Mestranda PPGF / UFRJ

30 de Julho de 2021

O amor enquanto fenômeno evolutivo?

A escala amoris de Platão e Caetano Veloso

Amor. Segundo o dicionário Oxford, a palavra é um substantivo masculino, derivado do latim, amor,ōris, que dentre os significados atribuídos estão: amizade, afeição, desejo grande, paixão e objeto amado. Contudo, estudar sobre esse fenômeno universal pode abrir uma vasta possibilidade de pesquisa em questões, tais como: o que é, qual a história, os mais diversos tipos de amores e etc.

Por isso, nesta reflexão sobre o amor, a hipótese levantada pela autora do trabalho é se o entendimento do amor é algo que evolui em um indivíduo conforme ele amadurece (envelhece). Para investigar essa questão, o corpo de estudos será pelo referencial teórico composto pelas definições do amor no livro O Banquete, de Platão, em contraposição a seis canções de Caetano Veloso, escritas em diferentes momentos da vida do autor.

O objetivo de unir filosofia e música nessa análise é a investigação do fenômeno amor em uma espécie de antítese entre o livro, escrito em cerca de 380 A.C., com as vivências de amor descritas pelo cantor e compositor Caetano Veloso em seis de suas canções, compostas entre os anos dos séculos XX e XXI. As experiências humanas da vivência do amor mudaram em mais dos dois mil anos que separam o discurso de Platão dos dias atuais? Essa pesquisa evidenciará que as tensões de Eros seguem semelhantes.

Na história do livro O Banquete, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão e Sócrates falam, respectivamente, sobre a visão do que é o amor para cada um deles. Dialeticamente, a concepção do fenômeno se torna mais complexa conforme a argumentação vai avançando na literatura.

Fedro inicia o diálogo dizendo que o amor deve dirigir a vida de todos os homens que quiserem vivê-la nobremente. Com uma visão idealizada, garante que o ato mais heroico que alguém pode fazer é se matar para salvar o seu objeto de amor.

Pausânias, mais “realista”, diz que o amor não é um só. E lança a definição de Afrodite Pandêmia - quando o indivíduo decide viver um amor de uma forma meramente sexual e Afrodite Urânia, quando não é apenas o corpo que está em pauta no interesse amoroso, mas também o alcance da alma. Para Pausânias, o amor de Afrodite Urânia acontece apenas entre homens, mais especificamente no sistema de pederastia, em que um homem mais velho se relaciona como um homem mais novo, ensinando-o valores morais, como viver plenamente enquanto um cidadão da pólis. Em contrapartida, o mais velho é “presenteado” com a beleza e o vigor da juventude (VRISSIMTZIS, 2002, p.103)

Já Erixímaco, o médico que está no Banquete, apontou que a depender do modo como se ama, o que inicialmente é algo divino, poderia ser transformado em uma patologia: “(...) quando, porém, é o Amor casado com a violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias doenças nos animais como nas plantas” (PLATÃO, 2007, p.180).

O comediógrafo Aristófanes afirmou que os seres humanos, inicialmente, eram de três tipos: homem, mulher e andróginos. Porém, para que não se sentissem tão autossuficientes, resolveu dividi-los em dois. O caminho do amor, para ele, é justamente a busca da “outra metade original” e por isso, que diferentemente de Pausânias, ele concebe que o amor pode se manifestar entre homens e mulheres, homens com homens e mulheres com mulheres, sem distinção

O tragediógrafo Agatão vai além do entendimento do amor entre seres humanos e amplia a presença de Eros para outas esferas da vivência humana. Ele diz que encontramos o amor no domínio da música, na medicina, na adivinhação, na criação de animais e em outras esferas.

O clímax do livro O Banquete é a definição de amor pela sacerdotisa de Mantineia, Diotima, a quem Sócrates atribui ter aprendido tudo o que sabe sobre o fenômeno. Ela introduz o conceito de amor como sendo “a apetência do bem e de ser feliz sob todas as manifestações” (PLATÃO, 2007, p.235). Diotima começa dizendo que Eros “não é nem belo, nem feio, é um intermediário entre mortal e imortal”, “elo entre os deuses e os mortais” (PLATÃO, 2007, p.202). Todavia, para além dessa imortalidade limitada acessível à natureza mortal, Diotima indica, que através da scala amoris, há a possibilidade do amante contemplar “uma beleza de natureza maravilhosa” (PLATÃO, 2007, p.210).

O conceito de scala amoris é justamente o que permeia várias das perguntas desse trabalho. Sócrates estabelece que o entendimento de amor humano é como um degrau, aonde vamos subindo as escadas.

“A scala amoris é um caminho ordenado pelo qual o amante poderá ascender até a contemplação daquela beleza. É o caminho do amor, que se percorre: partindo das belezas particulares para subir até àquela outra beleza, e servindo-se das primeiras como de degraus: de um belo corpo passará para dois; de dois, para todos os corpos belos, e depois dos corpos belos para as belas ações, das belas ações para os belos conhecimentos, até que dos belos conhecimentos alcance, finalmente, aquele conhecimento que outra coisa não é senão o próprio conhecimento do Belo, para terminar por contemplar o Belo em si mesmo (PLATÃO, 2007,p.211)”.

A partir dessa noção, a autora desse trabalho indaga algumas questões: será que a concepção de amor para os seres humanos é algo que evolui conforme eles amadurecem (envelhecem)? Esse desenvolvimento é linear ou não-linear?

Segundo a definição da sacerdotisa Diotima, começamos a amar “um corpo” belo, até que avançamos degraus na “scala” do amor e o fenômeno se estende para o amor pelas belas ações e conhecimentos, até chegar ao amor pelo belo em si mesmo. A partir dessa afirmação, seria, então, o amor um objeto imanente e transcendente? Mesmo diante da sua imanência, ao escolher subir outros degraus do amor, o ser humano pode encontrar com a transcendência através da vivência do amor?

De um modo resumido, imanente pode ser entendido como aquilo que representa uma realidade material. É essa a realidade que conhecemos e que podemos experimentar e explicar com a utilização dos nossos cinco sentidos.

Na Escala Amoris, proposta por Diotima e apresentada ao Banquete por Sócrates, ela diz que o caminho que o amor percorre parte das belezas particulares para subir até àquela outra beleza, e servindo-se das primeiras como de degraus: de um belo corpo passará para dois; de dois, para todos os corpos belos, e depois dos corpos belos (objetos imanentes) para as belas ações, até chegar ao Belo em si mesmo (objeto transcendente) (PLATÃO, 2007, p. 211).

Portanto, a partir dessas afirmações, mesmo diante da sua imanência, ao escolher subir outros degraus do amor, o ser humano pode encontrar com a transcendência através da vivência desse mesmo fenômeno. Enquanto um intermediário entre o “mortal e imortal”, talvez por isso, que quando estudamos sobre o amor, lidamos com a multiplicidade, já que a sua força de atuação une diferentes esferas. Porém, para acessar uma vivência plena desse sentimento, é importante que o indivíduo esteja disposto a questionar as ideias do senso comum sobre o amor e, assim, estar aberto para seguir a sua “escalada” de ascensão com relação ao entendimento de Eros, que pode ser fruto das suas próprias vivências e não com base no que “os outros falam sobre o fenômeno”.

Uma outra questão é se através das análises das canções de Caetano Veloso, é possível afirmar que o ser humano pode vivenciar ao mesmo tempo diferentes estágios da experiência amorosa?

Para responder a essas perguntas, foram selecionadas seis canções de Caetano Veloso, escritas em diferentes momentos da sua vida: “Coração Vagabundo” (1967), “Amor Mais Que Discreto” (2006), “Tá Combinado” (1986), “Sorvete” (1984), “Ela e Eu” (1979), “Livros” (1997) e “Diferentemente” (2004).

Respectivamente, cada música foi escolhida em analogia a um discurso do Banquete. “Coração Vagabundo” (1967) dialogando com a visão de amor inocente, enunciada por Fedro, “Amor Mais Que Discreto” (2006) em uma analogia com o discurso de Pausânias sobre a Afrodite Urânia e o seu elogio à pederastia, “Tá Combinado” (1986) refletindo sobre o amor apenas com fins sexuais, como exposto por Pausânias ao definir Afrodite Pandêmia,

Já “Sorvete” (1984) traz o componente patológico que também pode ser desenvolvido a partir do amor , “Ela e Eu” (1979) tem o discurso semelhante ao de um casal que se sente o “perfeito complemento” do outro, como afirmou Aristófanes em seu elogio a Eros, “Livros” (1997) versa sobre o amor encontrado para além das relações entre humanos, como o amor que sentimos pelos livros e “Diferentemente” (2004) mostra como o encontro com outro pode ser o degrau que o faz sair de um entendimento imanente do mundo e abre espaço para transcendência.

Diante dessa análise, foi possível observar através das canções de Caetano Veloso, compostas em diferentes momentos da sua vida, que as suas concepções sobre o amor mudaram conforme ele envelheceu. Entretanto, o amadurecimento do artista não se mostrou tão linear quanto à estrutura dialética desenvolvida no Banquete, em que há uma ascensão para um pensamento mais sofisticado do elogio a Eros, conforme os diálogos avançam no livro.

Se em 1979, aos 37 anos, Caetano recitava sobre o seu sentimento de fusão com a mulher amada, como uma espécie de alma gêmea; mais velho, em 1984, aos 42 anos, já julga o amor com o um fruto de um sentimento de loucura que começou a se manifestar após a afeção não ser correspondida. Portanto, se no livro O Banquete, a organização dos discursos pareceram apontar para uma evolução linear para o entendimento do amor, através das canções, se nota que o amadurecimento da vivência do amor atravessa tensões, questionamentos e sentimentos, fazendo com que o percurso de amadurecimento aconteça, mas nem sempre seja linear.

Enquanto sujeitos, os seres humanos podem vivenciar sentimentos semelhantes nos mais variados momentos de vida. Não obstante, na sua bagagem, que estão presentes decepções, alegrias e expectativas, faz com que mesmo parecidas, as experiências sejam sempre diferentes, já que se lida com novas pessoas em momentos distintos do nosso desenvolvimento.

Por isso, analisando o eu-lírico do autor, é notável que desde a primeira canção “Coração Vagabundo”, escrita por ele aos 25 anos, até “Diferentemente”, lançada em 2004 e aos 62 anos, há um grande amadurecimento em sua visão do amor.

A abordagem “inocente” em que coloca o objeto do amor como tudo o que se quer, como por exemplo, no seguinte trecho: “Meu coração não se cansa/De ter esperança/De um dia ser tudo o que quer”, ganha espaço para uma análise mais complexa do amor em “Diferentemente”: “Eu nunca imaginei que nesse mundo/Alguma vez alguém soubesse quem é/Mas se você me vê/Seus olhos são mais do que meus/Pois amo e você ama/ Então o indizível se divisa/E a luz de tantos céus inunda a mente”.

Ao amadurecer, o autor já enxerga a trajetória do amor mais complexa e conectando sentidos imanentes com transcendentes. No entanto, analisando a travessia desse percurso, aos 42 anos, em “Sorvete”, ele reconhece a natureza destruidora que também pode estar presente no amor: “E eu e eu e eu dou/Feras lutam dentro da noite-normal/Todos os insetos, os do belo e os do mal/Anjos e demônios/O amor tomava conta de mim/Ela loura e negra, querubim e animal/Sobre os monstros da paixão, controle total”.

Nesse momento, o amor é antítese, que para ele se expressa na metáfora de anjos e demônios, entre feras lutando dentre de si. Ou seja, demonstra uma confusão mental que os sentimentos de amor podem causar em um indivíduo enquanto se relaciona com alguém.

Cinco anos antes, aos 37 anos, em “Ela e Eu”, mesmo sendo uma canção de despedida, Caetano Veloso tocara no tópico de como o sentimento de amor pode ser algo sublime, que mesmo separados no físico, a energia desse encontro continuaria a reverberar, como no seguinte trecho da música: “Lágrimas encharcam minha cara/Vivo a força rara desta dor/Clara como o sol que tudo anima/Como a própria perfeição da rima/Para amor/Outro homem poderá banhar-se/Na luz que com essa mulher cresceu/Muito momento que nasce/Muito tempo que morreu/Mas nada é igual a ela e eu”.

Haveria Caetano regredido em cinco anos e tornado a sua visão do amor menos sofisticada? A conclusão é que não. Embora, ele pareça ter alcançado um entendimento complexo da natureza do amor aos 37 anos, em “Ela e Eu”, ao retratar o amor de modo confuso, com sinais de patologia aos 42 anos, em “Sorvete”, esse fato evidencia que a escalada nos degraus do amor está atravessada de várias tensões (estado psicológico, momento de vida que o indivíduo está inserido e experiências passadas) tornando esse processo não tão linear, como o abordado na visão de Platão através do livro O Banquete.