Depois das façanhas heróicas, os lusitanos estão ansiosos por ter
«O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Pera contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes»
(Os Lusíadas, IX, 17)
É neste contexto que, no Canto IX, Vénus premeia os navegadores. Isso acontece numa ilha no meio do oceano, a Ilha dos Amores, onde os homens descansam e se entregam a todo o tipo de prazeres. No Canto X, Tétis conduz Vasco da Gama ao topo de um monte e mostra-lhe, de acordo com a cosmografia geocêntrica, a "grande machina do mundo".
Vários estudiosos tentaram localizar geograficamente a Ilha dos Amores, assumindo a sua existência real [1]. Fernão Alvares sugeriu a Ilha de Santa Helena, Teófilo Braga referiu a Ilha Terceira, Faria e Sousa identificou-a como sendo a Ilha de Angediva, Gomes Monteiro propôs a Ilha de Zanzibar, Francisco Freire de Carvalho a Ilha de Ceilão, Cunha Gonçalves indicava a Ilha de Bombaim. Manuel Correia (1600-1653), compositor contemporâneo de Camões, referiu
"Foy hu fingimento que o Poeta aqui fez, como claramente consta da letra."
Esta última possibilidade parece ser a mais plausível. A Ilha dos Amores, com o objectivo poético e literário que Camões lhe deu, deve pertencer, com quase toda a certeza, ao universo do imaginário (por esse motivo, colocámos uma ilha que não existe na imagem de entrada). O que se relaciona com o cerne deste texto, quer a ilha seja imaginária, quer seja real, é o facto de ser nesta parte que Camões se revela conhecedor da astronomia do seu tempo, dando indicações de que a sua fonte principal é o Tratado da Sphera de Pedro Nunes. É sobre isso que nos debruçaremos nesta secção.
7.1. Modelo geocêntrico: movimentos rápidos
Na Divina Comédia de Dante (1307-1321), o Inferno encontra-se no interior da Terra. A alma, no seu caminho para Deus, deve subir através do Purgatório e das nove esferas (dos planetas, das estrelas e da esfera de cristal) até chegar ao Paraíso.
Figura 38: Michelangelo Caetani (1804-1882),
La Materia della Divina Comedia di Dante Aliguieri, 1855.
Objectando a ideia dantiana das 9 esferas, Pedro Nunes faz a seguinte anotação junto ao texto de Sacrobosco:
"segundo a comum escola dos astrólogos a nona esfera não é primeiro móbil mas segundo e o décimo é o primeiro: e nestes dois céus de cima não há estrelas"
Para Pedro Nunes, a machina do mundo era composta por dez esferas celestes concêntricas. No centro estava a Terra, formada pelos quatro elementos: terra água, ar e fogo, e sobre ela estavam dez esferas: as das sete estrelas erráticas (os planetas, o Sol e a Lua), a das estrelas fixas e ainda mais duas esferas que explicavam o movimento diurno das estrelas (as fixas e as erráticas) e o movimento de precessão dos equinócios (na altura chamado "movimento dos auges e estrelas fixas"). É esta a proposta adoptada por Camões.
Para compreender bem os versos de Camões, é importante fazer algumas observações prévias sobre o modelo geocêntrico. A história do modelo geocêntrico versus modelo heliocêntrico é frequentemente mal compreendida. Faz parte do imaginário colectivo uma oposição certo/errado ou Terra fixa/Terra móvel. Há uma falsa ideia de um antes e de um depois. E, também, uma ideia geral, mas pouco detalhada, sobre as implicações filosóficas e teológicas subjacentes.
A verdade é que, desde a Antiguidade até aos finais do Renascimento, os astrónomos se mostraram mais ou menos desinteressados quanto às questões cosmológicas associadas a esta temática. A sua tarefa principal eram os modelos teóricos e as tábuas de movimentos planetários. Os modelos geocêntrico e heliocêntrico são isso mesmo: modelos. Ambos capazes de modelar e prever a realidade. Em muitos casos, providenciam situações geométricas equivalentes (mais detalhe sobre estes assuntos em [9]).
Uma das questões suscitadas pelo acto de "fixar a Terra" está relacionada com os movimentos retrógrados. Do ponto de vista terrestre, por vezes, os planetas parecem "andar para trás". É claro que esse efeito aparece em contraste com o pano de fundo, as estrelas fixas no firmamento (oitava esfera de Dante e de Camões). Esse facto, facilmente observável, levanta alguns problemas geométricos. Os ditos movimentos retrógrados são ilustrados na Figura 39. Na imagem, as cruzes representam as estrelas; o ponto amarelo, o Sol; o ponto azul, o planeta Terra; o ponto vermelho, o planeta Mercúrio. A relação das órbitas está razoavelmente fiel à realidade. A relação de velocidades foi ligeiramente alterada para promover uma melhor animação do fenómeno.
Figura 39: Movimentos retrógrados.
A questão de se considerar ou não o Sol em movimento, de certa forma, ofusca um tópico mais essencial, o conceito de referencial. É claro que, do ponto de vista terrestre, o Sol se move. Todos os dias vislumbramos o seu movimento aparente. Uma experiência interessante consiste em fixar a Terra e o Sol num diagrama duplo (Figura 40). Em todos os momentos, a posição relativa dos três corpos presentes na animação é exactamente a mesma. O que muda é a pele do observador que optamos por vestir.
Figura 40: Diagrama duplo: modelo heliocêntrico, modelo geocêntrico;
Sol-Terra-Vénus.
Para o estabelecimento de um modelo geocêntrico eficaz, foi necessário considerar a situação geométrica em que um astro anda em torno de um ponto que, por sua vez, anda à volta da Terra. Essa circunferência centrada num ponto que anda à volta da Terra chama-se "epiciclo". Como na realidade as órbitas são elípticas, foi necessário afinar o modelo para que este pudesse descrever com precisão os movimentos planetários. Sem querer entrar em especificidades técnicas, fora do âmbito deste texto, as circunferências utilizadas em modelos geocêntricos mais precisos não são centradas na Terra, mas sim num ponto ligeiramente ao seu lado. Essas circunferências, chamadas "deferentes", são as órbitas dos epiciclos onde giram os planetas (Figura 41).
Figura 41: Epiciclo orbitando sobre um deferente - Por sua vez,
um planeta movimentando-se sobre o epiciclo.
A Terra está posicionada no ponto azul, à direita do centro.
Com a excepção do Sol e da Lua, todos os planetas têm, para além do movimento sobre o deferente, um movimento sobre um epiciclo, que explica os movimentos retrógrados. O tipo de esquema geométrico exposto na Figura 39 acontece em algumas das esferas da machina do mundo, mas cada um com a sua métrica e velocidade próprias. Estas ideias são vitais para a compreensão de algumas observações feitas por Tétis.
7.2. Modelo geocêntrico: movimentos lentos
Já se referiu anteriormente o "movimento de precessão dos equinócios", que consiste no deslocamento do eixo de rotação da Terra sobre um cone cujo eixo se pode considerar uma direcção fixa no espaço. À luz do que se sabe hoje, este movimento tem um período de aproximadamente 26 000 anos. Por outro lado, no seu movimento sobre o cone, o eixo de rotação da Terra ainda oscila sobre uma circunferência, causando alguma perturbação no movimento de precessão dos equinócios. Este é o chamado "movimento de nutação", com um período de 18,6 anos (Figura 42).
Figura 42: Movimentos de precessão e nutação.
Hiparco (190 a.C.-120 a.C.) já conhecia o movimento de precessão dos equinócios, que ficou conhecido pelo nome de "movimento dos auges e das estrelas fixas". Mais tarde, Ptolomeu (90 d.C.-168 d.C.) deduziu que este movimento se devia a um movimento da oitava esfera e seria de um grau em cada cem anos. Uma revolução completa levaria 36.000 anos a realizar-se.
Por sua vez, o astrónomo Thebit Ben Chora (836-901) terá sido o primeiro a propor o movimento da trepidação para explicar variações no movimento das estrelas fixas em relação aos equinócios. Tratava-se de uma versão grosseira do hoje designado movimento de nutação.
Sobre a temática dos movimentos lentos, diz o texto de Sacrobosco:
"(…) e porém elas [as esferas] sem embargo deste movimento [o movimento diurno] andam em contrário. A oitava esfera [move-se] em cem anos um grau (…)"
ao que Pedro Nunes acrescenta, corrigindo quer a duração de tal movimento, quer a esfera responsável por ele, indicados no texto de Sacrobosco:
"Isto segundo a opinião de Ptolomeu (...) este movimento de ocidente para oriente pela ordem dos signos pertence à nona esfera e não é 100 anos um grau, mas em 200 anos um grau e 28 minutos, de sorte que em 49 mil anos se cumpre a revolução. E o movimento próprio da oitava é o da trepidação que se faz em 7.000 anos."
Em resumo, para Pedro Nunes (e para Camões), a machina do mundo funciona da seguinte forma:
1) A décima esfera, que dá uma volta completa por dia, é a impulsionadora do movimento diurno (primeiro móbil), de oriente para ocidente;
2) A nona esfera, que se move de ocidente para oriente e que completa uma revolução em 49.000 anos, é a responsável pelo movimento dos auges e das estrelas fixas (segundo móbil).
3) O movimento de trepidação da oitava esfera consiste no movimento dos pontos equinociais verdadeiros da oitava esfera sobre duas pequenas circunferências na nona esfera, de centros sobre os pontos de Carneiro e Balança da nona esfera. Cada volta é descrita em 7.000 anos, e depois de sete movimentos (ou seja, passados 49.000 anos) é dada uma revolução completa.
É absolutamente notável constatar que Camões cantou estes conceitos, a mais avançada ciência do seu tempo.
7.3. Grande Machina do Mundo em verso
Na entrada da Faculdade de letras da Universidade de Lisboa há uma obra de Almada Negreiros (1893-1970) que ilustra o momento em que Tétis mostra a "grande machina do mundo" a Vasco da Gama. Na parte que se segue iremos analisar esse momento no sentido científico, no sentido poético e, também, no sentido literal, com a máquina a mexer. Usaremos o desenho de Almada para o fazer.
Figura 43: "Grande Machina do Mundo", Almada Negreiros,
Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
A descrição de Tétis a Gama é uma espécie de zoom, de fora para dentro. Começa em Deus (fora da máquina), passa pelos primeiro e segundo móbeis, continua pelo firmamento, desce pelas esferas das estrelas erráticas, até chegar à Terra. Os versos que iniciam a descrição são os seguintes:
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.»
(Os Lusíadas, X, 80)
Esta introdução está repleta de significado. Nos primeiros quatro versos, Tétis esclarece que a máquina é produto do "Saber alto e profundo". É possível vislumbrar uma dupla interpretação, típica do poeta, mencionando o carácter abrangente do "Saber" ("sem princípio e meta limitada"), quer seja divino, quer seja humano. A segunda parte da estância, de algum modo, aborda a fronteira entre o humano e o divino. A Deus o que é de Deus; à ciência e ao engenho humano o que é do humano ("A tanto (Deus) o engenho humano não se estende").
Após mencionar a zona de Deus e das "almas divinas", que estão estáticas para lá da máquina ("que não anda"), Tétis avança para a décima esfera, primeiro móbil, responsável pelo movimento diurno.
«Debaxo deste círculo onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro
Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.»
(Os Lusíadas, X, 85)
O primeiro móbil causa o movimento diurno de todas as esferas interiores. Um movimento rápido, "leve e ligeiro". Em particular, a esfera do Sol é submetida a este movimento alheio, causador do dia e da noite. Repare-se, nos próximos versos, o pormenor das palavras "rapto" e "alheio". Tétis esclarece que este movimento diurno é um movimento de arrasto provocado pela décima esfera, não sendo um movimento próprio.
«Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.»
(Os Lusíadas, X, 86)
Nas Figuras 44, 45 e 46, por uma questão de simplificação, mostramos apenas as esferas do Sol e do firmamento. Os incrementos temporais da animação são iguais a uma hora. Quando as horas passam, vemos o movimento diurno do Sol e das estrelas.
Figura 44: "Grande Machina do Mundo", hora a hora.
Em seguida, Camões mostra toda a sua competência científica, pondo Tétis a cantar a nona esfera da seguinte maneira:
«Debaxo deste leve, anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.»
(Os Lusíadas, X, 86)
Segundo Pedro Nunes, o movimento dos signos de ocidente para oriente é de um grau e 28 minutos em cada 200 anos. Com a sua liberdade poética, Camões arredonda para um grau em cada 200 anos, usando os valores de Pedro Nunes e não os de Ptolomeu. Neste conjunto de versos, dedicado ao lento movimento de precessão, a palavra "curso" designa "ano" e a palavra "passo" designa "grau".
Em seguida, a trepidação também não é esquecida. Na estância dedicada ao tema, a esfera do firmamento é tratada como a esfera dos "corpos lisos e radiantes". Essa esfera tem um movimento de trepidação (um "curso ordenado"). Os "axes" são os eixos relativos a esse movimento.
«Olha estoutro debaxo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.»
(Os Lusíadas, X, 87)
Como se disse anteriormente, a trepidação é baseada no movimento dos pontos equinociais sobre duas pequenas circunferências opostas (para simplificar, só mostramos uma das circunferências). A Figura 45 ilustra a precessão e a trepidação, utilizando incrementos temporais de 200 anos. Temos sempre posições solares em dias de equinócio. Como se vê, os signos correspondentes aos equinócios vão variando ao longo de grandes períodos de tempo.
Figura 45: "Grande Machina do Mundo", incrementos de 200 anos.
Se há coisa poética, é uma descrição estelar. Em primeiro lugar, o Zodíaco não é esquecido. Trata-se de um "cinto d'ouro" que "veste" o firmamento.
«Bem vês como se veste e faz ornado
Co largo Cinto d' ouro, que estelantes
Animais doze traz afigurados,
Apousentos de Febo limitados.»
(Os Lusíadas, X, 87)
Em termos de navegação, as constelações extra-zodiacais são também da maior importância. Pense-se, por exemplo, no que já foi dito sobre as Ursas e sobre o Cruzeiro. A estância 88 é uma lindíssima descrição estelar envolvendo constelações tanto do hemisfério celestial norte, como do hemisfério celestial sul.
«Olha por outras partes a pintura
Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopeia a formosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.»
(Os Lusíadas, X, 88)
Mais uma vez, é preciso analisar alguns aspectos da mitologia pagã para se entender todo o alcance desta estância. Por ter forma de carro, "Carreta" é um dos nomes dados à Ursa Maior. "Cinosura" é a Ursa Menor. Com isto, o terceiro verso fica explicado. Na mitologia, Andrómeda é filha de Cefeu. Tanto Andrómeda como Cefeu são constelações do hemisfério celestial norte. As constelações Dragão e Cassiopeia são-lhes próximas e, por esse motivo, o poeta associa-as. Ficam explicados mais dois versos, o quarto e o quinto. A constelação de Orionte tem sido muito referenciada ao longo dos tempos. Já foi representada como um caçador, brandindo uma arma ("gesto turbulento"). Esse acto agressivo é com a intenção de fazer frente a um touro. Sendo assim, temos mais uma típica referência indirecta: no sexto verso, Camões também fala da constelação de Touro, sem a explicitar. O Caçador tem aos pés a Lebre (já no hemisfério celestial sul), o Cão Maior e o Cão Menor, constelações referidas no oitavo verso.
Quanto ao cisne choroso, precisamos de abordar mais uma lenda grega. Zeus (Júpiter) transformou-se em cisne para cortejar a princesa Leda. Dessa relação, nasceram Castor e Pólux. Castor herdou a mortalidade da mãe e Pólux a imortalidade do pai. É claro que, por definição, os mortais morrem e foi isso mesmo que aconteceu a Castor. Depois de uma súplica de Pólux, Zeus, comovido, dividiu a imortalidade dos irmãos, fazendo-os partilhar alternadamente dias de vida e de morte. Daí o "cisne que suspira" e, no sétimo verso, temos mais uma referência indirecta à constelação de Gémeos. A Nau é a constelação de Argos. Incrivelmente, de forma directa ou indirecta, são mencionadas 15 constelações numa única estância.
Agarrando novamente o fio condutor de Tétis, sobre as esferas dos planetas erráticos, segue-se uma lista ordenada. O "Olho do céu" é o Sol; os "três rostos" referem as três fases lunares visíveis (a Lua Nova não conta).
«Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.»
(Os Lusíadas, X, 89)
A Figura 46 mostra o movimento próprio da esfera solar. Escolhendo incrementos temporais de um dia, e começando ao meio-dia solar de um Equinócio de Primavera, vemos as várias posições do Sol ao longo dos dias. Repare-se que, com este incremento, não conseguimos ver o movimento do firmamento. Uma vez que estamos a ver uma sequência de meios-dias solares, o firmamento está sempre posicionado da mesma maneira.
Figura 46: "Grande Machina do Mundo", dia a dia.
Ainda quanto aos movimentos próprios das estrelas erráticas, nos dois primeiros versos da estância 90, "Em todos estes orbes, diferente/ Curso verás, nuns graves e noutros leve", Camões refere-se aos diversos deferentes de cada planeta (Figura 41). Os planetas orbitam com diferentes velocidades sobre os vários deferentes: Saturno mais lento (grave) e a Lua mais rápida (leve). Os dois versos seguintes "Ora fogem do Centro longamente,/ Ora da Terra estão caminho breve," descrevem o movimento de cada planeta sobre o seu deferente: ora perto da Terra, ora longe. Não é claro que Camões tenha pensado vincadamente na questão dos epiciclos ao elaborar os seus versos. Pode ser que sim, pode ser que não. Por exemplo, na estância 89, ao cantar "Júpiter logo faz o movimento", poderia estar a pensar no seu movimento próprio em toda a sua plenitude, sobre um epiciclo a orbitar o deferente. Mas é pura especulação, Camões não explicita essa intenção, como faz em relação a outras características do sistema geocêntrico.
«Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,»
(Os Lusíadas, X, 90)
A descrição de Tétis chega à Terra na estância 91. É chegando a este bom porto que terminamos a viagem proposta neste texto.
«Neste centro, pousada dos humanos,
Que não somente, ousados, se contentam
De sofrerem da terra firme os danos,
Mas inda o mar instábil experimentam,
Verás as várias partes, que os insanos
Mares dividem, onde se apousentam
Várias nações que mandam vários Reis,
Vários costumes seus e várias leis.»
(Os Lusíadas, X, 91)