No Canto VI, a armada vai de Melinde a Calecute. Nos Cantos VII e VIII, os portugueses já se encontram na Índia. Consultando Álvaro Velho [2], encontramos a passagem seguinte:
(...) E uma sexta-feira, que foram 18 dias de Maio, vimos uma terra alta, a qual havia vinte e três dias que não víamos terra (...)
Podemos concluir que, no dia 18 de Maio de 1498, os navegadores avistaram terras da Índia pela primeira vez. Camões canta a ocorrência como se segue.
«Mas já a amorosa estrela cintilava
Diante do Sol claro, no Horizonte,
Mensageira do dia, e visitava
A terra e o largo mar, com leda fronte.»
(Os Lusíadas, VI, 85)
Aqui, a "amorosa estrela" é Vénus. No tempo de Camões, a palavra "estrela" tinha uma maior abrangência do que hoje em dia. As estrelas podiam ser fixas (as do firmamento) ou erráticas (planetas). Uma vez que Vénus visitava terra e mar, é nesta estrofe que deparamos com terra à vista pela primeira vez depois da passagem do Índico.
Figura 34: Vasco da Gama e o piloto avistam terras da Índia; painel em Portimão.
A expressão "diante do Sol claro" é de uma maravilhosa precisão. Hoje em dia temos todos os meios técnicos para simular esse amanhecer. No dia 18 de Maio, Vénus já era muito difícil de se ver, ofuscada pelo Sol mesmo por trás de si. No dia 19, já era quase impossível. O avistamento das terras da Índia coincide, de certa forma, com a despedida de Vénus como "mensageira do dia" (Figura 35). Vénus, que como deusa tinha acompanhado os portugueses, protegendo-os dos perigos, despedia-se agora como estrela da manhã, cumprida a sua missão.
Figura 35: Despedida de Vénus, aproximação a Calcute, 18 de Maio de 1498.
Uma vez na Índia, os portugueses têm de se entender e negociar com os locais. Uma das mais belas estrofes astronómicas de Camões é dedicada ao momento em que Vasco da Gama explica ao rei da Índia onde fica Portugal.
Figura 36: Vasco da Gama falando com o rei da Índia; painel na Cidade da Praia, Cabo Verde.
O poeta utiliza uma ideia já explicada na secção 4.1, relacionada com a rotação terrestre. Mas, desta vez, a musicalidade da estrofe atinge uma magnitude que dispensa comentários.
«Um grande Rei, de lá das partes onde
O céu volúvel, com perpétua roda,
Da terra a luz solar co a Terra esconde,
Tingindo, a que deixou, de escura noda»
(Os Lusíadas, VII, 60)
O "grande rei" é o rei de Portugal; "partes" refere-se a Portugal. O "céu volúvel" é a décima esfera do sistema geocêntrico seguido por Camões, primeiro móbil, responsável pelo movimento diurno (abordaremos o tema na próxima secção). Sendo assim, o segundo verso clarifica que o movimento diurno é a "chave" para a compreensão da estrofe. O terceiro verso é fantástico: o céu volúvel com o seu rodar perpétuo esconde luz da terra firme com a Terra planeta. O planeta vai fazendo sombra à medida que roda, ou seja, "tingindo a (Europa) que deixou de escura noda (nódoa, noite)". Quando Portugal anoitece, já o continente anoiteceu atrás de si e, com essa ideia simples, fica esclarecido o seu extremo posicionamento ocidental. Sem dúvida, uma interessante e muito poética localização.