Geograficamente falando, no início da obra, a frota de Vasco da Gama viajava pelo canal de Moçambique. No Canto I, até Mombaça. No Canto II, após uma cilada em Mombaça, até Melinde. Em Melinde, os habitantes locais foram amistosos para com os portugueses, providenciando um piloto, ajuda fundamental para levar a cabo o segmento final da viagem no Oceano Índico.
No poema, Baco, deus romano do vinho e dos excessos, é inimigo dos portugueses. É sabido que, na vida real, a armada foi alvo de muitas ciladas por parte dos habitantes locais. Na poesia de Camões, a causa dessas ciladas é Baco.
Por outro lado, Vénus, a deusa romana do amor e da beleza, intercede pelos portugueses. No poema, esta amorosa aliada é a razão para os portugueses terem sobrevivido às várias ciladas.
Vasco da Gama foi informado mais do que uma vez sobre falsos portos cristãos. Vénus, vendo que na realidade eram terras de muçulmanos, desviava a frota com ventos contrários. Em relação à cilada de Mombaça, Vénus, com a ajuda das Nereidas, impediu os barcos de entrarem no perigoso porto. Os barcos não avançavam, perante o espanto de todos, apesar de o vento os empurrar em direcção à cilada.
Figura 5: Centro cultural Rodrigues Faria, Jorge Colaço (1868-1942).
Astronomicamente falando, Vénus é um planeta do sistema solar. Por ser um planeta interior (orbita entre a Terra e o Sol), apenas pode ser visto em circunstâncias específicas. Em certas posições da sua órbita, Vénus pode ser "Estrela da Tarde", visível após o pôr-do-sol, ou "Estrela da Manhã", visível antes do nascer do Sol. Sabemos hoje que Vénus foi Estrela da Manhã durante toda a navegação portuguesa no Oceano Índico. Os marinheiros eram "acordados" por esta deusa.
Figura 6: Esquema exagerado sobre a observação de Vénus (à esquerda, Estrela da Manhã; à direita, Estrela da Tarde).
O amanhecer mais glorioso da primeira viagem de Gama ocorreu no dia 20 de Janeiro de 1948 (Figura 7). A armada lusitana estava no sul de África. Vénus nasce lado a lado com Júpiter (em conjunção) e, pouco depois, nasce Mercúrio.
Figura 7: 20 de Janeiro de 1948, sul de África.
Uns meses mais tarde, em Abril, já depois de resolvidas todas as ciladas, o amanhecer dá-se com Júpiter a nascer primeiro para, pouco depois, surgir Vénus, como que apressada «passando avante» atrás dele (Figura 8).
Figura 8: Abril de 1948, costa oriental de África.
A ajuda divina culmina com um pedido de ajuda a Júpiter, cantado por Camões. E constitui uma parte lindíssima da obra. Vénus adopta uma postura e a sua contrária, como é habitual em muitos versos camonianos. É impossível resistir aos seus encantos...
«E mostrando no angélico sembrante
Co riso uma tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre, magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhuma iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre fala:»
(Os Lusíadas, II, 38)
Camões canta da maneira que se segue a partida de Vénus para junto de Júpiter, com o objectivo de pedir auxílio a favor dos portugueses. Estes versos referenciam o sistema geocêntrico, que será discutido mais à frente neste texto. Independentemente da passagem da terceira esfera para a sexta esfera, observação relacionada com o sistema geocêntrico, não será a ideia do "Avante passa" uma alusão ao que os marinheiros viam nos céus?
«A fermosa Dione e, comovida
Dantre as Ninfas se vai, que saudosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no Sexto Céu,
Pera onde estava o Padre, se moveu.»
(Os Lusíadas, II, 33)
Camões utiliza frequentemente as posições do Sol sobre o Zodíaco para datar acontecimentos. A Lua é habitualmente usada para referir com precisão intervalos de tempo. Ainda assim, há interessantíssimas excepções. Nos versos seguintes, a Lua não indica um período de tempo, mas é-lhe dada a missão de iluminar o céu do pôr-do-sol do dia da chegada a Moçambique, a 2 de Março de 1498. Camões descreve do seguinte modo o entardecer desse dia; Febo é o deus romano equivalente a Apolo e personifica o Sol; a sua irmã é a Lua.
«Nisto Febo nas águas encerrou,
Co carro de cristal, o claro dia,
Dando cargo à Irmã, que alumiasse
O largo Mundo, enquanto repousasse.»
(Os Lusíadas, I, 56)
Segundo Camões, a Lua teria ficado com o cargo de iluminar o mundo no momento do pôr-do-sol. Será esta frase mera figura de estilo?
O dia 28 de Fevereiro de 1498 tinha sido quarto crescente. No dia 2 de Março, a Lua estava na transição para Lua cheia. Então, de facto, no momento do pôr-do-sol do dia 2 de Março de 1498, a Lua estava bem alta no céu a iluminar exuberantemente o mundo (Figura 9).
Figura 9: Lua ao pôr-do-sol, Moçambique, 2/3/1498.
Quanto às datações através do movimento aparente do Sol, é importante fazer algumas observações prévias. Visto da Terra, o Sol parece mover-se sobre uma circunferência, tendo como pano de fundo doze constelações: as constelações do Zodíaco.
Figura 10: Zodíaco.
A circunferência aparente, a "eclíptica", por convenção, é dividida em doze regiões identificadas pelos "signos do Zodíaco". Começando no "ponto vernal" (o ponto da eclíptica ocupado pelo Sol no momento do equinócio da Primavera), cada signo ocupa assim uma região de 30º.
Acontece que a região da eclíptica identificada com um determinado signo, em geral, não coincide com a constelação com o mesmo nome. Tal desacerto deve-se ao facto de as constelações se deslocarem para oriente relativamente aos signos, devido ao fenómeno da precessão dos equinócios. Na realidade, o eixo da Terra move-se como se de um pião se tratasse. E isso "desregula" os céus, provocando o dito desfasamento. Um ciclo completo dura cerca de 26 000 anos.
Figura 11: Precessão dos equinócios.
O fenómeno da precessão dos equinócios era conhecido no tempo de Camões. Na Chronographia (1576) de Jerónimo Chaves (1523-1574) é mesmo possível conhecer tanto a entrada no signo, como a entrada na constelação (ou na imagem) .
Entra el sol en el signo de Virgo communmente a los quatorze de Agosto, comiença a entrar en la imagen al fin de Agosto.
in Chronographia, Jerónimo Chaves
Pode mesmo exemplificar-se com um poema de 1826 que utiliza as duas entradas solares.
N’Os Lusíadas, quando Camões menciona a posição do Sol, ele refere-se sempre aos signos e não às constelações. Veja-se como se serve de mais uma lenda da mitologia para datar a chegada da armada a Melinde, em Abril de 1498. Segundo a lenda, Júpiter transformou-se num belo touro branco para raptar a princesa Europa (por ter sido levada para territórios "para lá da Grécia", o seu nome baptizou o velho continente). Os versos seguintes descrevem o dia.
«Era no tempo alegre, quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e o outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia.
A memória do dia renovava
O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,
Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,
O selo pôs a quanto tinha feito;
Quando chegava a frota àquela parte,
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada, e leda de arte
Que bem mostra estimar o santo dia.»
(Os Lusíadas, II, 72, 73)
Em 1498, a "luz febea" (luz de Febo, raios solares) entrava no "roubador de Europa" (Touro) em meados de Abril. De facto, a chegada a Melinde deu-se a 15 de Abril de 1498, domingo de Páscoa. Por esse motivo, há uma dupla referência: por um lado a lenda pagã, por outro lado, o "santo dia". Nunca perdendo a musicalidade.