Instrução do Senhor para as nações, por meio dos doze apóstolos
Traduzido para o português a partir do texto (em inglês) de
J. B. Lightfoot, Athena Data Products, 1990.
Introdução
Didaqué significa «instrução» ou "doutrina». Trata-se de um escrito que data de fins do Séc. I de nossa era e, portanto, bem próximo dos escritos do Novo Testamento. O nome «Instrução dos Doze Apóstolos» lembra At 2,42 ("o ensinamento dos apóstolos"), mas é difícil que a obra tenha sido escrita por algum deles ou seja de um só autor. Os estudiosos hoje estão de acordo em dizer que ela é fruto da reunião de várias fontes escritas ou orais, que retratam a tradição viva das comunidades cristas do Séc. 1. Os lugares mais prováveis de sua origem são a Palestina ou a Síria.
A Didaqué é um manual de religião ou, melhor dizendo, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos. Esse documento nos permite conhecer as origens do cristianismo, e principalmente nos dá uma ideia de como eram a iniciação cristã, as celebrações, a organização e a vida das primeiras comunidades. O autor (ou autores) pertence ao meio judaico-cristão, e dirige seu ensinamento a comunidades formadas por convertidos vindos principalmente do paganismo.
O conteúdo e o estilo da Didaqué lembram imediatamente muitos textos do Antigo e do Novo Testamento, bem como outros escritos criados do séc. 1 d.C. O tom e os temas de muitas exortações se parecem bastante com os da literatura sapiencial e diversos trechos dos evangelhos. Dessa forma, esse catecismo das comunidades da Igreja Primitiva é testemunho vivo de como os primeiros cristãos se alimentavam da Palavra de Deus contida nas Escrituras, transformando e interpretando os textos bíblicos em vista de suas necessidades e situações.
A leitura da Didaqué faz logo sentir que as comunidades cristãs daquele tempo ainda não estavam completamente estruturadas. As comunidades não têm representante oficial fixo (padre ou vigário), os bispos e diáconos são mencionados de passagem, e não sabemos bem quais funções exerciam. Fala-se diversas vezes em «apóstolos, profetas e mestres", dando a impressão de que eram propriamente pregadores itinerantes a serviço de diversas comunidades. Por outro lado, nota-se que a liturgia é também muito simples e se resume a celebrações feitas em clima doméstico. Os sacramentos mencionados pertencem à iniciação cristã - batismo, confissão, eucaristia - e parecem ser todos administrados pela comunidade, e não por um membro do clero, ainda inexistente.
Visível, contudo, do clima que a comunidade vive, dentro de uma sociedade estruturalmente pagã. A preocupação de não se confundir com o ambiente, de não se deixar manipular por aproveitadores oportunistas (até mesmo disfarçados de profetas), a esperança um pouco nervosa de uma escatologia próxima e o tema da perseverança heróica no caminho da fé são características das comunidades nascentes, que ainda estão descobrindo sua vocação e missão no mundo.
A Didaqué é um convite para as comunidades cristãs em formação descobrirem sua origem e jovialidade próprias. Ela nos faz lembrar que a fonte inspiradora do comportamento, da oração e das celebrações é a Bíblia. Sobretudo, mostra que o cristianismo não é devoção individualista, mas um caminho comunitário em que todos os setores da vida e do comportamento devem ser penetrados pela Palavra de Deus e pela oração. Na sua simplicidade e profundidade, estimula a viver a vida cotidiana à luz do Evangelho vivo, dentro de um discernimento que frutifica em atos novos, geradores de fraternidade e partilha. Escrita principalmente para os pagãos (nações), ela ainda salienta que o cristianismo não é uma redoma onde a comunidade se refugia, mas um fermento que se expande para transformar toda a sociedade.
A. OS DOIS CAMINHOS
Capítulo 1
1Existem dois caminhos: um é o caminho da vida, e outro, o da morte. A diferença entre os dois é grande.
Viver é amar
2 O caminho da vida é este: Em primeiro lugar, ame a Deus, que criou você. Em segundo lugar, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça a outro nada daquilo que você não quer que façam a você.
3 0 ensinamento que deriva dessas palavras é o seguinte: Bendigam aqueles que os amaldiçoam e rezem por seus, inimigos, e ainda jejuem por aqueles que os perseguem. Com efeito, se vocês amam aqueles que os amam, que graça vocês merecem? Os pagãos não fazem o mesmo? Quanto a vocês, amem aqueles que os odeiam, e vocês não terão nenhum inimigo.
A violência do amor
4 Não se deixe levar pelos impulsos instintivos. Se alguém lhe dá uma bofetada na face direita, ofereça-lhe também a outra face, e você será perfeito. Se alguém o força a acompanhá-lo pelo espaço de um quilômetro, acompanhe-o por dois; se alguém tira o seu manto, entregue-lhe também a túnica. Se alguém toma alguma coisa que pertence a você, não a peça de volta, pois você não poderá fizer isso.
O amor de partilha
5 Dê a quem pede a você e não peça para devolver, pois o Pai quer que os seus bens sejam dados a todos. Feliz aquele que dá conforme o mandamento, porque será considerado inocente. Aí de quem recebe: se recebe por estar necessitado, será considerado inocente; mas se recebe sem ter necessidade, deverá prestar contas do motivo e da finalidade pelos quais recebeu. Será posto na prisão e interrogado sobre o que fez; e dai não sairá até que tenha devolvido o último centavo.
6 A esse respeito, também foi dito: Que a sua esmola fique suando nas mãos, até que você saiba para quem a está dando.
Exigências do amor ao próximo
Capítulo 2
1 O segundo mandamento da instrução é este:
2 Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens, não fornique, não roube, não pratique magia, nem feitiçaria. Não mate a criança no seio de sua mãe, nem depois que ela tenha nascido.
3 Não cobice os bens do próximo, não jure falso, nem preste falso testemunho. Não seja maledicente, nem vingativo.
4 Não seja duplo no pensar e no falar, porque a duplicidade é armadilha mortal.
5 Que a sua palavra não seja falsa ou vazia, mas se comprove na prática.
6 Não seja avarento, nem ladrão, nem fingido, nem malicioso, nem soberbo. Não planeje o mal contra o seu próximo.
7 Não odeie a ninguém, mas corrija uns, reze por outros, e ainda ame aos outros, mais do que a si mesmo.
As raízes do mal e do bem
Capítulo 3
1 Meu filho, procure evitar tudo o que é mau e tudo o que se pareça com o mal.
2 Não seja colérico, porque a ira conduz para a morte. Também não seja ciumento, nem briguento ou violento, porque os homicídios nascem de todas essas coisas.
3 Meu filho, não seja cobiçoso de mulheres, porque a cobiça leva à fornicação. Evite falar obscenidades e olhar com malícia, pois os adultérios surgem de todas essas coisas.
4 Meu filho, não seja dado à adivinhação, pois a adivinhação leva à idolatria. Também não pratique encantamentos, astrologia ou purificações, nem queira ver ou ouvir sobre essas coisas, pois de todas essas coisas provém a idolatria.
5 Meu filho, não seja mentiroso, porque a mentira leva ao roubo. Não seja ávido de dinheiro, nem cobice a fama, porque os roubos nascem de todas essas coisas.
6 Meu filho, não seja murmurador, porque a murmuração leva à blasfêmia. Não seja insolente, nem tenha mente perversa, pois as blasfêmias nascem de todas essas coisas,
7 Seja manso, porque os mansos receberão a terra como herança.
8 Seja paciente, misericordioso, sem maldade, tranqüilo e bom, respeitando sempre as palavras que você tiver ouvido.
9 Não se engrandeça a si mesmo, nem se entregue à insolência. Não se junte com os "grandes", mas converse com os justos e pobres.
10 Aceite como boas as coisas que lhe acontecem, sabendo que nada acontece sem o consentimento de Deus.
A pessoa inserida na comunidade
Capítulo 4
1 Meu filho, lembre-se dia e noite daquele que anuncia a palavra de Deus para você e honre-o como se fosse o próprio Senhor, pois o Senhor está presente onde é anunciada a soberania do Senhor,
2 Procure estar todos os dias na companhia dos fiéis, para encontrar apoio nas palavras deles.
3 Não provoque divisão. Pelo contrário, reconcilie aqueles que brigam entre si. Julgue de modo justo, corrigindo as culpas sem &zer diferença entre as pessoas.
4 Não fique hesitando sobre o que vai ou não acontecer.
5 Não seja como os que estendem a mão na hora de receber e a retiram na hora de dar.
6 Se você ganha alguma coisa com o trabalho de suas mãos, ofereça-o como reparação por seus pecados.
7 Não hesite em dar, nem dê reclamando, pois você sabe quem é o verdadeiro remunerador da sua recompensa.
8 Não rejeite o necessitado. Divida tudo com o seu irmão, e não diga que são coisas suas. Se vocês estão unidos nas coisas que não morrem, tanto mais nas coisas perecíveis.
9 Não se descuide de seu filho ou de sua filha; pelo contrário, instrua-os desde a infância no temor de Deus.
10 Não dê ordens com rudeza ao seu servo ou à sua serva, pois eles esperam no mesmo Deus que você, para que não percam o temor de Deus, que está acima de uns e outros. Com efeito, ele não virá chamar a pessoa pela aparência, mas aqueles que o Espírito preparou.
11 Quanto a vocês, servos, sejam submissos aos seus senhores, com respeito e reverência, como à imagem de Deus.
12 Deteste toda hipocrisia e tudo o que não seja agradável ao Senhor.
13 Não viole os mandamentos do Senhor. Guarde o que você recebeu, sem nada acrescentar ou tirar,
14 Confesse as suas faltas na reunião dos fiéis, e não comece a sua oração com má consciência.
Este é o caminho da vida.
O caminho da morte
Capítulo 5
1 O caminho da morte é este: Em primeiro lugar, é mau e cheio de maldições: homicídios, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatrias, práticas mágicas, feitiçarias, rapinas, frisos testemunhos, hipocrisias, duplicidade de coração, fraude, orgulho, maldade, arrogância, avareza, conversa obscena, ciúme, insolência, altivez, ostentação e ausência de temor de Deus.
2 Par esse caminho andam os perseguidores dos bons, os inimigos da verdade, os amantes da mentira, os que ignoram a recompensa da justiça, os que não desejam o bem nem o julgamento justo, os que não ficam atentos para o bem, mas para o mal. Deles está longe a calma e a paciência; são amantes das coisas vis, ávidos de recompensas, não se compadecem do pobre, não se importam com os atribulados, não reconhecem o seu Criador. São ainda assassinos de crianças, corruptores da imagem de Deus, desprezam o necessitado, oprimem o aflito, defendem os ricos, são juizes injustos com os pobres e, por fim, são pecadores consumados.
Filhos, afastem-se de tudo isso.
Perfeição é servir ao Senhor
Capítulo 6
1 Fique atento para que ninguém o afaste deste caminho da instrução, pois aquele ensinaria a você coisas que não pertencem a Deus.
2 Se puder carregar todo o jugo do Senhor, você será perfeito. Se isso não for possível, faça o que puder.
3 Quanto à comida, observe o que você puder. Não coma nada do que é sacrificado aos ídolos, porque esse é um culto a deuses mortos.