4.1. Localização de Portugal
Nos cantos III e IV, Vasco da Gama conta a história de Portugal ao rei de Melinde. Nestes cantos, podemos encontrar episódios célebres como a vassalagem de Egas Monis, o cerco de Lisboa, as batalhas de Ourique e do Salado, o caso de Inês e D. Pedro, a batalha de Aljubarrota ou a partida para a Índia com o episódio do velho do Restelo.
Na introdução da exposição, após uma invocação de Camões a Calíope, Vasco da Gama começa por posicionar a Europa no globo terrestre e Portugal na Europa. Nas suas notas a Sacrobosco, Pedro Nunes cita clássicos sobre a categorização das zonas terrestres em função dos círculos polares e dos trópicos. Segundo a visão clássica, as duas zonas entre os polos e os círculos árticos e a zona entre o trópico de Caranguejo e o trópico de Capricórnio eram supostamente inabitáveis; as primeiras por serem muito frias, a segunda por ser muito quente. Os povos estariam instalados nas zonas temperadas entre os círculos polares e os trópicos.
Como se pode ver na Figura 13, há cinco zonas definidas pelos círculos polares e pelos trópicos. Os círculos polares têm os pontos a partir dos quais, em alguma altura do ano, é possível ter 24 horas diurnas ou 24 horas nocturnas. Sobre os trópicos, é possível ter o Sol no zénite (no caso da Figura 13, essa ocorrência dá-se sobre o trópico de Caranguejo). As zonas gélidas entre os círculos polares e os polos estão indicadas a azul. A zona tórrida entre os trópicos está indicada com uma cor mais rosada. As zonas temperadas entre os círculos polares e os trópicos estão indicadas a verde.
Figura 13: Cinco zonas.
Segundo Pedro Nunes, as navegações portuguesas desmistificaram a ideia de inabitabilidade, apontando para uma maior abrangência das posições geográficas dos povos. É claro que as descobertas influenciaram fortemente a ciência.
Recorrendo a estas ideias, o poeta posiciona a Europa.
«Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta setentrional do Sol luzente,
E aquela que por fria se arreceia
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do Areturo, e do Ocidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E pela Austral o mar Mediterrano.»
(Os Lusíadas, III, 6)
Esta estância fica totalmente explicada através do que se disse sobre as cinco zonas. Observa-se apenas que, na referência ao Norte, Areturo é uma estrela da constelação Boötes (pastor) na cauda da Ursa Maior.
Após a localização da Europa, Gama localiza Portugal. José Hermano Saraiva fala desse trecho da forma que se segue.
É interessantíssimo reparar que Hermano Saraiva escolheu três versos de uma localização que utiliza quatro versos. É claro que, num programa de televisão, se torna difícil explicar o quarto verso. Mas repare-se na musicalidade e na beleza do conjunto completo de quatro versos - experimente o leitor dizê-los em voz alta.
«Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.»
(Os Lusíadas, III, 20)
No quarto verso, o poeta utiliza o movimento de rotação terrestre para esclarecer se a dita "cabeça da Europa" está para ocidente ou para oriente. No fundo, o verso que tanta relevância tem na musicalidade é utilizado para dizer se o corpo da Europa está virado para a esquerda ou para a direita. Como Portugal fica no extremo ocidental do continente, quando entra na noite já a Europa inteira está imersa na escuridão. Quando Portugal anoitece, já antes se estendeu a noite por todo o continente, resultado da sua posição ocidental. Sendo assim, Camões orienta poeticamente Portugal como sendo "onde Febo repousa no Oceano". Esta ideia, como bem notou Luciano Pereira da Silva, já tinha sido usada por outros. Mas o esplendor musical camoniano é inimitável. A ideia será utilizada novamente pelo poeta quando os portugueses já estiverem na Índia e será tratada novamente neste texto.
É realmente vasto o conhecimento científico de Camões. Num outro conjunto de versos, a propósito de Pompeu, Gama explica que este não devia ficar choroso por ter sido derrotado por Júlio César, posto que o seu nome era temido e respeitado por muitos.
«Posto que o frio Fásis ou Siene,
Que pera nenhum cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a linha ardente
Temessem o teu nome geralmente.»
(Os Lusíadas, III, 71)
A cidade de Siene, situada no Egipto, era famosa devido à medição de um meridiano terrestre, levada a cabo por Eratóstenes (276 a.C.-194 a.C.) no século III antes de Cristo. Em dias de solstício, ao meio-dia solar, os obeliscos não tinham sombra em Siene. Ao contrário, em Alexandria, cidade de Eratóstenes, os obeliscos tinham sombra. Com um célebre argumento geométrico, na sequência da constatação e determinação dessa diferença, Eratóstenes conseguiu estimar em 7º12' o arco entre as duas posições, sensivelmente 1/50 de circunferência. Os betamistas determinaram a distância entre Alexandria e Siene, cerca de 5000 estádios. Dado que Alexandria e Siene se encontram sensivelmente no mesmo meridiano, para culminar este grande momento na história da ciência, bastou efectuar uma multiplicação por 50. Camões não precisou deste texto todo para referir esse momento. Bastou "Siene, que pera nenhum cabo a sombra se inclina".
4.2. Um cerco e algumas batalhas
Os episódios da história de Portugal não escaparam ao estilo de Camões. Como dito anteriormente, a Lua é usada muitas vezes para mencionar intervalos de tempo. Uma lunação ou mês sinódico lunar é o tempo percorrido entre duas luas novas consecutivas. Durante uma lunação, cerca de 29 dias e 12 horas, ocorrem as quatro fases da Lua. Não se confunda uma lunação com o período orbital lunar que corresponde a um pouco mais de 27 dias. A questão é que quando a Lua se move, a Terra também se move, criando um efeito de desfasamento (Figura 14).
Figura 14: Lunação.
Na descrição do cerco de Lisboa, a duração é expressa em lunações. Camões não pretende aqui ser rigoroso, até porque a duração exacta não é conhecida, mas apenas dar uma ideia de tal duração, que foi cerca de cinco meses (ou cinco lunações), afirmando que, durante o cerco, a Lua fora cinco vezes Nova e cinco vezes Cheia.
«Cinco vezes a Lua se escondera
E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando a cidade, entrada, se rendera
Ao duro cerco, que lhe estava posto.»
(Os Lusíadas, III, 59)
Figura 15: Miradouro de Santa Luzia (cerco de Lisboa, 1147) - azulejos de Jorge Colaço.
Quando pensamos em batalhas históricas, os momentos exactos de início e de fim são naturalmente importantes. A batalha de Aljubarrota foi uma das raras grandes batalhas campais da idade média e um acontecimento decisivo no desenrolar da história de Portugal. Isto para não falar de aspectos relacionados com a táctica militar que permitiu que uma armada repleta de homens a pé fosse capaz de vencer uma poderosa armada de homens a cavalo. A batalha decorreu no final da tarde de 14 de Agosto de 1385, entre as tropas portuguesas e aliados ingleses, comandadas por D. João Mestre de Avis e pelo seu Contestável Nuno Álvares Pereira, e as tropas castelhanas e aliados, comandadas por D. João I de Castela. Camões usou a ajuda solar nos seus versos.
« Era no seco tempo que nas eiras
Ceres o fruto deixa aos lavradores;
Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto;
Baco das uvas tira o doce mosto.»
(Os Lusíadas, IV, 27)
Astreia é um dos nomes dados à constelação de Virgem, e de facto o Sol entrava em Virgem no dia 14 de Agosto, data coincidente com o dia da batalha de Aljubarrota.