1. Dualismo cartesiano

Introdução

1. Sobre a disciplina "Filosofia da Mente": parece ter surgido na década de 1950, após a publicação de O conceito de mente, de Gilbert Ryle, embora a discussão de temas relativos à mente remonte à antiguidade.

2. Diversas concepções filosóficas sobre a mente estão disponíveis para nós hoje. A discussão sobre qual delas é mais adequada está em aberto. Não há como decidir entre elas cientificamente, pois não há teorias empiricamente adequadas da mente nas ciências. Embora o estudo da mente e do cérebro tenha avançado muito nas últimas décadas, temos ainda hoje apenas teorias e hipóteses parciais e teorias de correlações entre estados mentais e estados cerebrais.

3. Usamos cotidianamente a palavra "mente" sem maiores dificuldades, mas não temos uma definição de "mente" (ou de palavras associadas, como "pensamento", "alma", "consciência" etc.)

4. O desenvolvimento científico do último século foi predominantemente materialista e reducionista. Nossas concepções de senso comum sobre a mente, bem como nossas tradições religiosas, morais, jurídicas e políticas, parecem dualistas, no sentido de que não reduzem mentes (almas, pessoas, consciências) a corpos. Essa aparente cisão entre o que sugerem as ciências naturais e o que sugerem nossas tradições não científicas é um desafio para a filosofia da mente. Podemos conciliar essas duas sugestões? Precisamos sacrificar uma em benefício da outra? Ambas estão equivocadas em algum sentido importante?

5. Parece inegável que nós todos tenhamos mentes, ao menos enquanto estamos conscientes. Mas não é claro o que isso significa. Parece haver ao menos três tipos de fenômenos distintos que precisam ser levados em consideração quando estudamos a mente: (i) fenômenos mentais inconscientes e automáticos (percepção inconsciente, reações intuitivas e emocionais etc.); (ii) fenômenos mentais conscientes e reflexivos (pensamentos, raciocínios etc.) e (iii) fenômenos de tipo espiritual (em que a consciência egoica é percebida como uma parte pequena ou subalterna da mente como um todo ou como estando subordinada a algo maior que ela própria).

Ontologia da mente

6. Possibilidades iniciais:

  • Dualismo
  • Monismo materialista
  • Monismo idealista

Dualismo cartesiano, ou dualismo de substância

7. O chamado "dualismo de substância" ou "dualismo cartesiano" é a tese segundo a qual há dois tipos de substâncias no mundo: corpos e mentes. Substâncias são caracterizadas por suas propriedades, mas são identificadas como sendo as coisas que têm aquelas propriedades.

8. O proponente mais conhecido e influente do dualismo de substância foi Descartes (ver Meditações II e VI). Descartes apresentou três razões para afirmar que mentes e corpos são distintos. Os argumentos de Descartes supõem a verdade da chamada "Lei de Leibniz" ou "indiscernibilidade dos idênticos (se duas coisas são idênticas e uma delas têm uma propriedade qualquer, então a outra também tem essa mesma propriedade).

  • Podemos duvidar que temos um corpo, mas não podemos duvidar que temos uma mente. (II, 5-7)
  • Corpos são divisíveis (pois são extensos), mentes são indivisíveis.
  • Podemos imaginar-nos como sendo mentes sem corpos.

9. Esta última razão foi desenvolvida no século vinte por diversos filósofos (entre eles Kripke, em Naming and necessity, e Plantinga aqui) em favor do dualismo. Nesse caso, o argumento não conclui com o dualismo de substância, uma vez que é compatível com o dualismo de propriedades (veremos mais adiante o que isso significa). Esse tipo de argumento pode ser reconstruído desta forma (ver Robinson, 2011):

Premissa 1. Podemos nos imaginar como sendo mentes sem corpos.

Premissa 2. É concebível que nossas mentes possam existir sem nossos corpos.

Premissa 3. É possível que nossas mentes existam sem nossos corpos.

Conclusão. Logo, nossas mentes são entidades distintas de nossos corpos.

10. O argumento acima supõe a verdade da chamada "Lei de Leibniz", que é uma conjunção de dois enunciados lógicos: se duas coisas são idênticas, então têm as mesmas propriedades (princípio da indiscernibilidade dos idênticos) e se duas coisas têm as mesmas propriedades, então são idênticas (princípio da identidade dos indiscerníveis). Se mentes e corpos diferem em (ao menos) uma propriedade, então não são idênticas.

[Na literatura contemporânea, é comum supor-se que todas as identidades são necessárias: se x=y, então necessariamente x=y. Uma prova desse teorema foi apresentada por Kripke em 1971: 1. ∀x Nx=x; 2. ∀x∀y(x=y → (Nx=x → Nx=y)); 3. ∀x∀y (x=y → Nx=y).]

11. Objeções e dificuldades: Será que tudo que é imaginável é concebível? Será que tudo o que é concebível é possível?

Dualismo de substância interacionista

12. Segundo Descartes, seres humanos são produzidos pela união de corpos e almas, de tal maneira que um pode produzir efeitos sobre o outro. A ligação entre o corpo e a alma ocorre na glândula pineal, ou hipófise (ver aqui).

13. Em uma série de cartas, a princesa Elisabeth questionou Descartes sobre como seria possível que duas substâncias de tipos distintos interagissem causalmente. Essa é considerada até hoje a objeção mais forte ao dualismo de substância interacionista. Coisas físicas parecem produzir apenas efeitos físicos, e coisas mentais parecem produzir apenas efeitos mentais. Não parece haver uma boa explicação da interação mente e corpo. (Mas isso, claro, não é uma prova de que não haja essa interação causal.)

Argumentos empíricos para o dualismo

13. Alguns autores contemporâneos (por exemplo, Robert Almeder, Ian Stevenson, Bruce Greyson, Edward Kelly) argumentam que há indícios empíricos para a sobrevivência da consciência após a morte do corpo, e isso pode ser entendido como um indício empírico favorável ao dualismo de substância (embora a conclusão seja compatível também com diversas formas de monismos não materialistas ou não reducionistas). Esses indícios são de três tipos principais:

Ver também:

Vídeo indicado: Is there life after death? (painel na Universidade da Virginia, EUA)

[Comentário: há um preconceito com relação à cientificidade ou mesmo a aceitabilidade de se abordar de um ponto de vista empírico esse assunto. No entanto, neste ponto, eu acho que a priori não há qualquer razão para deixar de investigar esse conjunto de fenômenos como se investiga qualquer outro conjunto de fenômenos naturais. Nesse ponto, portanto, eu partilho de uma opinião manifestada por Carnap a respeito do que lhe pareceu um preconceito em Wittgenstein: "Em nosso primeiro encontro, Schlick infelizmente mencionou que eu estava interessado no problema de uma língua internacional, como o Esperanto. Como eu esperava, Wittgenstein era definitivamente contra essa ideia. Mas fui surpreendido pela veemência de suas emoções. Uma linguagem que não tivesse "crescido organicamente" parecia-lhe não apenas inútil, mas desprezível. Noutra ocasião, abordamos o tópico da parapsicologia, e ele manifestou-se fortemente contrário. As supostas mensagens produzidas em sessões espíritas, ele disse, eram extremamente triviais e bobas. Eu concordei com isso, mas observei que ainda assim a questão da existência e explicação dos supostos fenômenos parapsicológicos era um problema científico importante. Ele ficou chocado que uma pessoa razoável pudesse ter qualquer interesse naquele lixo." (Carnap, Intellectual autobiography, p. 26)]


O argumento de William James

14. No ensaio, "Human immortality", James argumenta que a mera identificação de correlações entre estados mentais (subjetivos) e eventos cerebrais (físicos) não é suficiente para mostrar que o cérebro está produzindo os estados mentais. Esse tipo de correlação pode existir também se o cérebro está apenas transmitindo os estados subjetivos para o corpo. O que acontece fisicamente no interior de um rádio ou de uma televisão está diretamente correlacionado com os sons ou as imagens emitidos por esses aparelhos, mas disso não se segue que esses sons ou imagens tenham sido originalmente produzidos pelos próprios aparelhos. Ao contrário, sabemos que são apenas transmitidos por eles, tendo sido produzidos em outros lugares. Do mesmo modo, o fato de haver correlações entre eventos mentais (subjetivos) e estados físicos do cérebro pode ser tomado como um indício de que a função do cérebro é a de transmitir estados mentais para o corpo, e não produzi-los. A mera constatação de correlações entre cérebro e mente não é, portanto, suficiente para mostrar que o cérebro produz a mente.

Objeções e problemas

15. Maria Carolina: A frenologia, no século XIX, já postulara a hipótese de que as funções desempenhada pelo cérebro estão localizadas em regiões específicas do cérebro. Essa tese particular não foi novidade quando introduzida por Fodor e depois nas neurociências. (Sobre isso, ver Frenologia.)


16. Guilherme: texto de Descartes não fala em "imaginação" e por isso o argumento modal acima apresentado não pode ser atribuído a ele. Em Descartes talvez o argumento comece já com a segunda premissa. Imaginar é formar imagens. Mas que imagem podemos ter de uma mente sem corpo?

--> Verdade. Ver Meditação 6, §3-4 Talvez seja melhor começar o argumento com a concepção (não com a imaginação) de que mentes podem existir sem um corpo correspondente.


17. Letícia: por que a alma/mente não pode ser uma parte do corpo? Por exemplo, cérebro.

Resposta cartesiana: porque o cérebro é um corpo e a mente não é um corpo. 1. A existência de minha mente é indubitável; a existência de meu cérebro é dubitável. 2. O cérebro é extenso; a mente não é extensa (pensamentos podem ser verdadeiros ou falsos, o cérebro e suas partes não tem a propriedade de serem verdadeiros ou falsos; o cérebro e suas partes são extensos e ponderáveis, já os pensamentos não têm comprimento nem peso); 3. (argumento modal) Posso imaginar mentes sem corpos, logo é possível que mentes existam sem corpos, logo mentes são distintas dos corpos.


18. Consequências do dualismo para os debates jurídicos (por exemplo, sobre a legislação sobre o aborto). Seguidamente, esse tipo de assunto é apenas abordado em seus aspectos jurídicos, políticos e religiosos. Mas há aspectos filosóficos que são igualmente pertinentes e que não têm como ser adequadamente enquadrados sob os enfoques político, jurídico ou religiosos. Um aspecto filosófico importante é o da caracterização do que é uma pessoa. Como veremos ao longo do semestre, se o dualismo estiver correto, pessoas não são meros corpos; por outro lado, se o materialismo estiver correto, então pessoas são corpos de um certo tipo (ou partes de corpos, ou corpos que funcionam de uma certa maneira: apresentam consciência, sentimentos etc.). Na discussão sobre o aborto, se fetos são considerados pessoas pelo fato de terem uma alma (ou mente ou consciência), então o aborto é um tipo de homicídio. Por outro lado, se fetos são meros corpos que ainda não se tornaram pessoas, então a sua eliminação não é um homicídio.


19. O argumento modal apenas conclui que mentes e corpos são distintos, mas disso não se segue que sejam coisas distintas. Pode ser que sejam a mesma coisa, mas que tenham predicados ou propriedades distintas. Então, é preciso algum argumento adicional para se inferir o dualismo de substância.

Robinson (2011) menciona alguns desses argumentos: se minha mente não é uma substância, mas apenas um conjunto de propriedades do meu corpo -- essa, a propósito é a teoria humeana da mente como um feixe de propriedades -- então não há nada que subsiste quando as minhas propriedades mentais se alteram. Deve ser em princípio possível identificar uma propriedade mental, portanto, sem referência ao sujeito (mental). Segundo alguns autores (Lowe, por exemplo) isso não é possível, pois a identidade de uma propriedade mental deriva em parte da identidade do sujeito que as tem. A teoria da mente como um feixe de propriedades supõe que é possível que dois corpos tenham a mesma mente. Digamos que exista um outro corpo humano (um clone meu) que tenha exatamente as mesmas propriedades mentais que eu tenho agora (mesmas memórias, mesmos pensamentos, mesmos sentimentos etc.). Nesse caso, ele pensaria de si o mesmo que eu penso de mim agora. Mas eu ainda teria o pensamento de que eu sou eu e de que ele é ele. Não por que nossas propriedades mentais sejam diferentes, mas porque o sujeito dessas propriedades é diferente. Esse sujeito é também algo mental, sou eu!, e não é algo apenas corporal.


Problemas com os argumentos de Descartes:

20. Argumento da dúvida:

(i) Posso duvidar que meu corpo exista.

(ii) Não posso duvidar que eu existo como coisa pensante.

(iii) Se duas coisas têm propriedades distintas, então não são a mesma coisa. [Lei de Leibniz]

(iv) Logo, eu, como coisa pensante, não sou idêntico ao meu corpo.

[Esse argumento parece supor que (i) meu corpo tem a propriedade de ter existência dubitável, mas (ii) minha mente não tem essa mesma propriedade; logo, diferem ao menos nessa propriedade e (pela Lei de Leibniz) e têm de ser distintos. No entanto, pode-se questionar se "ter existência dubitável" é efetivamente uma propriedade de meu corpo. Parece que esse é um pensamento que eu (minha mente) tem sobre o corpo, e não uma propriedade do próprio corpo. Assim, a Lei de Leibniz não poderia ser usada adequadamente nesse argumento.]


21. Argumento modal:

(i) Posso conceber que eu, como coisa pensante, exista sem meu corpo.

(ii) Tudo que é concebível é possível.

(iii) Eu, como coisa pensante, posso existir sem meu corpo.

(iv) Se uma coisa pode existir sem que outra exista, então essas duas coisas são distintas.

(v) Logo, eu, como coisa pensante, não sou idêntico ao meu corpo.

[Esse argumento não implica o dualismo de substância, mas o dualismo em geral. Pode ser que minha mente seja distinta de meu corpo não por ser uma substância distinta, mas por ter propriedades distintas. Para mostrar que a mente não é um conjunto de propriedades do corpo, é necessário um argumento adicional (ver acima).]


22. Argumento da divisibilidade:

(i) Corpos são e divisíveis.

(ii) Mentes são indivisíveis.

(iii) Logo, mentes e corpos são distintos.

Meditações, VI, 33: "Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. E as faculdades de querer, sentir, conceber, etc., não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber, etc. mas ocorre exatamente o contrário com as coisas corpóreas ou extensas: pois não há uma sequer que eu não faça facilmente em pedaços por meu pensamento, que meu espírito não divida mui facilmente em muitas partes, e por conseguinte, que eu não reconheça ser divisível."

Comentário: o argumento aqui parece ser que é possível dividir qualquer corpo (coisa extensa) em corpos menores, mas não é possível dividir uma mente (coisa pensante) em novas mentes. Uma parte de minha mente não forma uma nova mente. Se eu pudesse separar a minha imaginação ou minha memória do restante de minha mente, essas partes separadas por si sós não formariam uma nova mente. Mas, como no caso do argumento modal, esse argumento supõe que mentes são substâncias (coisas pensantes) e não propriedades de substâncias. Então, para o argumento mostrar o que pretende, parece necessário acrescentar um novo argumento que exclua a possibilidade de mentes serem propriedades de corpos. Descartes supõe que ele é "apenas uma coisa que pensa", mas o argumento não exclui a possibilidade de sua essência ser também corporal, isto é, ele não mostrou que essa coisa que pensa não é também essencialmente corporal. Por outro lado, parece que há aspectos do pensamento ou do intelecto que não são corporais, exatamente como Descartes diz. É ao menos prima facie difícil explicar em termos corporais o conteúdo de pensamentos abstratos ou universais -- esse é um desafio para filosofias materialistas da mente. Uma das razões para essa dificuldade é que coisas materiais, ou corpos, são sempre particulares, mas pensamentos podem ser abstratos e universais.]