O Canto V é aquele que contém mais estâncias com referências astronómicas. Isso justifica-se pelo facto de ser neste canto que se encontra descrita a maior parte da viagem. A navegação foi auxiliada pelas estrelas e pelo mapa de rumos, tópicos tratados nas secções que se seguem.
5.1. Navegação astronómica: encontrando o Norte
As constelações Ursa Maior e Ursa Menor eram duas auxiliares preciosas na navegação no hemisfério norte. A Estrela Polar encontra-se na "cauda" da Ursa Menor, actualmente alinhada com o eixo de rotação terrestre. Durante a viagem de Gama, isso também acontecia. Por esse motivo, o céu parece rodar à sua volta e a sua altura é quase coincidente com a latitude do lugar. Por outro lado, a Ursa Maior é uma das constelações mais conhecidas do hemisfério norte. Trata-se de uma constelação grande, com estrelas brilhantes, relativamente fácil de localizar no céu nocturno. O par de estrelas Merak e Dubhe são as chamadas "guardas", muito úteis para localizar a Estrela Polar, para onde apontam. Onde algumas pessoas vêem ursas, outras vêem panelas ou outros desenhos. Como bem diz Camões, o céu é uma "pintura que as estrelas fulgentes vão fazendo" (Figura 17).
Figura 17: Ursas: Em cima - sem gravuras. Em baixo - com gravuras.
Quando se viaja para Sul, as Ursas vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar até deixarem de ser visíveis (Figura 18). Para melhor visualizar o fenómeno, pense-se na Estrela Polar. Se um observador estiver no Polo Norte, para a conseguir ver, tem de olhar bem para cima; se um observador estiver no Equador, devido ao facto de a Estrela Polar estar sobre o horizonte, o observador tem de olhar em frente. No polo, o céu roda sobre a cabeça do observador, como se este fosse um eixo; no Equador, o céu roda "passando" por cima do observador.
Figura 18: Viagem do Polo Norte ao Equador (céu de 1498).
A maneira como Camões usa estes factos é notável. Mas, primeiro, para não variar, temos de introduzir uma lenda pagã. De acordo com Metamorphoses de Ovídio (43 a.C. - 18 d.C.), a ninfa Calisto foi seduzida por Júpiter e dessa relação nasceu um filho, Arcas. Juno, a ciumenta mulher de Júpiter, transformou Calisto numa ursa para que esta deixasse de ser atraente aos olhos do seu marido. Pouco depois, Arcas, andando à caça no bosque, viu a ursa de olhos fitos nele e quase matou a mãe por engano, não fosse a intervenção de Júpiter que, com um vento repentino, os atirou a ambos para o céu, onde ficaram na forma de duas constelações: a Ursa Maior (Calisto) e a Ursa Menor (Arcas). Porém, Juno vingou-se novamente, pedindo a Tétis e a Neptuno para que não permitissem que as ursas se banhassem no mar.
Figura 19: Gravura de Hendrik Goltzius (1558-1617).
Camões joga poeticamente com tudo isto, concebendo os seus versos astronómicos mais conhecidos.
«Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.»
(Os Lusíadas, V, 15)
Na verdade, as Ursas Maior e Menor eram, em Lisboa, no tempo de Camões, circumpolares, assim como o eram para Ovídio, no seu tempo, em Roma. No entanto, com a precessão, esta situação está lentamente a mudar. De todas as estrelas da Ursa Maior, Alkaid é a mais afastada e Dubhe a mais próxima do Polo Norte. Por esse facto, quando nos deslocamos para Sul, a estrela Alkaid é a primeira a deixar de ser circumpolar, mas também a última a ficar totalmente invisível. No tempo de Vasco da Gama, bastaria à armada viajar 1º para Sul (ou seja, atingir a latitude de Sines), para ver mergulhar a estrela Alkaid. Hoje em dia, a estrela Alkaid mergulha no horizonte a partir da latitude 40º43’N, sendo ainda circumpolar no Porto, mas já não em Coimbra ou na Guarda.
O poeta localiza a armada lusitana dizendo-nos que esta já estava num ponto passível de ver o ocaso de pelo menos parte da Ursa Maior. E faz isso com enorme musicalidade. Ao mesmo tempo, referencia um episódio da cultura pagã, trazendo uma nota de humor, na medida em que a lenda de Calisto é muitíssimo bem-humorada. Finalmente, foca um dos seus objetivos fundamentais, a exaltação dos feitos portugueses. Ao ver as Ursas banharem-se, os navegantes desafiaram os deuses, uma vez que contrariaram a maldição de Juno. É quase impossível escrever de forma mais eloquente dois versos como os dois últimos desta estrofe.
As Ursas sempre estiveram muito presentes na arte. Para além de Ovídio e Camões, no quadro de Vicent van Gogh (1853-1890), "Noite estrelada sobre o Ródano" (Figura 20), a Ursa Maior aparece em todo o seu esplendor sobre o horizonte. Estas aparições artísticas de objectos celestes deram origem à chamada Astroarqueologia, processo de datação e localização baseado nas posições dos astros em vários momentos e locais. Se não se soubesse o local da feitura do quadro, o facto de a Ursa não passar para baixo da linha do horizonte poderia servir, pelo menos, para excluir algumas hipóteses.
Figura 20: "Noite estrelada sobre o Ródano", van Gogh, 1888.
A dinâmica das Ursas nos céus não está apenas relacionada com a determinação da latitude. Os seus movimentos também podem ser utilizados para a determinação de horas nocturnas, quando o Sol está ausente e não pode ajudar. Naturalmente, no tempo dos descobrimentos, a rotina nas naus era essencial, podendo fazer a diferença entre a vida e a morte. Camões canta esses aspectos rotineiros da seguinte forma:
«Era no tempo quando a luz do dia
Do Eóo Hemispério está remota;
Os do quarto da prima se deitavam,
Pera o segundo os outros despertavam.
Vencidos vêm do sono e mal despertos;
Bocijando, a miúdo se encostavam
Pelas antenas, todos mal cobertos
Contra os agudos ares que assopravam;
Os olhos contra seu querer abertos;
Mas estregando, os membros estiravam.
Remédios contra o sono buscar querem,
Histórias contam, casos mil referem.»
(Os Lusíadas, VI, 38, 39)
“Do Eóo Hemispério está remota” refere o anoitecer, quando a luz do hemisfério oriental está remota. “Os do quarto da prima se deitavam, / Pera o segundo os outros despertavam” refere o render do quarto de prima. Na nau, o dia de bordo dividia-se em quartos de serviço: de quatro em quatro horas entravam de serviço novos grupos de homens. O quarto de prima ia das 8 da noite à meia-noite. Acabava o quarto de prima, entrava-se no quarto de modorra (da meia-noite às 4 da manhã). É devido a este carácter tardio do turno que o poeta sente necessidade de explicar o ar sonolento dos marinheiros e a sua necessidade de contarem histórias uns aos outros. Sem dúvida, estas histórias foram uma grande fonte para Camões, dado o grande período de tempo em que esteve embarcado.
A maneira típica de controlar o tempo era a ampulheta náutica de meia-hora. Cada quarto de vigia durava oito ampulhetas (ou “8 relógios”). Um outro instrumento utilizado na época era o Nocturlábio [3]. Os nocturlábios já eram utilizados desde a Idade Média. O mais antigo é atribuído ao filósofo e poeta maiorquino Raimundo Lúlio (1232-1315). A Figura 21 mostra um instrumento desse género, de uma época um pouco posterior à da viagem de Gama quando, fruto dos descobrimentos, já se sabia mais sobre as estrelas dos céus do Sul.
Figura 21: Nocturlábio.
No centro de um nocturlábio há um furo. Para determinar as horas é necessário colocar o furo sobre a Estrela Polar e orientar o instrumento na posição correcta, com o início de Janeiro na posição Este.
Sobre o nocturlábio, as marcações indicam onde fica a meia-noite. Por exemplo, em meados de Abril fica sobre a cabeça, como se dizia na época. Havia todo um sistema de mnemónicas baseado em partes do corpo humano; daí as palavras “pé”, “hombro”, “cabeça”.
Figura 22: Nocturlábio com figura humana. Regras associadas:
Janeiro meado, será meia-noite no braço esquerdo;
e no fim do dito mês, será meia-noite uma hora acima do braço;
Fevereiro meado, será meia-noite duas horas acima do braço;
no fim do mês será meia-noite na linha do ombro esquerdo.
Seguidamente, depois da observação da Polar pelo furo central, observa-se a posição da Estrela Kochab no instante em causa. Esta outra estrela da Ursa Menor torna-se numa espécie de “ponteiro”. Para saber as horas, basta determinar o tempo passado desde a meia‑noite. Na Figura 23, exemplificamos a consulta deste relógio celestial em Lisboa, no dia 8 de Julho de 1497, 3:30 hora solar, véspera da largada da armada de Gama.
Figura 23: Vendo as horas com um nocturlábio.
No nocturlábio da Figura 21 há um pormenor muito interessante: estão desenhadas duas linhas que representam os horizontes em Cochim e no Rio Gambia. Por serem locais com latitudes baixas, já não é possível observar a Kochab em todas as posições (repare-se que no hemisfério sul a própria Estrela Polar desaparece). Sendo assim, o nocturlábio tem a “desobediência à maldição de Juno” marcada no mostrador. A essas latitudes a Kochab já pode banhar-se nas águas de Neptuno.
5.2. Navegação astronómica: encontrando o Sul
Mais tarde na viagem, deixando de poder contar com a Estrela Polar, os nossos navegadores tiveram que encontrar novas formas de orientação nos céus do hemisfério sul. A grande companheira de viagem no hemisfério sul passaria a ser a constelação do Cruzeiro do Sul.
Figura 24: "Cruzeiro do Sul", azulejos de Jorge Colaço, Pavilhão Carlos Lopes, Lisboa.
Quatro estrelas da constelação, Alfa, Beta, Gama e Delta, estão dispostas em forma de cruz. A simplicidade da utilização do Cruzeiro na navegação reside no facto de as estrelas Alfa e Gama terem aproximadamente a mesma ascensão recta, formando uma linha que aponta para o Sul. Isso significa que, quando Alfa passa pelo meridiano do lugar, o mesmo acontece a Gama, e a haste da cruz fica vertical.
Quando a haste fica vertical, fica também perpendicular à linha do horizonte, apontando para o Polo Sul, ponto que fica na continuação da linha Gama-Alfa. Quanto à determinação do Polo Sul celeste e latitude do lugar, começa-se por traçar a linha determinada por Alfa e Gama do Cruzeiro do Sul. Depois, há duas maneiras alternativas de proceder: (a) o ponto pretendido fica abaixo da constelação, sensivelmente 4½ vezes a distância entre essas estrelas; (b) o ponto pretendido resulta da intersecção dessa linha com a mediatriz entre Alfa e Beta da constelação Centauro (Figura 25). Navegando mais para Sul, encontram-se regiões onde a Cruz pode ser vista integralmente abaixo do Pólo. Nesse caso, a determinação da latitude é feita do mesmo modo, mas o ponto procurado fica acima da constelação. Os dois modos de proceder para o localizar são análogos.
Figura 25: Latitude do lugar no hemisfério sul (céus de 1497).
O Cruzeiro do Sul é mencionado n'Os Lusíadas. Essa estância, importante do ponto de vista histórico e científico, é a seguinte.
«Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde ainda se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.»
(Os Lusíadas, V, 14)
Nesta estância, "nova estrela" significa "nova constelação", o Cruzeiro do Sul. Camões menciona-a, frisando o facto de o Polo Sul não ter nenhuma estrela: "menos rutilante, E, por falta de estrelas, menos bela". Como já se disse, não há falta de estrelas no Polo Norte celeste por estar lá a Estrela Polar. Sendo assim, dada a grande utilidade que o Cruzeiro do Sul tem para a determinação da posição do Polo Sul despido de estrelas, esta associação entre a constelação e o polo é totalmente propositada.
Como bem explica Luciano Pereira da Silva, o mérito dos navegadores portugueses em relação a esta constelação foi posto em causa por Alexandre de Humboldt (1769-1859) e pelos historiadores de astronomia que o seguiram, ao afirmarem que a mais antiga referência ao Cruzeiro do Sul estaria numa carta de Andrea Corsali (1487-?) ao duque Julião de Medicis (1479-1516), a 6 de Janeiro de 1515, enviada a partir de Cochim. Na verdade, Andrea Corsali tinha ido para a Índia numa armada do rei D. Manuel I. Na carta referida, Corsali conta a sua viagem, descrevendo una croce maravigliosa nel mezzo di cinque stelle. A constelação é o Cruzeiro do Sul mas, como Corsali estava a bordo de um navio português, foram com certeza os marinheiros portugueses que lha deram a conhecer. Cochim seria um local privilegiado para observações das estrelas, já que tem latitude 10ºN e dali era possível observar tanto a Estrela Polar como todo o Cruzeiro do Sul (Figura 26).
Figura 26: Cochim (céus de 1515, com gravuras).
Em cima - a Norte, a Ursa Maior. Em baixo - a Sul, o Cruzeiro.
Mas Humboldt desconhecia uma outra carta bastante anterior à de Corsali e também com uma referência ao Cruzeiro. Trata-se de uma carta escrita em Vera Cruz, poucos dias depois da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral àquelas terras, pelo Mestre João para o rei D. Manuel, e datada de 1 de Maio de 1500 [17]. Esta carta mostra que, já em 1500, os nossos marinheiros reconheciam um grupo de cinco estrelas a que chamavam Cruz (Figura 27), podendo nós agora concluir que não foi decerto Corsali quem mostrou o Cruzeiro aos nossos marinheiros, mas sim os nossos marinheiros que lhe indicaram aquela constelação.
Senhor: O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos. Senhor: porque, de tudo o cá passado, largamente escreveram a Vossa Alteza, assim Aires Correia como todos os outros, somente escreverei sobre dois pontos. Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu e o piloto do capitão-mor e o piloto de Sancho de Tovar; tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional, pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17°, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17°, segundo é manifesto na esfera. E isto é quanto a um dos pontos, pelo que saberá Vossa Alteza que todos os pilotos vão tanto adiante de mim, que Pero Escolar vai adiante 150 léguas, e outros mais, e outros menos, mas quem diz a verdade não se pode certificar até que em boa hora cheguemos ao cabo de Boa Esperança e ali saberemos quem vai mais certo, se eles com a carta, ou eu com a carta e o astrolábio. Quanto, Senhor, ao sítio desta terra [...] Quanto, Senhor, ao outro ponto, saberá Vossa Alteza que, acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão; e também por causa de este navio ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma. [...] mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do (sul), mas em que grau está cada uma não o pude saber [...] estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena. [...] Feita em Vera Cruz [...] Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor. Johannes, artium et medicine bachalarius
Carta de Mestre João a D. Manuel (1500)
Figura 27: Desenho na carta de Mestre João ao rei D. Manuel.
Para além desta referência, que é muito anterior à de Corsali, existe ainda uma exposição completa em português do uso náutico do Cruzeiro, escrita em 1514 pelo piloto João de Lisboa (1470-1525), o Tratado da Agulha de marear, onde também se dão instruções para observar o Cruzeiro. Segundo o Tratado, o Cruzeiro deve ser observado quando estiver empinado, pois é nessa altura que o pé (Alfa) está sobre o meridiano:
(…) quãdo tomares este cruzeiro do sull halo de tomar quãdo esteuer ëpinado (…) e tomaras a estrella do pee e olharas bë que estë norte sul hũa com a outra e lleste oeste os braços (…)
5.3. Uma divagação sobre o Cruzeiro do Sul
Conhecendo a mitologia criada em torno do facto de as Ursas serem circumpolares no porto de Lisboa no tempo de Vasco da Gama, surgiu-nos a questão simétrica relativamente ao Cruzeiro do Sul: a que latitude Sul esta constelação começa a ser circumpolar? Vasco da Gama não conhecia o Cruzeiro na sua viagem à Índia - como já vimos, esta seria identificada dois anos mais tarde quando a armada de Pedro Álvares Cabral atracou em terras de Vera Cruz. Saberia Camões que o Cruzeiro do Sul começa a ser circumpolar à latitude do Cabo das Tormentas?Veremos que a resposta a esta questão é afirmativa.
Para melhor abordar este ponto, nada como voltar à carta de Mestre João. O teor da carta incide em dois pontos ("[…] somente escreverei sobre dois pontos […]"). Os assuntos são o posicionamento da armada ("[…] Quanto, Senhor, ao sítio desta terra […]") e o posicionamento das estrelas do Sul ("[…] saberá Vossa Alteza que, acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido […]").
Quanto ao primeiro ponto, Mestre João localiza a armada numa "Ilha de Vera Cruz" e "afastados da equinocial por 17°, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17°, segundo é manifesto na esfera". A latitude será portanto de 17°, que podemos hoje reconhecer como um dado bastante correcto. Quanto à longitude, ele confessa não ter resultados satisfatórios.
Quanto ao segundo ponto, apoiado no desenho exposto na Figura 27, Mestre João escreve o seguinte: "[…] estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara […]".
Este trecho é interessantíssimo por vários motivos:
a) Mestre João pensa por analogia com o que se passa no hemisfério norte: procura constelações de referência e uma estrela localizada no polo celestial. Quanto a isso, compara o Cruzeiro à Ursa Maior ("Carro") e compara a luminosidade da suposta estrela do Polo Sul à luminosidade da Estrela Polar.
b) Mestre João procura analisar se as constelações de referência têm características úteis, concentrando-se na visibilidade/circumpolaridade do Cruzeiro.
c) Mestre João procura mapear algumas estrelas do Sul. A análise mais frequente aponta para que sejam as da lista da Figura 28 [12]:
Figura 28: Possível identificação das estrelas referidas na carta de João Mestre.
Como diz Luciano Pereira da Silva, as guardas são α e γ Crucis (aliás, Mestre João escreve a palavra "guardas" no desenho). No entanto, tal como Luciano aponta, «Diz Mestre João que estas guardas nunca se escondem, antes andam sempre em derredor sobre o horizonte. Naquela latitude e época do ano o Cruzeiro andava na verdade toda a noite acima do horizonte.». Isto não quer dizer que o Cruzeiro seja circumpolar no local em causa, que de facto não é. A constante visibilidade acima do horizonte referida por Mestre João é verdadeira apenas naquela época do ano.
Figura 29: Porto Seguro, fim de Abril de 1500 - o Cruzeiro está acima do horizonte
durante toda a noite.
O que é absolutamente certo é que os navegadores portugueses tinham a máxima atenção à visibilidade e à circumpolaridade das constelações. Consequentemente, a questão anteriormente levantada é mais pertinente do que à partida poderia parecer. Em princípio, Camões poderia não ter utilizado a circumpolaridade do Cruzeiro no Cabo das Tormentas por não estar muito familiarizado com a dinâmica dos céus do Sul. Nas suas próprias palavras, ao voltar à Pátria, os navegadores iriam contar o que de novo tinham visto ("Pera contar a peregrina e rara Navegaçam, os varios ceos e gentes" - Canto IX, 17). No entanto, veremos que em certa fase da sua vida ele foi conhecedor da latitude de circumpolaridade do Cruzeiro.
Figura 30: "Adamastor", azulejos de Jorge Colaço, Hotel do Buçaco.
No Cabo das Tormentas, os navegadores da armada de Gama podiam ver a cruz invertida. A cruz invertida é conhecida como a cruz de São Pedro (1 a.C.- 67 d.C.), um dos apóstolos de Jesus Cristo e o primeiro Bispo de Roma. Condenado por cumplicidade no incêndio de Roma, São Pedro foi mandado prender pelo imperador Nero (37 d.C.-68 d.C.). No momento da sua morte, pediu para que fosse crucificado de cabeça para baixo, dizendo: "Não sou digno de morrer como meu mestre Jesus". Esse acto simboliza humildade e respeito, qualidades necessárias para passar o Cabo das Tormentas.
Figura 31: O Cruzeiro invertido sobre o horizonte
Em cima - sem gravuras. Em baixo - com gravuras.
Cabo das Tormentas, céus de Novembro de 1497.
Camões fez a viagem para a Índia na frota de Fernão Álvares Cabral entre 1553 e 1554. Como a nau de Camões (São Bento) escapou por pouco às dificuldades do Cabo das Tormentas, é natural que Camões não tenha perdido muito tempo a observar a circumpolaridade do Cruzeiro, já que a prioridade terá sido escapar à morte. No entanto, incrivelmente, ao descrever o céu nublado e tempestuoso do Cabo, visto a partir da nau São Bento, Camões cantou a inversão do Cruzeiro na sua Elegia III.
«Porque chegando ao Cabo da Esperança,
Começo da saudade renova,
Lembrando a longa e áspera mudança;
Debaixo estando já da estrella nova
Que no novo Hemispherio resplandece,
Dando do segundo axe certa prova;
Eis a noite com nuvens s'escurece;»
(Elegia III, Da Índia a D. António de Noronha)
Aqui, naturalmente, a «estrella nova» é o Cruzeiro do Sul O verso «Dando do segundo axe certa prova» é astronomicamente certeiro e refere a segunda posição da cruz ao alto, em posição invertida. O uso do termo «certa prova» aponta para que o fenómeno ainda aconteça a uma latitude muito inicial, sendo a circumpolaridade registada ainda muito perto do horizonte. Em suma, é completamente certo que a latitude de circumpolaridade do Cruzeiro foi do conhecimento do poeta. Por que será que não usou esse facto n’Os Lusíadas, sabendo-se ser a cruz invertida um símbolo cristão tão importante?
Figura 32: "Crocifissione di san Pietro" (1600-1601), Caravaggio (1571-1610).
5.4. Mapa de rumos, a "universal pintura"
A armada partiu de Lisboa a 8 de Julho de 1497 e, após um grande período no mar, chegou a Angra de Santa Helena no dia 4 de Novembro de 1497. Esse empolgante momento é cantado da seguinte forma.
«Mas já o Planeta que no céu primeiro
Habita, cinco vezes apressada,
Agora meio rosto, agora inteiro,
Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,
Quando da etérea gávea um marinheiro,
Pronto co a vista: “Terra! Terra!” brada.
Salta no bordo alvoroçada a gente,
Cos olhos no horizonte do Oriente.»
(Os Lusíadas, V, 24)
À luz do sistema geocêntrico usado por Camões, a Lua é o "Planeta que no ceo primeiro habita". Luciano Pereira da Silva foi quem pela primeira vez demonstrou o rigor desta passagem, com o estudo minucioso das tabelas lunares para o período em questão. Entre 8 de Julho e 4 de Novembro passaram apenas quatro meses, mas os primeiros versos parecem referir-se a cinco lunações. A aparente contradição fica desfeita ao observar que, nos quatro meses decorridos entre a partida de Lisboa e a chegada a Angra de Santa Helena, a Lua passou cinco vezes de Quarto Crescente a Lua Cheia. A viagem iniciou e terminou com a Lua entre Quarto Crescente e Lua Cheia, logo, durante aquele período, cinco vezes a Lua se mostrou "de meio rosto para rosto inteiro".
Ao chegar a terra, os marinheiros efectuaram a "pesagem do Sol", isto é, determinaram a altura do Sol ao meio-dia solar. Essa informação era útil, em particular, para determinar a latitude do lugar. O navegador tinha o astrolábio suspenso diante de si antes e depois da passagem do Sol pelo meridiano do lugar. Na altura máxima, a medeclina ficava como que "estacionária", algo que indicava o momento próprio para a leitura.
Com a latitude do lugar e com o rumo tomado no dia anterior, era possível fazer a marcação da nova posição no mapa de rumos. Com recurso a dois compassos fixos, eram feitos dois movimentos, um relativo à latitude determinada e outro relativo ao rumo tomado, um de muitos marcados sobre o mapa. A intersecção era a nova posição (Figura 33).
Figura 33: Compassando a universal pintura.
(dinamismo concebido sobre uma imagem do texto de Luciano)
Camões canta este importante procedimento com a sua mestria habitual.
A "universal pintura" é o mapa de rumos.
«Porém eu, cos pilotos, na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do Sol a altura
E compassar a universal pintura.»
(Os Lusíadas, V, 26)