salgadinho de milho ou ‘tortilha’, e o tamanho da chama e do Cohiba faziam com que seu rosto seco, estreito, enrugado, abaixado e protuberante parecesse menor e mais distante do que estava na realidade; e esse efeito não era uma distorção visual ou alucinação mas uma simples e comum ‘Ilusão de perspectiva’, não dessemelhante a um horizonte renascentista. A chama verdadeira era a que estava no meio. O leve amargor tânico do Feigenspan também era tradicional. (O que se segue, da mesma forma, era também típico das conversas com o segundo terapeuta de casais no seu consultório estéril e genérico no subúrbio de Red Bank:
‘E não tem a menor possibilidade dessas alucinações que você acha que está tendo serem auditivas? Que às vezes você está lá chiando ou roncando e não percebe porque você está, como você disse, tendo alucinações?’
‘Mas eu sei quando eu estou tendo uma alucinação. A foto da sua esposa e da sua filha ou talvez quem sabe da sua enteada ou sobrinha ali na mesa — o rosto da filha está aos poucos começando a espiralar e se distender. Isso é uma alucinação. Eu digo “alucinação” no sentido mais geral de todos. Não são alucinações que imitam a realidade ou que dá para você confundir com a realidade. Às vezes, por exemplo, tentando fazer a barba no espelho, minha cara parece ter um olho extra no meio da testa, cuja pupila às vezes é horizontal ou “deitada de lado” que nem o olho de um felino ou predador noturno, ou em algumas ocasiões os dois seios no tronco da nossa Audrey no fim de semana de visitas na Bryn Mawr sobem e descem dentro da blusa dela que nem pistões e em volta da cabeça dela tem uma auréola ou, por assim dizer, “nimbo” de personagens de animação da Disney. Quando essas alucinações acontecem, eu consigo dizer para mim mesmo, “Randall, você está tendo leves alucinações devido à privação crônica de sono agravada por discórdia e estresse crônico.”’
‘Mesmo assim elas devem te dar muito medo. Eu, com certeza, ficaria com muito medo.’
‘A questão é que eu sei quando eu estou tendo alucinações e quando eu não estou, do mesmo jeito que eu sei muito obviamente quando eu estou dormindo ou não.’) E nesse momento mais um ‘relance’ ou visão alucinatória e momentânea da nossa Audrey deitada de costas numa canoa na praia e eu fazendo força como um pistão em cima dela, meu rosto espiralando e começando a se distender no que o quadro ou Fata morgana muda quase imediatamente e retorna ao 19º Buraco ou ‘o Buraco’ presente, com nossa Audrey — agora aos 19 anos e plenamente mulher ou ‘maior de idade’ — vestindo seu conhecido bustiê cor de açafrão, calças estilo ‘Capri’ e luvas brancas até o cotovelo agora se movendo de maneira suave e lânguida entre as mesas, banquetas e cadeiras, languidamente servindo high-balls a homens molhados. Nem deve-se deixar de acrescentar que Jack Vivien estava lá agora, também, na mesa ao lado da janela no 19º Buraco comigo e com o Dr. Sipe, também com uma bebida e sentado ao lado direito ou ‘do passageiro’ do ‘Pai’. Jack Vivien não estava vestindo nenhuma das jaquetas ou viseiras habituais de golfistas, assim como parecia estar seco, sem pressa e, como sempre, calmo ou no controle, muito embora continuasse usando seus sapatos com travas ou ‘de golfe’ (sendo as travas de aço ou ferro de um centímetro e meio nas solas do sapato tradicional as culpadas ou o componente que conduz eletricidade com tão ‘chocante’ eficácia. O ‘profissional residente’ do campo público em Wilkes Barre, na minha infância, por exemplo, uma vez foi atingido por um raio e morreu na hora, e meu próprio pai estava entre o trio de outros jogadores que corajosamente permaneceram a céu aberto com a vítima abatida até que se pudesse chamar um médico e ele chegasse, com o ‘profissional’ deitado de bruços e enegrecido e ainda segurando a bandeira do décimo segundo buraco [cuja haste, ou ‘pino’, como as travas tradicionais, ainda era, naquela época, composta de metal condutor] na mão esfumaçada.), e aqui a logística de sua entrada ou ‘lógica’ da ‘coincidência’ que o trouxe, seco e, por assim dizer, ‘de olhos abertos’ (já que Jack Vivien tinha olhos bem abertos ou ‘expressivos’ num rosto marcadamente grande, largo, ainda que algo neutro ou imóvel ou ‘inexpressivo’ [à exceção dos olhos animados, ‘pensativos’], além de uma barba pontiaguda, escura e no estilo ‘Van Dyke’ que servia para compensar ou desenfatizar os elementos algo incomuns do tamanho e da posição de sua boca), à nossa mesa no ‘Buraco’ nesse exato momento é algo obscura e, em retrospecto, artificial ou, por assim dizer, ‘suspeita’. É, por exemplo, improvável que Jack Vivien e o padrasto de Hope se conhecessem, já que não só ‘o Pai’ não era membro do Clube Raritan e tinha jogado como ‘Convidado’ só uma ou duas vezes antes desse momento, mas na realidade Jack (ou, mais formalmente, ‘Chester’) Vivien trabalhava como um executivo de Assistência ao Empregado de alto escalão na minha própria empresa (cujas instalações físicas, ou, ‘Centro nervoso’ ficavam em Elizabeth), empresa essa que ‘o Pai’ tinha feito questão, várias vezes, de insinuar que era ou caracterizar como sendo tão efêmera ou desimportante para a indústria de seguridade da região a ponto de ele jamais ter encontrado ou ‘ouvido sequer uma palavra sobre’ ela durante toda sua carreia na ‘Rocha’. Nem o padrasto de Hope parecia falar, olhar ou de qualquer maneira dar pela presença de Jack Vivien (que, graças ao seu papel na recente tentativa de resolução da questão do ‘ronco’, eu tinha passado a conhecer bastante bem) no que ele conseguiu finalmente acender a coisa e se recostou num leve ângulo de fumante em sua cadeira ‘de capitão’, fumando devagar e junto com Jack Vivien (cuja barba balbo ou ‘Van Dyke’ circumoral tinha, é preciso admitir, uma aparência franca e absurdamente ‘merkinesca’ ou pudenda, estando eu mesmo longe de ser a única pessoa em Sistemas a falar disso) me avaliando enquanto eu cobria primeiro um olho depois o outro (um conhecido ‘remédio caseiro’ para ilusões de ótica comuns). Era claramente nítido que ‘o Pai’ não ‘aprovava’ ou não gostava do que estava vendo: um, por assim dizer, genro ‘de segunda’ com um handicap e um passado medíocres somados a uma carreira trivial ou indistinta, alguém cuja vida pessoal estava em frangalhos e parecia estar potencialmente ‘acabado’ por causa de um conflito tão trivial e absurdo assim com uma esposa que estava, ela mesma, nitidamente apenas sofrendo da síndrome do ‘ninho vazio’, de sintomas precoces de menopausa ou meros incubi ou pesadelos (mais clinicamente conhecidos como ‘Terror es noturnos’), e mesmo assim não conseguia ser firme, persuasivo ou ‘homem’ o bastante para convencê-la de que eram essas causas naturais e de minimis que estavam no centro daquele suposto impasse, e que agora parecia muito obviamente estar tentando criar coragem ou ‘audácia’ para pedir que o próprio ‘Pai’ usasse sua influência ou autoridade paterna sobre Hope (malgrado o fato de que ele era, é claro, quando conveniente, meramente ou ‘só’ o padrasto, e nos seus olhos azuis claros havia o que às vezes parecia ou aparentava ser o terrível conhecimento padrástico do que nossa Audrey poderia ser para mim, talvez do que Hope — assim como Vivian [do que ela declarou ‘histericamente’ ter sido ajudada mais tarde a ‘Recuperar’ memórias inconscientes] — já havia feito ou sido para ele mesmo; e não era assim tão difícil conceber sem maiores problemas uma imagem ou visão ou ‘quadro’ aterrorizante de baixo ângulo do seu rosto debruçado logo acima, inchado e fazendo força, uma mão direita sardenta abafando com força a boca aberta de Hope ou Vivian [sendo as duas quase ‘iguaizinhas’ em fotos de infância] embaixo dele, e seu peso esmagador completa e terrivelmente adulto) para interceder no conflito, embora não fosse o lugar do velho nem sua menor intenção fazer uma coisa dessas, como qualquer um com algum discernimento ou ‘olhos para ver’ deveria ser capaz de ver.
Mais especificamente, foi ao cobiçado e espaçoso escritório de Chester A. (ou, ‘Jack’) Vivien — idade: ‘Cinquenta e tantos’, Handicap: ‘11’, estado civil: ‘Desconhecido’, e Diretor do Programa de Assistência ao Empregado do escritório de Elizabeth da Advanced Data Capture (o nome legal de nossa empresa) — que eu enfim fui ‘de chapéu na mão’ para confidenciar todo aquele impasse conjugal absurdo, aparentemente cotidiano ou banal do ‘ronco’, e seu impacto cada vez maior no meu casamento, na minha saúde e na minha capacidade de operar de maneira produtiva no meu departamento dentro de Sistemas. Isso foi em março passado. Embora seu curriculum vitae incluísse uma formação ‘avançada’ ou de pós-graduação no campo de psicologia industrial na Universidade de Cornell (que fica no norte ou no ‘up-State’ do estado de Nova York), Jack Vivien não trabalhava simplesmente no atendimento ou na ‘linha de frente’ do programa (ou como normalmente se chama) ‘P.A.E.’ da Advanced Data Capture, mas na verdade tinha sido deliberadamente ‘roubado’ da sede de Brunswick da Weyerhauser Paper, Inc. muitos anos antes a fim de especificamente gerenciar e supervisionar todo o programa ‘P.A.E.’, e agora também trabalhava como ‘Representante administrativo’ no programa de plano de saúde empresarial da seguradora da empresa, o que evidentemente exigia uma expertise de gerenciamento e contabilidade considerável, também. Jack Vivien e eu sempre ‘nos demos’ bem e tivemos estima um pelo outro. Nós muitas vezes (quando seu problema crônico na lombar permitia) íamos no mesmo vôo para os campeonatos da empresa durante os meses quentes do verão, e às vezes desfrutávamos de uma conversa agradável no carrinho nos buracos de Par 4 e\ou 5 enquanto esperávamos os outros membros do nosso quarteto localizarem uma bola perdida ou ‘embocarem’ no green de cada buraco. Mais importante, foi o Jack Vivien que, no fim de março, tinha posteriormente sugerido ou ‘Joga[do] [a] ideia [da]’ Clínica do Sono supostamente muito respeitada Edmund R. e Meredith R. Darling Memorial, que, disse ele, era filiada ao ou abrigada no hospital de clínicas afiliado à Universidade de Rutgers no ‘in-State’ de Brunswick, como opção possível. Também foi o Jack — e não qualquer um dos terapeutas profissionais supostamente ‘experts’ de casais que eu tinha me esforçado muito para ‘ir ver’ ou me consultar, desesperado, alguns meses antes — que causou uma ‘boa’ impressão quase imediata por rapidamente ‘[ir] direto ao assunto’ e perguntar — de certa forma ‘jogando verde’ ou ‘retoricamente’, mas sem superioridade ou uma sensação de apequenamento — se eu, no final das contas, preferiria sair por cima ou ‘vencer’ no conflito e provar que era ‘inocente’ ou estava ‘certo’, por um lado, ou se em vez disso preferiria ver meu casamento com Hope voltar aos eixos e mais uma vez sentir prazer na companhia e nos afetos um do outro e conseguir novamente dormir direto à noite para poder operar efetivamente e me sentir como ‘[eu] mesmo de novo’.
A proposta específica, a respeito da qual Hope concordou em pelo menos ‘[me] dar ouvidos’ numa manhã de nuvens baixas e uma leve neblina que faziam a luz da ‘bay window’ pequena e decorativa ao lado do nosso balcão de café da manhã parecer desprovida de sombra e irreal e pareciam exagerar a exaustão do nosso rosto, era a seguinte: que se Hope consentisse em visitar a Clínica do Sono Edmund R. e Meredith R. Darling comigo e em nos colocar nas mãos experientes dos pesquisadores de Sono treinados e respeitados da Clínica, então, se os resultados do estudo da Clínica do Sono dos nossos padrões de sono servissem, de qualquer modo, forma ou maneira substancial para confirmar suas percepções e crenças na disputa quanto ao meu ‘ronco’, então eu voltaria imediatamente para o antigo agapemone ou ‘quarto de hóspedes’ da nossa Audrey no fim do corredor e consentiria em seguir as recomendações da equipe médica para tratar meu então supostamente legítimo ‘ronco’. (É verdade, quando criança, que eu nitidamente ‘chupei’ ou mamei meu próprio dedão enquanto dormia por um período de tempo tão extenso durante minha infância que o pediatra da família em Wilkes Barre tinha por fim instruído meus pais a cobrir ou pintar a unha do meu dedão com um verniz farmacêutico de gosto aversivo ou, por assim dizer, um ‘esmalte’ de unhas toda noite antes de me recolher — pelo menos, foi isso que meu pai declarou se lembrar quanto a qualquer coisa incomum ou fora do normal nos meus hábitos de sono durante a infância. [A equipe da Clínica Darling pediu que Hope e eu preenchêssemos relatórios preliminares ou ‘de internamento’ exaustivos sobre nossos padrões de sono presentes e passados, incluindo dados o mais remotos possíveis, incluindo, se possível, a infância.])
No seu próprio tempo ‘pessoal’, durante várias consultas e diálogos no seu escritório confortavelmente mobiliado no programa ‘P.A.E’, Jack Vivien, malgrado sua ponderosa carga de trabalho, me ajudou a me preparar com cuidado para a apresentação dessa proposta ‘desesperada’, durante a qual eu me preocupei em manter minha expressão facial e tom vocal não-acusatórios e neutros exceto por um certo nível de exaustão indisfarçada (a noite anterior tinha sido particularmente difícil ou ‘ruim’, com diversos despertares e acusações). A sugestão da exaustão desesperada ou ‘desistência’ na forma com que eu a apresentei no balcão de café da manhã, que, sem dúvida (como Jack Vivien previu), tornou a proposta mais impactante, era, em muitos aspectos, sincera ou ‘de coração’, ainda que não, obviamente, de uma maneira que Hope (que, também, parecia ter envelhecido vários anos ao longo do inverno passado assim como eu [ainda que eu jamais fosse dar voz a essa observação em voz alta — seja lá o que pense ‘o Pai’ sobre nosso casamento, eu conheço o suficiente a dinâmica de um casamento sólido para discernir a diferença entre honestidade e mera crueldade, e que esse tato e circunspecção têm um papel tão grande numa relação íntima quanto a franqueza e o ‘abrir o coração’, se não mais], e que reclamava com frequência de que a falta crônica de sono [embora ela muitas vezes estivesse dormindo; o que ela estava, na verdade, de fato era sentindo os efeitos e reclamando de sonhos traumáticos ou ‘Terrores noturnos’, ainda que eu, é claro, mais uma vez tenha ficado quieto em relação a essas questões] gerava um ‘som’ incômodo [ou, melhor, uma leve alucinação auditiva — eu literalmente mordi a língua para me conter quando ela falou desse putativo ‘som’] que imitava o tom de um ‘diapasão’ ou de um sino bem dobrado) parecia acreditar, seu rosto, acima do centro de mesa, grapefruit e torradas na mesa, flertando às vezes entre abstração vorticoide e pulsos de cores víridas mas conseguindo manter ou ‘se ater a’ sua integridade ou coesão visual ou ótica na luz cinza e esgotada da manhã de uma maneira que parecia quase teimosa. Miúda e de traços pronunciados, com uma tez amorenada ou bronzeada e cabelo com luzes num penteado ‘Bouffante’ que pairava impávido e imutável sobre as marés da moda de coiffure, o caráter forte de Hope e sua recusa de ser ninguém além de ‘quem’ ou ‘o que’ ela era tinha sido uma das atrações originais entre ela e eu; e a essa altura, mesmo durante a minha apresentação exausta do ‘último recurso’ da Clínica do Sono Edmund R. e Meredith R. Darling, eu consigo mesmo agora lembrar de me lembrar que nunca tinha me esquecido disso, ou deixado de me sentir tocado por seu ‘fogo interior’, ou deixado de (à minha ‘maneira’) lhe dedicar ‘amor’ e desejo apesar do fato de que, mesmo antes da dissolução enervante do conflito atual, os anos recentes não tivessem sido, como se diz por aí, ‘bondosos’ com os charmes ginécicos ou femininos de Hope, embora, no caso dela, a rapina do tempo não tivesse resultado nos efeitos de dilatação, flacidez, espessamento ou inchaço do processo de envelhecimento em ambas suas meias-irmãs e (em um grau algo menor) em mim. Antes voluptuosa a ponto de ser quase ‘rubenesca’, o tipo de envelhecimento ou senescência de Hope se estabeleceu primariamente como algo que agora consiste em ‘murchar’ ou dessecar, com sua pele enrijecendo e ganhando em alguns pontos uma aparência de couro, com seu bronzeado escuro já permanente e os dentes, tendões do pescoço e as juntas das extremidades parecendo protuberar de uma forma que nunca tinham feito antes. Em resumo, seu semblante geral adotou um aspecto lupino ou predatório, e o que uma vez foi o famoso ‘brilho travesso’ de seu olhar tornou-se mera avidez. (Nada disso é, claro, de nenhuma forma surpreendente ou ‘anormal’ — o ar e o tempo simplesmente fizeram com a minha esposa o que também ‘fazem’ com pão e roupas no varal. De fato, nós todos temos que fazer as pazes com aquilo que decorre da nossa própria expectativa de vida, por assim dizer, da qual o ‘Ninho vazio’ é um marco tão vívido ao longo de cujo caminho.) A realidade natural mas mesmo assim terrível — ainda que não dita em qualquer união viável, ao longo do tempo — é que, a essa altura do nosso casamento, Hope já era de facto ou praticamente dessexuada, uma, como se diz por aí videira ou flor que feneceu, e isso de alguma maneira pior ainda ou ‘ainda mais’ apesar de toda sua escrupulosa devoção a autocuidados e desiderata joviais, assim como tantas outras esposas e divorciadas de meia idade dos seus círculos de amigas inchadas e dessecantes e clubes de leitura e horticultura que normalmente se congregam ao redor da piscina do Clube Raritan durante a estação de verão são obcecadas, também: as aulas de spinning e dietas calóricas, emolientes e tonificantes, ioga, suplementos, bronzeamento ou (ainda que raramente mencionadas) operações ou ‘intervenções’ cirúrgicas — todo esse deliberado agarrar-se à mesma vivacidade núbil ou ‘virgo intacta’ de que suas próprias filhas sem saber servem de escárnio quando posteriormente florescem. (Na verdade, malgrado sua verve e ‘esprit fort’ naturais, era muitas vezes fácil demais perceber a dor nos olhos de Hope e ver sua boca frisar numa ‘aflição’ enquanto observava ou estava dentro da alçada do recente círculo de amigas cada vez mais maduro e gracioso da nossa Audrey, uma dor senescente que então com tanta facilidade transfere-se ou ‘se projeta’ em mim como raiva apenas por ter olhos para ver e com os quais ser naturalmente afetado.) Seria forçar a barra, na verdade, tratar como coincidência que todas essas meninas e filhas desabrochantes tenham sido, quase sem exceção, todas enviadas a universidades ‘fora do estado’, já que a cada ano que passava a mera visão física delas se tornava a refutação viva de suas mães.
As ‘camas’ para os pacientes do sono e os dados obtidos de seus casos na Clínica do Sono Darling eram diretamente coladas umas nas outras, mas eram também singularmente estreitas, e dotadas de colchões finos e extremamente firmes e reforçados, além de apenas um lençol e uma manta sintética de ‘gramatura média’ apesar do frio estéril da Câmara de sono. O regime diagnóstico — cujo cobrimento e ‘autorização’ demorou longe de pouco tempo para negociar com nosso plano — consistia em Hope e eu viajarmos por quase 150 quilômetros (comigo, como sempre, dirigindo enquanto Hope tirava um cochilo com seu travesseiro de viagem contra a janela do passageiro), pela ‘I’-95 e as intermunicipais 9 e 18, uma quarta-feira por semana, até o Hospital Rutgers-Brunswick Memorial, e lá fazermos o ‘check-in’ no Departamento de Neurologia\Sonologia no quarto andar da instituição, que continha a Clínica do Sono Edmund R. e Meredith R. Darling Memorial, cuja reputação no ramo era de fato, segundo tanto Jack Vivien quanto outras fontes, ‘de primeira’. O especialista de Sono (ou, ‘sonologista’) encarregado do nosso caso, um sujeito grande, pacato, corpulento e entroncado com um cabelo cor de chumbo raspado e que parecia ter uma quantidade extraordinária de chaves num chaveiro publicitário da ‘Parke Davis, Inc.’ — com uma conduta agradável daquele jeito neutro, contido e meticuloso de legistas e certos tipos de palestrantes horticulturais — também parecia ter o que Hope mais tarde comentou ser nada ou quase nada de um pescoço ou garganta discernível per se, com sua cabeça parecendo estar posta ou, por assim dizer, ‘colocada’ diretamente sobre os ombros, o que eu comentei que poderia ser só uma ilusão ou um efeito causado pelo colarinho alto do ‘jaleco’ branco médico do sonologista, que a maioria dos outros membros da equipe de plantão da Clínica do Sono Darling Memorial estava vestindo, também, com cartões plastificados de identificação ‘fotográfica’ presos por um clip (ou, no jargão ou linguajar mais comum do Depto. de Sistemas da A.D.C., um ‘clip jacaré’) ao bolso do peito. Membros seletos do corpo técnico (ou, da ‘Equipe’) do sonologista conduziram nossa ‘Entrevista de internamento’ formal, com o próprio doutor agindo então como guia ou cicerone para brevemente ambientar Hope e eu nas instalações da Clínica do Sono Darling, que parecia ser composta por quatro ou mais ‘Câmaras de sono’ pequenas e autônomas que eram cercadas de todos os lados por paredes de vidro transparente grosso ou ‘sintético’ acusticamente isoladas, dispositivos sofisticados de gravação de áudio e vídeo, e equipamentos de monitoração neurológica. O consultório do próprio Dr. Messaline adjazia ao ‘Centro nervoso’ ou ‘-de-comando’ localizado no núcleo da Clínica, em que sonologistas, neurologistas, assistentes, técnicos e enfermeiros podiam observar os ocupantes das diferentes Câmaras de sono numa ampla variedade de monitores ‘de Infravermelho’ e equipamentos de medição e exibição de ondas ‘cerebrais’. Todo membro da ‘Equipe’ também usava sapatos brancos e silenciosos, com solas de borracha de látex, e os lençóis insubstanciais na cama de cada câmara eram também ou imaculadamente brancos ou ainda de um tom pastel ou ‘celeste’ (ou, ‘elétrico’) de azul. Além disso, o sistema de iluminação ‘de base halógena’, de sanca ou de canto nos tetos da Clínica do Sono Darling, era branco e completamente desprovido de sombra (o que vale dizer, que ninguém nas instalações parecia projetar nenhuma sombra, o que, somado ao silêncio funéreo, Hope achou, disse ela, dava um aspecto algo ‘de sonho’ ou onírico para a atmosfera do lugar) e fazia todo mundo parecer pálido ou doente, além do fato de que era muito gelado na Câmara de sono. O sonologista explicou que temperaturas relativamente frias favoreciam tanto o sono humano quanto as complexas medições de atividade de ondas cerebrais que os equipamentos sofisticados da Clínica eram projetados para monitorar, explicando que os diferentes tipos e níveis de ondas ‘cerebrais’ (ou, de ‘E.E.G.’) correspondiam a diversos níveis diferentes únicos e distintos ou ‘estágios’ de vigília e sono, incluindo o estágio popularmente conhecido como ‘R.E.M.’ ou ‘-paradoxal’ em que os músculos voluntários ficavam paralisados e ocorriam os sonhos. Cada uma da maioria das suas muitas chaves tinha a ‘cabeça’ encapada por uma capa de borracha ou plástico, que, eu hipotetizei, diminuía o fator geral de ruído do imenso chaveiro quando o sonologista caminhava ou quando ficava parado segurando as chaves na palma da mão que se movia levemente de uma maneira que sugeria volume ou a avaliação do peso enquanto ele falava, o que era nitidamente seu principal reflexo ‘nervoso’ ou inconsciente. (Mais tarde, no princípio da rota inicial de volta para casa [antes de começar, como era seu hábito comum, a cochilar ou ‘pescar’ contra sua janela], Hope aventou que parecia haver algo de reconfortante e digno de confiança ou [como Hope mesma disse] ‘substancial’ num sujeito com tantas chaves assim [já eu, de minha parte, guardei para mim que a imagem que eu mesmo associava às chaves era a de um porteiro].)
Como combinado, Hope e eu tínhamos que comparecer à Clínica do Sono uma vez por semana, às quartas, por um total de quatro a seis semanas, passando a noite na Câmara de sono sob observação atenta. Muito do processo de coleta de dados de internamento dizia respeito às rotinas noturnas ou ‘rituais’ meus e de Hope em torno do ato de nos recolhermos e nos preparamos para dormir (já que estes ‘rituais’ são tanto comuns quanto singulares ou distintivos da maioria dos casais, o especialista do sono explicou), para que essa logística e essas práticas pudessem ser ‘re-criadas’ — com a óbvia exceção de quaisquer intimidades físicas ou rotinas sexuais, inseriu o sonologista, clinicamente não demonstrando qualquer constrangimento ou ‘timidez’ perceptível enquanto Hope evitava os meus olhos — o mais de perto possível nesses ‘pernoites’, enquanto nos preparávamos para dormir sob observação. Em vestiários separados, primeiro nós vestimos camisolas hospitalares verdes claras e chinelos descartáveis, e então prosseguimos a dois para nossas Câmaras de sono, com Hope usando uma mão para agarrar a longa e vertical ‘fenda’ ou incisão ou ‘fissura’ na parte de trás de sua camisola e não deixar suas nádegas aparecerem. Nem as camisolas nem a iluminação de alta intensidade eram o que alguém poderia dizer que ‘favorecia’ ou ‘tinha pudor’ — e Hope, como mulher, mais tarde protestou ter-se sentido algo degradada ou ‘violada’ tendo que dormir sob colchas finas com pessoas sem nome observando-a através de uma vidraça. (Comentários ou reclamações frequentes como essa eram ‘iscas’ argumentativas que eu me recusava a responder ou abordar nas longas voltas para casa tão cedo na manhã seguinte, quando eu fazia a barba com pressa, trocava de roupa e me preparava para a já torturante ida para Elizabeth durante a ‘hora de pico’ para um dia cheio no trabalho. Um hábito frequente de Hope era às vezes parecer concordar com ou aquiescer a uma proposta e esperar para só dar voz a suas objeções quando o procedimento ‘concordado’ estivesse em curso, quando então o que teriam sido ressalvas e reservas razoáveis agora surgiam como mera implicância sem sentido. Eu, no entanto, a essa altura do nosso conflito, tinha aprendido a suprimir a frustração, a indignação ou até deixado de registrar que o momento para tais reclamações serem produtivas já tinha passado havia muito tempo, já que registrar isso inevitavelmente leva à espécie de ‘queda de braço’ conjugal de que ninguém sai vencedor. Também poderia-se dizer, como eu tinha feito em conversas com Chester [ou (“Pelo amor de Deus”), ‘Jack’] Vivien, que a natureza de cada um de nós era tal que o conflito ou as discussões eram coisas mais difíceis ou ‘duras’ para mim do que para Hope, Naomi ou Audrey, que todas elas pareciam ter mais facilidade para ‘deixar para lá’ a adrenalina e o transtorno de uma conversa pesada.) Nos instruíram ou incentivaram a levar nossos produtos de cuidados ou higiene pessoal de casa, e para usar (primeiro a Hope, depois eu, exatamente como fazemos em casa) um toalete particular e passar pelos nossos ‘rituais’ de higiene pessoal ao nos preparamos para dormir (com Hope, entretanto, pulando o seu emoliente facial, rede de cabelo, hidratante e as luvas devido aos observadores e à panóplia de câmeras de ‘baixa luminosidade’, apesar das instruções para imitarmos, tanto quanto possível, nossas rotinas de casa). Assistentes ou enfermeiros em seguida fixavam sensores ou ‘eletrodos’ brancos e circulares de ‘E.E.G.’ — cujo gel condutor era extremamente gelado e tinha uma sensação ‘esquisita’, Hope comentou — na nossa têmpora, testa, peitoral e braços, quando então nos estendíamos com cuidado ou ‘delicadeza’ longitudinalmente nas camas paralelas da Câmara de sono, tomando cuidado para evitar emaranhar os novelos complexos de cabos que saíam dos eletrodos para um monitor de ‘transmissão’ ou de ‘indução’ guardado num chassi cinza que zumbia em volume baixo no canto nordeste da Câmara de sono. Os técnicos da 'Equipe’ — alguns dos quais, veio à tona, eram estudantes de medicina matriculados na vizinha Universidade de Rutgers — usavam os sapatos costumeiros brancos e silenciosos e ‘jalecos’ desabotoados por cima de roupas casuais ou ‘paisanas’. De maneira algo surpreendente, revelou-se que três das paredes aparentemente ‘de vidro’ da nossa Câmara de sono, quando vistas de dentro, na realidade, eram espelhadas, de modo que nós não conseguíamos, de dentro, ver nenhum técnico ou equipamento de gravação, enquanto o interior da quarta ou ‘última’ parede era composto por uma sofisticada tela ou ‘projeção’ de vídeo do chão ao teto de diversos panoramas, cenas ou quadros tipicamente relaxantes ou soporíficos: campos de trigo ondulante, riachos murmurantes, abetos brancos invernais cobertos por neve recente, pequenos animais silvestres roendo a decídua matéria caída, um pôr do sol na praia e assim por diante nessa veia. Revelou-se também que os colchões e travesseiros solitários das camas de solteiro estavam cobertos por um composto plástico que farfalhava de maneira ruidosa com qualquer movimento, o que eu pessoalmente achei irritante e algo anti-higiênico. As camas também continham grades de metal ao longo das laterais que pareciam um tanto mais altas e mais sólidas do que as grades ou laterais que se está acostumado a associar a cama ‘hospitalar’ mais típica. O sonologista que cuidaria do nosso caso — Dr. Messaline, com seu supracitado semblante pacato, seu corte de cabelo curto e ‘grisalho’ e sua cabeça séssil — explicou que as disfunções particulares de sono de alguns pacientes envolviam sonambulismo ou certos movimentos frenéticos ou até potencialmente violentos enquanto dormiam, e que o uso das grades de meio metro de aço escovado afixadas às laterais das camas das câmaras tinha sido determinado pela seguradora da Clínica do Sono.
Além disso — já que uma média de 20 a 30 minutos de leitura antes que Hope como de costume apagasse a luz da arandela elevada sobre sua cama em casa era uma parte muito bem estabelecida da nossa rotina conjugal de preparações para nos recolhermos — Hope e eu passamos, por três consecutivas quartas-feiras seguidas, 20 minutos ou mais sentados sem jeito nas camas estreitas ou (por causa das altas grades laterais) que lembravam ‘berços’ tendo apenas um travesseiro hospitalar barulhento como apoio para as costas, fazendo de conta que ‘líamos’ nas nossas respectivas camas na Câmara de sono como fazíamos em casa, cada um segurando os nossos ‘livre de chevets’ do momento, que Hope tinha trazido de casa na sua bolsa do clube do livro, mas que eram aqui, nesse cenário artificial, meros ‘adereços de cena’, e eu fiz pouco mais que folhear desatento as folhas de A Serpente Sobre a Rocha de Kurt Eichenwald, já que a ideia de relaxar ou ‘sossegar’ coberto por eletrodos de E.E.G. e cabos que se projetavam e estando completamente refletido em três das paredes daquele pequeno recinto era algo ridícula ou absurda; mas eu estava — [no que permaneciam sendo ‘consultas’ próximas senão sigilosas com Jack Vivien] — determinado agora a levar até o fim o experimento em completa adimplência técnica, e a não reclamar, resmungar ou dar à Hope qualquer motivo para suspeitar ou achar que eu não estava completamente preparado para levar até o fim a minha parte do ‘acordo’. (Às vezes, contudo, é preciso admitir, por exemplo quando estava dirigindo — em particular durante minha ida diária ao trabalho pela Garden State Parkway, ou rumo oeste pela 195, pelo pedágio de ‘Jersey’, e pela ‘I’-276 contornando a fronteira norte da região de Filadélfia até o campus fora do estado da Bryn Mawr, para consequentemente estacionar o veículo na Montgomery Avenue e observar no alto as luzes do quarto da nossa Audrey no dormitório de calouros [ou, mais formalmente, ‘Ardmore House’, em homenagem a um benfeitor da universidade do século dezenove, e projetado ou ‘concebido’ no estilo de torre íngreme, cinza, vertiginosa, ameiada ou ‘Martello’ de uma fortaleza medieval] no canto nordeste do quarto andar da torre ou do ‘bastião’ acenderem e apagarem enquanto ela andava pelo quarto com sua colega ou se preparava para dormir ou tirar a roupa — eu me vejo tão angustiado, melancólico ou consumido por uma aflição ou um ‘terror’ violento sem qualquer razão aparente ou perceptível [a sensação, que não tem relação com a privação de sono cujos sintomas eu a essa altura já conhecia muito bem, parece vir ‘do nada’ e surgir, por assim dizer, de algum ‘vácuo’ ou ‘buraco’ psíquico profundo e inconsciente] que eu considero a ideia de ‘atravessar’ a divisão das pistas intencionalmente e bater de frente com os carros na contramão. Esse medo, em média, dura só um momento ou dois.)
Apesar, no entanto, do meu nervosismo ou empolgação com a perspectiva de ver objetivamente verificado o meu ‘lado’ na disputa, meu costume ou hábito antigo de deitar supino de costas com os cotovelos dobrados e as mãos uma em cima da outra sobre o peito fez com que relaxar à medida em que os panoramas tranquilos e as luzes agressivas da Câmara de sono iam se apagando de algum ponto fora da câmara fosse algo mais simples para mim do que para Hope, cujo hábito (ao contrário da nossa Audrey, que tende a se enrolar de uma maneira algo ‘fetal’ virada para a direita, e muitas vezes parece despertar na mesma posição exata em que originalmente perdeu a consciência) é dormir procumbente ou ‘de bruços’, com os braços estirados e a cabeça rotacionada ou, por assim dizer, quase ‘torcida’ com violência para o lado, como se algum peso enorme e indesejado estivesse pressionando seu corpo vindo de trás e de cima (uma posição que a maioria dos adultos acharia perceptivelmente desconfortável), e ela reclamou para a 'Equipe’ que seria quase impossível para ela cair no sono de verdade estando supina e virada, por assim dizer, ‘para cima’ do jeito que os eletrodos e sensores de E.E.G. pareciam ditar. No entanto, ela acabou (como sempre) caindo imediatamente no sono; e, no nosso segundo ‘pernoite’ de quarta-feira na Câmara de sono, nem ela nem o ‘Dr. Messaline’ (o cognome ou sobrenome do especialista do sono) nunca mais abordaram seus protestos veementes da semana anterior.
Como mencionado anteriormente, nosso protocolo de diagnóstico ditava que fôssemos até e ‘nos internássemos’ para dormir juntos na Clínica do Sono Darling Memorial uma vez por semana por um possível período de até seis semanas, com os respectivos padrões de ondas do meu cérebro e do de Hope sendo monitorados e quaisquer movimentos, sons ou despertares indevidos sendo gravados em vídeos Infra-vermelhos ou ‘de baixa luminosidade’ de ponta (Hope muitas vezes fez questão de verificar a qualidade do áudio, também, enquanto eu olhava com neutralidade para os quadros relaxantes da tela da quarta parede), que seriam analisados pelo nosso sonologista e viriam a formar a base de um diagnóstico médico e um tratamento recomendado. Eu mesmo, é claro, como mencionado anteriormente, estava antecipando com ansiedade a verificação empírica nas gravações do fato de que, quando Hope gritava de irritação para me acusar mais uma vez de estar ‘roncando’, minhas ondas de E.E.G. indicariam que, não só eu mesmo não estava de fato dormindo, mas que, pelo contrário, a ‘leitura’ das ondas cerebrais da própria Hope provaria conclusivamente que era, na realidade, ela própria quem naquele momento estava mesmo dormindo e tinha sonhado, alucinado ou mesmo ‘fantasiado’ com os sons incômodos que ela de maneira tão firme acreditava estarem ‘roubando’ seus sono, saúde, jovialidade e a capacidade de confiar que ela e eu estávamos ainda ‘na mesma onda’ o suficiente para fazer do nosso casamento qualquer coisa além de um simulacro sem sexo, ainda mais agora que Audrey não estava mais em casa para me ‘obcecar’ ou servir como o ‘centro do [m]eu afeto’ (isso entre as acusações que Hope havia imposto na violência rancorosa das piores discussões matutinas em relação ao conflito e a toda a viabilidade do nosso casamento e da nossa putativa ‘família’).
Como veio a se verificar, no entanto, bastou o mínimo (ou, ‘Piso’) autorizado pela seguradora de três semanas para que um assistente ou factótum administrativo da Clínica Darling me mandasse uma mensagem no meu local de trabalho no meu pequeno escritório no Depto. de Sistemas (ao que parece ele tinha ligado no nosso fixo, também, mas Hope estava ou [como era cada vez mais frequentemente o caso] ‘na rua’ ou dormindo [ela tirava cochilos abertamente, apesar das claras instruções do material informativo que recebemos logo de saída na Clínica contra cochilos diurnos para pacientes com qualquer espécie de problema relacionado ao sono]) para me informar que o corpo administrativo da Clínica do Sono Darling Memorial, em conjunto com o Dr. Messaline e o resto do 'Equipe’ encarregada do nosso caso, agora achava que já tinha volume suficiente de dados para oferecer um diagnóstico consistente e recomendar quaisquer ‘tratamentos ou procedimentos [que considerasse] indicados’. Esse diagnóstico oficial seria oferecido na semana seguinte (em, por razões de planejamento, uma manhã de segunda) numa pequena sala de reuniões no corredor central ou ala ‘principal’ da planta ou ‘desenho’ incomum, esteliforme ou em formato de ‘diamante’ do quarto andar do hospital, uma sala pequena e de luz forte com um ‘Goya’ conhecidíssimo entre as imagens impressionistas mais genéricas ou comerciais que estavam na parede, e uma mesa redonda de bordo ou laminada com um conjunto de cadeiras ‘de capitão’ que tinham assentos e braços estofados com um tecido de um vermelho escuro e algo hiper-saturado. Como boa parte do resto da Clínica Darling Memorial, essa sala também era especialmente fria (mais ainda porque tínhamos vindo, enfrentando o horário de pico do trânsito da manhã, sob uma tempestade feia, com ventos fortes e precipitação pesada, para só então descobrir a entrada de automóveis do estacionamento coberto do Hospital Rutgers-Brunswick ostentando uma placa que dizia, ‘LOTADO’. Nós dois chegamos com nossos sobretudos, por consequência, encharcados e pingando no chão da sala de reuniões, além do fato de que Hope — cujo medo mórbido e antigo de tempestades ‘violentas’ não a deixou dormir nem mesmo tirar um cochilo durante todo o tenso trajeto — estava, por consequência, com um humor particularmente ruim e inflexível), e estava equipada ou munida de um aparelho ou dispositivo iluminado montado na parede para leitura de imagens de Raio X e de ‘ressonância magnética’, além de um monitor de vídeo e\ou áudio enorme num carrinho ou ‘suporte’ com rodas de alumínio reforçado ou de ferro, pintado de um marrom de escritório e que tinha no fim de cada perna um pequeno ‘rolamento’ ou roda para mobilidade. Todo mundo na sala de reuniões parecia ter copos descartáveis de isopor de café ou chá que ficavam na mesa nos nossos respectivos lugares, e soltavam vapor. Por eu não ter, devido à angústia ou ‘nervosismo’, conseguido dormir nada ou quase nada na noite anterior, tanto meus óculos quanto meu colete pareciam mais uma vez muito apertados, e todos os sons pareciam amplificados ou algo ‘ramificados’, mas com a sala entrando e saindo só levemente de foco visual e matiz exagerados. Cada vez que eu bocejava, no entanto, produzia uma pequena explosão ou uma flor pontiaguda de dor no meu ouvido. Estando a barra da minha calça e as ligas das minhas meias molhadas, também, e o penteado alto de Hope algo adernado para a direita, e seu rosto sem sombras lembrando algo que o próprio De Kooning podia ter arrancado do cavalete e descartado em medias res, também. À mesa também, um pequeno homem moreno, desconhecido, de olhos ‘esbugalhados’ e hispânico com lesões cloasmáticas ou pré-cancerosas no dorso das mãos, com um ‘traje de negócios’ ou terno de uma lã cinza escura de qualidade, e cujo nó da gravata tinha o tamanho da cabeça de uma criança. O som de uma mão martelando. O som de um campo de treino. O som de uma pistola de pregos e um compressor de ar portátil. De uma ou mais serras circulares ou ‘elétricas’. O som de um Saab com leve turbo-lag. O som do impacto da chuva e de limpadores de para-brisa na velocidade alta. O som de um liquidificador batendo drinques congelados, de moedas numa máquina de venda automática no salão dos Gerentes ‘Executivos’ ou ‘Seniores’ da Prudential. De um longo putt sendo ‘feito’ ou ‘embocado’ no buraco raso. O som de alguém se debatendo e de respiração abafada e dos grunhidos e a figura de um homem ou ‘Pai’ sussurrando ou mandando alguém ficar quieto. Algum tipo de construção, manutenção ou atividade relacionada estava transcorrendo a alguma distância dali no corredor ou ala central, nitidamente na direção das câmaras e do centro ‘nervoso’ de observação da Clínica do Sono Darling propriamente dita, e os sons enfáticos de um martelo começavam e paravam sem ritmo discernível. Eu sofri ou tive um rápido relance terrível ou uma visão interior ‘estroboscópica’ de uma figura feminina de bruços embrulhada num plástico transparente industrial, que sumiu quase imediatamente. À mesa com Hope e eu estavam sentados ou ‘dispostos’ o sonologista com seu indefectível grupo de chaves e sua batina ou ‘jaleco’ branco, dois técnicos ou auxiliares algo mais jovens que também eram membros da ‘Equipe do sono’ do nosso caso, e uma figura profissional médica administrativa adornada com elegância, masculina, hispânica ou, talvez, etnicamente cubana, que, nos explicaram, estava presente como representante da ‘inspeção’ ou avaliação periódica, por parte do Hospital Rutgers-Brunswick Memorial, dos procedimentos e atividades diagnósticas da Clínica Darling Memorial. O monitor do carrinho — operado por uma jovem assistente da ‘Equipe do sono’ sem nenhuma aliança visível e um penteado moreno puxado com severidade para trás, que também andava com um amontoado de diversas fitas e arquivos associados ao meu caso e de Hope, um dos quais ela aparentemente ativava por um controle de mão ou ‘remoto’ — agora mostrava meu próprio nome, nascimento, e ‘Número do plano de saúde’ pessoal de oito dígitos (assim como um número da ‘C.S.D.’ [Clínica do Sono Darling] especialmente designado) sob um gabarito de quatro linhas horizontais equidistantes, não dessemelhantes às de uma partitura musical, entre as quais se movia uma linha dentada ou errática de luz branca que representava minhas próprias ondas ‘cerebrais’, que tinham claramente sido gravadas através dos eletrodos de transmissão de E.E.G. durante nossas noites na Câmara do sono. A ‘linha’ branca das ondas era desconcertante, sendo crispada, falha e arrítmica e não regular ou consistente, além de ser acidentada com baixas e picos ou ‘nódulos’ dramáticos sugestivos na sua aparência de um coração arrítmico ou de um gráfico de ‘fluxo monetário’ errático ou financeiramente atribulado. Além disso, não dessemelhante a uma série de mainframes Hewlett-Packard HP9400B dispostos em sequência para processamento de dados co-sequencial (ou, na nomenclatura da A.D.C, ‘Sysplex’), um display digital no canto superior esquerdo do monitor exibia o tempo transcorrido segundo vários gradientes temporais minuciosamente calibrados.
Como toda a ‘Equipe do sono’ sabia pelos nossos dados de internamento, o medo mórbido que minha esposa tinha de sofrer de insônia ou privação do sono era muito antigo. Quando, por exemplo, nossa Audrey ficava, quando criança, doente ou ansiosa por causa de pesadelos ou assombrações, era muitas vezes eu quem ‘ficava’ com ela para que Hope pudesse, como ela dizia, ‘tentar’ dormir.
Enquanto isso, o ‘resultado’ ou ‘diagnóstico’ oferecido pelo especialista do sono foi, numa só palavra, chocante e totalmente inesperado. Em cada uma das cinco ou seis ocasiões em que o equipamento de vídeo especial e de ‘baixa luminosidade’ tinha registrado Hope se sentando de repente e me acusando de estar ‘roncando’, assim como em obviamente ao menos duas dessas ocasiões registradas em que eu tinha audivelmente respondido que não estava nem dormindo ainda e logo não poderia logicamente ser ‘culpado’ da acusação, o especialista do sono — auxiliado na sua apresentação pelo ponteiro de laser da assistente jovialmente séria e pela capacidade de seu controle ‘remoto’ de pausar ou ‘congelar’ o display do monitor para chamar a atenção da mesa para um certo intervalo específico de tempo no E.E.G. — declarou ou afirmou ipse dixit que de fato eu, realmente, estava, clinicamente falando — apesar da minha crença ou percepção de estar em estado de total consciência — ‘tecnicamente adormecido’, com mais frequência no segundo ou terceiro dos quatro bem conhecidos níveis ou ‘estágios’ do sono, que o sonologista mais uma vez delineou ou glosou. Enquanto o resto da mesa e da ‘Equipe do sono’ continuava olhando, o sonologista (que, como sempre, segurava e ‘brincava’ de maneira inconsciente com seu ponderoso chaveiro da Parke-Davis) decretou esse veredito com toda a objetividade clínica da ciência moderna, e se esforçou para esclarecer mais uma vez que ele era empiricamente neutro na discórdia conjugal e não tomava nem um nem outro ‘lado’ nessa discussão. No entanto, eu senti, diante da declaração inicial do putativo ‘diagnóstico’, um espasmo ou ‘onda’ tanto de raiva quanto de descrença, que fez com que um dos meus primeiros pensamentos inconscientes ou ‘reflexos’ fosse de que o Dr. Messaline et alia estavam de fato ‘do lado’ da Hope, e que ela tinha de alguma maneira induzido a Clínica Darling a alterar os dados dos testes para de alguma maneira indicar que eu estava dormindo quando eu sabia muito bem (ou seja, tão bem quanto sabia que estava sentado naquela sala de reuniões, agarrando incrédulo os braços cor de sangue da cadeira) que eu não estava. Enquanto isso, minha atitude física não traía essas suspeitas confessadamente irracionais, mas na verdade apenas choque e surpresa — meu queixo literalmente ‘caiu’, e por um breve intervalo de tempo eu fiquei tão desorientado que eu não lembrei nem tive a ‘presença de espírito’ de perguntar a respeito de quaisquer resultados paralelos indicados pelo estudo e pela parte aural ou de áudio do E.E.G. — ou seja, em outras palavras, se ficou ou não confirmado que o fato de eu estar ‘tecnicamente adormecido’ era ou não acompanhado por um ‘ronco’ audível. (Aqui eu também, deve-se incluir, tive uma ereção ou fiquei ‘duro’ nesse momento [pela primeira vez em vários meses], cujas origens e associações, no meu estado de desorientação, eram totalmente desconhecidas; a causa indireta pode ter sido a descarga repentina de hormônios adrenais ou de estresse causados pelo choque repentino dos resultados.)
Houve, depois desse suposto ‘diagnóstico’, aproximadamente dois a quatro segundos de silêncio coletivo, pontuado pelo ruído de atividades de construção, a chuva batendo contra a janela oeste da sala de reuniões, e um telefone tocando em algum ponto mais distante no setor administrativo da Clínica do Sono Darling Memorial. Minha de outrora ou primeira esposa, Naomi, nunca aceitou o fato de que eu não queria filhos com ela; eu tinha medo de ‘repetir o ciclo’. E também, meu pager estava vibrando. A expressão facial ou o semblante de Hope, ao receber as notícias do especialista do sono, era aquela algo exageradamente ‘neutra’ ou ‘passiva’ que eu conhecia tão bem de outros constrangimentos conjugais, uma afetação que significava que ela estava passando por uma sensação de vingança ou um triunfo amargos, mas estava disfarçando ou escondendo seu prazer para parecer que estava sendo ‘superior’ no conflito, e também para evitar que eu possivelmente a acusasse de um triunfo vingativo, e também para demonstrar uma falta de qualquer supresa e tentar deixar claro que ela ‘nunca’ tinha ‘duvidado nem por um segundo’ que tinha razão na discussão a respeito daquele conflito, e que o sonologista estava agora meramente confirmando o que ela na verdade ‘s[oube] desde sempre’. Apenas um certo brilho ou avidez ligeira nos olhos claros de Hope traía sua surpresa e seu triunfo com a minha descrença atônita diante do aparente diagnóstico médico ou da ‘determinação’ da Equipe do sono. O telefone tocando, que aparentemente ninguém atendia, continuava soando nesse breve intervalo de silêncio antes que a jovem assistente proibitivamente núbil ou ‘messalina’ em sequência ejetasse, inserisse e manualmente ajustasse ou ‘re-calibrasse’ o display do monitor enquanto o diagnóstico do sonologista neutro e fleumático agora mudava seu foco para as ondas ‘cerebrais’ registradas nas medições de E.E.G. da minha esposa, que, no monitor, para os olhos inexperientes ou ‘leigos’ meus e de Hope, pareciam indistintos do meu próprio display, exceto, é claro, pela diferença de que agora eram o nome e o número do plano e o ‘código de paciente’ da Clínica Darling da própria Hope que estavam exibidos sob o gabarito cuja linha crispada e errática agora representava a atividade elétrica do cérebro da Hope durante esse período calibrado de tempo. Estas áreas em particular, o Dr. Messaline declarou entre vários sons repentinos, salientes, gritantes ou ‘uivantes’ de uma serra ou fresa ‘elétrica’ em algum ponto do corredor (havia também o cheiro invasivo de madeira recém cortada, além de plástico industrial, somados ao perfume penetrante do hispânico e da marca de ‘JOY’ que Hope sempre usa), apontando com o ponteiro da assistente salaz picos ou ‘nódulos’ distintivos na linha errática das ondas ‘cerebrais’ de Hope, indicavam — para (como, por assim dizer, ‘vai’, muito obviamente, ‘sem dizer’) nossa ainda maior surpresa — que não só eu como Hope, também, estava ela mesma nitidamente também verificável ou empiricamente dormindo durante os períodos registrados de tempo em que ela supostamente ‘me ouviu roncando’ (enquanto, além disso ou simultaneamente a isso, devido possivelmente ou a uma fadiga extrema ou adrenalina, eu também me via presa ao mesmo tempo de um tableau mnemônico sensório [ou, por assim dizer, um ‘clipe’ interior] radicalmente comprimido ou aparentemente acelerado das minhas lembranças de ensinar Audrey a operar o câmbio manual de cinco marchas do ‘seu’ [ainda que registrado, para fins de seguro, no nome jurídico do Dr. e da Sra. Sipe] novo coupé Mazda num estacionamento em Lower Squankum cheio de uma miríade de linhas anguladas paralelas, Audrey com seu cabelo castanho reluzente desamarrado ou ‘solto’ e mascando algum tipo de chiclete bem azul, a cabine inundada pela luz do sol e o aroma do gel de banho de açafrão que ela ganha todo ano no natal, o som ruidoso de sua respiração e os desenhos que sua perna formava no que ela pisava ou soltava os pedais relevantes, os palavrões sotto voce quando o carro dava trancos, o motor acelerava em falso ou morria com gritinhos delicados e mordidas de lábio e — [“Por favor, para com isso”] — e assim, no breve silêncio ‘atônito’ após o segundo diagnóstico do médico, eu mesmo esqueci de sentir triunfo, ‘vingança’ ou até qualquer confusão diante da aparante ou paradoxal inversão do ‘veredito’ do sono. Eu estava, por assim dizer, ‘afundando’; estava morrendo de saudade da nossa Audrey; eu queria agora ir sozinho e ajudá-la a fazer as malas e abandonar o curso e ser levada de volta para casa [apesar do meu pé estar agora quase adormecido ou ‘dormente’, eu não podia e não iria descruzar as pernas], dirigir em velocidades muito acima do limite legal e invadir o ‘castelo’ ou as ‘secundinas’ ou fortificações da masmorra de exílio do dormitório fora do estado e bater, aniquilar ou tocar a campainha da enorme porta de carvalho no meio da noite ou da madrugada e dizer bem alto, declarar ou gritar em voz alta o que não pode jamais ser dito nem em ideias nem ‘em sonhos’ [ao contrário, vai sem dizer, do ‘Pai’]. Eu estava perto do limite do cansaço, da melancolia, do desgaste e desolação ou ‘solidão’, e minha traseira ou próstata molhada latejava, também, agarrando as laterais dos braços rugosos da cadeira para me manter ereto), com os picos mais pronunciados ou ‘agudos’ do E.E.G., verificavelmente associados a cada intervalo de tempo logo antes do momento em que ela se sentava de repente e gritava, indicando com clareza — ‘perfeitinho’ foi o termo usado pelo especialista do sono em sua admiração profissional pelos distintivos picos ou ‘nódulos’ das ondas ‘Theta’ do E.E.G de Hope — que Hope estava, em cada momento crucial e acusatório, na ‘estágio quatro’, o bem conhecido estágio ‘paradoxal’ do sono associado à paralisia muscular, movimentos rápidos de olhos e sonho onírico. Do interior da área de construção, os rápidos sons de impacto de dois martelos distintos se sobrepuseram ou ‘casaram’ por um breve momento, um deles então cessando e o outro parecendo se tornar mais veemente em compensação. Eu então ou na minha imaginação, ou numa alucinação ou na realidade, eu vi a boca do Dr. ‘Desmondo-Ruiz’ — o administrador ou compère latino de olhos grandes — articular, muito distintivamente, a palavra ‘Su-i-cídio’, sem emitir qualquer som. Hope, enquanto isso, se inclinando um pouco e algo agressivamente sobre as pernas bem cruzadas na sua cadeira, estava pedindo para o especialista do sono, Dr. Messaline, com seu jeito conhecidamente frágil ou afetadamente composto ou passivo, para por favor deixar ‘[ela] ver se entend[eu] bem os fatos’: então a Equipe do sono estava dizendo que era o seu marido Sr. Napier aqui quem estava, a bem da verdade, dormindo e roncando de fato, ou que na realidade era ‘[Hope] que estava dormindo e ‘tirando’ (ou, ‘fantasiando’ ou, ‘inventando’) toda a questão do ronco, por assim dizer, ‘da própria cabeça’? Eu mesmo continuei numa posição ereta (ou, “… calma”) com as pernas bem cruzadas e cobrindo com neutralidade primeiro um olho e depois o outro, enquanto isso.
Nesse momento, o sonologista — conhecendo, como conhecia, apenas os traços mais básicos ou o ‘esqueleto’ da discussão conjugal inédita que a questão do suposto ‘ronco’ que tinha nos trazido a essa Clínica Memorial tinha provocado entre Hope e eu, e nitidamente tomando de forma equivocada meu aspecto sonolento ou doloroso por ambivalência ou por uma passividade ou ‘apatia’ leviana (a atitude de Hope, enquanto isso, tinha se tornado ominosamente rígida ou ‘dura’ diante dessa repentina e aparente ‘volte face’ ou inversão do diagnóstico e a evidente justificação por parte do médico das minhas alegações antigas de que os episódios específicos de ‘ronco’ que tanto a irritavam eram, estritamente falando, de fato um produto ‘irreal’ ou de um sonho ou das ‘associações soltas’ de ‘pesadelos’ noturnos ou oníricos, justamente como eu vinha argumentando repetidas vezes durante aquele conflito traumático e desvitalizante dos meses anteriores de clima frio, com as veias e tendões do seu pescoço dilatando involuntariamente e cada linha, vinco, ruga, estria, prega, lesão, olheira ou ‘defeito’ do seu rosto algo lupino e endurecido saltando à vista como se destacados drasticamente na rigidez muscular de sua expressão; ela pareceu, por um momento, literalmente décadas acima e além de sua idade verdadeira, e eu bem podia imaginar a afronta despercebida ou involuntária que a compleição ‘luminosa’ ou epitelial da nossa Audrey deve ter representado para Hope antes que ela fosse exilada para fora do estado, já que Audrey representava, por assim dizer, um compêndio ambulante de todos os encantos de filha que Hope tanto temia aceitar que agora tinham ficado ‘para trás’. [Veja-se, por exemplo, o tratamento ambulatorial ‘voluntário’ ou ‘não-essencial’ e portanto não coberto pelo plano no começo da primavera passada para remover ou apagar as varizes da parte de cima da nádegas e da parte de trás das coxas, cuja recuperação foi perceptivelmente tão áspera e, francamente, triste ou patética em sua impotente vaidade e, por assim dizer, ‘negação’ do que, na verdade, já tinha deixado de fazer qualquer diferença substancial há muito tempo. (“não comece com isso de novo”)]), agora tocava desatento ou ‘inconsciente’ as ceratoses da testa, e — em ainda outra inversão aparente, confusa ou ‘paradoxal’ no diagnóstico (malgrado seu temperamento fleumático ou sanguíneo, a ‘abordagem’ do sonologista deixava algo a desejar, tanto Hope quanto eu concordamos) — declarou (ou seja, o especialista do sono agora declarou) que, sim, em termos técnicos, as acusações da minha esposa quanto ao ‘ronco’, ainda que baseadas em (nas palavras dele) uma ‘experiência sonhada, interior’ em oposição a ‘dados sensórios externos’, não obstante estavam, num sentido médico ou científico, ‘tecnicamente’ corretas. Segurando o grande conjunto ou ‘molho’ de chaves isoladas agora na mão esquerda, e dirigindo algum tipo de sinal ou ‘deixa’ facial à assistente núbil, o sonologista neutro e objetivo afirmou que a gravação em vídeo de luminosidade ‘baixa’ ou infra-vermelha de dois desses intervalos de estágio ‘quatro’ ou ‘paradoxal’ do sono imediatamente anteriores a Hope me acusar em voz alta de estar ‘roncando’ iriam, disse ele, confirmar que eu mesmo tinha, entre um e outro intervalo, produzido uma respiração ‘ocluída’ ou, de maneira mais formal, ‘nasofaringeal’ normalmente chamada pela massa leiga de ‘ronco’, sendo este um fenômeno ou condição transitória ou recorrente muito comum a pessoas do sexo masculino acima de quarenta anos ou mais, explicou o Dr. Messaline — em particular naqueles cuja postura noturna era, de costume (como a minha), de decúbito dorsal em oposição a ventral, lateral ou ‘fetal’ — e ocorria na maior parte do casos no sono humano durante os chamados estágios mediais ou ‘profundos’ dois ou três do sono. Ao que parece, no entanto, a paralisia de certos grupos de músculos laríngeos no estágio ‘quatro’ ou ‘paradoxal’ fazia com que ‘roncar’ de fato no que ou enquanto se sonhava ativamente durante o sono R.E.M. ou ‘de sonhos vívidos’ fosse fisiologicamente impossível. Toda informação que o especialista do sono nos dava era concisa e tratava diretamente do problema em questão. Minha esposa, enquanto isso, massageava as têmporas de maneira a indicar estresse ou impaciência. O auxiliar algo subordinado ou ‘novato’ da Equipe do sono do sonologista — um jovem (ou, na nomenclatura atual mais popular, um ‘Cara’) que parecia basicamente ter a idade de um universitário e que estava vestindo, por baixo de seu ‘jaleco’ desabotoado e que não era exatamente imaculado ou estéril, uma camis-‘eta’ rosa, ou vermelha ou fúcsia desbotada que tinha na frente um desenho ou caricatura do rosto desorientado ou confuso de uma pessoa anônima mas de alguma maneira ‘incomodamente’ familiar ou famosa, sob a qual, no tecido da vestimenta, aparecia a frase ou legenda, ‘MINHA MULHER DIZ QUE EU SOU INDECIDO, MAS EU NÃO SEI NÃO’, que quase certamente não deveria ser levada a sério ou ‘por seu valor de face’ mas, na verdade, era alguma espécie de tirada ou piada irônica — agora retornou da sua breve saída da sala de reuniões com uma pequena caixa de fitas VHS comuns ou ‘comerciais’, que estavam etiquetadas com caneta hidrográfica preta, marcadas com ‘R.N.’ e ‘H.S.-N.’, além dos respectivos ‘códigos de paciente’ do plano de saúde e da C.D.M. meus e de Hope e das datas das noites de quarta relevantes em que os ‘experimentos’ de sono filmado foram realizados ou conduzidos; e esse jovem e (“doer só um pouquinho”) o sonologista conversaram enquanto consultavam um prontuário médico numa prancheta de aço escovado ou alumínio a respeito de exatamente qual fita ‘carregar’ e\ou ‘avançar’ para obter uma verificação empírica do diagnóstico feito pelo sonologista do conteúdo que no limite era irreal, onírico ou ‘paradoxal’ das acusações de Hope. Hope, a essa altura, mais uma vez se inclinando um pouco para frente e balançando ou ‘sacudindo’ com irritação um sapato de salto alto das pernas cruzadas, supôs ou perguntou se, pela soma total dos dados de diagnóstico da clínica, não seria então possível que ‘ele’ (ou seja, eu) pudesse de alguma maneira estar profundamente adormecido e ‘roncando’ na cama da Câmara de sono e ainda assim simultaneamente sonhando com a exata ‘sensação’ ou ‘experiência’ de estar de alguma maneira, por assim dizer, ainda totalmente ‘acordado’ na cama estreita e firmemente reforçada da Clínica, uma possibilidade que (sugeriu Hope) explicaria o fato de eu sincera ou genuinamente negar estar dormindo sempre que ela enfim ‘não [aguentava] mais’ e gritava para que eu acordasse — ao que, interrompendo com uma resposta algo irritada, eu mesmo destaquei o óbvio ‘buraco’ ou falha lógica no quadro descrito pela teoria de Hope, e pedi que o sonologista estipulasse mais uma vez para, por assim dizer, ‘constar’, que, segundo suas explicações a respeito dos conhecidíssimos estágios do sono humano, eu fisicamente não poderia ‘roncar’ ao mesmo tempo em que estava (“sonhando”) sonhando, já que, por uma lógica básica, se eu estivesse, a., literalmente ‘sonhando’ que estava acordado, eu estaria, b., por definição, no estágio ‘quatro’ ou ‘paradoxal’ do sono, e portanto, c., devido à conhecidíssima paralisia da laringe no estágio ‘paradoxal’, eu não teria, d., como emitir os sons ásperos, gorgolejantes ou ‘nasofaringeais’ do ronco que de fato Hope na realidade apenas sonhou que me ouviu produzir in loco. Tanto as sapatos, as luvas e a bolsa cara de Hope combinavam com perfeição em termos de cor e da textura do couro de que se constituíam; ela também sempre tinha um cheiro muito bom. Foi nesse ou em torno desse momento que a assistente esbelta, madura, voluptuosa mas algo severa ou ‘proibitiva’ começou a inserir ou ‘carregar’ uma dada fita escolhida num receptáculo ou ‘fenda’ ou ‘buraco’ na parte de trás do monitor, e — utilizando uma folha de dados sonológicos codificados (“Por favor!”) e o controle remoto manual — começou a ‘avançar’ a gravação de luminosidade ‘baixa’ até o intervalo relevante do estágio quatro ou ‘paradoxal’ logo antes de (era de se imaginar, baseando-se no ‘prolegomenon’ ou glosa do especialista do sono [fisiologicamente, eu mesmo ainda continuava em posição ‘de sentido’, poderia-se dizer]) um grito de acusação repentino, irritado e vocífero de ‘ronco’ por parte da minha esposa.
Seja aparentemente algo premonitório ou não, tanto todos os ruídos exteriores ou extrínsecos e o meu próprio pager ignorado — quanto o audível sorvimento ou a ‘chupação’ do chá quente do administrador médico moreno e elegantemente vestido (uma implicância pessoal que vem desde a infância, seguida como foi pela passada algo afetada de um dedo por cima da boca) — pareceram a essa altura cessar, produzindo um silêncio ou uma ‘pausa’ distendida repentina e algo dramática ou perturbadora. Enquanto isso, no monitor da sala, a gravação, que formava ou constituía um díptico ou uma imagem de ‘tela dividida’, mostrava a Câmara escura do sono minha e de Hope numa luz baixa cor de âmbar que nitidamente era uma marca típica da aparência do filme de baixa luminosidade, com os cantos superiores esquerdo e direito da tela exibindo tanto a data relevante quanto ‘0204’ (ou, 2:04 da manhã em notação científica ou ‘GMT+0’) junto com cada segundo sucessivo e os incrementos decimais dos mesmos, com (do nosso ponto de vista) o lado destro ou direito do monitor de vídeo sendo composto de um close (ou, ‘plano fechado’) constante em infra-vermelho de mim na cama, num sono profundo, supino de costas com as mãos no peito e — o que era muito mais perturbador — do meu próprio rosto, dormindo. Eu, o que não é, é claro, uma surpresa, nunca tinha visto ou observado meu próprio rosto ‘inconsciente’ antes desse momento; e, no close imóvel do recto ou, por assim dizer, da parte na direita ou ‘a estibordo’ do díptico do monitor, agora se revelava não ser um rosto que eu de maneira alguma reconhecesse ou ‘conhecesse’, com seu queixo caído e a papada protuberante, mãos no peito tremendo aracnídeas, lábios de peixe frouxos e entreabertos; e, embora (para a consternação da Equipe do sono e o colóquio sussurrado entre os auxiliares e assistentes na parte de trás do monitor, que evidentemente estava dando algum ‘defeito’ ou problema) não houvesse som audível (Hope, olhando com um fascínio ou horror rígido para o lado direito do monitor bem ao meu lado, estava ‘congelada’ [ou, ‘paralisada’ (“ou te machucar se”)] em silêncio no meio de um gesto, suas pupilas bem dilatadas e de um negror líquido), o rosto flácido, boquiaberto, o queixo caído e a papada amontoada e trêmula que eu nunca tinha ‘contemplado’ enquanto estava deitado (pois, como se dá com a maioria dos maridos, eu, é claro, só tinha visto meu rosto enquanto estava sentado ou ereto diante do espelho, como nas situações em que fazia a barba, removia indesejados pelos nasais ou auriculares, me masturbava com uma roupa íntima perfumada de açafrão, apertava o nó da gravata e assim por diante), assim como, apesar da ausência de som da parte com defeito de áudio da gravação, as formas e contorções variavelmente mutantes da minha boca inconscientemente aberta no close adormecido ou ‘cena’ da madrugada, enquanto Hope e eu olhávamos num fascínio rígido (como quando se passa pelos destroços e pelas figuras pronadas e contorcidas de um acidente veicular ou ‘cena do crime’), significando ou ‘querendo dizer’, em outras palavras, que as formas distintivas e alternantes dos lábios frouxos da boca da minha imagem, assim como as bolhinhas de saliva ou cuspe que alternadamente surgiam e se dissolviam nos cantos da minha boca aberta (havia uma ‘película’ ou pasta labial nesses cantos, também, grudenta e cor de sépia, que se distendia levemente enquanto minha boca mudava de forma), significavam inegavelmente que sons e ruídos de que eu não tinha nenhuma consciência lúcida ou ‘voluntária’ estavam de fato escapando da minha garganta e da minha boca — ninguém com olhos para ver poderia negar — e, na medida em que o foco da câmera ‘fechava’ ou se aproximava ainda mais no meu rosto desconhecido, não-humano e inconsciente, eu ou vi, imaginei, delirei (Hope nesse momento ainda rígida ou fetalmente ‘congelada’, de boca aberta e olhos esbugalhados, enquanto tanto a assistente proibitiva quando o executivo latino começaram cada um a arrancar seus rostos ‘de cima para baixo’, começando nas têmporas e descascando ou ‘puxando’ para baixo com movimentos ríspidos e enfáticos, sendo o relógio estrangeiro de pulso e as mãos do cubano uma massa de lesões cor de âmbar) ou de fato assisti ou ‘testemunhei’ uma pálpebra adormecida abrir-se só uma fresta, muito levemente, deixando passar um fio ou raio ou ‘lâmina’ minúscula de luz — como, por exemplo, sob a porta fechada de um quarto escuro quando a luz do corredor do outro lado é acesa ou ‘ligada’ enquanto um passo noturno pesado e familiar lentamente sobe a escadaria vitoriana até a porta do quarto — vinda do olho inconsciente que abaixo dela se movia com rapidez, vendo também no lado direito ou ‘de lá’ da imagem da tela dividida minhas próprias boca úmida e bochechas frouxas e abertas agora começando a se distender num ‘sorriso’ familiar e lascivo ou até mesmo numa predatória expressão fa
“corda. Acorda, pelo amor de.”
“Meu Deus. Meu Deus eu estava tendo.”
“Acorda.”
“Tendo um sonho horrível.”
“Eu que o diga.”
“Foi um horror. Não acabava nunca.”
“Eu fiquei te sacudindo e.”
“Horas são.”
“São — já são quase 2:04. Eu já estava com medo de te machucar se tivesse que te cutucar ou te sacudir ainda mais. Parecia que não adiantava de nada.”
“Isso foi um trovão? Choveu?”
“Eu estava ficando preocupado mesmo. Hope, não dá mais pra continuar assim. Quando é que a gente vai marcar aquela consulta?”
“Espera — eu sou casada mesmo?”
“Por favor não comece com isso de novo.”
“E quem é essa tal de Audrey?”
“Vai, tenta dormir de novo.”
“E o que é aquilo ali — Papai?”
“Deita, vai.”
“Por que a sua boca está assim?”
“Você é minha esposa.”
“Nada disso é de verdade.”
“Está tudo muito bem.”