Miss MacIntosh, My Darling
[tradução de um trecho da abertura de Miss MacIntosh, My Darling, de Marguerite Young]
[tradução de um trecho da abertura de Miss MacIntosh, My Darling, de Marguerite Young]
O motorista do ônibus estava assobiando, talvez antecipando sua esposa, que seria uma mulher de seios fartos, de uma maturidade concretizada. Seria impossível que ele não tivesse, do meu ponto de vista, uma esposa e filhos, sem dúvidas, uma tal felicidade que eu não conseguia imaginar ser real, até mesmo como alguma lenda das eras de ouro. Ele tinha falado várias vezes durante nosso trajeto sobre sua patroa esperando, e ele estava indo para casa.
Como se ele fosse Testemunha de Jeová ou membro de algum outro secto religioso peculiar, seu cabelo farfalhudo ia quase até o ombro. Uma Testemunha talvez não dirigisse um ônibus Grey Goose, mesmo neste terreno distante, esta América interior, mas sua cabeça era grande, protuberante, um domo arcaico de escultura enovelada, e nos olhos dele cintilavam brilhos de uma visão intensificada, particular. Ele dirigia, na verdade, errático, talvez por causa da névoa pesada que por pouco não apagava a estrada de asfalto, da limitação, e mais de uma vez, com a guinada repentina do ônibus, eu pensei que poderíamos descambar num fosso, que ele e seus três passageiros morreriam, nossas cabeças decepadas rolando num milharal de talos secos. Ele tinha assobiado a cada fuga nova, tinha se virado e sorrido por sobre o ombro com um ar de triunfo sereno, mesmo quando o ônibus raspou contra a lateral de uma van de fretes se arrastando cheia de móveis empilhados até quase o céu baixo, um piano de armário, uma cadeira de balanço, um varal, um chapéu emplumado de mulher balançando no topo em meio à névoa cinzenta como um pássaro acompanhante.
Será que ele era, afinal, solteiro, quem sabe até um Don Quixote maluco perseguindo moinhos, um espírito virgem, ninguém — e sua vida em família uma emanação da minha imaginação superativa, de fato, meu desejo por relações humanas bem-estabelecidas? Todo o trajeto ele passou bebendo de uma garrafa de uísque, bem abertamente, ainda que com vários chamados por Deus, os anjos, os arcanjos, o anjo Gabriel. Todo o trajeto ele passou cantando, assoviando, falando sozinho, tentando adivinhar o que a patroa diria quando ela o visse, que ela com certeza ia cortar a cabeça dele.
Havia um casal dormindo, um par de amantes, menino e menina, os únicos outros passageiros. Eles embarcaram numa cidadezinha cor-de-poeira no sol escaldante e, cobrindo os olhos, tentaram atravessar dormindo os quilômetros lânguidos e rangentes de uma paisagem familiar demais.
A menina, magra e apagada, talvez prematuramente velha, estava grávida — mas resistia, como se fosse uma deformidade, sua situação de crescimento, não havendo nada de lânguido em sua aparência, nada que devesse se dar à natureza. Seu rostinho estava coberto por uma tez artificial como uma máscara pesada demais, riscada de cinza, e seus olhos sem cor tinham o aspecto frio e transparente da insatisfação, de não estarem preenchidos pela luz que vem do amor. Ela estava obviamente vestida no que devia ser sua mais maravilhosa elegância, ainda que seu conjunto fosse uma confusão acidental, um caos aos olhos do observador perplexo, estando ela amarrada muito forte e aquela protuberância sob seu coração pulando aos olhos como se fosse uma doença que ela quisesse cobrir com todos esses detalhes discursivos que não deviam ser foco da atenção, embora chamassem atenção a ela. Havia anéis nos dedos dela, camafeus baratos de um tamanho enorme e pedaços de vidro colorido, vários braceletes de latão e madeira nos braços, uma corrente de outro com um coração no tornozelo envolto de gaze, sempre-vivas empilhadas na ponta das suas sapatilhas de veludo espetadas por saltos de vidro que não a levariam longe, borboletas de veludo como amores-perfeitos pairando sobre a gola de imitação de pele comida por mariposas de seu casaco de tecido verde que não fechava e era apertado demais e não cobria ela, indo só até os quadris, e era de um estilo antiquado com mangas pontudas e punhos pontudos e pontas recortadas e vários botões cobertos de veludo ou marcas onde os botões estiveram, pequenos, sinos tilintantes se movendo quando, dormindo, ela se mexeu de um lado para o outro, ainda não cedendo aos poderes do sono que ela resistia como se fossem os poderes do oblívio e da morte, e cascatas de pérolas oblongas de lojas de 1,99 pingavam das orelhas cor-de-coral, e as pálpebras estavam pintadas com sombras azuis, as sobrancelhas pinçadas até sobrar uma linha invisível, dando a ela o aspecto de uma ave depenada e nua, e os lábios ampliados a uma quadradez angular pelo batom roxo que ela talvez tivesse passado num sonho rigoroso. Entre todos seus anéis pesados, ela não usava aliança, e as mãos dela eram de um amarelo pálido com garras vermelhas compridas, os dedos arranhando sem parar a superfície gasta de um estojo antiquado de couro envernizado que ela levava no colo. Seu vestido de musselina era de um laranja avermelhado claro com estampas de veleiros pretos velejando sobre árvores roxas e jogadores vermelhos de futebol jogando sobre campanários e esquiadores brancos esquiando sobre veleiros cascateando até a bainha e acrobatas congelados, todo o campo de esportes ao ar livre, parecia, estando no corpo dele, pois seu cachecol estava estampado de tenistas aracnóides e redes de tênis e patinadoras patinando em lagos prateados e jogadores de polo vermelhos jogando montados em cavalos vermelhos, e havia pingentes de bolinhas de futebol nos seus braceletes, raquetes de tênis e patins e tacos de golfe e vários outros troféus, alguns de terra e água, peixes de cetim correndo em volta da bainha de sua anágua de raiom delineada de renda amarela, borboletas bordadas nos joelhos de suas finas meia-calças de seda, e sua saia subia bem acima do joelho, mais ainda quando ela se mexia, revelando sua cinta-liga amarela de cetim e pares de coraçõezinhos cheios e vermelhos pendendo de fitas e faixas que eram almofadinhas de maquiagem, e o casaco parecia encolhido ou um número menor como algo que ela talvez tivesse usado numa juventude remota. A cabeça dela era grande num caule estreito, o cabelo amarelo descolorido edificado em espiral até um novelo coroado com uma rede de lantejoulas e um chapéu que era um ninho trançado de flores funéreas e galhinhos de marfim escuros e empoeirados com um ramo esmaltado de cor-de-rosa em que estava empolado, precário naquela altitude elevada na corrente de ar frio, um canário amarelo empalhado com uma asa carcomida por mariposas, um olho de vidro.
A mão rígida percorria o corredor, uma transparência através da qual dava para ver as veias enodadas. Ela estava dormindo, a cabeça fina e armada dura, reta, os olhos abrindo de repente, parecendo olhos de inseto de visão multifacetada porém cruel, sua boca ávida naquele rostinho se abrindo para reclamar, com golpes repentinos de fala metálica ou com sussurros selvagens e vazios, dos seus vizinhos, da sua mãe, seu pai, a outra menina, do jeito que tinha sido pega, o crescimento de outra vida dentro dela, esse vale escuro de onde ela talvez nunca retorne.
O menino parecia, em contraste, todo estolidez alegre e inocência serena, seu cabelo castanho desgrenhado como o de um pônei na sua testa baixa, seu pele queimada até um vermelho tijolo escuro como se por um calor soprando imenso não da luz do sol. Ele estava usando um suéter de futebol desbotado, a letra c atravessando a frente, um macacão manchado de vermelho, lavado pela chuva, mocassins enfeitados com contas brancas. Dormindo através dos quilômetros, a bochecha contra a janela gelada do ônibus, as pálpebras de cílios compridos fechadas, nunca abertas, os lábios sorrindo plácidos.
Agora no que o motorista assoviava, imitando cantos de aves a seus parceiros, o trilo do sabiá, a bicada do pica-pau, o murmúrio da codorna, um chorinho de bebê que ele tinha ouvido na grava invernal, a vermelhidão brilhante do reflexo do céu na janela vítrea do ônibus estava desaparecendo, e com aquela vermelhidão, o cambaleio distinto e deprimente de antigos anúncios de Coca-Cola e aspirina, esfarrapados feito mendigos, que tinham acompanhado nossa jornada às profundezas do sul de Indiana, um estado ainda desconhecido a mim. O céu estava drenado e exangue acima da escuridão de campos etéreos como se tivesse sofrido, num único instante lento, a transfusão última, como se as veias houvessem murchado até o nada. Mal havia uma gota de vermelho onde até pouco o vermelho enxameava e zunia como milhares de abelhas melíferas selvagens. Era primavera, mas talvez ainda fosse inverno, outro planeta, a face da lua morta. A terra estava nua e fria e os espinheiros sem flor. As janelas do ônibus tinham se tornado um cinza frio e embaçado como se apenas o fantasma do mundo estivesse chorando lá fora, como se o mundo conhecido de associações familiares tivesse desaparecido, e aquilo que restava não parecesse senão a conspiração de lembranças e sonhos flutuando sem propósito, sem restrição.
Nós tínhamos passado, nessa jornada, por várias obras curiosas de arquitetura rural, uma enorme jarra de café com sua tampa aberta contra o céu, uma boate em forma de wgwam onde, debaixo de um carvalho desnudado, um búfalo melancólico estava amarrado, incongruente como a pintura desbotada da linha. Tínhamos passado por um moinho de vento, uma torre inclinada, a Arca de Noé, a velha que morava no sapato, mas esses foram há quilômetros atrás, e agora não havia construção alguma que não aquelas na distância amorfa, casinhas de teto baixo, pequenas como ninhos arruinados, um rosto de criança em alguma janela próxima, a individualidade borrada pelo cinza aquoso do Meio Oeste, o trem tão pequeno quanto um trem de brinquedo cruzando uma ponte de brinquedo.
Havia um cinza sem-fim consumindo o ônibus que gemia, a estrada à nossa frente não mais parecendo bisseccionar o espaço, os campos baixos, raspados, tanto baixos quanto esbranquiçados, as corcundas de gado de colinas vagas, distantes, sem árvore, cor-de-toupeira. A cena se ampliava cada vez mais como aquela que talvez tivesse sido a primeira criação quando apenas o espírito de Deus se movera na profundeza. Era a face das águas ambíguas, de nenhuma linha limite, nenhuma margem. A cena, na verdade, para alguém que estava acostumada a uma grande corpo d’água, era oceânica, pontuada por poças pálidas nos vapores de névoa, e eu não deveria ter me surpreendido de ver, à deriva sobre esses prados vazios e não marcados da primeira criação, alguma coisa da última, uma nuvem de gaivotas com peito de pérola, todas clamando com vozes angelicais, ou atracado em algum horizonte longínquo e vazante, um navio perdido que nunca chegaria ao cais. Nós tínhamos passado, bem lá atrás na estrada, o último porto, um farol, um naufrágio. Luzes congeladas apareciam agora como brilhos de cristal em alerta na planície escura coberta de névoa como se todas as casas de onde elas eram emitidas estivessem viajando conosco uma distância desconhecida adentro de onde nenhum homem retorna vivo. Lá longe, feito fumaça, havia árvores emplumadas à deriva, entortadas pelas ações de vento nenhum, e não havia estrela à vista. No feixe das nossas anárquicas lanternas dianteiras que mal cortavam névoa e escuridão, lá estava, à beira da estrada, um homem alto com uma criança empoleirada nos ombros magros, um homem de duas cabeças, olhando para o nada ou além dele. Nós éramos os intrusos neste planície de silêncio, e ele balançou o punho, apático, talvez percebendo o perigo de andar nesta estrada onde agora, virando de repente, parecia voltar para onde tinha ido antes. Agora não havia paisagem.
Agora não havia paisagem que não a da alma, e essa é a inexatidão, o sempre mutante e o distante. Eu nunca saberia o nome do homem, a organização dessa imagem fugaz, quais eram suas esperanças, quais eram suas decepções. Ainda assim ele permaneceria para sempre gravado no disco rodopiante da memória, aquela forma de duas cabeças na névoa coagulada, tão tantalizante quanto minha ignorância da vida. Toda a minha vida eu estive tentando alcançar o tangível, e ele se esquivava de mim, bem como o mito de Tântalo, bem como se o tangível em si fosse uma ilusão. Minha vida tinha sido feita só dessas imagens irrelacionadas e ilusórias pairando só por um instante à margem da consciência, então passando como navios na noite, até mesmo navios operados por timoneiros mortos, por tripulações fantasmas, pela própria alma foragida.
Qual era a organização da ilusão, da memória? Quem conhecia até mesmo o próprio coração dividido? Quem conhecia todo coração enquanto seu? Entre seres estranhos uns aos outros, aqueles divididos pelos longos rugidos do tempo, do espaço, aqueles que nunca se encontraram ou, quando se encontram, não reconheceram enquanto seu próprio o outro coração e a fraqueza daquele coração, deram friamente as costas, se não houvesse, na visão de algum olho onisciente, uma teia de lógica aracnóide estabelecendo as mais secretas relações, profundeza chamando profundeza, iluminações da escuridão eterna, reconhecimentos no mundo noturno de sonhos viajantes, todas as barreiras se dissolvendo, todas as almas uma e unidas? Todo coração é o outro coração. Toda alma é a outra alma. Todo rosto é o outro rosto. O indivíduo é a única ilusão.