Considerações sobre o desejo: por que uma casa aberta?
Considerações sobre o desejo: por que uma casa aberta?
Evento presencial de abertura dos trabalhos da Casa Aberta do 2º semestre de 2023
Mediação: Julia Damas e Marcela Mascarenhas
Data: 03/08/2023
Mudando a rota: um espaço Aberto na cidade!
Marcela Mascarenhas de F. Burni
Falar da Casa Aberta é necessariamente falar sobre o desejo. Talvez por isso tenha sido tão difícil reduzir a ideia a um texto. Toda vez que eu pensava em algo para trazer a vocês hoje, algo me escapava, deslizava, escorregava, e então eu pensava: “não é exatamente isso, é algo a mais”. E não seria justamente por aí que caminha o desejo? Nesse algo que se extravia? Então decidi começar com isto.
Se no semestre passado falámos da solidão, certas de que ela nos levou a construção deste projeto, agora recolhemos um pouco da experiência decorrente de tantas conversas angustiadas e inquietantes que nos ocupavam entre os anos de 2021 e 2022. Marcus André Vieira diz que “dependendo do modo como respondemos, em ato, à questão do desejo, abre-se a potência de um novo destino”. Assim, preocupadas com o fazer da clínica psicanalítica, com as possibilidades de acesso a teoria e com a baixa participação da psicanálise nos processos urbanos (ainda exacerbados pelo isolamento da covid 19 e ascensão do discurso neoliberal), a Casa Aberta nasce com um principal propósito: alterar a rota e inventar uma solução coletiva para a questão do enlaçamento a partir (e não só) da psicanálise em BH.
Se uma análise visa dar lugar a urgência traumática fundante do sujeito que os significantes identificatórios insistem em apagar (BENEDICTO, 2019), aqui na Casa a ideia é que possamos produzir laços com eles. A partir da diferença, da solidão mais radical do um, que possamos fazer pares!
Talvez esta porta aberta que tanto queríamos quando idealizamos o projeto, seja representante dos furos por onde a animação da vida entra nos corpos. E assim, bancamos vivamente momentos como estes, que só são possíveis a partir de cada um que coloca um pouco de si aqui. Que a Casa seja um espaço aberto para que, de vez em quando, o encontro traga o esplendor de estarmos, num segundo, na contingência, juntos no desejo (VIEIRA, 2020)
Referência bibliográfica
VIEIRA, M,; Notas sobre o desejo e o isolamento*. 2020. Correio Express. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/04/18/notas-sobre-o-desejo-e-o-isolamento/
BENEDICTO, E. Do Um ao par: da real-solidão que funda e preside o ser falante ao desejo do analista. Jornada da EBP-SP. São Paulo. 2019
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Por que uma casa aberta?
Julia Martins Damas
Belo horizonte, mais de 2 milhões de habitantes, 6 mulheres - entre desencontros e coincidências -, se reúnem semanalmente com a justificativa de um projeto em comum: uma Casa Aberta. Esse projeto, aos poucos, vai se configurando quase como uma desculpa pra que elas falassem de outros pontos: solidão, clínica, trabalho, sintomas.
O cenário, socialmente nomeado como “pós-pandêmico”, vai se desenhando como uma possibilidade da rua, do calor, dos encontros. Mas podemos reparar também no imperativo disso tudo. Bares lotados, bloco de carnaval pela rua o ano todo, whatsapp lotado de mensagens de pessoas procurando por análise, tentando responder a esse outro imperativo do “checklist da saúde”, da “saúde mental em dia”, ou,- por que não?-, poder mandar pro contatinho a nova melhor frase do momento “falei de você pra minha analista”.
E é nesse cenário todo que em março de 2023 inaugura um novo projeto nessa cidade: essa tal de Casa Aberta. Primeiro tema de trabalho? Solidão! Solidão, diante de tudo isso que está aí? Sim, porque o que nos ensina a psicanálise - também, é que o sujeito é só, 1 sozinho, seja pela falta de garantia do Outro, seja pela não relação sexual, embora a gente tente incansavelmente fazer Um – com o outro. Se não conseguimos fazer Um, fazemos logo 6. 6 mulheres, 6 histerias (há quem se oponha!) seus sintomas pulsando e... se encontrando.
Se tem outra coisa que a psicanálise nos ensina, e gosta de falar desde 1893, é da histeria, dessa cisão que resiste, que o sujeito teima em dizer sem saber que diz, e que sofre sem muitas vezes querer saber. Lacan estrutura essa forma de sofrimento em um Discurso da Histérica. Sem entrar em detalhes, esse discurso é a possibilidade de um sujeito, se vendo cindido, demandar de um outro essa resposta de si, esse dizer sobre ele, sobre seu sofrimento e, muitas vezes, como se livrar desse sofrimento. Uma análise não se propõe a dar essas respostas, mas se propõe a ser testemunho da possibilidade dos sujeitos se perguntarem um pouco mais sobre isso, de consentirem com, muitas vezes, uma não resposta.
Falei tudo isso pra contar um pouco do que a Casa Aberta se propõe ou, pelo menos, se propôs até agora: permitir que os sujeitos possam encontrar nesse mar de gente, de cidade, de calor: um espaço.
Uso “espaço” porque não consigo dizer ainda se a Casa Aberta é um lugar. Lugar quer dizer algo delimitado, ponto, e nesses primeiros meses de Casa, o que conseguimos afirmar é que ela está longe de ser delimitada. Claro, estamos num instante de ver, de sentir, de cuidar, mas acredito que não de delimitar. Passamos de oficina de macramé à grupo de estudos de Marx em questão de meses...gente...
Afinal de contas, o que querem essas mulheres? Se eu pudesse responder rapidamente, chegaria numa conclusão óbvia: SABER. Saber em todas as suas possíveis camadas. A gente quer saber, a gente quer saber de nós, dos outros, do mundo, da Psicanálise...
Quero me corrigir dizendo que essa resposta não é óbvia. Saber e O saber não é qualquer coisa. Maria Rita Khel, no livro “deslocamentos do feminino” traz a construção histórica dos lugares sociais ocupados pelas mulheres para trazer a dimensão subjetiva e seus impactos. Ela cita as historiadoras Fraisse e Perrot que demarcam o século XIX como um ponto de virada, dizendo que é:
“o momento histórico em que a vida das mulheres se altera, ou, mais exatamente, o momento em que a perspectiva de vida das mulheres se altera: tempo da modernidade, em que se torna possível uma POSIÇÃO DE SUJEITO, indivíduo de corpo inteiro e atriz política, futura cidadã. Apesar da extrema codificação da vida cotidiana feminina, o campo das possibilidades alarga-se e a aventura não está longe”.
(Posição de sujeito aqui podemos compreender melhor como sujeitos políticos). E Maria Rita complementa com a pergunta: O QUE UM SUJEITO PODE-SE TORNAR, SENDO (TAMBÉM) MULHER? Trago essas citações pra pensarmos o quão pouco tempo mulheres têm seus discursos escutados. Há quão pouco tempo podemos nos apropriar do gozar falicamente com os mesmos representantes que os homens – ou compartilhar de alguns, como simplesmente votar, e, mais recentemente, ter equiparação de salário. 2023, gente...
Introduzo esse ponto da história das mulheres pra pensarmos seus lugares. Provocada por uma parceira, acrescento mais um ponto na pergunta de Maria Rita: O QUE UM SUJEITO PODE-SE TORNAR, SENDO TAMBÉM MULHER - EM UMA CIDADE? Então caminhando mais um pouco, trago Miller, em “Percurso de Lacan”, onde ele usa o mito da Diana. Diana é uma deusa virgem que mora na selva com seus animais e ninfas, não conhece outras criaturas, até que um homem, Acteão, a encontra tomando banho. Diana o transforma em um servo e este é devorado pelos cães de Diana. Miller traz esse mito pra dizer desse encontro traumático na perspectiva das estruturas neuróticas e perversa. Mas minha atenção fica numa frase que ele comenta logo em seguida, pra dizer da estrutura histérica:
“Diana circula na selva, e não é cidadã; mas se fosse histérica mesmo que estivesse na cidade seria como se estivesse no bosque”.
Essa citação simples traz pra mim uma exatidão do sofrimento da estrutura histérica em não encontrar um significante que a defina, de não encontrar um lugar no desejo do Outro, “um sujeito sem lugar, sem habitação no Outro”. E aí chegamos num termo importante pra mim que é o “não-lugar”. Não sei se é um termo, mas um significante caro pra quem escuta a histeria. São tentativas e desdobramentos pra tentar encontrar um lugar, muitas vezes físico mesmo, que suture esse ponto de cisão.
Em vão.
Em vão porque a cada dia nos deparamos com notícias horríveis que escancaram a vulnerabilidade das mulheres no espaço comum, que são ordinariamente nossas calçadas, ruas, praças. Quando nos deparamos com uma notícia de que uma mulher, nessa mesma Belo Horizonte que a Casa Aberta, é deixada desacordada numa calçada e violentada por isso (de várias maneiras), não há nada metaforizado nesse discurso, é de forma crua que dizem que não há lugar – ainda – para mulheres na cidade, que só estarão seguras se estiverem trancadas dentro de suas casas, em suas casas cuidando ou sendo cuidadas por mulheres. Parece não haver outra saída pra nós que não ir morar na selva.
Mas, como eu disse, a histeria também tem seu discurso próprio. Marcia Rosa, nos indica no livro “por onde andarão as histéricas de outrora?”, que os sintomas histéricos vão se transformando junto com as mudanças sociais. Se as histerias freudianas davam seus espetáculos de conversão, hoje os sofrimentos dão notícias de outras formas. De novo com Maria Rita Kehl:
“Como seres de linguagem, os falantes são necessariamente seres de HISTÓRIA, a um só tempo atravessados pela língua e capazes de fazer dela matéria plástica, transformável de acordo com suas necessidades expressivas”.
E com isso chegamos da histeroistória de Lacan. Esse jogo que ele faz com a histeria e história, que entendo como uma forma de trazer à tona essa plasticidade, essas transformações que a estrutura histérica nos conta. E conta mesmo, pois “há que tomar a palavra, contar histórias, fabricar narrativas e relatos, não há outra forma de enfrentarmos o real do trauma.” (Vera Pollo no artigo a histeroistória ou a histoeria ontem e hoje)
Trago isso para dizer que, embora não há sutura para o sofrimento histérico, para esse sofrimento de não-lugar, de habitar lugar nenhum, há inventividade. Se não é possível uma sutura, é possível fazer alguns remendos. E é aí que penso na possibilidade de um “não-lugar” ser um lugar. E é aí que aposto na aventura que é a Casa Aberta, localizada na selva de pedra belo Horizontina. Essa possibilidade do “não-lugar” ser outra coisa que não ponto de angústia e solidão. Nessa construção de Casa-ateliê-oficina-consultório-sala de aula-café da tarde- reuniões com tempo nunca suficientes- Aberta, nessa impossibilidade de encontrar um significante que nos defina e finalmente apazigue nossa outra pergunta recorrente: “o que é a Casa Aberta?”, que a gente possa produzir, ser ponto, mas ponto de encontro, de trabalho e de laço. E de acolhimento também! Tarefas difíceis...
Mas Dianas ou não, orientadas não só pela psicanálise, mas pelo nosso desejo, abrimos hoje um novo semestre de trabalho da Casa, uma nova empreitada de invenções. Invenções, claro, que não se pretendem fixas e/ou resolutivas, mas de possibilidades. Encerro minha fala certa de que a Casa sirva então como um espaço não só de produções singulares, mas também de uma possibilidade de mulheres na cidade, e mulheres psicanalistas na cidade contando histórias, mesmo que esse fazer ainda seja uma pergunta.
Referência bibliográfica
KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Boitempo, 2016.
LACAN, J., O seminário 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970, Rio de Janeiro: Zahar, 1992
MILLER, J-A., Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1988
ROSA, M., “Por onde andarão as histéricas de outrora?” Um estudo lacaniano sobre as histerias. Belo Horizonte: edição da autora, 2019