Desejo na cidade: o coletivo e o um
Desejo na cidade: o coletivo e o um
Evento interno dos coletivos Casa Aberta, Freud nas Quebradas e Traço - clínica e transmissão em psicanálise
Data: 16/03/2024
No sábado pela manhã, no dia 16/03, acontecerá o evento "Desejo na cidade: o coletivo e o Um", no espaço da Casa Aberta (Rua Gonçalves Chaves, 25, Santa Tereza).
Nesse evento, propomos pensar não só a maneira como os coletivos se inserem na cidade e no campo freudiano, mas também as junções e disjunções entre eles.
8h - Recepção
Nosso clássico cafézinho
9h - Mesa 1: O que faz (um) coletivo?
Sabemos, com a psicanálise, da impossibilidade da complementariedade e da intersubjetividade, mas então o que insiste em impelir que vários se juntem, Um a Um? O que constitui um coletivo e que prática pode ser feita orientada pela psicanálise, diante aos imperativos do capitalismo, da segregação e da alienação presentes nos discursos do nosso tempo?
Encontrar a política comum entre cada um, nomear e enunciar como cada coletivo se constitui e por onde passam seus pontos de causa parece uma forma possível de nos colocarmos a trabalho em uma posição decidida pela radicalidade da operação do discurso analítico e pelos efeitos da presença da psicanálise na cidade.
Convidados:
Amanda Malta - Casa Aberta
João Campos - Traço
Luis Ferreira da Silva - Freud nas Quebradas
Comentador: Musso Greco
Coordenação: Julia Damas
11h - Mesa 2: Despertar para a Psicanálise
A emergência do desejo do analista é da ordem do singular; se constata como efeito de uma análise, particularmente na passagem de analisante a analista; e visa a obter a diferença absoluta, pela colocação em funcionamento do discurso analítico. Mas, longe de se restringir à clínica individual, essa emergência também pode se conectar, de forma contingente, ao horizonte político de uma época, permitindo agenciar formas de intervenção do discurso analítico no laço social, produzindo pontes entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão.
Frente a essa constatação, convidamos para esta mesa analistas que deixaram marcas da intervenção do seu desejo em alguma forma de conexão com a política, seja pela relação com a universidade, com a rede de saúde mental ou com as políticas públicas,
Convidadas:
Juliana Motta
Renata Mendonça
Cristiane Barreto
Coordenação e debate: Ana Sanders
13h - Encerramento
Mesa 1: O que faz (um) coletivo?
Somos (não) todos camaradas? A orientação verso o inconsciente como pertencimento político
Amanda Lessa Malta, membro da Casa Aberta
Recebemos o convite para tecer esta escrita a partir de uma pergunta: “porque um coletivo de psicanálise?”. Primeiramente, iniciei os trabalhos tomando esta pergunta como um imperativo de resposta e fui buscar na obra de alguns autores que gosto algum tipo de definição sobre o termo “coletivo” ou sobre porque se mobilizar enquanto tal, um equívoco da minha parte! Afinal, o porquê ou o que nos causa na mobilização enquanto coletivos me parece efeito ou produto daquilo que fez com que nos encontrássemos um dia e continuássemos querendo nos encontrar.
Começo assim retomando a história de como iniciaram-se os encontros entre parte das pessoas que hoje sustentam a Casa Aberta, coletivo do qual faço parte e hoje aqui represento. Nossas reuniões começaram em meados de 2021, quando o Brasil enfrentava uma forte crise política consequente das atrocidades recorrentes de um plano de governo de orientação facista. Nos perguntávamos sobre a implicação dos psicanalistas no cenário político nacional e sobre como um coletivo de analistas poderia se mobilizar em uma luta política. Em poucas palavras nossa pergunta era: “O que dá para fazer?”.
Naquele tempo não fomos fazer, fomos ler. Elegemos como ponto de partida de nossos trabalhos a leitura do livro “Camarada: Um ensaio sobre pertencimento político”, de autoria da cientista política americana Jodi Dean. Hoje, ao retomar este percurso de leitura, as construções de Dean (2021) sobre o termo “camarada” me pareceram valiosas a fim de pensarmos a possível lógica de camaradagem que enlaça os coletivos aqui presentes, nos ajudando também a encontrar algo da política comum entre cada um, conforme nos apresentou o convite para os trabalhos desta mesa.
No livro citado, Jodi Dean (2021) apresenta uma análise conceitual detalhada do termo “camarada” como forma de pertencimento político. Ao longo de quase duzentas páginas a autora investiga o uso do termo, na tradição socialista e comunista, tomando-o “como uma forma de tratamento, como portador de expectativas comuns e como figura de relação política entre aqueles que se encontram em um mesmo lado de uma luta política” (Dean, 2021, p.13).
Jodi inicia sua pesquisa, retomando a etimologia da palavra “camarada”, nos elucidando que esta remonta ao termo latino “câmera”, o qual designa um quarto ou abóbada. Um quarto pode representar uma estrutura fechada que se organiza através de quatro paredes demarcando: quem está dentro e quem está fora. Sobre esta estrutura a autora ressalta que: “Dividir um quarto, compartilhar um espaço, é algo que gera proximidade, uma intensidade de sentimento e uma expectativa de solidariedade que diferencia aqueles que se encontram de um lado daqueles que se encontram do outro” (Dean, 2021, pp.21/22).
Uma abóbada, por sua vez, é uma cobertura encurvada, a qual liga e encobre espaços compreendidos entre muros ou entre colunas, criando assim uma estrutura coberta e com apoios. Dean (2021) se vale desta segunda estrutura para ilustrar a relação de camaradagem: uma relação política de cobertura com apoios, estruturada sobre um espaço aberto.
A abertura estrutural da abóbada, ou da relação de camaradagem, se refere a condição apresentada pela autora de que: “qualquer um, mas não todo mundo pode ser camarada” (Dean, 2021, p.64). Deste modo:
[...] ‘camarada’ da nome a uma relação que é, ao mesmo tempo, uma divisão. A camaradagem tem como premissa a inclusão e a exclusão: qualquer um, mas nem todo mundo pode ser um camarada. Não é uma relação infinitamente aberta ou flexível: trata-se de uma relação que pressupõe divisão e luta. (Dean, 2021, p.106).
Camaradas são aqueles que se encontram do mesmo lado da divisão na luta política, esta é a condição genérica que estrutura a relação de camaradagem. Não se trata de uma relação estruturada por traços identificatórios que agrupam membros de uma mesma classe, de uma mesma raça, de um mesmo território ou de uma mesma idade, por exemplo. Assim, o fato de qualquer um, mas não todo mundo poder ser camarada, significa que uma classe não determina quem é camarada. Tomando a raça como exemplo para ilustrar esta premissa, podemos pensar que pertencer a uma raça que não seja a negra, não impede uma relação de camaradagem, de pertencimento político. Considerando, porém, que tal relação exige a eliminação do racismo, racistas não são camaradas.
A relação de camaradagem pensada como estrutura aberta, a partir da qual “qualquer um, mas não todo mundo pode ser camarada” (Dean, 2021, p.64), remete a lógica não toda fálica, proposta por Lacan como indicador da posição feminina na tábua da sexuação. Cristina Marcos (2014) nos relembra que a função fálica, na obra lacaniana, é a escrita de uma relação: “Os dois elementos ligados ou diferenciados por esta função não são homens e mulheres, mas os seres falantes e o gozo. A função fálica nomeia a relação de cada ser falante ao gozo permitido pela linguagem” (Marcos, 2014, p.5).
Ao pensar as diferentes modos como a função fálica incide nas posições feminina e masculina, Lacan (1970-1971) reconhece que a lógica fálica não regula todo o campo do gozo, afinal, o lado feminino da tábua denuncia que nem todas estão inscritas na função fálica, há um outro modo de gozo que não é aquele inteiramente tributário da castração: “Lacan tenta responder à questão do feminino menos pelo falo/castração que pela distinção entre os dois gozos” (Marcos, 2014, p.4), gozo fálico e não-todo fálico.
A posição feminina não se inscreve inteiramente na função fálica, porém, não deixa de referenciar-se a ela. Há um ponto de inscrição fálica, porém, este é não-todo. Assim, retomando as formulações de Jodi Dean (2021) sobre a relação de camaradagem, podemos pensar que, apesar de tratar-se de uma relação aberta em que qualquer um pode ser camarada, “não é uma relação infinitamente aberta ou flexível” (Dean, 2021, p.106). Há um ponto de orientação fundante da relação de camaradagem: estarmos do mesmo lado de uma luta política, do combate de bases comunistas ao regime capitalista, conforme propõe Jodi Dean (2021) em seu livro. Há aqui uma inscrição fálica, um ponto de orientação que delimita de qual luta política se trata, demarcando assim quem é e quem não é camarada.
Pois bem, apresentada, de modo sucinto, a noção de camaradagem proposta por Jodi Dean (2021), retomo a hipótese que apresentei ao início do texto: O laço que se estabelece entre os coletivos aqui presentes referencia-se a lógica de camaradagem? Se sim, qual seria o lado da luta política que demarca nosso encontro enquanto camaradas?
A pluralidade dos coletivos aqui presentes, suas diferentes formas de atuação e organização, a diversidades da composição de seus membros, as quais abrangem pessoas de diferentes classes, raças, idades, sexos, orientações sexuais, evidencia uma lógica heterogênea, porém, não demarca, isoladamente, a noção de não-todo, afinal, conforme exposto acima, o não-todo estabelece-se a partir de uma referência, demarcando assim a passagem de um universal ao particular.
No caso da Casa Aberta, o não-todo, tomado como orientação de trabalho na construção do coletivo, demarca-se como literalidade no nome do projeto e no desejo de construirmos e inaugurarmos um espaço na cidade de Belo Horizonte que impulsionasse a prática e transmissão psicanalíticas e onde “não se falasse só de psicanálise”. “Não falar só” me parece uma tentativa de fazer laço, uma forma de resistência ao imperativo do gozo do Um que impera nos tempos atuais e é agenciado pelo discurso neoliberal. “Não falar só de psicanálise”, por sua vez, é a expressão literal da lógica que rege o gozo feminino: há um conjunto a partir do qual organizamos e orientamos nosso trabalho (o campo da psicanálise), porém, reconhecemos a existência e inscrição de outros campos de saber (ou de outros modos de gozo) que deste conjunto se diferenciam, mas que com ele dialogam. Desmantela-se assim um campo de saber tomado enquanto verdade universal.
Feito este adendo sobre a organização do coletivo Casa Aberta, retomo minha pergunta: a partir de qual luta política comum os coletivos aqui presentes referenciam-se enquanto camaradas? Qual é a luta a partir da qual nos encontramos e assim nos posicionamos de um mesmo lado, conforme propõe Jodi Dean (2021)?
Arrisco dizer tratar-se de uma orientação política verso o inconsciente. Tal orientação reconhece o atravessamento da dimensão do inconsciente na organização das estruturas políticas e sociais, e de seus efeitos sob os sujeitos que as compõem. Toma-se assim a dimensão inconsciente enquanto causa e efeito da organização política.
Me parece que, considerando tal prerrogativa, reconhecendo a dimensão do inconsciente nas bases de organização, segregação e inclusão social, cada coletivo aqui hoje presente se mobilizou. A Casa Aberta organiza sua atuação enquanto marco na cidade, um lugar de encontro, transmissão, prática e invenções psicanalíticas. O Freud das Quebradas organiza-se enquanto frente de trabalho ativa na democratização do acesso ao tratamento psicanalítico. A Traço, por sua vez, também organiza-se enquanto frente de trabalho ativa na democratização da transmissão psicanalítica e do acesso ao tratamento analítico, e nos últimos meses inaugurou sua sede, demarcando uma existência no tecido urbano.
Cada coletivo, à sua maneira, de modo singular, cria suas frentes de atuação e sustenta suas propostas. Nos encontramos no meio do caminho, do mesmo lado de uma luta política, apostando na importância de mantermos viva e pulsante na cidade a orientação psicanalítica. Escutar a dimensão do inconsciente na organização social é, como nos relembra Jaqueline de Oliveira Moreira (2019), um ato político subversivo, capaz de introduzir a formulação do desejo em uma estrutura política orientada pela massificação civilizatória.
Referências bibliográficas:
Dean, J. (2021). Camarada: um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo.
Lacan. J. (1970-1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não seria do semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Marcos, C. (2014). O não-todo de Lacan e a lógica do caso clínico. In:Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, 9 (18). Rio de Janeiro.
Moreira J. O. (2019). O inconsciente e a política: entre a estrangeiridade e a extimidade. Analytica, v.8, nº 14. São João del Rei.
Na formação de (Um) coletivo, a pulsação
João Campos, membro da Traço- Clínica e transmissão em Psicanálise
É possível dizer do que acontece em uma análise de diversas maneiras, e, uma delas, que me parece bastante interessante, é sobre conversar com o Outro que nos precede. Conversar com a língua materna que nos nomeou, e através dessa língua aparentemente familiar ir estranhando-a e reconhecendo outra, mais íntima, e por isso mesmo, mais estrangeira, mas que justamente diz respeito a cada Um, apostar no impossível de encontrar uma língua própria, que não vai deixar de nos ser esquisita, mas ao menos carregará um Traço único capaz de tocar o corpo.
Obviamente esse momento aqui não é uma análise, mas me parece que uma parte do movimento que estamos fazendo aqui é de conversar com esse Outro que nos precedeu¹ (encarnados ou não aqui nas pessoas presentes), vários Outros talvez. Conversar com aquele que nos precedeu há muito tempo, de quando a psicanálise lacaniana surge e se entremeia à cidade de Belo Horizonte, com aquele que inventou e ocupou dispositivos na cidade a partir da psicanálise lacaniana, e assim continua fazendo ou deixou de fazer, bem como com aquele que caminha lado a lado inventando nesse instante algo novo.
Um desejo de conversar com o Outro para melhor escutar o que pode ser debilidade e repetição, mas também, nesse encontro apostar que algo de novo pode advir, além de possibilitar localizar melhor onde se encontra a nossa invenção. E o mais importante, como continuar seguindo a trilha da ética lacaniana, sustentar o discurso analítico frente aos imperativos de nosso tempo e aos imperativos institucionais/burocráticos. É estando avisados de que o encontro com algo da verdade é solitário, mas que também não acontece sem os outros que nos colocamos nesse espaço para falar, recolher os restos e nos lançarmos em outros movimentos. Nesse sentido, esse texto se constrói em torno de uma pergunta, se a Traço falasse, o que ela enunciaria?
A Traço surge no final de 2019. Com poucos meses de vida até o início da pandemia de COVID 19, apesar dos desafios, muito foi produzido nessa época, diversos cursos ofertados, atendimentos online e, dentro do possível da época, várias trocas importantes aconteceram. Após esse momento efervescente, com o fim da pandemia, naquele momento estranho entre o virtual e o online, retomada gradual das atividades presenciais, a Traço se viu bastante capenga, seu traçado cada vez mais apagado e o desejo cada vez mais desbotado, sendo que só foi possível reaviva-lo, contingencialmente, pelo encontro dos corpos. Uma reunião presencial em 2022, depois de tantas online, tem a dimensão de acontecimento e faz reacender o desejo pelo coletivo em cada um. Desde essa reunião muito aconteceu rapidamente. Tivemos um ano seguinte (2023) de muito trabalho, realizamos o sonho da casa própria e, há poucos dias, fizemos uma seleção de novos membros bastante interessante com o recebimento de várias dezenas de intenções em participar do coletivo.
O surgimento da Traço se dá pela necessidade, que estudantes e egressos da UFMG, sentiam de construir uma passagem mais tranquila, uma passagem não tão angustiante e solitária entre o hiato da vida de estudante de graduação e a atuação profissional enquanto analista. Se faz um comentário interessante de que o significante UFMG marcou a Traço, mas a cada dia que passa ele esmaece e outros significantes vão nos marcando, em direção a uma pluralidade cada vez maior. É inegável que constituir sua própria clínica e formar-se enquanto analista é um trabalho árduo, lento, incerto e de alto valor financeiro, o que acaba restringindo esse campo de atuação para muitos jovens. Dessa forma, estar em coletivo se mostrou, não apenas uma forma menos solitária, mas também uma forma possível de democratizar e possibilitar a formação lacaniana. A Traço nunca almejou ser uma clínica-empresa, e talvez esse seja um dos grandes desafios que enfrentamos, como resistir a esse empuxo do discurso capitalista, da burocratização e do empreendedorismo de si mesmo.
“O que é a Traço?” é uma pergunta que sempre nos acompanha. Aprendemos a cada vez que talvez não precisamos ter tanta pressa de respondê-la, fechar essa pergunta com uma resposta unívoca. O que podemos testemunhar, é que a Traço se tornou um espaço, um espaço para o fazer, para a enunciação, um lugar possível para aqueles ainda sem lugar entre as diversas instituições, o mercado de trabalho e em relação ao seu próprio desejo. Um lugar, essa é uma elaboração-redução que se chegou no evento preparatório para o Enapol², de que a Traço, com modéstia, é um lugar que propicia o giro do discurso universitário ao discurso do analista. Obviamente, entrar na Traço não garante nenhum destino, afinal o “destino” é marcado pelo necessário, e o que visamos é o contingente. Não se trata de marcar um destino, mas possibilitar bons encontros que podem levar a enunciação singular do desejo de cada um e o desejo de formar-se enquanto analista. De alguma maneira, acredito poder dizer que conseguimos fazer com que cada um sempre entrasse e compusesse o coletivo com seu traço próprio.
O desejo então da Traço de movimentar uma psicanálise viva e em consonância com a linguagem e o sofrimento de seu tempo, sem deixar de sustentar a orientação lacaniana e sendo um lugar possível para a formação e para a constituição do início da clínica, parece ter sido também um lugar de tratamento de uma urgência. Uma urgência que nos chega pelos estudantes e recém formados, uma urgência que muitas vezes toma a forma da preocupação financeira, e do sucesso profissional, mas que acredito também poder dizer ser uma urgência subjetiva, que se relaciona com a pergunta “formei, e agora, o que vou ser/fazer?”. Essa é uma elaboração recente e ficam algumas perguntas, será que poderíamos pensar que de alguma forma tratamos essa urgência? Ou então, será que conseguimos fazer-com essa urgência? Jogar com o semblante do retorno financeiro/profissional a partir da constituição da clínica, ao mesmo tempo em que vai se introduzindo o discurso analítico.
Por outro lado, algo que nunca parou na Traço foi a clínica. Desde seu início, durante a pandemia, em seus tempos mais difíceis, o coletivo sempre esteve recebendo e ofertando atendimento a “preços flexíveis”, no intuito de deselitizar o atendimento psicanalítico. Não só os atendimentos não pararam, como também as supervisões aconteceram de forma ininterrupta. Percebemos hoje, olhando retroativamente, que as supervisões ocupam um lugar central na Traço. São em alguma medida responsáveis por dar corpo a instituição, unir aquilo que de outra forma poderia ser fragmentado, bem como exercem um certo controle, um “controle de qualidade”, se assim podemos dizer, do atendimento que é feito sob o nome da Traço.
Contudo, por mais que a clínica não tenha parado, a meu ver, não me parece que seja isso que sustenta e vivifica a Traço. Se fosse a clínica por ela mesma, não sei se teríamos um coletivo, teríamos talvez um conjunto de Ums-sozinhos. Me parece que há alguma outra coisa que sustenta e move a Traço, algo que cada Um topa ceder para se estar em coletivo, não sei exatamente do que se trata, mas podemos perceber que isso que é cedido parece se deslocar ao lugar de causa. Causa de desejo por se formar, desejo do analista, mas também, e, principalmente, causa de desejo na e pela cidade, de disputar espaços e mostrar que a psicanálise tem lugar na cidade, na saúde e na cultura. Talvez um movimento do desejo, que é singular, à ética, que é coletiva.
Após a escrita desse texto, o que me salta aos olhos e aos ouvidos, é que o que parece insistir é justamente o significante que não se encontra no nome da Traço, “Traço - clínica e transmissão em psicanálise”. Em todo o texto parece estar entremeado o significante “formação”, essa ausência presente parece apontar para aquilo que a Traço vem se tornando em seu fazer, um espaço de endereçamento, em que muitos creem haver um saber sobre o caminho formativo de um analista - algo que podemos constatar após essa última seleção.
Sabemos, como indica Miller em “Para introduzir o efeito de formação”, que não há automatismo na formação analítica e que essa se trata muito menos da aquisição de saberes do que o aparecimento de certas condições subjetivas, do ser do sujeito. Nessa mesma esteira, Graciela Brodsky (2021) vai localizar a formação do analista como marcada por algo de ordem traumática, que se dá no momento de confrontação com S(A/), nesse encontro, então, cada um é convocado a colocar e inventar algo de si.
Concluindo, se logo antes eu falei da direção do desejo individual à ética, coletiva, parece que agora retorno ao individual. O coletivo, ou então, Um coletivo possível parece se dar na medida em que se sustenta uma pulsação. Onde, num lapso, o efeito de transformação, singular a cada um, pode acontecer, ao mesmo tempo em que pode-se adormecer um pouco, e, de alguma forma, sonhar conjuntamente.
Rodapés:
¹Se faz importante ressaltar o comentário de Musso Greco acerca do “predecessor”, de que na psicanálise não se trata de um tempo cronológico em que o saber está junto daquele que veio antes, mas que há uma constante reatualização do que veio antes a partir do que vem depois, no a posteriori. Nesse sentido, a história do movimento psicanalítico é reescrita a cada vez que é, em ato, escrita. A partir disso, não é mais tanto possível separar com nitidez aquilo que “aconteceu antes” do que “aconteceu depois”. Entretanto, ressaltamos também que, correndo junto a essa temporalidade do a posteriori, há uma outra dimensão temporal, mais próxima de uma atemporalidade, que se relaciona ao traço, aquilo que se inscreve em um momento lógico inicial, e se torna ponto fundante de futuras construções.
² Evento preparatório ao XI Enapol, realizado na PUC Minas, em Belo Horizonte, no dia 16 de setembro de 2024, com o título “Despertar para a psicanálise”. Com a participação de coletivos de psicanálise em Belo Horizonte, Casa Aberta, Freud nas Quebradas, Traço e Ocupação Psicanalítica, com comentários de Carolina Koretsky.
Referências Bibliográficas
Brodsky, G. (2021). Entre formación y transformación. In Los psicoanalistas y el deseo de enseñar. Buenos Aires: Grama.
Miller, J.-A. (2002). Para introduzir o efeito de formação. Correio, (37), 8-15.
O que faz um coletivo?
Luis Henrique Ferreira da Silva, membro do Freud nas Quebradas
A pergunta que orienta a mesa parece indicar duas questões: o que faz um coletivo, no sentido do que o constitui - qual sua lógica, seus princípios, elementos e articulações - ,e o que o coletivo faz, qual prática ele busca sustentar. Melhor, não o que O coletivo faz, mas o que Um coletivo faz. Seguindo essas pistas, portanto, busquei pensar qual a prática do Freud nas Quebradas, quais são as marcas que até então tecem sua história e lhe dão singularidade. Vou tentar, então, para dar início as nossas conversas, fazer uma breve reflexão acerca da origem e das marcas que, creio eu, dão um fundamento e orientação a nossa prática. Em seguida, falarei sobre os trabalhos realizados atualmente e sobre alguns pontos que insistem em provocar elaborações e reflexões. Por fim, vou tentar hipostenizar acerca de uma afinidade inicial entre o Freud e os outros coletivos aqui presentes, para então concluir com algumas considerações suscitadas pelo título de nossa mesa e do nosso encontro de hoje.
O Freud nas Quebradas surge, pelo que pude escutar do relato de meus colegas, de uma preocupação acerca dos possíveis caminhos da psicanálise no contemporâneo. Mais especificamente, de uma preocupação em aproximar, uma vez mais, a psicanálise e os territórios - tão extensos, plurais e difundidos em nosso país, - onde ela não circula e habita. Se acreditamos na psicanálise como uma prática subversiva, capaz de produzir transformações, o desejo que move o coletivo surge também ao constatar que essa prática se vê muitas vezes distante de uma enorme parcela da população - justamente aquela mais exposta às contradições presentes na cena do mundo e, mais especificamente, no pais e na cidade em que nos encontramos. A aposta é que o exercício de circulação, de amplificação do alcance do discurso analítico, para além dos efeitos que pode proporcionar aos sujeitos que se prestaram ao papel de analisandos, também ensinará a própria teoria psicanalítica, aposta esta que está na origem da psicanálise, desde o gesto inaugural de Freud ao dar a palavra às histéricas. Foi este desejo que me fisgou, que me enlaçou e que fez vibrar algo que me causa. Vinha falando, antes do Freud nas Quebradas, de um desejo vago, ainda tateante e difuso acerca da articulação entre política e psicanálise. Foi Julia Werneck que, através de um convite, me convocou ao trabalho, indicando a possibilidade de um cartel e apontando para uma possível participação na próxima reunião do coletivo. Desde então, tenho descoberto e redescoberto a força e os efeitos da transferência de trabalho e da prática corpo a corpo com meus colegas.
Vivemos em um tempo no qual a psicanálise recebe golpes de todos os lados, por vezes via ódio, rechaço e oposição, hora através do escarnio e do deboche. Se é rechaçada devido a uma suposta incapacidade de se adequar a determinado enquadre epistemológico do que seria ou não científico, por um lado, por outro é nomeada como patriarcal e ultrapassada. Laurent (2023), pensando a psicanálise no contemporâneo, em sua posição frente a ciência e a religião, lembra-nos que o psicanalista, assim como o cientista, também se angustia. É diante dessa angústia que irrompe que um grande número de psicanalistas se apressa em sacrificar uma parte de sua teoria, um terreno ou debate de seu campo, podendo aderir sem críticas a paradigmas diversos e postulações de determinado tempo. É interessante notar como os coletivos aqui presentes, até onde sei, tem origem e começam a se desdobrar exatamente neste contexto. Me parece que essa concomitância diz de uma aposta renovada na radicalidade do discurso analítico, em seu caráter subversivo e na sua maneira de abordar as tensões e os debates contemporâneos, sem com isso abrir mão daquilo que o caracteriza e o distingue. Se a posição do analista crítico não pode mais ser aceita - aquele que observa os fenômenos sociais de uma posição exterior, a partir de uma teoria estanque - também não se deve abrir mão de uma postura ética, lançada por Freud e formalizada por Lacan.
Não pude deixar de lembrar, ao refletir sobre o tema da mesa, acerca do clássico texto de Freud, "caminhos da terapia psicanalítica", já trabalhado em nosso GT. É também um texto de balanço, quando Freud olha para o seu tempo, para os destroços e as reuínas da guerra, assim como se debruça sobre a trajetória da psicanálise até então, suas frentes de combate e suas perspectivas de futuro. Já em 1919, retiramos de seu balanço a importância de se ater a determinadas orientações, um núcleo duro do qual não se poderia abrir mão. Ele nos apresente esse núcleo de forma negativa: diz dos caminhos que, apesar de por vezes parecerem os mais fáceis e óbvios, não poderiam ser seguidos. Opõe-se ao que hoje podemos chamar de demandas provenientes do mestre: não acredita que deve se buscar uma nova síntese psíquica para o sujeito; não acha que é papel do médico oferecer uma determinada visão de mundo; está em desacordo com aqueles que defendem que o analista deve redirecionar a libido liberada do sintoma para alguma prática sublimatória "mais elevada". Deixa claro que qualquer intervenção nesse sentido, por mais sublime que fosse o ideal a conduzindo, não só retiraria a prática em que se inscreveu do campo da psicanálise, mas também a caracterizaria como uma violência.
Em outras palavras, se por um lado Freud abre um tempo de reflexão sobre a prática analítica, admitindo que esta não deve se apresentar como um saber fechado e total, estando aberta a mudanças, por outro ele não admite que tais mudanças sejam dirigidas pelos ideais, as demandas e os valores do mestre. Assume que talvez "tenhamos que adaptar nossa técnicas às novas condições" (FREUD, ,), mas não adianta quais as adaptações deverão ser realizadas, as repousando sobre um campo vazio, adiando-as para um momento posterior, que se dará ao longo do próprio trabalho clínico.
A inscrição de Freud no nome do coletivo, creio eu, é também uma inscrição neste seu gesto. Digo gesto, pois não o tomamos como um modelo, mas buscamos o seu traçado para recolher algo não só de nosso tempo, mas do espaço em que vivemos, com todas as contradições, contingências e tensões que ele comporta. Talvez o trabalho dos outros coletivos também busque se inscrever nesse gesto inicial, fazendo circular na cidade esse desejo que, segundo Di Ciaccia (1999), não é um desejo entre outros, mas um desejo que interroga o ser do sujeito. Na sustentação de tal empreitada, buscamos realizar, no território, atendimentos analíticos sem duração ou número de sessões pré-determinadas. Essa questão parece fundamental, na medida em que ela tenta afastar a experiência de qualquer subserviência à terapêutica. Se os efeitos terapêuticos são bem vindos, não são eles, sozinhos, que tomam a dianteira das intervenções. Se a experiência analítica não é previamente enquadrada, talvez possamos colocar o tempo do lado dos operadores clínicos, com um pouco mais de folga em relação aos imperativos capitalistas e neoliberais. Penso ter ouvido algo disso no recém realizado I Congresso Internacional do Janela da Escuta, onde diversas mesas abordaram a importância do tempo - não só para o dizer, já que, como Lacan nos lembra no Seminário 25, tempo e dizer estão articulados - mas também para o que disso se sucede, a construção de algo singular, distante das respostas prêt-à-porter do mercado.
Hoje, membros do Freud nas Quebradas atendem semanalmente na Pedreira Prado Lopes, território que se abriu a chegada do coletivo devido a transferência de alguns de seus membros com a população e o Centro de Saúde ali alocado. Além dos atendimentos, são realizadas, semanalmente, conversações clínicas, em que os analistas que estão atendendo encontram-se entre si e com os outros membros, buscando construir os casos, obter efeitos de supervisão e extrair um saber deles, importante tanto para a operação clínica quanto para a transmissão. São realizadas reuniões gerais mensalmente, e o GT vem se reativando, tendo como perspectiva extrair pontos de impasse da clínica e das outras frentes, com intuito de trabalhá-los e fazer avançar nossas elaborações. Também vem sendo articulada, junto ao centro cultural da Pedreira e seus representantes, intervenções que, sustentadas na ética da psicanálise, buscaram mobilizar recursos artísticos e sociais do próprio território.
Ainda antes da Pedreira, o Freud nas Quebradas esteve na rua Guaicurus, buscando um trabalho de atendimento clínico junto às profissionais do sexo. Por não estar neste momento, penso que outros colegas poderiam nos dar mais detalhes dessas experiências. Não podemos deixar de mencionar, também, a pesquisa realizada por Luciana Lemos, sob orientação de Cristina Marcos, que teve como metodologia conversações com as mulheres/mães da Pedreira. Essa rápida apresentação tem como ônus não abordar com o devido detalhe e cuidado os percalços e especificidades desse percurso, assim como deixa de explicitar contribuições importantes que recebemos até então. Uma delas, vinda da supervisão com Juliana Motta, foi a constatação da importância de trabalhar de outra forma as articulações e desarticulações com a Rede no geral e com o Centro de Saúde em particular. Questões quanto a chegada no território e o trabalho com as equipes do Centro de Saúde seguem nos provocando e solicitando elaborações, que virão mediante o trabalho.
Para concluir, retomo o título de nossa mesa e o nome de nosso encontro. Pouco depois de termos este último definido, encontrei um texto, presente na Curinga, número 13, cujo título indica uma articulação entre o Um e a prática de vários. Seu autor, Antônio de Ciaccia, refletindo sobre a fundação de Antenne, diz que existem toda uma gama de possibilidades no que diz respeito à prática de vários, e que estas dependem do Um que as funda. Em outras palavras, a prática de vários é plástica e pode assumir uma grande variedade de formas e funcionamentos, a depender, principalmente, do Um que as instaura. Usualmente, este Um é o um do mestre, aquele já trabalhado por Freud, em que o grupo se identifica ao líder verticalmente, colocando-o no lugar do Ideal, operação que permite outra identificação, aquela entre os demais membros, horizontal, imaginária e fraterna. Nesse modelo, temos como efeito ódio em relação aqueles que não partilham os traços do Ideal, que se encontram fora do regime identificatório instaurado.
Para Di Ciaccia, porém, outro Um pode fundar a prática de vários, o Um do vazio. Nesse caso, O Um não ocupa o lugar do Mestre, de forma que a verticalidade não se torna estrutural, assim como se dissipam as identificações imaginárias horizontais, e isso na medida em que " cada um é particular em relação a sua Causa". (CIACCIA, 1999, p.53). É claro, diz Di Ciaccia, que o Um do Mestre não se desvanece totalmente, não evapora e nunca mais retorna, mas se distribui de outra maneira, sendo capaz de se desativar desde que alguém retome essa referência ao Um vazio, que ocupe o lugar de seu guardião. Nesse caso, é possível se anter "a seu projeto, não na repetição do mesmo, mas na surpresa e na invenção de cada um"(CIACCIA, 1999, p.52). Podemos pensar que esse Um vazio, que funda essa prática de vários, tenta se inscrever no "nas", o segundo termo dos três que nomeiam o coletivo. Se a psicanálise é um pensamento em movimento, uma prática e uma ética que não admitem uma visão de mundo fechada, assim como o território, no caso a Pedreira, não consiste em um espaço estanque e homogêneo, mas se apresenta enquanto uma história concreta, com seu conjunto de forças, suas tensões, contradições, lacunas e traumas, é no espaço do encontro entre ambas - nesse "nas" - que se verificará, a posteriori, o que será possível de ser inventado.