Aberration of Starlight
[tradução da abertura de Aberration of Starlight, de Gilbert Sorrentino]
[tradução da abertura de Aberration of Starlight, de Gilbert Sorrentino]
Há uma fotografia do menino em que ele aparece com dez anos. Ele está olhando direto para a câmera, segurando uma gatinha como se para nosso exame, com a mão direita no pescoço dela, a esquerda sob seu corpo, dando suporte ao peso do animal. O sol é de um brilho intenso, e o menino está de olhos cerrados para nós, sorrindo, seus dentes brancos e retos grandes demais para o seu rosto pequeno. Por causa de sua vista forçada não conseguimos ver que ele é vesgo do olho esquerdo. Atrás dele estão as beiras e os planos de construções de fazenda se desbotando num vermelho aguado, e as sombras profundas que elas projetam no chão. Na sombra de um palheiro está deitada uma bezerra holandesa, também olhando direto para nós: ainda que não possamos ver, por causa de sua distância do fotógrafo anônimo, moscas enxameiam e pousam, se levantam, enxameiam e pousam em volta de seus olhos pacatos. A gata é rajada, e seus olhos são fendas na luz do sol.
O cabelo do menino é preto e recém-penteado, cintilando com uma brilhantina conhecida como óleo de rosa, dada a ele por Tom Thebus e comprada no 1,99 em Hackettstown. Para o menino, esse líquido rosa-escuro, quase cor de cereja, seu odor diferente de qualquer rosa que já tenha crescido nessa terra, é uma manifestação palpável de um mundo de beleza e deleite. Nesse mundo sua mãe vai ser feliz. Nesse mundo a lembrança de sua vó morta vai se transformar suavemente em mentiras a respeito de sua bondade. Nesse mundo seu vô vai ser, sempre, o cavalheiro seguro de si e de uma serenidade arrogante que ele é quando joga croqué.
Não dá para ver o campo espesso e liso de croqué que faz fronteira com a casa de campo branca a cem metros de distância na fotografia, mas é capaz que o menino consiga ver um canto dele, e nas cadeiras de jardim naquele canto, na sombra grossa das brassaias, sua mãe e Tom Thebus, cujo cabelo está cintilante com o mesmo óleo de rosa que o menino usa. Fumaça branca de seu cachimbo paira no ar calmo do fim da tarde.
Você poderia dizer que o menino está tomando por um momento de felicidade, embora as fotografias, porque excluem tudo a não ser o instante em que são tiradas, sempre mintam. Ainda assim, você as encara, implorando que elas revelem de suas verdades: aqui você espera ver presa para sempre nos olhos do menino a imagem do fotógrafo, saber se aquela sombra irregular que mancha o cascalho ao lado do galpão refrigerado é de Louis Stellkamp, o dono dessa fazenda, ver, não apenas o que está atrás do menino, mas o que está na sua frente. Talvez as cadeiras de jardim estejam vazias.
Talvez o sorriso do menino venha do fato de que o fotógrafo é Tom Thebus, e de que ao lado dele, num terno verde claro de veraneio que contrasta com seu cabelo loiro, está sua mãe. Se é esse o caso, pode ser que assim que a fotografia seja tirada, o sorriso do menino desapareça, pois ele vê naquele canto do campo de croqué visível apenas para ele, a figura de seu avô, de camisa branca e flanela, com um taco de croqué por sobre o ombro direito, parado e olhando para eles, rígido de ressentimento. Fumaça branca de seu cigarro paira no ar calmo do fim da manhã até que o golpe de uma pata breve de gata a dispersa.