Despertar para a Psicanálise
Despertar para a Psicanálise
Evento promovido pela comissão de extensão universitária da Escola Brasileira de Psicanálise em parceria com a PUC-MG
Data: 16/09/2023
Meu despertar
Júlia Werneck, membro da Casa Aberta
O que me despertou para a psicanálise. Tá aí uma pergunta que eu nunca tinha parado, de fato para pensar. Esse marco do antes e depois da psicanálise na minha vida, parece distante, e natural, mas ao mesmo tempo não. Parar para refletir o por quê de ter escolhido a psicanálise foi algo desafiador, e em alguns momentos muito angustiante, então desde já agradeço o convite da Comissão de Extensão Universitária da EBP, nas pessoas do Gilson Iannini e Juliana Motta, já que isso me rendeu boas sessões de análise.
Eu já estava me debruçando sobre o livro da Carolina Koretzky, encantada com a ideia de pensar o despertar para além do contexto onírico. A ideia de que acordamos do sono, não só pelo encontro com o real, mas para proteger nosso desejo, foi algo que nos últimos tempos me deixou ainda mais atenta aos meus sonhos. Compartilho um deles aqui:
“Sonhei que uma criança internada com reação alérgica a jatobá, tinha erroneamente recebido alta do hospital, após minha autorização. Mas na verdade eu havia sido questionada em um momento de muita distração, enquanto eu escrevia o texto para a apresentação do ENAPOL. “
Sonhei esse sonho durante o processo de escrita desse texto, há algumas poucas semanas. Em um dia de muita gripe, zero inspiração e ainda por cima, um caminhão de morango vendendo “4 caixas por 10,00”, estacionado na minha janela. Antes de saber que fim levou a criança, eu acordei, no momento exato em que eu olhei pra baixo e li no papel: texto enapol. Pimba! Se “é o significante que nos desperta”(2023), esse daqui me despertou várias e várias vezes durante esses dias. É, de certa forma, acordei para continuar escrevendo.
Penso que meu despertar para a Psicanálise vem acontecendo de forma discreta e calma, ritmos que normalmente me acompanham durante a vida. O que combina com a ideia de que, o despertar não é mesmo nenhuma grande iluminação ou revelação. Consigo pensar em alguns momentos, que me foram acontecendo ao longo dos anos, e que me fizeram chegar até aqui hoje, para poder contar um pouco sobre como tem sido essa experiência do coletivo Casa Aberta.
“Do despertar não se toca senão um ponto (...) evanescente, pontual e contingente” (Koretzky,2023). Se eu tivesse que tentar nomear um primeiro ponto que me fez despertar para a Psicanálise, seria talvez a importância de uma escuta. Chego na Psicanálise através da Psicologia, depois de muitas idas e vindas, de querer ser médica, querer ser fotógrafa. Filha de um médico-ator, e uma terapeuta-ocupacional-bailarina, a escolha entre a saúde e a arte sempre me pareceu óbvia. Mas não foi pela via da saúde que eu entrei no universo psi, e sim, pela via do sintoma. Após uma série de mal-estar que acometeram meu corpo durante o período de vestibular, enderecei meu sofrimento a um espaço de subjetivação - ainda não analítico - o que fez com que meu desejo fosse colocado em cena e abrisse um novo universo, agora menos adormecido.
Tudo bem que a escolha pela Psicologia talvez tenha sido um daqueles despertares preguiçosos. Quando você já acordou, mas fica enrolando na cama, ainda de olhos fechados, evitando levantar e encarar o dia. Foi meu encontro com um professor de psicanálise da UFMG, e mais especificamente com a iniciação científica que ele coordenava, sobre a noção de corpo a partir da psicopatologia e da arte contemporânea, que eu entendi que poderia ser pela Psicanálise a minha via de acesso à arte, e a minha ferramenta de escuta.
A partir daí meu percurso de formação foi todo voltado para a psicanálise, e para além da experiência teórica, um outro ponto fundamental foi meu encontro com a prática. Tanto nos estágios supervisionados, que foram um importante espaço para poder começar a me familiarizar com a clínica particular e seus desafios, mas principalmente a experiência que tive em um espaço de atenção psicossocial aqui da cidade. Ter estado durante quase dois anos em um espaço de convivência, cortando pão, jogando xadrez, regulando cigarros, participando de oficinas e preenchendo prontuários, me renderam um aprendizado que eu não consegui em nenhum outro lugar. A autonomia e o saber-fazer que esse estágio me proporcionou, me fizeram terminar de escolher a psicanálise como profissão, e como ética de trabalho. Eu saí de lá, mas algo daquela experiência institucional ainda reverberava em mim…
Anos depois, já com algum tempo de consultório, fui jantar na casa de uma amiga, para poder bater um papo sobre a clínica. E aí falo “bater um papo sobre clínica” agora, a posteriori, pois naquele momento a gente só foi se atualizar sobre a vida. Ela havia acabado de sair de uma instituição, e eu estava querendo entrar em outra. Já tínhamos verbalizado algumas vezes um desejo em comum: daqui alguns anos, vamos abrir um lugar? Papo vai, papo vem, chegamos no ponto que uma das funções desse lugar seria fazer exatamente aquilo que estávamos fazendo: falar sobre clínica.
Chegou um ponto que esse desejo parecia já estar maduro o suficiente para poder começar a virar alguma coisa. E era um desejo que sem a gente saber, já estava circulando por outros corpos, em outros apartamentos, o que fez com que em poucos meses, um grupo já estivesse espontaneamente formado. Seis mulheres, por volta dos seus 30 anos, jovens analistas, com trajetórias diversas, e uma vontade em comum: criar uma casa de psicanálise. Foram oito meses de encontros semanais, sempre às sextas-feiras às 16h, em algum café da cidade. E depois de muita conversa, várias planilhas, e incansáveis visitas imobiliárias, dia 10 de fevereiro de 2023, a Casa Aberta, espaço de invenções psicanalíticas chega oficialmente a Belo Horizonte, no bairro de Santa Tereza.
Mas por que uma casa? Segundo Oury (2009), o coletivo não é um estabelecimento, uma instituição, e por si só, ele já possibilita encontros. De fato, a gente podia continuar encontrando outras formas de fazer essas trocas acontecerem, mas não era só essa a ideia da Casa. Lacan nos orientou a “pensar com os pés”, é preciso estar atento àquilo que nos atravessa, que constitui a subjetividade da nossa época. E, mais do que isso, saber que território é esse que nossos pés pisam. Assim, a possibilidade de uma Casa que fizesse parte dos processos urbanos, que endossasse diálogos com agentes que compõem a cidade, que construísse um movimento psicanalítico mais integrado com o território, nos levou para o que aponta Laurent (2007), ao falar do analista cidadão: a possibilidade de sair do exílio que as práticas privadas nos convoca, e participar mais do plano social da cidade.
A ideia de ter um espaço para sair um pouco da solidão do consultório, encontrar colegas e amigos para falar da prática clínica, seja nas supervisões ou intervenções em grupo, ou de teoria nos seminários e grupos de estudo, ou apenas bater um papo durante um cafézinho corrido no meio do dia, sempre me pareceu um bom plano. Ainda mais depois de termos passado por longos períodos de isolamento decorrente da covid-19, onde os encontros presenciais se tornaram tão raros e a prevalência de eventos online ainda continuar uma realidade. Por todos os espaços coletivos que eu passei durante minha formação, uma das maiores vantagens que me deparei, na minha opinião, é a possibilidade do encontro. Não apenas o bom encontro, mas também o encontro faltoso, aquele nos faz dar de cara com nossa falta, e consequentemente, com nosso desejo. A Casa tem funcionado como um espaço de circulação de desejos!
E aí puxo o gancho com o nosso significante “aberta”, que no dicionário pode significar fresta, orifício, mas também lugar por onde se pode passar; acessar. E essa era uma grande vontade nossa, ter um lugar que pudesse servir de passagem, tanto no que diz respeito ao acesso de vários - não só psicanalistas, mas também a circulação de diferentes saberes e discursos. A ideia de que houvesse uma fresta que pudesse ventilar as discussões psicanalíticas - que às vezes sentimos um pouco abafadas, assim como possibilitar o extrapolamento da psicanálise para além dos nossos pares, nos pareceu pertinente. E através do contato com outros discursos, como a arte, política, antropologia, história, sempre orientadas pelo discurso do inconsciente, a gente consegue a abertura ao diferente, ao inédito, ao inventivo, além de contribuir para que o discurso psicanalítico continue circulando por aí.
A Casa hoje recebe propostas das mais diversas áreas como: alemão para psicanalistas, curso de história da morte, oficina artísticas, ciclos de trabalho sobre solidão no neoliberalismo, grupo de leitura de Marx, etc, e o fato da gente estar sempre recebendo propostas novas, diz do tanto que as pessoas estão interessadas em propor coisas, e eu acho que ainda não havia um lugar onde isso pudesse acontecer. Então a Casa Aberta é um espaço de invenções psicanalíticas exatamente por possibilitar um lugar para que as pessoas possam endereçar essas invenções, e é a partir dessa diversidade, que cada um pode escolher orientar-se naquilo que gosta.
E por falar em invenções, chego ao último e talvez mais importante ponto sobre minha experiência nesse coletivo: o lugar dos jovens analistas. Existe um intervalo muito grande entre o momento que o jovem deixa a universidade e os primeiros pontos de enlaçamento com as escolas. Não pretendo falar por todos os jovens analistas, mas partindo da experiência desses seis meses de Casa Aberta, vi que esse tem sido o nosso público, e não acho que isso seja coincidência. Inclusive não foi uma, ou duas, ou três vezes que recebemos silêncio ou indiferença, ao fazer convites para alguns “analistas mais experientes” para participarem de atividades conosco, ou simplesmente para virem conhecer o espaço. Certa vez, recebi inclusive, um “que bonitinho” ao falar da iniciativa de montar a Casa…
“A psicanálise muda. Não é um desejo, mas um fato.” (Miller, 2016, em O inconsciente e o corpo falante). E não é atoa que estamos aqui hoje discutindo simultaneamente a formação de coletivos psicanalíticos, e a sobrevivência da psicanálise nas universidades. Algo está mudando, e se arrisco um palpite, seria como o jovem participa do funcionamento das escolas e das discussões atualmente. É preciso pensar como as escolas têm acolhido quem chega, como a palavra é dada, ofertada, onde e como a gente se encaixaria. Apostar na transmissão da experiência da escola, para fazer avançar o desejo pela psicanálise, sem ocupar o lugar de “mestres experientes”.
Lembrando do que Lacan (1998) nos adverte, e que gostamos tanto de repetir, é preciso sempre “colocar algo de si”, e acho que a Casa Aberta, a Traço, o Freud nas Quebradas, a Ocupação, e os tantos outros coletivos espalhados pelo Brasil, tem possibilitado ao jovem analista colocar algo de si e da sua época. Enquanto essas iniciativas forem vistas apenas como algo “bonitinho”, estaremos contribuindo para uma psicanálise cada vez mais distan te da nossa época, tão importante de ser escutada com todas suas particularidades e horizontes.
Referências bibliográficas
Lacan, J. (1998d). A psicanálise e seu ensino. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 438-460). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957)
LAURENT, Enric. “O analista cidadão”. Revista Curinga.EBP – MG.n.13.p.07- 13.set.1999.
Miller, J.A. Todo Mundo É Louco (2023) Orientação lacaniana AMP 2024.
Koretzky, C. O Despertar: dormir, sonhar, acordar, talvez.(2023). Belo Horizonte: Autêntica.
Oury, J. O coletivo. (2009). São Paulo: Aderaldo & Rothschild. (Trabalho original publicado em 1986).