Revista Espírita 1868


Revista Espírita 1868

Allan Kardec

 

REVISTA ESPÍRITA

Jornal de Estudos Psicológicos

Contém:

O relato das manifestações materiais ou inteligentes dos Espíritos, aparições, evocações, etc., bem como todas as notícias relativas ao Espiritismo. — O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e o seu futuro. — A história do Espiritismo na Antiguidade; suas relações com o magnetismo e com o sonambulismo; a explicação das lendas e das crenças populares, da mitologia de todos os povos, etc.

Publicada sob a direção de ALLAN KARDEC

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente.

O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito.

ANO DÉCIMO PRIMEIRO — 1868

TRADUÇÃO DE EVANDRO NOLETO BEZERRA

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA


Janeiro de 1868

Golpe de Vista Retrospectivo

O ano de 1867 tinha sido anunciado como devendo ser particularmente proveitoso para o Espiritismo, e essa previsão realizou-se plenamente. Ele viu aparecerem várias obras que, sem lhe trazer o nome, popularizaram os seus princípios, e entre as quais lembraremos Mireta, do Sr. Sauvage; O Romance do Futuro, do Sr. Bonnemère; Deus na Natureza, pelo Sr. Camille Flammarion. A Razão do Espiritismo, pelo Sr. juiz de instrução Bonnamy, é um acontecimento nos anais da Doutrina, porque aí a bandeira é altamente e corajosamente hasteada por um homem cujo nome, justamente estimado e considerado, é uma autoridade, ao mesmo tempo que sua obra é um protesto contra os epítetos com que a crítica gratifica geralmente os adeptos da ideia. Todos os espíritas apreciaram esse livro como o merece, e lhe compreenderam o alcance. É uma resposta peremptória a certos ataques; assim, pensamos que considerarão como um dever propagá-lo no interesse da Doutrina.

Tivesse o ano apenas esses resultados e já nos deveríamos felicitar; mas os produziu mais efetivos. É verdade que o número das sociedades ou grupos oficialmente conhecidos não aumentou sensivelmente; chegou mesmo a diminuir, por força das intrigas, com cujo auxílio procuraram miná-los, neles introduzindo elementos de dissolução; mas, em contrapartida, o número de reuniões particulares, ou de família, cresceu em grande proporção.

Além disso, é evidente para todos e da própria confissão dos nossos adversários, que as ideias espíritas ganharam terreno consideravelmente, como o constata o autor da obra a que nos referimos adiante. Elas se infiltram por uma porção de brechas; tudo concorre para isto. As coisas que, à primeira vista, a elas pareciam mais estranhas, são meios com a ajuda dos quais essas ideias vêm à luz. É que o Espiritismo toca em tão grande número de questões, que é muito difícil abordar o que quer que seja sem ver aí surgir um pensamento espírita, de tal sorte que, mesmo nos meios refratários, essas ideias eclodem sob uma ou outra forma, como essas plantas multicores, que crescem por entre as pedras. E como nesses meios geralmente repelem o Espiritismo, por espírito de prevenção, sem saberem o que ele diz, não é surpreendente que, quando pensamentos espíritas aí aparecem, não os reconheçam; mas os aclamam, porque os acham bons, sem suspeitarem que é Espiritismo.

A literatura contemporânea, grande ou pequena, séria ou leviana, semeia essas ideias em profusão; é por elas embelezada e não lhe falta senão o nome. Se se reunissem todos os pensamentos que correm o mundo, constituir-se-ia o Espiritismo completo. Ora, aí está um fato considerável, um dos mais característicos do ano que acaba de findar. Isto prova que cada um tem em si alguns elementos no estado de intuição, e que entre os seus antagonistas e ele não há, na maioria das vezes, senão uma questão de palavra. Os que o repelem com perfeito conhecimento de causa são os que têm interesse em o combater.

Mas, então, que fazer para torná-lo conhecido, a fim de triunfar dessas prevenções? Isto é obra do tempo. É preciso que as circunstâncias para aí levem naturalmente, e para isto pode-se contar com os Espíritos, que sabem fazê-las em tempo oportuno. Essas circunstâncias são particulares ou gerais; as primeiras agem sobre os indivíduos e as outras sobre as massas. As últimas, por sua repercussão, fazem o efeito das minas que, a cada explosão, arrancam alguns fragmentos de rocha.

Que cada espírita trabalhe de seu lado, sem se deixar desanimar com a pouca importância do resultado obtido individualmente, e pense que, graças ao acúmulo de grãos de areia, se forma uma montanha.

Entre os fatos materiais que assinalaram este ano, as curas do zuavo Jacob ocupam o primeiro lugar; tiveram uma repercussão que todos conhecem e, embora o Espiritismo aí só tenha figurado casualmente, a atenção geral não deixou de ser vivamente atraída para um fenômeno dos mais graves, e que a ele se liga de maneira direta. Esses fatos, produzindo-se em condições vulgares, sem aparato místico, não por um só indivíduo, mas por diversos, por isto mesmo perderam o caráter miraculoso, que até então lhes haviam atribuído. Como tantos outros, entraram no domínio dos fenômenos naturais. Entre os que os rejeitam como milagres, muitos se tornaram menos absolutos na negação do fato e admitiram a sua possibilidade como resultado de uma lei desconhecida da Natureza. Era o primeiro passo numa via fecunda em consequências, e mais de um céptico ficou abalado. Certamente nem todos ficaram convencidos, mas a coisa deu muito que falar, daí resultando, em grande número, profunda impressão, que fez refletir mais do que se pensa. São sementes que, se não dão uma colheita abundante, imediata, não estão perdidas para o futuro.

O Sr. Jacob mantém-se sempre afastado de maneira absoluta. Ignoramos os motivos de sua abstenção e se deve ou não retomar o curso de suas sessões. Se há intermitência em sua faculdade, como acontece muitas vezes em casos semelhantes, seria uma prova de que ela não se deve exclusivamente à sua pessoa, e que fora do indivíduo existe alguma coisa, uma vontade independente.

Mas, dirão, por que esta suspensão, uma vez que a produção de tais fenômenos era vantajosa para a Doutrina? Tendo as coisas, até aqui, sido conduzidas com uma sabedoria que não é desmentida, é de supor que os que dirigem o movimento julgaram o efeito suficiente neste momento, e que seria útil interromper a efervescência. Mas a ideia foi lançada e se pode estar certo de que não ficará no estado de letra morta.

Em suma, como se vê, o ano foi bom para o Espiritismo; suas falanges recrutaram homens sérios, cuja opinião é tida por alguma coisa num certo mundo. Nossa correspondência nos assinala quase por toda parte um movimento geral de opinião por essas ideias e, coisa bizarra, neste século positivo, as que ganham mais terreno são as ideias filosóficas, muito mais que os fatos materiais de manifestação, que muitas pessoas ainda se obstinam em rejeitar. Assim, perante o maior número, o melhor meio de fazer proselitismo é começar pela filosofia, o que é compreensível. Sendo as ideias fundamentais latentes na maioria, basta despertá-las. Compreendem-nas porque possuem em si os seus germes, enquanto os fatos, para serem aceitos e compreendidos, demandam estudo e observações que muitos não querem se dar ao trabalho de fazer.

Depois o charlatanismo, que se apoderou dos fatos para os explorar em seu proveito, os desacreditou na opinião de certas pessoas, dando margem à crítica. Não se daria o mesmo com a filosofia, que não era tão fácil de contrafazer, e que, aliás, não se presta à exploração.

Por sua natureza, o charlatanismo é turbulento e intrigante, sem o que não seria charlatanismo. A crítica, que geralmente pouco se preocupa em ir ao fundo do poço buscar a verdade, viu o charlatanismo alardear-se e se esforçou para o vincular à etiqueta do Espiritismo. Daí, contra esta palavra, uma prevenção que se apaga à medida que o verdadeiro Espiritismo é mais bem conhecido, porque ninguém que o tenha estudado seriamente o confundirá com o Espiritismo grotesco de fantasia, que a negligência ou a malevolência procuram substituir. É uma reação neste sentido que se manifestou nestes últimos tempos.

Os princípios que se acreditam com mais facilidade são os da pluralidade dos mundos habitados  e o da pluralidade das existências, ou reencarnação. O primeiro pode ser considerado como admitido sem contestação pela Ciência e pelo assentimento unânime, mesmo no campo materialista; o segundo encontra-se no estado de intuição numa porção de indivíduos, nos quais é uma crença inata; encontra numerosas simpatias, como princípio racional de filosofia, mesmo fora do Espiritismo. É uma ideia que agrada a muitos incrédulos, porque aí acham imediatamente  a solução das dificuldades que os haviam levado à dúvida; por isso essa crença tende cada vez mais a se vulgarizar. Mas, para quem quer que reflita, esses dois princípios têm consequências forçadas, que desembocam diretamente no Espiritismo. Pode-se, pois, encarar o progresso dessas ideias como o primeiro passo para a Doutrina, visto que dela são partes integrantes.

A imprensa que, mau grado seu, sofre a influência da difusão das ideias espíritas, porque estas penetram até no seu seio, em geral se abstém, quando não por simpatia, ao menos por prudência; quase que já não é de bom-tom falar dos Davenport. Dir-se-ia mesmo que ela finge evitar a questão do Espiritismo. Se, de vez em quando, ela atira algumas setas contra os seus aderentes, são como os últimos lampejos de um fogo de artifício. Mas não há mais esse fogo contínuo de invectivas que se ouvia ainda há dois anos. Embora ela tenha feito quase tanto ruído do Sr. Jacob, quanto dos Davenport, sua linguagem foi toda outra, e é de notar que, na sua polêmica, o nome do Espiritismo só figurou de modo muito secundário.

No exame da situação, não se deve considerar apenas os grandes movimentos ostensivos, mas, sobretudo, levar em conta o estado íntimo da opinião e das causas que a podem influenciar. Assim, como dissemos alhures, se se observar atentamente o que se passa no mundo, reconhecer-se-á que uma porção de fatos, aparentemente estranhos ao Espiritismo, parecem vir de propósito para lhe abrir as vias. É no conjunto das circunstâncias que se devem procurar os verdadeiros sinais do progresso. Deste ponto de vista, então, a situação é tão satisfatória quanto se pode desejar. Daí se deve concluir que a oposição esteja desarmada, e que de agora em diante, as coisas vão marchar sem obstáculo? Guardemo-nos de o crer e de dormir numa enganadora segurança. O futuro do Espiritismo, sem contradita, está assegurado, e seria preciso ser cego para o duvidar; mas, os seus piores dias não passaram; ainda não recebeu o batismo que consagra todas as grandes ideias. Os Espíritos são unânimes em nos precaver contra uma luta inevitável, mas necessária, a fim de provar a sua invulnerabilidade e a sua força; dela o Espiritismo sairá maior e mais forte; somente então conquistará seu lugar no mundo, porque os que tiverem querido derrubá-lo terão preparado o seu triunfo. Que os espíritas sinceros e devotados se fortaleçam pela união e se confundam numa santa comunhão de pensamentos. Lembremo-nos da parábola das dez virgens e velemos para não sermos pegos de surpresa.

Aproveitamos esta circunstância para exprimir toda a nossa gratidão àqueles dos nossos irmãos espíritas que, como nos anos anteriores, por ocasião da renovação das assinaturas da Revista, nos dão novos testemunhos de sua afetuosa simpatia; somos felizes pelas garantias que nos dão de seu devotamento à causa sagrada que todos defendemos, e que é a da Humanidade e do progresso. Aos que nos dizem: coragem! diremos que jamais recuaremos diante de qualquer das necessidades de nossa posição, por mais duras que sejam. Que contem conosco, como neles contamos encontrar, no dia da vitória, soldados da véspera, e não soldados do dia seguinte.


 

O Espiritismo Diante da História e da Igreja

SUA ORIGEM, SUA NATUREZA, SUA CERTEZA, SEUS PERIGOS

(Pelo abade Poussin, professor do Seminário de Nice)

Esta obra é uma refutação do Espiritismo do ponto de vista religioso. É, sem contradita, uma das mais completas e mais bem-feitas que conhecemos. É escrita com moderação e conveniência, e não se denigre pelos epítetos a que nos habituaram a maior parte das controvérsias do mesmo partido. Aí, nada de declarações furibundas, nada de personalismos ultrajantes; é o princípio mesmo que é discutido. Pode-se não estar de acordo com o autor, achar que as conclusões que ele tira de suas premissas são de uma lógica contestável; dizer que depois de haver demonstrado, por exemplo, com as peças na mão, que o Sol brilha ao meio-dia, erra ao concluir que deve ser noite, mas não se lhe reprochará a falta de urbanidade na forma.

A primeira parte da obra é consagrada à história do Espiritismo na antiguidade e na Idade Média. Esta parte é rica em documentos tirados dos autores sacros e profanos, que atestam laboriosas pesquisas e um estudo sério. É um trabalho que nos proporíamos fazer um dia, e felizes estamos por nos ter o Sr. abade Poussin poupado desse trabalho.

Na segunda parte, intitulada Parte doutrinária, o autor, discutindo os fatos que acaba de citar, inclusive os fatos atuais, conclui, segundo a infalibilidade da Igreja e seus próprios argumentos, que todos os fenômenos magnéticos e espíritas são obra do demônio. É uma opinião como outra qualquer, e respeitável quando sincera. Ora, nós cremos na sinceridade das convicções do Sr. Poussin, embora não tenhamos a honra de o conhecer. O que se lhe pode censurar é não invocar em favor de sua tese senão a opinião dos adversários conhecidos do Espiritismo, assim como as doutrinas e alegações que desaprova. Em vão se buscaria nesse livro a menção das obras fundamentais, assim como nenhuma refutação direta das respostas que foram dadas às alegações contraditórias. Numa palavra, ele não discute a doutrina propriamente dita; não toma os seus argumentos corpo-a-corpo, para os esmagar sob o peso de uma lógica mais rigorosa.

Além disso, pode achar-se estranho que o Sr. abade Poussin se apóie, para combater o Espiritismo, na opinião de homens conhecidos por suas ideias materialistas, tais como os Srs. Littré e Figuier; sobretudo deste último, que mais brilhou por suas contradições do que por sua lógica, ele toma várias expressões. Esses senhores, combatendo o princípio do Espiritismo, denegando a causa dos fenômenos psíquicos, por isto mesmo negam o princípio da espiritualidade; assim, minam a base da religião, pela qual não professam, como se sabe, grande simpatia. Invocando sua opinião, a escolha não é feliz; poder-se-ia mesmo dizer que é desastrada, pois é excitar os fiéis a ler escritos que não são nada ortodoxos. Vendo-o beber em tais fontes, poder-se-ia crer que não julgou as outras bastante preponderantes.

O abade Poussin não contesta nenhum dos fenômenos espíritas; virtualmente prova a sua existência pelos fatos autênticos que cita, e que colhe indiferentemente na história sagrada e na história pagã. Aproximando uns dos outros, não pode deixar de reconhecer a sua analogia. Ora, em boa lógica, da similitude dos efeitos deve-se concluir a similitude das causas. Entretanto, o Sr. Poussin conclui que os mesmos fatos são miraculosos, de fonte divina em certos casos, e diabólica, em outros.

Os homens que professam as mesmas crenças que o Sr. Figuier também têm sobre esses mesmos fatos duas opiniões: negam-nos simplesmente e os atribuem à trapaça; quanto aos que são comprovados, esforçam-se por os ligar apenas às leis da matéria. Perguntai-lhes o que pensam dos milagres do Cristo: eles vos dirão que são fatos lendários, contos inventados para as necessidades da causa, ou produtos de imaginações superexcitadas e em delírio.

É verdade que o Espiritismo não reconhece nos fenômenos psíquicos um caráter sobrenatural; ele os explica pelas faculdades e pelos atributos da alma; e como a alma está na Natureza, os considera como efeitos naturais, que se produzem em virtude de leis especiais, até então desconhecidas, e que o Espiritismo dá a conhecer. Realizando-se esses fenômenos aos nossos olhos, em condições idênticas, acompanhados das mesmas circunstâncias e por intermédio de indivíduos que nada têm de excepcional, daí conclui pela possibilidade dos que se passaram em tempos mais recuados, e isto pela mesma causa natural.

O Espiritismo não se dirige às pessoas convictas da existência desses fenômenos, e que são perfeitamente livres para neles ver milagres, se tal é sua opinião, mas aos que os negam precisamente por causa do caráter miraculoso que lhes querem dar. Provando que esses fatos não têm de sobrenatural senão a aparência, ele os faz aceitar pelos mesmos que os repeliam. Os espíritas foram recrutados, em imensa maioria, entre os incrédulos e, contudo, hoje não há um só que negue os fatos realizados pelo Cristo. Ora, o que vale mais: crer na existência desses fatos, sem o sobrenatural, ou neles não crer absolutamente? Os que os admitem a um título qualquer não estão mais perto de vós do que os que os rejeitam completamente? Desde que o fato seja admitido, não resta senão provar a sua fonte miraculosa, o que deve ser mais fácil, se a fonte for real, do que quando o próprio fato é contestado.

Para combater o Espiritismo, apoiando-se o Sr. Poussin na autoridade dos que repelem até o princípio espiritual, não seria ele um dos que pretendem que a incredulidade absoluta é preferível à fé adquirida pelo Espiritismo?

Citamos integralmente o prefácio do livro do Sr. Poussin, que faremos seguir de algumas reflexões:

“O Espiritismo, é preciso bem reconhecê-lo, envolve como numa imensa rede a sociedade inteira, e por seus profetas, por seus oráculos, por seus livros e por seu jornalismo, esforça-se por minar secretamente a Igreja católica. Se nos prestou o serviço de derrubar as teorias materialistas do século dezoito, dá-nos em troca uma revelação nova, que solapa pela base todo o edifício da revelação cristã. E, contudo, por um fenômeno singular, ou melhor, por força da ignorância e da fascinação que excita a curiosidade, quantos católicos brincam diariamente com o Espiritismo, sem se preocuparem absolutamente com os seus perigos! É bem verdade que os espíritas ainda estão divididos quanto à essência e mesmo quanto à realidade do Espiritismo, e é provavelmente devido a essas incertezas que o maior número julga poder se formar a consciência e usar o Espiritismo como um curioso divertimento. Todavia, no fundo dessas almas timoratas e delicadas se manifesta uma grande ansiedade. Quantas vezes não temos ouvido estas questões incessantes: ‘Dizei-nos bem a verdade. O que é o Espiritismo? Qual a sua origem? Credes nessa genealogia que queria ligar os fenômenos do Espiritismo à magia antiga? Admitis os fatos estranhos do magnetismo e das mesas girantes? Acreditais na intervenção dos Espíritos e na evocação das almas? no papel dos anjos e dos demônios? É permitido interrogar as mesas girantes e consultar os espiritistas? Que pensam sobre todas essas questões os teólogos, os bispos?... A Igreja romana deu algumas decisões? etc., etc.’

“Estas perguntas, que ainda retinem aos nossos ouvidos, inspiraram o pensamento deste livro, que tem por objetivo responder a todas, nos limites de nossas forças. Por isso, a fim de estar mais seguros e convictos, jamais afirmamos coisa alguma sem uma autoridade grave, e nada decidimos que os bispos e Roma não tenham decidido. — Entre os que estudaram especialmente estas matérias, uns rejeitam em massa todos os fatos extraordinários  que o Espiritismo se atribui. Outros, concedendo larga parte às alucinações e ao charlatanismo, reconhecem que é impossível deixar de admitir certos fenômenos inexplicáveis e inexplicados, tão inconciliáveis com os ensinamentos gerais das ciências naturais, quanto desconcertantes para a razão humana; contudo, procuram interpretá-los, ou por certas leis misteriosas da fisiologia, ou pela intervenção da grande alma da natureza, da qual a nossa é simples emanação, etc. Vários escritores católicos, forçados a admitir os fatos, achando a solução natural por vezes impossível e a explicação panteísta absurda, não hesitam em reconhecer em certos fatos do Espiritismo a intervenção direta do demônio. Para estes, o Espiritismo não passa da continuação dessa magia pagã, que aparece em toda a História, desde os mágicos do faraó, à pitonisa de Endor, os oráculos de Delfos, às profecias das sibilas e dos adivinhos, até as possessões demoníacas do Evangelho e aos fenômenos extraordinários e constatados do magnetismo contemporâneo. A Igreja não se pronunciou sobre as discussões especulativas; abandona a questão histórica das origens do Espiritismo e a questão psicológica de seus agentes misteriosos à vã disputa dos homens. Teólogos sérios, bispos e doutores particulares têm sustentado estas últimas opiniões; oficialmente, Roma não os aprova nem os censura. Mas se a Igreja prudentemente guardou silêncio sobre as teorias, levantou a voz nas questões práticas, e em presença das incertezas da razão, assinala perigos para a consciência. Uma ciência curiosa e em si mesma inocente, pode, por causa dos abusos frequentes, tornar-se uma fonte de perigos; por isso, Roma condenou como perigosos para os costumes, certas práticas e certos abusos do magnetismo, cujos graves inconvenientes os próprios espíritas não dissimulam. Ainda mais, bispos julgaram dever interditar aos seus diocesanos e em qualquer hipótese, como supersticiosos  e perigosos para os costumes e para a fé, não só os abusos  do magnetismo, mas o hábito de interrogar as mesas girantes.

“Para nós, na questão especulativa, posta em presença dos que veem o demônio em toda parte e dos que não o veem em parte alguma, quisemos, mantendo-nos a distância dos dois escolhos, estudar as origens históricas do Espiritismo, examinar a certeza dos fatos e discutir imparcialmente os sistemas psicológicos e panteístas pelos quais tudo querem interpretar. Evidentemente, quando refutamos vários desses sistemas, não pretendemos impor a ninguém os nossos próprios pensamentos, embora as autoridades sobre as quais nos apoiamos nos pareçam da mais alta gravidade. Separando das opiniões livres tudo o que é de fé, como a existência dos anjos e dos demônios, as possessões e as obsessões demoníacas do Evangelho, a legitimidade e o poder dos exorcismos na Igreja, etc., deixamos a cada um o direito, não de negar o comércio voluntário dos homens com o demônio, o que, segundo o padre Perronne, seria temerário, e conduziria ao pirronismo histórico; mas reconhecemos a todo católico o direito de não ver no Espiritismo a intervenção do demônio, se os nossos argumentos parecerem mais especiosos que sólidos, e se a razão e o estudo mais atento dos fatos provarem o contrário.

“Quanto à questão prática, não nos reconhecemos o direito de absolver o que Roma condena; e se algumas almas ainda hesitassem, nós as remeteríamos simplesmente às decisões romanas, às interdições episcopais e mesmo às decisões teológicas, que reproduzimos integralmente.

“O plano deste livro é muito simples. A primeira parte, ou parte histórica, depois de ter dado o ensino das Santas Escrituras e a tradição de todos os povos sobre a existência e o papel dos Espíritos, nos inicia nos fatos mais salientes do Espiritismo ou da magia, desde a origem do mundo até os nossos dias.

 “A segunda parte, ou parte doutrinária, expõe e discute os diversos sistemas imaginados para descobrir o agente verdadeiro do Espiritismo; depois de ter precisado o nosso melhor ensino da teologia católica sobre a intervenção geral dos Espíritos, e dado livre curso a opiniões livres sobre o agente misterioso da magia moderna, assinalamos aos fiéis os perigos do Espiritismo para a fé, para os costumes  e mesmo para a saúde  ou para a vida.

“Possam estas páginas, mostrando o perigo, concluir o bem que outros começaram!... Inútil acrescentar que, filhos dóceis da Igreja, condenamos por antecipação tudo quanto Roma pudesse desaprovar.”

O Sr. abade Poussin reconhece duas coisas: 1º — que o Espiritismo envolve, como numa imensa rede, a sociedade inteira; 2º — que prestou à Igreja o serviço de derrubar as teorias materialistas do século dezoito. Vejamos que consequências decorrem desses dois fatos.

Como dissemos, o Espiritismo é recrutado, em grande maioria, entre os incrédulos. Com efeito, perguntai aos nove décimos dos adeptos, em que acreditavam antes de ser espíritas; eles responderão que não acreditavam em nada ou, pelo menos, que duvidam de tudo; para eles a existência da alma era uma hipótese, sem dúvida desejável, mas incerta; a vida futura uma quimera; Cristo era um mito ou, no máximo, um filósofo; Deus, se existisse, devia ser injusto, cruel e parcial, daí por que tanto gostavam de crer que ele não existia.

Hoje creem e sua fé é inabalável, porque assentada na evidência e na demonstração, e porque satisfaz à razão; o futuro não é mais uma esperança, mas uma certeza, porque veem a vida espiritual manifestar-se aos seus olhos; dela não duvidam mais do que duvidam do nascer do Sol. É verdade que não creem nos demônios e nem nas chamas eternas do inferno, mas, em compensação, acreditam firmemente num Deus soberanamente justo, bom e misericordioso; não creem que o mal venha dele, que é a fonte de todo bem, nem dos demônios, mas das próprias imperfeições do homem; que o homem se reforma e o mal não existirá mais; vencer-se a si mesmo é vencer o demônio. Tal é a fé dos espíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornarem melhores, domarem suas inclinações más e porem em prática as máximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, sem acepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seus inimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divino modelo.

Sobre quem o Espiritismo devia ter mais fácil acesso? Não é sobre os que tinham fé e a quem esta bastava, que nada pediam e de nada precisavam; mas sobre aqueles a quem faltava a fé. Como o Cristo, foi aos doentes, e não aos que gozam de saúde; aos que têm fome, e não aos que estão saciados. Ora, os doentes são os que se acham torturados pelas angústias da dúvida e da incredulidade.

E que fez para os trazer a si? Uma maciça propaganda? Indo pregar a doutrina nas praças públicas? Violentando consciências? Absolutamente, porque estes são os meios da fraqueza; e se os tivesse usado, teria mostrado que duvidava de sua força moral. Ele tem como regra invariável, conforme a lei de caridade, ensinada pelo Cristo, não constranger ninguém, respeitar todas as convicções; contentou-se em enunciar os seus princípios, desenvolver em seus escritos as bases sobre as quais estão assentadas as suas crenças, e deixou vir a ele os que quisessem. Se vieram muitos, é que a muitos conveio e muitos nele acharam o que não haviam encontrado alhures. Se recrutou principalmente entre os incrédulos, e se em alguns anos enlaçou o mundo, é porque os incrédulos e os que não estão satisfeitos com o que lhes dão são numerosos, desde que não se é atraído senão para onde se encontra algo melhor do que o que se tem. Dissemos centenas de vezes: Querem combater o Espiritismo? Que deem melhor que ele.

Reconheceis, senhor abade, que o Espiritismo prestou à Igreja o serviço de derrubar as teorias materialistas; sem dúvida é um grande resultado, do qual ele se glorifica. Mas, como o conseguiu? precisamente com o auxílio desses meios que chamais diabólicos, com as provas materiais que ele dá, da alma e da vida futura; foi com a manifestação dos Espíritos que ele confundiu a incredulidade e que triunfará definitivamente. E dizeis que tal serviço é obra de Satã? Mas, então, não deveríeis lhe querer tanto, já que ele próprio destrói a barreira que retinha os que ele prendera indevidamente? Lembrai-vos da resposta do Cristo aos fariseus, que lhe falavam exatamente a mesma linguagem, acusando-o de curar os doentes e de expulsar os demônios pelos demônios. Lembrai-vos, também, a respeito, das palavras de Monsenhor Frayssinous, bispo de Hermópolis, em suas conferências sobre religião: “Certamente, um demônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude seria um demônio singular, porque se destruiria a si mesmo.”

Se esse resultado obtido pelo Espiritismo é obra de Satã, como é que a Igreja lhe deixou o mérito e não o obteve ela própria? Como é que deixou a incredulidade invadir a sociedade? Contudo, não lhe faltaram meios de ação. Não tem pessoal e recursos materiais imensos? as pregações desde as capitais até as menores aldeias? a pressão que exerce sobre as consciências pela confissão? o terror das penas eternas? a instrução religiosa que acompanha a criança durante todo o curso de sua educação? o prestígio das cerimônias do culto e de sua ancianidade? Como é que uma doutrina, apenas desabrochada, que não tem sacerdotes, nem templos, nem culto, nem pregações; que é combatida com rigor pela Igreja, caluniada, perseguida como o foram os primeiros cristãos, em tão pouco tempo reconduziu à fé e à crença na imortalidade um tão grande número de incrédulos? Entretanto, a coisa não é muito difícil, pois basta à maioria ler alguns livros para se dissiparem todas as dúvidas.

Tirai daí as conclusões que quiserdes; mas confessai que, se isto é obra do diabo, ele fez o que vós mesmos não pudestes fazer, e que ele se desobrigou da vossa tarefa.

Por certo direis que o que depõe contra o Espiritismo é que ele não emprega, para convencer, os mesmos argumentos que vós, e que, se triunfa da incredulidade, não conduz completamente a vós.

Mas o Espiritismo não tem a pretensão de marchar convosco, nem com ninguém; ele mesmo faz os seus trabalhos, e como entende. A incredulidade foi refratária aos vossos argumentos; de boa-fé acreditaríeis que o Espiritismo teria triunfado servindo-se dos mesmos? Se um médico não cura um doente com um remédio, outro médico o curará empregando o mesmo remédio?

O Espiritismo não procura reconduzir os incrédulos ao seio absoluto do catolicismo, nem ao de qualquer outro culto. Em lhes fazendo aceitar as bases comuns a todas as religiões, ele destrói o principal obstáculo e os leva a fazer a metade do caminho; cabe a cada um fazer o resto, no que lhe concerne; as que fracassam dão uma prova manifesta de incapacidade.

Desde o instante que a Igreja reconhece a existência de todos os fatos de manifestações sobre os quais se apoia o Espiritismo; que ela os reivindica para si mesma, a título de milagres divinos; que, entre os fatos que se passam nos dois campos, há uma analogia completa, quanto aos efeitos, analogia que o Sr. abade Poussin demonstra com a última evidência e peças de apoio, pondo-as à vista, toda a questão se reduz, então, em saber se é Deus que age de um lado e o diabo do outro. É uma questão pessoal. Ora, quando duas pessoas fazem exatamente a mesma coisa, conclui-se que uma é tão poderosa quanto a outra. Toda a argumentação do Sr. Poussin termina, assim, por demonstrar que o diabo é tão poderoso quanto Deus.

De duas coisas, uma: ou os efeitos são idênticos, ou não o são; se são idênticos, é que provêm de uma mesma causa, ou de duas causas equivalentes; se não o são, mostrai em que diferem. Nos resultados? Mas, então, a comparação seria em favor do Espiritismo, porque ele reconduz a Deus os que nele não acreditavam.

Está, pois, bem entendido, por decisão formal das autoridades competentes, que os Espíritos que se manifestam não são, nem podem ser, senão demônios. Convenhamos, entretanto, senhor abade, que se esses mesmos Espíritos, em vez de contradizerem a Igreja sobre alguns pontos, tivessem sido em tudo de sua opinião, se tivessem vindo apoiar todas as suas pretensões temporais e espirituais, aprovar sem restrição tudo quanto ela diz e faz, ela não os chamaria de demônios, mas antes de Espíritos angélicos.

O abade Poussin escreveu o seu livro, diz ele, tendo em vista premunir os fiéis contra os perigos que pode correr sua fé, pelo estudo do Espiritismo. É testemunhar pouca confiança na solidez das bases sobre as quais está assentada esta fé, já que pode ser abalada tão facilmente. O Espiritismo não tem o mesmo receio. Tudo quanto puderam dizer e fazer contra ele não lhe fez perder uma polegada de terreno, pois que o ganha todos os dias; entretanto, não faltou talento a mais de um de seus adversários. As lutas empenhadas contra ele, longe de o enfraquecer, o fortificaram; elas contribuíram poderosamente para o espalhar mais rapidamente do que o teria feito sem isto, de tal sorte que esta rede que, em alguns anos envolveu a sociedade inteira, é, em grande parte, obra de seus antagonistas. Sem nenhum dos meios materiais de ação, que fazem os sucessos neste mundo, ele não se propagou senão pelo poder da ideia. Desde que os argumentos, com o auxílio dos quais o combateram, não o derrubaram, é que, aparentemente, os julgaram menos convincentes que os seus. Quereis ter o segredo de sua fé? ei-lo: é que antes de crer, compreendem.

O Espiritismo não teme a luz; ele a chama sobre suas doutrinas, porque quer ser aceito livremente e pela razão. Longe de temer para a fé dos espíritas a leitura das obras que o combatem, ele lhes diz: Lede tudo; os prós e os contras, e escolhei com conhecimento de causa. É por isto que assinalamos à sua atenção a obra do abade Poussin.[1]

Damos a seguir, sem comentários, alguns fragmentos tirados da primeira parte:

1. — Certos católicos, mesmo piedosos, em matéria de fé têm singulares ideias, resultado inevitável do cepticismo ambiente que, mau grado seu, os domina e dos quais sofrem a influência deletéria. Falai de Deus, de Jesus-Cristo, eles aceitam tudo imediatamente; mas se tentardes falar do demônio, e sobretudo da intervenção diabólica na vida humana, não mais vos escutam. Como os nossos racionalistas contemporâneos, de boa vontade tomariam o demônio como um mito ou uma personificação fantástica do gênio do mal, os êxtases dos santos por fenômenos de catalepsia e as possessões diabólicas, mesmo as do Evangelho, se não como epilepsia, ao menos como parábolas. São Tomás[2], em sua linguagem precisa, responde em duas palavras a esse perigoso cepticismo: “Se a facilidade de ver falar o demônio, diz ele, procede da ignorância das leis da Natureza e da credulidade, a tendência geral a não ver a sua ação em parte alguma procede da irreligião e da incredulidade.” Negar o demônio é negar o Cristianismo e negar Deus.

2. — A crença na existência dos Espíritos e sua intervenção no domínio de nossa vida, mais ainda, o próprio Espiritismo ou a prática da evocação dos Espíritos, almas, anjos ou demônios, remontam à mais alta antiguidade, e são tão antigas quanto o mundo. — Sobre a existência e o papel dos Espíritos, interroguemos, primeiramente, nossos livros santos, os mais antigos e os mais incontestados livros de História e, ao mesmo tempo, o código divino de nossa fé. O demônio seduzindo sob uma forma sensível Adão e Eva no Paraíso; os querubins que guardavam a sua entrada; os anjos que visitam Abraão e discutem com ele a questão da salvação de Sodoma; os anjos insultados na cidade imunda, arrancando Loth ao incêndio; o anjo de Isaque, de Jacó, de Moisés e de Tobias; o demônio que mata os sete maridos de Sara; o que tortura a alma e o corpo de Job; o anjo exterminador dos egípcios sob Moisés, e dos israelitas sob Davi; a mão invisível que escreve a sentença de Baltazar; o anjo que fere Heliodoro; o anjo da Encarnação, Gabriel, que anuncia São João e Jesus-Cristo: Que mais é preciso para mostrar a existência dos Espíritos, bons ou maus, nos atos da vida humana? Deus fez dos Espíritos seus embaixadores, diz o salmista; são os ministros de Deus, diz São Paulo; São Pedro nos ensina que os demônios rondam sem cessar em torno de nós, como leões rugidores; São Paulo, tentado por eles, nos declara que o ar está repleto deles.

3. — Notemos aqui que as tradições pagãs estão em perfeita harmonia com as tradições judaicas e cristãs. O mundo, segundo Tales e Pitágoras, está cheio de substâncias espirituais. Todos esses autores os dividem em Espíritos bons e maus; Empédocles diz que os demônios são punidos pelas faltas que cometeram; Platão fala de um príncipe, de natureza malfazeja, preposto desses Espíritos expulsos pelos deuses e caídos do céu, diz Plutarco. Todas as almas, acrescenta Porfírio, que têm por princípio a alma do universo, governam os grandes países situados sob a Lua: são os bons demônios (Espíritos); e, fiquemos bem convencidos, eles só agem no interesse de seus administrados, quer com o cuidado que tomam dos animais, quer velem pelos frutos da terra, quer presidam às chuvas, aos ventos moderados, ao bom tempo. Deve-se ainda colocar na categoria dos bons demônios  os que, segundo Platão, estão encarregados de levar aos deuses as preces dos homens, e que trazem aos homens as advertências, as exortações, os oráculos dos deuses.

4. — Os árabes chamam de Iba  o chefe dos demônios; os caldeus com eles enchiam o ar; enfim, Confúcio ensina absolutamente a mesma doutrina: “Como são sublimes as virtudes dos Espíritos! dizia ele; olha-se-os e não se os vê; escuta-se-os e não se os entende; unidos à substância das coisas, delas eles não podem separar-se; são a causa de que todos os homens em todo o Universo se purifiquem e se revistam de roupas de gala para oferecer sacrifícios; estão espalhados como as ondas do oceano acima de nós, à nossa esquerda e à nossa direita.”

O culto dos Manitós, espalhado entre os selvagens da América, não é senão o culto dos Espíritos.

5. — Por seu lado, os Pais da Igreja interpretaram admiravelmente a doutrina das Escrituras sobre a existência e a intervenção dos Espíritos: Nada há no mundo visível que não seja regido e disposto pela criatura invisível, diz São Gregório. Neste mundo cada ser vivo tem um anjo que o dirige, acrescenta Santo Agostinho. Os anjos, diz São Gregório de Nazianza, são os ministros da vontade de Deus; eles têm, naturalmente e por comunicação, uma força extraordinária; percorrem todos os lugares e se acham em toda parte, tanto pela prontidão com que exercem seu ministério, quanto pela leveza de sua natureza. Uns são encarregados de velar sobre alguma parte do Universo, que lhes é marcada por Deus, de quem dependem em todas as coisas; outros estão na guarda das cidades e das igrejas; ajudam-nos em tudo quanto fazemos de bom.

6. — Em relação à razão fundamental, Deus governa imediatamente o Universo; mas relativamente à execução, há coisas que ele governa por outros intermediários.

7. — Quanto à própria evocação  dos Espíritos, almas, anjos ou demônios, e a todas as práticas da magia, de que o Espiritismo não passa de uma forma, mais ou menos disfarçada de charlatanismo, é uma prática tão antiga quanto a crença nos próprios Espíritos.

8. — São Cipriano assim explica os mistérios do Espiritismo pagão:

“Os demônios, diz ele, introduzem-se nas estátuas e nos simulacros que o homem adora; são eles que animam as fibras das vítimas, que inspiram com seu sopro o coração dos adivinhos e dão uma voz aos oráculos. Mas como podem curar? Laedunt primo, diz Tertuliano, postque laedere desinunt, et curasse creduntur. Primeiro ferem e, cessando de ferir, passam por curar.”

Na Índia são os Lamas  e os bramanitas que, desde a mais alta antiguidade, têm o monopólio dessas mesmas evocações, que ainda continuam. “Faziam comunicar-se o Céu com a Terra, o homem com a Divindade, absolutamente como nossos médiuns atuais. A origem desse privilégio parece remontar à gênese mesma dos hindus e pertencer à casta sacerdotal desses povos. Saída do cérebro de Brama, a casta sacerdotal deve ficar mais perto da natureza desse Deus criador e entrar mais facilmente em comunicação com ele do que a casta guerreira, nascida de seus braços e, com mais forte razão, que a casta dos Párias, formada da poeira de seus pés.”

9. — Mas o fato mais interessante e mais autêntico da História é, sem contradita, a evocação de Samuel pelo médium  da pitonisa de Endor, que interroga Saul: “Samuel tinha morrido, diz a Escritura; toda Israel o tinha chorado, e ele fora enterrado na cidade de Ramatá, lugar de seu nascimento. E Saul havia expulsado os magos e os adivinhos de seu reino. Estando então reunidos, os filisteus vieram acampar em Sunam; por seu lado, Saul reuniu todas as tropas de Israel e veio para Gilboé. Tendo visto o exército dos filisteus, foi tomado de espanto e de temor até o fundo do coração. Consultou o Senhor; mas o Senhor não lhe respondeu, nem em sonhos, nem pelos sacerdotes, nem pelos profetas. Então disse aos seus oficiais: “Procurai-me uma mulher que tenha o Espírito de Píton, para que me encontre com ela e a consulte.” Seus servidores lhe disseram: “Há uma mulher em Endor que tem um Espírito de Píton.” Saul disfarçou-se, vestiu outras roupas e se foi, acompanhado apenas por dois homens. Veio a noite, chegaram à casa dessa mulher e lhe disse: “Consultai para mim o Espírito de Píton e evocai-me aquele que eu vos disser.” A mulher lhe respondeu: “Bem sabeis o que fez Saul e de que maneira exterminou os mágicos e os adivinhos de todas as suas terras. Por que, então, armais uma cilada para me perder?” Então Saul lhe jurou pelo Senhor, dizendo: “Viva o Senhor! Nenhum mal vos sobrevirá por isso.” A mulher lhe disse: “Quem quereis ver?” Ele lhe respondeu: “Fazei-me vir Samuel.” A mulher, tendo visto Samuel, soltou um grande grito, e disse a Saul: “Por que me enganastes? porque sois Saul.” O rei lhe disse: “Não temais. Que vistes? — Vi, disse ela, um deus que saía da terra. Saul lhe disse: “Como é a sua figura?” — “É, disse ela, um velho envolto num manto.” Então Saul reconheceu que era Samuel; e lhe fez uma profunda reverência, curvando-se até o chão. Samuel disse a Saul: “Por que perturbastes meu repouso, fazendo-me evocar?” Saul lhe respondeu: “Estou em grande dificuldade. Os filisteus me fazem guerra e Deus se retirou de mim; não me quis responder nem pelos profetas, nem em sonhos. Eis por que vos fiz evocar, a fim de que ensineis o que devo fazer.” Samuel lhe disse; “Por que vos dirigis a mim, já que o Senhor vos abandonou e passou ao vosso rival? Porque o Senhor vos tratará como eu disse de sua parte. Ele destroçará o vosso reino por vossas mãos para o dar a Davi, vosso genro, porque não obedecestes à voz do Senhor, nem executastes a sentença de sua cólera contra os amalequitas. É por isso que o Senhor vos envia hoje aquilo que sofreis. Ele entregará mesmo Israel convosco nas mãos dos filisteus. Amanhã estareis comigo, vós e o vosso filho; e o Senhor abandonará aos filisteus o próprio campo de Israel.” De súbito, caiu Saul estendido por terra e foi tomado de grande medo por causa das palavras de Samuel; e faltavam-lhe as forças, porque não comera pão todo aquele dia e toda aquela noite. A maga veio a ele na perturbação em que estava e lhe disse: “Vedes que vossa serva vos obedeceu, que expus minha vida por vós  e que atendi ao que desejáveis de mim.”

“Eis que há quarenta anos faço profissão de evocar os mortos ao serviço de estranhos, diz Philon após esse relato; mas jamais vi semelhante aparição. O Eclesiástico encarregou-se de nos provar que se trata de uma verdadeira aparição, e não de uma alucinação de Saul. Samuel, diz o Espírito-Santo, depois de sua morte falou ao rei, predisse o fim de sua vida e, saindo da terra, ergueu sua voz para profetizar a ruína de sua nação, por causa de sua impiedade.”


 

Os Aïssaouas — Ou Os Convulsionários da Rua Le Peletier

No número das curiosidades atraídas a Paris pela Exposição, uma das mais estranhas é seguramente a dos exercícios executados pelos árabes da tribo dos Aïssaouas. O Monde illustré, de 19 de outubro de 1867, dá uma relação, acompanhada de vários desenhos das diversas cenas que o autor do artigo testemunhou na Argélia. Começa assim o seu relato:

“Os Aïssaouas formam uma seita religiosa muito espalhada na África e, sobretudo, na Argélia. Não conhecemos o seu objetivo; dizem que sua fundação remonta a Aïssa, o escravo favorito do Profeta; pretendem outros que sua confraria foi fundada por Aïssa, piedoso e sábio marabu do século dezesseis. Seja como for, os Aïssaouas sustentam que o seu piedoso fundador lhes dá o privilégio de serem insensíveis ao sofrimento.”

Tiramos do Petit Journal, de 30 de setembro de 1867, o relato de uma das sessões que uma companhia de Aïssoua deu em Paris, durante a Exposição, primeiro no teatro do Campo de Marte, depois na sala da arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida a cena não tem o caráter imponente e terrível das que se realizam nas mesquitas, cercadas pelo prestígio das cerimônias religiosas; mas, à parte algumas nuanças de detalhes, os fatos são os mesmos e os resultados idênticos, e isto é que é essencial. Aliás, tendo-se as coisas passado em plena Paris, aos olhos de numeroso público, o relato não pode ser suspeito de exagero. É o Sr. Timothée Trimm quem fala:

“Confesso mesmo que, ontem à noite, vi coisas que deixam muito para trás os irmãos Davenport e os pretensos milagres do magnetismo. Os prodígios se dão numa pequena sala, ainda não classificada na hierarquia dos espetáculos. Isto se passa na arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida, eis porque se trata tão pouco dos feiticeiros, dos quais falo hoje.

“É evidente que tratamos com iluminados, porque eis vinte e seis árabes que se agacham, servindo-se de castanholas de ferro para acompanhar seus cantos.

“Do corpo de balé muçulmano saiu, em primeiro lugar, um jovem árabe que tomou um carvão aceso. Não suspeitei que pudesse ser um carvão de calor fictício, preparado de propósito, porque senti o seu ardor quando ele passou em minha frente, e queimou o soalho, quando escapou das mãos que o seguravam. O homem tomou esse carvão ardente; colocou-o na sua boca com gritos horríveis e ali o conservou.

“Para mim é evidente que esses selvagens Aïssaouas são verdadeiros convulsionários maometanos. No século passado houve os convulsionários de Paris. Os Aïssaouas da rua Le Peletier certamente acharam essa curiosa descoberta do prazer, da volúpia e do êxtase na mortificação corporal.

 “Théophile Gautier, com seu estilo inimitável, descreveu as danças desses convulsionários árabes. Eis o que dizia no Moniteur  de 29 de julho último:

“O primeiro interlúdio de dança era acompanhado por três grandes caixas e três oboés, tocando em modo menor uma cantilena de uma melancolia nostálgica, sustentada por esses ritmos implacáveis, que acabam se apoderando de nós e dão vertigem. Dir-se-ia uma alma lamentosa, que a fatalidade forçasse a marchar com um passo sempre igual para um fim desconhecido, mas que se pressente doloroso.

“Logo se levantou uma dançarina, com esse ar oprimido que têm as dançarinas orientais, como uma morta que despertasse de um encantamento mágico e, por imperceptíveis deslocamentos dos pés aproximou-se do proscênio; uma de suas companheiras juntou-se a ela e começaram, animando-se pouco a pouco, sob a pressão da medida, essas torções de ancas, essas ondulações do torso, esses balanços de braços agitando lenços de seda raiados de ouro e essa pantomima languidamente voluptuosa, que forma o fundo da dança das bailarinas orientais. Levantar a perna para uma pirueta ou um passo de dança seria, aos olhos dessas dançarinas, o cúmulo da indecência.

“No fim, todo o elenco tomou parte, e notamos, entre outras, uma dançarina de uma beleza selvagem e bárbara, vestida de haïks  brancos e penteada com uma espécie de chachia  de cordões dobrados. Suas sobrancelhas negras unidas com surmeh  à raiz do nariz, sua boca vermelha como um pimentão, em meio à face pálida, davam-lhe uma fisionomia ao mesmo tempo terrível e encantadora; mas a atração principal da noite era a sessão dos Aïssaouas, ou discípulos de Aïssa, a quem o mestre legou o singular privilégio de devorar impunemente tudo o que lhes apresentam.”

 “Aqui, para dar a compreender a excentricidade dos nossos convulsionários argelinos, prefiro minha prosa simples e sem arte à fraseologia elegante e sábia do mestre. Eis, então o que vi:

“Chega um árabe; dão-lhe um pedaço de vidro para comer! Ele o toma, põe na boca e o engole inteiro!... Por alguns minutos ouvem-se os seus dentes triturando o vidro. Aparece sangue na superfície dos lábios trêmulos... Engole o pedaço de vidro moído, dançando e se ajoelhando ao som dos tantãs de praxe.

“A este sucede um árabe que traz na mão galhos de figueira da Barbária, o cacto de longos espinhos. Cada aspereza da folhagem é como uma ponta acerada. O árabe come essa folhagem picante, como comeríamos uma salada de alface ou de chicória.

“Quando a folhagem mortal de cacto foi ingerida, veio um árabe que dançava com uma lança na mão. Apoiou a lança no olho direito, dizendo versículos sagrados, que bem deveriam compreender os nossos oculistas... e o olho direito saiu completamente da órbita!... Todos os assistentes soltaram um grito de terror!

“Então veio um homem que se deixou amarrar ao corpo por uma corda... vinte homens puxam; ele luta, sente a corda entrar nas carnes; ri e canta durante essa agonia.

“Eis um outro energúmeno diante do qual trazem um sabre turco. Passei os dedos em sua lâmina fina e cortante como a de uma navalha. O homem desata o cinto, mostra seu ventre nu e se deita sobre a lâmina; empurram-na, mas o sabre respeita sua epiderme; o árabe venceu o aço.

“Passo em silêncio os Aïssaouas que comem fogo, colocando os pés descalços sobre um braseiro ardente. Fui ver o braseiro nos bastidores e atesto que é ardente e composto de lenha inflamada. Também examinei a boca dos chamados comedores de fogo. Os dentes estão queimados, as gengivas calcinadas, a abóbada palatina parece ter-se endurecido. Mas é mesmo fogo, todos esses tições que engolem, com contorções de danados, procurando aclimatar-se no inferno..., que passa por um país quente.

“O que mais me impressionou nessa estranha exibição dos convulsionários da rua Le Peletier foi o comedor de serpentes. Imaginai um homem que abre um cesto. Dez serpentes de cabeça ameaçadora saem sibilando. O árabe apalpa as serpentes, provoca-as e faz que se enrolem ao redor de seu tronco nu. Depois escolhe a maior e mais vivaz e com os dentes morde e lhe arranca a cauda. Então o réptil se retorce nas angústias da dor. Ela apresenta a cabeça irritada ao árabe, que põe a língua à altura do dardo; de repente, com uma dentada, arranca a cabeça da serpente e a come. Ouve-se o crepitar do corpo do réptil nos dentes do selvagem, que mostra através dos lábios ensanguentados o monstro decapitado.

“E, durante esse tempo, a música melancólica dos tantãs continua seu ritmo sagrado. E o devorador de serpentes vai cair, perdido e atordoado, aos pés dos cantores místicos. Até a semana passada tinham feito este exercício com serpentes da Argélia, que se poderiam ter civilizado a caminho mas as serpentes argelinas se acabam, como todas as coisas. Ontem era a estréia das cobras de Fontainebleau; e o argelino parecia cheio de desconfiança em relação aos nossos répteis nacionais.

“Vá lá quanto ao fogo devorado, suportado ao excesso... na planta dos pés e na palma das mãos... mas o triturador de vidro e o comedor de cobras!... são fenômenos inexplicáveis.

“Nós os tínhamos visto outrora num aduar, nas cercanias de Blidah, diz o Sr. Théophile Gautier, e esse sabá noturno nos deixou lembranças ainda arrepiantes. Os Aïssaouas, depois de excitados pela música, pelo vapor dos perfumes e esse balanço de fera que agita como uma juba sua imensa cabeleira, morderam folhas de cacto, mastigaram carvões ardentes, lamberam pás rubras, engoliram vidro moído, que se ouvia crepitar em seus maxilares, atravessaram a língua e as bochechas com agulhas para lardear, fizeram saltar os olhos fora das órbitas e andaram sobre o fio de uma iatagã de aço de Damasco; um deles, cingido num nó corrediço por sete ou oito homens, parecia cortado em dois, o que não os impediu, acabados os exercícios, de nos vir saudar em nosso camarote à maneira oriental e receber o seu bacchich.

“Das horríveis torturas a que acabam de se submeter, não restava qualquer marca. Que alguém mais sapiente nos explique o prodígio, já que de nossa parte o renunciamos.”

“Sou da opinião de meu ilustre colega e venerado superior na grande arte de escrever, tão difícil quanto a de engolir répteis. Não procuro explicar estas maravilhas; mas era meu dever de cronista não as deixar passar em silêncio.”

Nós mesmos assistimos a uma sessão dos Aïssaouas e podemos dizer que este relato nada tem de exagerado. Vimos tudo o que aí está relatado e ainda mais: um homem atravessar a bochecha e o pescoço com um espeto cortante em forma de lardeadeira. Tendo tocado o instrumento e examinado a coisa bem de perto, convencemo-nos de que não havia nenhum subterfúgio, e que o ferro realmente atravessava as carnes. Mas, coisa bizarra, o sangue não corria e a ferida cicatrizava-se quase instantaneamente. Vimos um outro manter na boca carvões de pedra em brasa, grandes como ovos, cuja combustão ativava pelo sopro, passeando ao redor da sala e lançando chispas. Era fogo tão real que vários espectadores com ele acenderam seus charutos.

Aqui não se trata, pois, de golpes de mágica, de simulacros, nem de malabarismos, mas de fatos positivos; de um fenômeno fisiológico que confunde as mais vulgares noções da Ciência. Entretanto, por mais estranho que seja, não pode ter senão uma causa natural. O que é mais estranho ainda é que a Ciência parece não lhe haver prestado a menor atenção. Como é que sábios, que passam a vida procurando as leis da vitalidade, ficam indiferentes à vista de semelhantes fatos e não buscam suas causas? Julgam-se dispensados de qualquer explicação, dizendo que “são meros convulsionários, como os havia no século passado.” Seja, estamos de acordo. Mas, então, explicai o que se passava com os convulsionários. Já que os mesmos fenômenos se produzem hoje, aos nossos olhos, diante do público, que qualquer um pode ver e tocar, então não era uma comédia. Esses pobres convulsionários, dos quais tanto zombaram, não eram, então, prestidigitadores e charlatães, como o pretenderam? Os mesmos efeitos, repetindo-se à vontade, por infiéis, em nome de Alá e de Maomé, não são, pois, milagres, como outros pensaram? Dirão que são iluminados; seja, ainda; mas, então, seria preciso explicar o que é ser iluminado. É preciso que a iluminação não seja uma qualidade tão ilusória quanto supõem, desde que seria capaz de produzir efeitos materiais tão singulares; em todo o caso, seria uma razão a mais para o estudar com cuidado. Uma vez que esses efeitos não são milagres, nem jogos de mágica, deve-se concluir que são efeitos naturais, cuja causa é desconhecida, mas que sem dúvida pode ser encontrada. Quem sabe se o Espiritismo, que já nos deu a chave de tantas coisas incompreendidas, não nos dará ainda esta? É o que examinaremos num próximo artigo.


 

Manifestação Antes da Morte

A carta seguinte nos foi dirigida de Marennes, em janeiro último:

Senhor Allan Kardec,

Creio que teria faltado ao meu dever se, no começo deste ano, não tivesse vindo agradecer-vos a boa lembrança que houvestes por bem conservar de mim, dirigindo a Deus novas preces pelo meu restabelecimento. Sim, senhor, elas me foram salutares e nelas bem reconheço a vossa boa influência, bem como a dos Espíritos bons que vos cercam; porque, desde 14 de maio, eu era obrigada a guardar o leito de vez em quando, em consequência de febres malignas que me tinham posto num estado muito triste. Há um mês estou melhor; agradeço-vos mil vezes, rogando-vos agradecer, em meu nome, a todos os nossos irmãos da Sociedade de Paris, que quiseram unir as suas preces às vossas.

Como sabeis, muitas vezes tive manifestações. Mas uma das mais extraordinárias é a do fato que vou relatar.

No mês de maio último, meu pai veio a Marennes passar alguns dias conosco. Mal chegou, caiu doente e morreu ao cabo de oito dias. Sua morte me causou uma dor tanto mais viva, quanto dela eu tinha sido avisada seis meses antes, mas não havia dado crédito. Eis o fato:

No mês de dezembro precedente, sabendo que ele devia vir, tinha mobiliado um quartinho para ele, e meu desejo era que ninguém ali dormisse antes dele. Desde que manifestei tal pensamento, tive a intuição de que quem se deitasse naquela cama lá morreria, e esta ideia, que me perseguia incessantemente, apertava-me o coração a ponto de não ousar mais ir àquele quarto. Contudo, na esperança de me desembaraçar dela, fui orar junto ao leito. Julguei ali ver um corpo amortalhado; para me assegurar, levantei o cobertor e nada vi. Então me disse que esses pressentimentos não passavam de ilusões ou de resultados de obsessões. No mesmo instante ouvi suspiros como de uma pessoa que acaba, depois senti minha mão direita apertada fortemente por uma mão quente e úmida. Saí do quarto e ali não mais ousei entrar só. Durante seis meses fui atormentada por esse triste aviso e ninguém lá dormiu antes da chegada de meu pai. Foi lá que ele morreu. Seus últimos suspiros foram os mesmos que eu tinha ouvido e, antes de morrer, sem que lhe pedisse, ele me tomou a mão direita e a apertou da mesma maneira que eu tinha sentido seis meses antes; a sua tinha o suor tépido que eu havia igualmente notado. Não posso, pois, duvidar que tenha sido um aviso que foi dado.

Tive muitas outras provas da intervenção dos Espíritos, mas que seria demasiado longo vos detalhar numa carta. Não lembrarei senão o fato de uma discussão de quatro horas que tive no mês de agosto último com dois sacerdotes, e durante a qual me senti verdadeiramente inspirada e forçada a falar com uma facilidade de que eu própria fiquei surpresa. Lamento não poder relatar-vos esta conversa. Isto não vos surpreenderia, mas vos divertiria.

Recebei, etc.

Angelina de Ogé

Há todo um estudo a fazer sobre esta carta. De início, aí vemos um estímulo a orar pelos doentes, depois, uma nova prova da assistência dos Espíritos pela inspiração das palavras que se devem pronunciar em circunstâncias em que se estaria muito embaraçado para falar se se estivesse entregue às próprias forças. É, talvez, um dos gêneros mais comuns de mediunidade, e que vem confirmar o princípio de que todo mundo é mais ou menos médium sem o suspeitar. Seguramente, se cada um se reportasse às diversas circunstâncias de sua vida e observasse com cuidado os efeitos que ressente ou de que foi testemunha, não haveria ninguém que não reconhecesse ter alguns efeitos de mediunidade inconsciente.

Mas o fato mais saliente é o do aviso da morte do pai da senhora de Ogé, e o pressentimento com que foi perseguida durante seis meses. Sem dúvida, quando ela foi orar naquele quarto, e creu ver um corpo no leito, que constatou estar vazio, poder-se-ia, com alguma verossimilhança, admitir o efeito de uma imaginação ferida. O mesmo poderia dar-se com os suspiros que ela ouviu. A pressão da mão também poderia ser atribuída a um efeito nervoso, provocado pela superexcitação de seu espírito. Mas como explicar a coincidência de todos esses fatos com o que se passou quando da morte de seu pai? A incredulidade dirá: puro efeito do acaso; diz o Espiritismo: fenômeno natural devido à ação de fluidos cujas propriedades até hoje foram desconhecidas, submetidas à lei que rege as relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

O Espiritismo, ligando às leis da Natureza a maior parte dos fenômenos reputados sobrenaturais, vem precisamente combater o fanatismo e o maravilhoso, que o acusam de querer fazer reviver; ele dá dos que são possíveis uma explicação racional, e demonstra a impossibilidade dos que seriam uma derrogação das leis da Natureza. A causa de uma imensidão de fenômenos está no princípio espiritual, cuja existência vêm provar. Mas como os que negam esse princípio podem admitir as suas consequências? Aquele que nega a alma e a vida extracorporal não pode reconhecer os seus efeitos.

Para os espíritas, o fato de que se trata nada tem de surpreendente e se explica, por analogia, com uma multidão de fatos do mesmo gênero, cuja autenticidade não pode ser contestada. Entretanto, as circunstâncias em que se produziu apresentam uma dificuldade; mas o Espiritismo jamais disse que não tinha mais nada a aprender. Ele possui uma chave, cujas aplicações ainda está longe de compreender na sua inteireza; aplica-se a estudá-las, a fim de chegar a um conhecimento tão completo quanto possível das forças naturais e do mundo invisível, no meio do qual vivemos, mundo que nos interessa a todos, porque todos, sem exceção, devemos nele entrar mais cedo ou mais tarde, e vemos todos os dias, pelo exemplo dos que partem, a vantagem de o conhecer antecipadamente.

Nunca repetiríamos em demasia: O Espiritismo não faz nenhuma teoria preconcebida; vê, observa, estuda os efeitos e dos efeitos procura remontar às causas, de tal sorte que, quando formula um princípio ou uma teoria, sempre se apoia na experiência. É, pois, rigorosamente certo dizer que é uma ciência de observação. Os que fingem nele não ver senão uma obra de imaginação, provam que lhe ignoram as primeiras palavras.

Se o pai da senhora de Ogé tivesse morrido, sem que ela o soubesse, na época em que sentiu os efeitos de que falamos, esses efeitos se explicariam da maneira mais simples. Desprendido do corpo, o Espírito teria vindo a ela avisá-la de sua partida deste mundo, e atestar sua presença por uma manifestação sensível, com o auxílio de seu fluido perispiritual; isto é muito frequente. Compreendemos perfeitamente que aqui o efeito é devido ao mesmo princípio fluídico, isto é, à ação do perispírito; mas, como a ação material do corpo, que ocorreu no momento da morte, pôde produzir-se identicamente seis meses antes dessa morte, quando nada de ostensivo, doença ou outra causa, podia fazê-la pressentir?

Eis a explicação a respeito, dada na Sociedade de Paris:

“O Espírito do pai dessa senhora, em estado de desprendimento, tinha um conhecimento antecipado de sua morte e da maneira por que ela se daria. Sua vista espiritual abarcando um certo espaço de tempo, para ele é como se a coisa estivesse presente, embora no estado de vigília não lhe conservasse qualquer lembrança. Foi ele próprio que se manifestou à sua filha, seis meses antes, nas condições que deviam se produzir, a fim de que, mais tarde, ela soubesse que era ele e que, estando preparada para uma separação próxima, não ficasse surpreendida com a sua partida. Ela mesma, como Espírito, tinha conhecimento disto, porque os dois Espíritos se comunicavam em seus momentos de liberdade. É o que lhe dava a intuição de que alguém devia morrer naquele quarto. Essa manifestação ocorreu igualmente com o objetivo de fornecer um assunto de instrução a respeito do conhecimento do mundo invisível.”


 

Variedades

Estranha Violação de Sepultura

(Estudo psicológico)

O Observateur, de Avesnes (20 de abril de 1867) relata o caso seguinte:

“Há três semanas um operário de Louvroil, chamado Magnan, de 23 anos, teve a infelicidade de perder sua mulher, atingida por uma doença do peito. O profundo pesar que sentiu logo foi aumentado pela morte do filho, que não sobreviveu à mãe senão alguns dias. Magnan falava sem cessar da esposa, não querendo acreditar que ela o tivesse deixado para sempre e imaginando que não tardaria a voltar. Era em vão que seus amigos buscavam consolá-lo; ele os repelia a todos e se fechava em sua aflição.

“Quinta-feira última, após muitas dificuldades, seus camaradas de oficina convenceram-no a acompanhar até a estrada de ferro um amigo comum, militar em licença que voltava ao seu regimento. Mas apenas chegado à estação, Magnan esquivou-se e voltou sozinho à cidade, ainda mais preocupado que de costume. Tomou num cabaré alguns copos de cerveja, que acabaram de o perturbar, e foi nessas disposições que entrou em casa, por volta das nove horas da noite. Achando-se só, o pensamento de que sua mulher não mais estava lá, o superexcitou ainda, e experimentou um desejo insuperável de a rever. Então tomou uma velha enxada e uma relha  em mau estado, e foi ao cemitério, onde, a despeito da obscuridade e da chuva torrencial que caía no momento, logo começou a tirar a terra que cobria sua cara defunta.

“Somente depois de várias horas de trabalho sobre-humano conseguiu tirar o caixão da fossa. Só com as mãos e quebrando todas as unhas, arrancou a tampa; depois, tomando nos braços o corpo de sua pobre companheira, levou-o para casa e o pôs no leito. Seriam, então, três horas da manhã, aproximadamente. Depois de ter feito um bom fogo, descobriu o rosto da morta; em seguida, quase alegre, correu à casa da vizinha que a tinha amortalhado, para dizer que sua mulher voltara, como ele havia predito.

“Sem dar a menor importância às palavras de Magnan, que, dizia ela, tinha visões, levantou-se e o acompanhou até a casa dele, a fim de o acalmar e fazê-lo deitar-se. Imagine-se a sua surpresa e o seu pavor, vendo o corpo exumado. O infeliz operário falava à morta como se ela pudesse escutá-lo e procurava com tocante tenacidade obter uma resposta, dando à sua voz uma doçura e toda a persuasão de que era capaz. Essa afeição além do túmulo oferecia um doloroso espetáculo.

“Entretanto, a vizinha teve a presença de espírito de convencer o pobre alucinado a repor sua mulher no caixão, o que ele prometeu, vendo o silêncio obstinado daquela que julgava ter chamado à vida. Foi sob a fé de tal promessa que ela voltou para casa, mais morta do que viva.

“Mas Magnan não se deu por vencido; foi despertar dois vizinhos, que se levantaram, como a primeira, para tentar tranqüilizar o infortunado. Como ela, passado o primeiro momento de estupefação, eles o compeliram a levar a morta para o cemitério; e desta vez, sem hesitar, tomou a mulher nos braços e voltou a depositá-la no caixão de onde a havia tirado, recolocou-a na fossa e a recobriu com terra.

 “A mulher de Magnan estava enterrada há dezessete dias; não obstante, ainda se achava em perfeito estado de conservação, pois a expressão de seu rosto era exatamente a mesma do momento em que foi enterrada.

“Quando interrogaram Magnan no dia seguinte, ele pareceu não se lembrar do que havia feito nem do que se tinha passado algumas horas antes. Apenas disse que acreditava ter visto sua mulher durante a noite.” ( Siècle, 29 de abril de 1867.)

Instruções sobre o Fato Precedente

(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 — Médium: Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo)

Os fatos se mostram em toda parte, e tudo quanto se produz parece ter uma direção especial, que leva aos estudos espirituais. Observai bem, e a cada instante vereis coisas que, à primeira vista, parecem anomalias na vida humana, e cuja causa procurariam inutilmente noutro lugar que não fosse na vida espiritual. Sem dúvida, para muita gente são apenas fatos curiosos, nos quais não pensam mais, tão logo virada a página; mas outros pensam mais seriamente; procuram uma explicação e, à força de ver a vida espiritual erguer-se diante deles, serão mesmo obrigados a reconhecer que somente aí está a solução do que não podem compreender. Vós, que conheceis a vida espiritual, examinai bem os detalhes do fato que acaba de vos ser lido, e vede se ela não se mostra com evidência.

Não penseis que os estudos que fazeis sobre esses assuntos de atualidade e outros sejam perdidos para as massas, porque, até agora, eles quase só vão aos espíritas, aos que já se acham convencidos. Não. Primeiro, ficai certos de que os escritos espíritas vão além dos adeptos; há pessoas muito interessadas na questão para não se manterem a par de tudo o que fazeis e da marcha da Doutrina. Sem que o pareça, a sociedade, que é o centro onde se elaboram os trabalhos, é um ponto de mira, e as soluções sábias e racionais que dela saem fazem refletir mais do que pensais. Mas dia virá em que esses mesmos escritos serão lidos, comentados, analisados publicamente; neles colherão a mancheias os elementos sobre os quais devem assentar-se as novas ideias, porque aí encontrarão a verdade. Ainda uma vez, ficai convencidos de que nada do que fazeis está perdido, mesmo para o presente, e com mais forte razão para o futuro.

Tudo é assunto de instrução para o homem que reflete. No fato que vos ocupa, vedes um homem possuindo suas faculdades intelectuais, suas forças materiais, e que parece, por um momento, completamente despojado das primeiras; pratica um ato que, à primeira vista, parece insensato. Pois bem! aí está um grande ensinamento.

Isto aconteceu? perguntarão algumas pessoas. O homem estava em estado de sonambulismo natural, ou sonhou? O Espírito da mulher estava implicado nisto? Tais as perguntas que podem ser feitas a este respeito. Ora! o Espírito da sra. Magnan esteve muito nesse negócio, e muito mais do que podiam supor os próprios espíritas.

Se se seguir o homem com atenção desde o momento da morte de sua mulher, ver-se-á que ele muda pouco a pouco; desde as primeiras horas da partida da esposa, vê-se o seu Espírito tomar uma direção, que se acentua cada vez mais, para chegar ao ato de loucura da exumação do cadáver. Há neste ato outra coisa além do pesar; e, como ensina O Livro dos Espíritos, como o ensinam todas as comunicações: não é na vida presente, é no passado que se deve buscar a causa. Não estamos aqui senão para realizar uma missão ou pagar uma dívida; no primeiro caso, realiza-se uma tarefa voluntária; no segundo, fazei a contrapartida dos sofrimentos que experimentais e tereis a causa desses sofrimentos.

Quando a mulher morreu, lá ficou em Espírito, e como a união dos fluidos espirituais e dos do corpo era difícil de romper, em razão da inferioridade do Espírito, foi-lhe preciso certo tempo para retomar sua liberdade de ação, um novo trabalho para a assimilação dos fluidos; depois, quando ela estava em condições, apoderou-se do corpo do homem e o possuiu. Eis, pois, aqui um verdadeiro caso de possessão.

O homem não é mais ele, e notai: não é mais ele senão quando vem a noite. Seria preciso entrar em longas explicações para vos fazer compreender a causa desta singularidade; mas, em duas palavras: a mistura de certos fluidos, como em química a de certos gases, não pode suportar o brilho da luz. Daí porque certos fenômenos espontâneos ocorrem mais vezes à noite do que de dia.

Ela possui este homem; leva-o a fazer o que ela quer; é ela quem o conduz ao cemitério para o obrigar a fazer um trabalho sobre-humano e fazê-lo sofrer. E, no dia seguinte, quando perguntam ao homem o que se passou, ele fica estupefato e só se lembra de ter sonhado com a esposa. O sonho era realidade; ela tinha prometido voltar e voltou; ela voltará e o arrastará.

Numa outra existência, foi cometido um crime; o que queria vingar-se deixou o primeiro encarnar-se e escolheu uma existência que, pondo-o em relação com ele, lhe permitia realizar sua vingança. Perguntareis por que essa permissão? mas Deus nada concede que não seja justo e lógico. Um quer se vingar; é preciso que tenha, como prova, ocasião de dominar seu desejo de vingança, e o outro deve sofrer a prova e pagar o que fez sofrer o primeiro. Aqui o caso é o mesmo; apenas, não estando terminados os fenômenos, não se estende mais por muito tempo: ainda existirá outra coisa.


 

Bibliografia — A Gênese

À VENDA NO DIA 6 DE JANEIRO DE 1868

A GÊNESE

OS MILAGRES E AS PREDIÇÕES SEGUNDO O ESPIRITISMO

Por Allan Kardec[3]

SUMÁRIO

Introdução.

I — Caráter da revelação espírita.

II — Deus —  Existência de Deus — Da natureza divina — A Providência — A visão de Deus.

III — O bem e o mal — Origem do bem e do mal — A inteligência e o instinto — Destruição dos seres vivos uns pelos outros.

IV — Papel da Ciência na Gênese.

V — Antigos e modernos sistemas dos mundos.

VI — Uranografia geral — O espaço e o tempo — A matéria — As leis e as forças — A criação primeira — A criação universal — Os sóis e os planetas — Os satélites — Os cometas — A Via-Láctea — As estrelas fixas — Os desertos do espaço — Eterna sucessão dos mundos — A vida universal — A Ciência — Considerações Morais.

VII — Esboço geológico da Terra — Períodos geológicos — Estado primitivo do globo — Período primário — Período de transição — Período secundário — Período terciário — Período diluviano — Período pós-diluviano, ou atual — Nascimento do homem.

VIII — Teorias da Terra — Teoria da projeção (Buffon) — Teoria da condensação — Teoria da incrustação.

IX — Revoluções do globo — Revoluções gerais ou parciais — Dilúvio bíblico — Revoluções periódicas — Cataclismos futuros.

X — Gênese orgânica — Formação primária dos seres vivos — Princípio vital — Geração espontânea — Escala dos seres corpóreos — O homem.

XI — Gênese espiritual — Princípio espiritual — União do princípio espiritual à matéria — Hipótese sobre a origem do corpo humano — Encarnação dos Espíritos — Reencarnação — Emigração e imigração dos Espíritos — Raça adâmica — Doutrina dos anjos decaídos.

XII — Gênese mosaica — Os seis dias — O paraíso perdido.

OS MILAGRES

XIII — Caracteres dos milagres.

XIV — Os fluidos — Natureza e propriedade dos fluidos — Explicação natural de alguns fatos considerados sobrenaturais.

XV — Os milagres do Evangelho — Observações preliminares — Sonhos — Estrela dos magos — Dupla vista — Curas — Possessos — Ressurreições — Jesus caminha sobre as águas — Transfiguração — Tempestade aplacada — Bodas de Caná — Multiplicação dos pães — Tentação de Jesus — Prodígios na morte de Jesus — Aparição de Jesus depois da morte — Desaparecimento do corpo de Jesus.

AS PREDIÇÕES

XVI — Teoria da presciência.

XVII — Predições do Evangelho — Ninguém é profeta em sua terra — Morte e paixão de Jesus — Perseguição dos apóstolos — Cidades impenitentes — Ruína do Templo e de Jerusalém — Maldições aos fariseus — Minhas palavras não passarão — A pedra angular — Parábola dos vinhateiros homicidas — Um só rebanho e um só pastor — Advento de Elias — Anunciação do Consolador — Segundo advento do Cristo — Sinais precursores — Vossos filhos e vossas filhas profetizarão — Juízo final.

XVIII — Os tempos são chegados — Sinais dos tempos — A geração nova.

ERRATA

No número de julho de 1867, página..., linha...: As criaturas mais ilustres  compreendem..., lede: As criaturas mais iletradas...

No número de novembro de 1867, página..., linha...: É, pois, o fluido que age sem  o impulso do Espírito..., lede: sob  o impulso.

Allan Kardec



[1] Um vol. in-12; preço: 3 fr. Sarlit, livreiro, 25, rue Saint-Sulpice, Paris.

[2] N. do T.: O abade não se está referindo a Tomé, apóstolo de Jesus, mas ao teólogo Tomás de Aquino.

[3] Livraria Internacional, 15, boulevard Montmartre, Paris. — Um grosso volume in-12. Preço: 3 fr. 50; pelo correio: 4 fr. As despesas de correio para esta obra, como para as outras, são as para a França e a Argélia. Para o estrangeiro, os preços variam conforme o país, a saber: Bélgica, 65 c. — Itália, 75 c. — Inglaterra, Suíça, Espanha, Grécia, Constantinopla, Egito, 1 fr. — Prússia, Baviera, 1 fr. 20 c. — Holanda, 1 fr. 50 c. — Portugal, Estados Unidos, Canadá, Canárias, Guadalupe, Caiena, México, Maurício, China, Buenos-Aires, Montevidéo, 1 fr. 45 c. — Holanda, 1 fr. 50. — Brasil, 1 fr. 80. — Ducado de Baden, 2 fr. 25 c. — Peru, 2 fr. 60 c. — Áustria, 3 fr. 20 c.

Fevereiro de 1868

Extrato dos Manuscritos de um Jovem Médium Bretão

ALUCINADOS, INSPIRADOS, FLUÍDICOS E SONÂMBULOS

Nossos leitores se lembram de ter lido, em junho de 1867, a análise do Romance do Futuro, que o Sr. Bonnemère havia tirado dos manuscritos de um jovem médium bretão, cujos trabalhos lhe havia confiado.

É ainda nessa volumosa coletânea de manuscritos que o autor encontrou estas páginas, escritas em hora de inspiração, e que vem submeter à apreciação dos leitores da Revista Espírita. Desnecessário dizer que deixamos ao médium, ou antes, ao Espírito que o inspira, a responsabilidade das opiniões que emite, reservando-nos para as apreciar mais tarde. Do mesmo modo que o Romance do Futuro, é um curioso espécime de mediunidade inconsciente.

I

Os Alucinados

Temos pouco a dizer sobre a alucinação, estado provocado por uma causa moral, que influi sobre o físico e à qual se mostram mais acessíveis as naturezas nervosas, sempre mais prontas a impressionar-se.

Sobretudo as mulheres, por sua organização íntima, são levadas à exaltação, e a febre se apresenta nelas, o mais das vezes, acompanhada de delírio, que toma as aparências da loucura momentânea.

A alucinação, é preciso reconhecer, por um pequeno lado toca a loucura, assim como todas as superexcitações cerebrais; e enquanto o delírio se manifesta sobretudo por palavras incoerentes, a alucinação representa mais particularmente a ação, a encenação. Contudo, é injustamente que por vezes as confundem.

Vítima de uma espécie de febre interior, que não se traduz externamente por nenhuma perturbação aparente dos órgãos, o alucinado vive em meio ao mundo imaginário que cria, por um momento, sua imaginação perturbada; tudo está em desordem, nele como em torno dele; leva tudo ao extremo: por vezes a alegria, a tristeza quase sempre, e as lágrimas rolam nos olhos, enquanto seus lábios fingem um sorriso doentio.

Essas visões fantásticas existem para ele; ele as vê, as toca e se assusta com elas. Não obstante, conserva o exercício da vontade; conversa com os interlocutores e lhes oculta o objeto de seus terrores ou de suas sombrias preocupações.

Conhecemos um que, durante cerca de seis meses, assistia todas as manhãs ao enterro de seu corpo, tendo plena consciência de que sua alma sobrevivia. Nada parecia mudado nos seus hábitos de vida e, contudo, esse pensamento incessante, essa visão mesma por vezes o seguia em todos os lugares. A palavra morte ressoava incessantemente em seu ouvido. Quando o Sol brilhava, dissipava a noite ou atravessava a nuvem, a horrível visão se desvanecia pouco a pouco, acabando por desaparecer. À noite adormecia, triste e desesperado, porque sabia que horrível despertar o aguardava no dia seguinte.

Por vezes, quando o excesso de sofrimento físico impunha silêncio à sua vontade e lhe tirava esse poder de dissimulação, que de ordinário conservava, exclamava de repente: — Ah! ei-los!... eu os vejo!... E então descrevia aos que o cercavam com mais intimidade os detalhes da lúgubre cerimônia, relatava as cenas sinistras que se desdobravam aos seus olhos, ou rondas de personagens fantásticas que desfilavam à sua frente.

O alucinado vos dirá as loucas percepções de seu cérebro doente, mas não tem nada a vos repetir do que outros viessem lhe revelar; porque, para ser inspirado, é preciso que a paz e a harmonia reinem em vossa alma, e que estejais isento de todo pensamento material ou mesquinho; algumas vezes a disposição doentia provoca a inspiração; é, então, como um socorro que os amigos partidos antes vêm vos trazer para vos aliviar.

Esse louco, que ontem gozava da plenitude da razão, não apresenta desordens exteriores perceptíveis ao olho do observador; são, entretanto, numerosas, existem e são reais. Muitas vezes o mal está na alma, lançada fora de si mesma pelo excesso de trabalho, de alegria, de dor; o homem físico não está mais em equilíbrio com o homem moral; o choque moral foi mais violento do que o físico pode suportar: daí o cataclismo.

O alucinado sofre igualmente as consequências de uma perturbação grave em seu organismo nervoso. Mas — o que raramente acontece na loucura — neles essas desordens são intermitentes e tão mais facilmente curáveis quanto sua vida é, de certo modo, dupla, pois pensa com a vida real e sonha com a vida fantástica.

Esta última é, por vezes, o despertar de sua alma doente e, se se o escutar com inteligência, chegar-se-á a descobrir a causa do mal, que muitas vezes ele quer ocultar. Entre o fluxo das palavras incoerentes, que lança fora uma pessoa em delírio, e que parecem em nada se referir às causas prováveis de sua doença, encontrar-se-á uma que voltará sem cessar, que ela queria reter e que, contudo, escapa. Essa é a verdadeira causa e que é preciso combater.

Mas o trabalho é longo e difícil, porque o alucinado é um hábil comediante e, se percebe que o observam, seu espírito se lança em estranhos desvios e toma as aparências da loucura para escapar a essa pressão importante, que pareceis decidido a exercer sobre ele. É, pois, necessário estudá-lo com extremo tato, sem jamais o contradizer ou tentar retificar os erros de seu cérebro em delírio.

São estas as diversas fases de excitações cerebrais, ou antes, de excitações do ser todo inteiro, pois não é preciso localizar a sede da inteligência. A alma humana, que a dá, plana por toda parte; é o sopro do alto, que faz vibrar e agir a máquina toda inteira.

O alucinado pode, de boa-fé, julgar-se inspirado e profetizar, quer tenha consciência do que diz, quer os que o rodeiam possam, só eles e mau grado seu, recolher suas palavras. Mas dar fé às indicações de um alucinado seria se preparar estranhas decepções, e é assim que muitas vezes têm levado ao passivo da inspiração os erros que não eram senão o fruto da alucinação.

O físico é coisa material, sensível, exposta à luz, que cada um pode ver, admirar, criticar, cuidar ou tentar endireitar. Mas quem pode conhecer o homem moral? Quando nos ignoramos a nós mesmos, como nos julgarão os outros? Se nós lhes entregamos alguns dos nossos pensamentos, são muito mais ainda os que subtraímos aos seus olhares e que gostaríamos de ocultar a nós mesmos.

Essa dissimulação é quase um crime social. Criados para o progresso, nossa alma, nosso coração, nossa inteligência são feitos para se derramarem sobre todos os irmãos da grande família, para lhes prodigalizar tudo quanto está em nós, como para se enriquecer ao mesmo tempo com tudo o que nos podem comunicar.

A expansão recíproca é, pois, a grande lei humanitária, e a concentração, isto é, a dissimulação de nossas ações, de nossos pensamentos, de nossas aspirações é uma espécie de roubo que cometemos em prejuízo de todo o mundo. Que progresso se fará, se guardarmos em nós tudo o que a Natureza e a educação aí puseram, e se cada um agir do mesmo modo a nosso respeito?

Exilados voluntários e nos mantendo fora do comércio de nossos irmãos, nós nos concentramos numa ideia fixa; a imaginação obsedada procura a isto subtrair-se, perseguindo toda sorte de pensamentos inconsequentes, e assim se pode chegar até a loucura, justo castigo que nos é infligido por não termos querido marchar em nossas vias naturais.

Vivamos, pois, nos outros e eles em nós, a fim de que todos não sejamos senão um. As grandes alegrias, como as grandes dores, nos partem quando não são confiadas a um amigo. Toda solidão é má e condenada, e toda coisa contrária ao voto da Natureza traz como consequências inevitáveis imensas desordens interiores.

II

Os Inspirados

A inspiração é mais rara que a alucinação, porque não se prende somente ao estado físico, mas, ainda e sobretudo, à situação moral do indivíduo predisposto a recebê-la.

Todo homem não dispõe senão de certa quota de inteligência, que lhe é dado desenvolver por seu trabalho. Chegado ao ponto culminante que lhe é concedido atingir, pára um momento, depois retorna ao estado primitivo, ao estado de infância, menos essa mesma inteligência, que em um cresce dia a dia, e no velho diminui, extingue-se e desaparece. Então, tendo dado tudo, e nada mais podendo acrescentar à bagagem de seu século, ele parte, mas para ir continuar alhures sua obra interrompida neste mundo; parte, mas deixando o lugar rejuvenescido para um outro que, chegando à idade viril, terá o poder de, por sua vez, realizar uma missão maior e mais útil.

O que chamamos a morte não é senão o devotamento ao progresso e à Humanidade. Mas nada morre, tudo sobrevive e se reencontra pela transmissão do pensamento dos seres partidos antes, que têm ainda, pela parte mais etérea de si mesmos, na pátria deixada, mas não esquecida, que amam sempre, pois é habitada pelos continuadores de sua vida, pelos herdeiros de suas ideias, aos quais se comprazem em insuflar por momentos as que não tiveram tempo de semear em seu redor, ou que não puderam ver progredir ao sabor de suas esperanças.

Não tendo mais órgãos ao serviço de sua inteligência, vêm pedir aos homens de boa vontade, que apreciam, que lhes cedam o lugar por um momento. Sublimes benfeitores ocultos, impregnam seus irmãos da quintessência de seu pensamento, a fim de que sua obra esboçada continue e se conclua, passando pelo cérebro dos que podem fazê-la realizar seu caminho no mundo.

Entre os amigos desaparecidos e nós, o amor continua, e o amor é a vida. Eles nos falam com a voz de nossa consciência posta em vigília. Purificados e melhores, não nos trazem senão coisas puras, isentos que estão de toda parte material, como de todas as mesquinharias de nossa pobre existência. Eles nos inspiram no sentimento que tinham neste mundo, mas nesse sentimento desprendido de toda mistura.

Resta-lhes ainda uma parte de si mesmos para dar: eles no-la trazem, deixando-nos crer que a obtivemos apenas por nosso trabalho pessoal. Daí essas revelações inesperadas, que confundem a Ciência. O Espírito de Deus sopra onde quer... Desconhecidos fazem grandes descobertas, e o mundo oficial das academias aí está para lhes entravar a passagem.

Não pretendemos dizer que, para ser inspirado, seja indispensável manter-se incessantemente nos estreitos caminhos do bem e da virtude; entretanto, de ordinário são seres morais aos quais se vem, muitas vezes como compensação dos males que sofrem por causa dos outros, conceder manifestações que lhes permitem vingar-se à sua maneira, trazendo o tributo de alguns benefícios à Humanidade, que os desconhece, zomba e calunia.

Encontram-se tantas categorias de inspirações e, por conseguinte, de inspirados, quantas faculdades existem no cérebro humano para assimilar conhecimentos diferentes.

A luta assusta os Espíritos depurados, partidos para mundos mais adiantados, e que desejam que os escutem com docilidade. Por isso os inspirados são geralmente seres puros, ingênuos e simples, sérios e refletidos, cheios de abnegação e de devotamento, sem personalidade marcante, de impressões profundas e duráveis, acessíveis às influências exteriores, sem ideias preconcebidas sobre as coisas que ignoram, bastante inteligentes para assimilar os pensamentos alheios, mas não moralmente bastante fortes para os discutir.

Se o inspirado se apega às suas próprias convicções, de boa-fé toma o seu eco pela advertência das vozes que nele falam e, também de boa-fé, engana, em vez de esclarecer. A bondade preside a essas revelações, que jamais ocorrem senão com um objetivo útil e moral, ao mesmo tempo.

Quando uma dessas organizações simpáticas é sofredora, devido a uma decepção cruel, ou a um mal físico, um amigo por ela se interessa e vem, dando outro alimento ao seu pensamento, trazer alívio para ela própria, mas, sobretudo, para os que lhe são caros.

Não é raro que o inspirado tenha começado sendo um alucinado. É como um noviciado, uma preparação de seu cérebro para concentrar seu espírito e poder aceitar aquilo que lhe dirão.

Porque um inspirado nada pode formular de concludente em dado momento, não significa que não o possa fazer em outros. As manifestações ficam livres, espontâneas; vêm quando são necessárias. Por isso os inspirados, mesmo os melhores, não o são em dia e hora fixos, e as sessões anunciadas previamente muitas vezes preparam inevitáveis decepções.

Fazendo evocações muito frequentes, corre-se o risco de não se chegar senão a um estado de superexcitação, mais vizinho da alucinação que da inspiração. Então não passam de jogos de nossa imaginação em delírio, em vez dessas luzes do outro mundo, destinadas a iluminar os passos da Humanidade em sua estrada providencial.

Isto explica esses erros, dos quais a incredulidade fez uma arma, para negar, de maneira absoluta, a intervenção dos Espíritos superiores.

Os inspirados o são por todos os que, partidos antes da hora, têm algo para nos ensinar.

Pode acontecer que a mulher mais simples, a menos instruída, tenha revelações médicas. Vimos uma que, mesmo sem saber ler e escrever, achava em si diversos nomes de plantas que podiam curar. A credulidade popular quase a tinha forçado a explorar essa faculdade. Mas, nem sempre era igualmente bem esclarecida, mesmo tomando o pulso da pessoa doente, que com ela se punha em relação; porque ela era também desses fluídicos, dos quais falaremos daqui a pouco. Embora fraca e delicada, podia, por seu contato, restabelecer o equilíbrio em quem o necessitava e repor em circulação os princípios vitais interrompidos. Sem se dar conta disto, muitas vezes fazia, pelo simples toque, em certas pessoas cujo fluido era idêntico ao seu, mais bem que os remédios que prescrevia, às vezes, apenas por hábito, e com variantes insignificantes, fosse qual fosse o mal para o qual a consultavam.

A Providência colocou junto de cada homem um remédio para cada doença. Apenas existem tantas naturezas diferentes quantos indivíduos. Os remédios também agem diferentemente sobre cada organismo, o qual influi sobre os caracteres do mal; e é isto que faz que seja quase impossível ao médico prescrever o remédio eficaz. Ele conhece os seus efeitos gerais, mas ignora absolutamente em que sentido agirá sobre tal paciente que lhe apresentam.

É aqui que brilha a superioridade dos fluídicos e dos sonâmbulos, porque, quando eles se encontram em certas condições de simpatia com os que vêm consultá-los, os seres superiores os guiam com uma quase certa infalibilidade.

Muitas vezes essa inspiração é inconsciente de si mesma; às vezes um médico, mas apenas junto de certos doentes, acha de súbito o remédio que os pode curar. Não foi a Ciência que o guiou, foi a inspiração. A Ciência punha à sua disposição vários modos de tratamento, mas uma voz interior lhe gritava um nome; foi forçado a dizê-lo, e esse nome era o do remédio que devia agir, com exclusão de qualquer outro.

O que dizemos da Medicina existe, da mesma maneira, em todos os outros ramos do trabalho humano. Em certas horas, o fogo da inspiração nos devora; há que ceder. E se pretendemos concentrar em nós mesmos o que de nós deve sair, um verdadeiro sofrimento se torna o castigo de nossa revolta.

Todos aqueles a quem Deus concedeu o dom sublime de criação, os poetas, os sábios, os artistas, os inventores, todos têm essas iluminações inesperadas, por vezes numa ordem de fatos muito diferentes de seus estudos ordinários, caso se tivesse pretendido violentar a sua vocação. Mas os Espíritos sabem o que devemos e podemos fazer, e vêm despertar incessantemente em nós as nossas atrações abafadas.

Sabe-se como Molière explicava essas desigualdades que desfiguram as mais belas peças de Corneille. “Esse diabo do homem, dizia ele, tem um gênio familiar, que vem por momentos soprar-lhe ao ouvido coisas sublimes; depois, de repente planta-o lá, dizendo-lhe: ‘Sai desta como puderes!’ E então não faz mais nada que valha.” Molière estava certo. O orgulhoso gênio de Corneille não tinha a dócil passividade necessária para suportar toda a inspiração do alto. Os Espíritos o abandonavam, e então ele adormecia, como por vezes fazia o próprio Homero.

Há os que escutam vozes interiores, que neles falam; Sócrates e Joana d’Arc eram destes. Outros nada escutam, mas são constrangidos a obedecer a uma força vitoriosa, que os domina.

Outras vezes, um nome vem ferir o ouvido do inspirado: é o de um amigo, de um indivíduo que nem mesmo conhece, do qual apenas ouviu falar. A personalidade desse amigo desconhecido o penetra, nele se infunde; pouco a pouco pensamentos estranhos vêm substituir os seus. Por um momento tem o espírito daquele; obedece, escreve, sem saber, mau grado seu, se necessário, coisas que não sabe. E como essa obediência passiva, ao qual foi condenado, lhe é difícil de suportar em estado de vigília, foge dessas coisas escritas sob uma inspiração opressiva, e não as quer ler.

Esses pensamentos podem estar em desacordo formal com suas crenças, com seus sentimentos, ou antes, com aqueles que a educação lhe impôs, porque, para que certos Espíritos venham a ele, é preciso que exista alguma relação entre eles. Dão-lhe o pensamento, deixando-lhe o cuidado de achar a forma. É preciso, pois, que saibam que sua inteligência os pode compreender e assimilar momentaneamente suas ideias, para as traduzir.

É raro que as circunstâncias tenham permitido que nos desenvolvamos no sentido de nossas aptidões inatas. Os Espíritos mais adiantados sabem que corda é preciso tocar, para que esta entre em vibração. Ela havia ficado muda, porque tinham atacado outras, desprezando aquela. Por um momento eles lhe dão a vida. É um germe por muito tempo abafado, que eles fecundam. Depois o inspirado, voltando ao seu estado habitual, não se lembra mais, pois vive uma existência dupla, cada uma das quais independe da outra.

Entretanto, acontece também que conserve uma maior facilidade de compreensão, e conquiste um maior desenvolvimento intelectual. É a recompensa do esforço que fez, para dar uma forma compreensível aos pensamentos que outros vieram lhe revelar.

Não acreditamos que todo inspirado possa conhecer tudo. Cada um, conforme suas predisposições naturais, muitas vezes mantidas com desconhecimento dele próprio e dos outros, é inspirado por tal ou qual coisa, mas não o é igualmente por todas. Com efeito, existem naturezas de tal modo antipáticas a certos conhecimentos, que os Espíritos não virão jamais bater numa porta que sabem não poder abrir.

Só em certa medida o futuro é conhecido pelos inspirados. Assim, não é certo dizer que um inspirado predisse para que mundo tal pessoa irá após a morte, e que julgamento Deus pronunciará contra ela. Isto é um jogo de imaginação alucinada. Por mais alto que o homem tenha subido na escala dos mundos, não conhece qual será o destino de seu irmão. É a parte reservada a Deus: jamais a criatura poderá usurpar os seus direitos.

Sim, há manifestações, mas não são contínuas, e nossa impaciência a seu respeito muitas vezes é condenável.

Sim, tudo se mantém e nada se rompe no imenso Universo. Sim, existe entre esta existência e as outras um laço simpático e indissolúvel, que liga e une uns aos outros todos os membros da família humana, e que permite aos melhores vir nos dar o conhecimento do que não sabemos. É por esse trabalho que se realiza o progresso; quer se chame trabalho da inteligência ou da inspiração, é a mesma coisa. A inspiração é o progresso superior, é o fundo: o trabalho pessoal aí põe a forma, juntando ainda a quintessência dos conhecimentos anteriormente adquiridos.

Nenhuma invenção nos pertence particularmente, porque outros lançaram antes a semente que recolhemos. Aplicamos à obra que queremos perseguir as forças e o trabalho da Natureza, que é de todos, e sem o auxílio da qual nada se faz, depois as forças e o trabalho acumulados por aqueles que nos prepararam os meios de triunfar.

A bem dizer, tudo é obra comum e coletiva, para confirmar ainda esse grande princípio de solidariedade e de associação, que é a base das sociedades e da lei de toda Criação.

O trabalho do homem jamais será tornado inútil pela inspiração. O Espírito que no-lo vem trazer respeitará sempre esta parte reservada ao indivíduo; ele a respeitará como uma coisa nobre e santa, pois o trabalho põe o homem na posse das faculdades que Deus depositou em germe em sua alma, a fim de que o objetivo de sua vida fosse de as fecundar. É por seu desenvolvimento que bem aprendeu a conhecer-se, e que mereceu aproximar-se dele.

A inspiração vem indiferentemente de dia, de noite, em vigília e durante o sono. Apenas exige recolhimento. É-lhe preciso encontrar naturezas que possam abstrair-se de toda preocupação do mundo real, para dar lugar livre e vago ao ser que vier envolvê-lo todo e lhe infundir seus pensamentos.

Nas horas de inspiração, o homem se torna muito mais acessível a todos os ruídos exteriores, e tudo o que vem do mundo real o perturba. Não mais está neste mundo, está num meio transitório, entre este e o outro, visto estar, de certo modo, impregnado da pessoa moral e intelectual de um ser elevado a uma outra esfera e que, no entanto, seu corpo se prende a este.

Embora se dirija a todos, a inspiração descerá mais especialmente sobre as naturezas doentias ou consumidas por uma sucessão de sofrimentos, materiais ou morais. Já que é um benefício, não é justo que os que sofrem sejam mais facilmente aptos a recebê-la?

A alucinação é um estado doentio, que o magnetismo pode modificar de maneira salutar. A inspiração é uma assimilação moral que se deve evitar provocar por passes magnéticos. O alucinado se entrega de bom grado a arroubos e a contorções ridículas. O inspirado é calmo.

Os inspirados são melancólicos. Necessitam ser refletidos; para ser alegre não há que refletir muito; é preciso gozar, na sua saúde, de um equilíbrio que nem sempre possuem. Mas não vamos pensar que sejam difíceis e fantasiosos. Ao contrário, mostram-se dóceis e acessíveis com aqueles a quem amam.

Há inspirados de vários graus. Uns vêm dizer-vos coisas palpáveis, fatos de segunda vista, para que se possa constatar a realidade da iniciação. Outros, mais clarividentes e pouco preocupados com os procedimentos materiais, cujos segredos não são chamados a divulgar, repetem, como lhes vêm, os pensamentos trazidos por Espíritos de progresso. Os primeiros curam o corpo, os segundos são os médicos da alma.

A missão dos mais modestos limita-se a revelar como essas coisas lhes vêm. É um fato constatado que forças adiantadas de muitos graus vêm sobre nós, para nos dominar e nos inspirar. Para que o repetir? Acredite quem quiser. Mas sendo bem estabelecidas as constatações, não se deve tomar dos inspirados senão o lado útil e sério. Pouco importa, se as ideias são boas, de que fonte provêm.

Eug. Bonnemère


 

Votos de Ano-Novo de um Espírita de Leipzig

Um espírita de Leipzig mandou imprimir, em língua alemã, a seguinte mensagem, cuja tradução temos o prazer de dar.

MEUS VOTOS DE FELIZ ANO-NOVO A TODOS OS ESPÍRITAS E ESPIRITUALISTAS DE LEIPZIG

Também a vós que vos chamais materialistas, porque só quereis conhecer a matéria, eu seria tentado a vos enviar os meus votos de felicidade, mas temo que considerareis isto como uma ousadia de um estranho, que não tem o direito de ser contado entre vós.

É diferente com os espiritualistas, que estão no mesmo terreno que os espíritas, no que respeita à imortalidade da alma, à sua individualidade e ao seu estado feliz ou infeliz depois da morte. Os espiritualistas e os espíritas reconhecem em cada homem uma alma irmã da sua e, por isto, me dão o direito de lhes enviar meus votos. Uns e outros agradecem ao Senhor pelo ano que acaba de passar e esperam que, sustentados por sua graça, tenham coragem para suportar a prova dos dias aziagos e a força de trabalhar o seu aperfeiçoamento, domando as más paixões.

A vós, caros espíritas, irmãos e irmãs conhecidos e desconhecidos, eu vos desejo particularmente um ano feliz, porque recebestes de Deus, para a vossa peregrinação terrena, um grande apoio no Espiritismo. A religião a todos veio trazer a fé, e bem-aventurados os que a conservaram. Infelizmente, ela está extinta num grande número; é por isso que Deus envia uma nova arma para combater a incredulidade, o orgulho e o egoísmo, que tomam proporções cada vez maiores. Essa arma nova é a comunicação com os Espíritos; por ela temos a fé, porque nos dá a certeza da vida da alma e nos permite lançar um olhar na outra vida; reconhecemos, assim, a vaidade da felicidade terrestre, e temos a solução das dificuldades que nos faziam duvidar de tudo, mesmo da existência de Deus.

Disse Jesus aos seus discípulos: “Muitas coisas teria ainda a vos dizer, mas não o poderíeis suportar.” Hoje, tendo a Humanidade progredido, pode compreendê-las. Eis por que Deus nos deu a ciência do Espiritismo, e a prova de que a Humanidade está madura para esta ciência, é que esta ciência existe. É inútil negar e zombar, como outrora era inútil negar e zombar dos fatos adiantados por Copérnico e Galileu. Então esses fatos eram tão pouco conhecidos quanto o são agora os do mundo dos Espíritos. Como outrora, os primeiros opositores são os sábios, até o dia em que, vendo-se isolados, reconhecerão humildemente que as novas descobertas, como o vapor, a eletricidade e o magnetismo, que outrora eram desconhecidos, não são a última palavra das leis da Natureza. Serão responsáveis perante as gerações futuras por não terem acolhido a ciência nova como uma irmã das outras, e por tê-la repelido como loucura.

É verdade que ela não ensina nada de novo proclamando a vida da alma, pois o Cristo já falou dela; mas o Espiritismo levanta todas as dúvidas e lança uma nova luz sobre esta questão. Entretanto, guardemo-nos de considerar como inúteis os ensinamentos do Cristianismo, e de os crer substituídos pelo Espiritismo; ao contrário, fortifiquemo-nos na fonte das verdades cristãs, para as quais o Espiritismo não é senão um novo facho, a fim de que nossa inteligência e nosso orgulho não nos desencaminhem. O Espiritismo nos ensina, antes de qualquer coisa, que “Sem o amor e a caridade, não há felicidade”, isto é, que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Apoiando-se nesta verdade cristã, ele abre o caminho para a realização desta palavra do Cristo: “Um só rebanho e um só pastor.”

Assim, pois, caros irmãos e irmãs espíritas, permiti que, aos meus votos pelo Ano-Novo, eu ainda junte esta prece: Que jamais abuseis do poder de comunicação com o mundo espiritual. Não esqueçamos que, conforme a lei sobre a qual repousam nossas relações com os Espíritos, os maus não estão excluídos das comunicações. Se é difícil constatar a identidade de um Espírito que não conhecemos, é fácil distinguir os bons dos maus. Estes podem ocultar-se sob a máscara da hipocrisia, mas um bom espírita sempre os reconhece; eis por que não devemos ocupar-nos dessas coisas levianamente, porque podemos nos tornar joguete de Espíritos maus, embora inteligentes, como por vezes são encontrados no mundo dos encarnados. Se compararmos nossas comunicações com as que são obtidas nas reuniões dos espíritas fervorosos e sinceros, logo saberemos reconhecer se estamos no bom caminho. Os Espíritos elevados se fazem reconhecer por sua linguagem, que é a mesma em toda parte, sempre de acordo com o Evangelho e a razão humana.

O meio de se preservar dos Espíritos maus é, primeiramente, fazer uma prece sincera a Deus; em segundo lugar, jamais empregar o Espiritismo para as coisas materiais. Os Espíritos maus estão sempre prontos a satisfazer a todos os pedidos e, por vezes, se dizem coisas justas, geralmente enganam com intenção ou por ignorância, porque os Espíritos inferiores não sabem mais do que sabiam na sua existência terrestre. Os Espíritos bons, ao contrário, nos ajudam em nossos esforços a nos melhorarmos e nos dão a conhecer a vida espiritual, a fim de que possamos assimilá-la à nossa. Tal o objetivo para onde devem tender todos os espíritas sinceros.

Adolf, conde Poninski

Leipzig, 1º de janeiro de 1868


 

Instruções dos Espíritos

Os Messias do Espiritismo

1. — Já vos foi dito que um dia todas as religiões se confundirão numa mesma crença. Ora, eis como isto acontecerá. Deus dará um corpo a alguns Espíritos superiores, e eles pregarão o Evangelho puro. Um novo Cristo virá; porá fim a todos os abusos que duram há tanto tempo e reunirá os homens sob uma mesma bandeira.

Nasceu o novo Messias, e ele restabelecerá o Evangelho de Jesus-Cristo. Glória ao seu poder.

Não é permitido revelar o lugar onde ele nasceu; e se alguém vier vos dizer: “Ele está em tal lugar”, não acrediteis, porque ninguém o saberá antes que ele seja capaz de se revelar, e daqui até lá é preciso que grandes coisas se realizem, para aplainar os caminhos.

Se Deus vos deixar viver bastante, vereis pregar o verdadeiro Evangelho de Jesus-Cristo pelo novo Missionário de Deus, e uma grande mudança será feita pelas pregações desse Filho abençoado; à sua palavra poderosa, os homens das diferentes crenças se darão as mãos.

Glória a esse divino enviado, que vai restabelecer as leis mal compreendidas e mal praticadas do Cristo! Glória ao Espiritismo, que o precede e que vem esclarecer todas as coisas!

Crede, meus irmãos, que somente vós recebereis semelhantes comunicações. Mas guardai-as em segredo até nova ordem.

São José — Sétif (Argélia) 1861

Observação — Esta revelação é uma das primeiras deste gênero que nos foram transmitidas; mas outras já a tinham precedido. Depois, foi dado espontaneamente um grande número de comunicações sobre o mesmo assunto, em diferentes centros espíritas da França e do estrangeiro, todas concordes no fundo do pensamento. E como em toda parte compreenderam a necessidade de não as divulgar, e como nenhuma foi publicada, não poderiam ser o reflexo umas das outras. É um dos mais notáveis exemplos da simultaneidade e da concordância do ensino dos Espíritos quando é chegado o momento de uma questão.[1]

2. — Está incontestavelmente constatado que a vossa é uma época de transição e de fermentação geral; mas ainda não chegou àquele grau de maturidade que marca a vida das nações. É ao século vinte que está reservado o remanejamento da Humanidade; todas as coisas que vão realizar-se daqui até lá não passam de preliminares da grande renovação. O homem chamado a consumá-la ainda não está maduro para realizar sua missão; mas já nasceu: sua estrela apareceu na França marcada por uma auréola, e vos foi mostrada há pouco tempo na África. Sua rota está previamente marcada. A corrupção dos costumes, as desgraças que serão a consequência do desencadeamento das paixões, o declínio da fé religiosa serão os sinais precursores de seu advento.

A corrupção no seio das religiões é o sintoma de sua decadência, como é o da decadência dos povos e dos regimes políticos, porque ela é o indício de uma falta de fé verdadeira; os homens corrompidos arrastam a Humanidade para um despenhadeiro funesto, de onde ela não pode sair senão por uma crise violenta. Dá-se o mesmo com as religiões que substituem o culto da Divindade pelo culto do dinheiro e das honras, e que se mostram mais ávidas dos bens materiais da Terra do que dos bens espirituais do Céu.

Fénelon — Constantina, dezembro de 1861

3. — Quando uma transformação da Humanidade deve operar-se, Deus envia em missão um Espírito capaz, por seus pensamentos e por uma inteligência superior, de dominar seus contemporâneos e de imprimir às gerações futuras as ideias necessárias para uma revolução moral civilizadora.

Assim, de tempos em tempos vê-se elevar-se acima do comum dos mortais seres que, como faróis, os guiam na via do progresso e os fazem transpor em alguns anos as etapas de vários séculos. O papel de alguns é limitado a um país ou a uma raça; são como oficiais subalternos, cada um conduzindo uma divisão do exército; mas há outros cuja missão é agir sobre a Humanidade inteira, que não aparecem senão nas épocas mais raras, que marcam a era das transformações gerais.

Jesus-Cristo foi um desses enviados excepcionais; do mesmo modo tereis, para os tempos chegados, um Espírito superior que dirigirá o movimento de conjunto e dará uma coesão poderosa às forças esparsas do Espiritismo.

Deus sabe na hora certa modificar nossas leis e nossos hábitos; e quando um fato novo se apresentar, esperai e orai, porque o Eterno nada faz que não seja segundo as leis de divina justiça, que regem o Universo.

Para vós que tendes fé, e que consagrastes a vossa vida à propaganda da ideia regeneradora, isto deve ser simples e justo; mas só Deus conhece aquele que está prometido. Limito-me a dizer-vos: Esperai e orai, porque o tempo é chegado e o novo Messias não vos faltará: Deus saberá designá-lo a seu tempo. E, aliás, é por suas obras que ele se afirmará.

Podeis esperar por muitas coisas, vós que vedes tantas estranhas em relação às ideias admitidas pela civilização moderna.

Baluze — Paris, 1862

4. — Eis uma questão que se repete em toda parte: o Messias anunciado é a pessoa mesma do Cristo?

Ao lado de Deus estão numerosos Espíritos chegados ao topo da escala dos Espíritos puros, que mereceram ser iniciados em seus desígnios, para dirigirem a sua execução. Deus escolheu dentre eles seus enviados superiores, encarregados de missões especiais. Podeis chamá-los Cristos: é a mesma escola; são as mesmas ideias modificadas conforme os tempos.

Não fiqueis, pois, admirados de todas as comunicações que vos anunciam a vinda de um Espírito poderoso sob o nome do Cristo; é o pensamento de Deus revelado numa certa época, e que é transmitido pelo grupo dos Espíritos superiores que se acercam de Deus e recebe as suas emanações para presidir o futuro dos mundos que gravitam no espaço.

O que morreu na cruz tinha uma missão a cumprir, e essa missão se renova hoje por outros Espíritos desse grupo divino, que vêm, eu vo-lo repito, presidir aos destinos de vosso mundo.

Se o Messias de que falam essas comunicações não é a personalidade de Jesus, é o mesmo pensamento. É aquele que Jesus anunciou, quando disse: “Eu vos enviarei o Espírito de Verdade, que deve restabelecer todas as coisas”, isto é, reconduzir os homens à sã interpretação de seus ensinamentos, porque ele previa que os homens se desviariam do caminho que lhes havia traçado.

Aliás, era preciso completar o que então não lhes havia dito, porque não teria sido compreendido. Eis por que uma multidão de Espíritos de todas as ordens, sob a direção do Espírito de Verdade, veio a todas as partes do mundo e a todos os povos, revelar as leis do mundo espiritual, cujo ensino Jesus havia adiado, e lançar, pelo Espiritismo, os fundamentos da nova ordem social. Quando todas as bases estiverem postas, então virá o Messias, que deve coroar o edifício e presidir à reorganização, auxiliado pelos elementos que tiverem sido preparados.

Mas não creiais que esse Messias esteja só; haverá muitos que abraçarão, pela posição que cada um ocupará no mundo, as grandes partes da ordem social: a política, a religião, a legislação, a fim de as fazer concordar com o mesmo objetivo.

Além dos Messias principais, Espíritos de escol surgirão em todas as partes e que, como lugar-tenentes animados da mesma fé e do mesmo desejo, agirão de comum acordo, sob o impulso do pensamento superior.

É assim que, pouco a pouco, se estabelecerá a harmonia do conjunto; mas é preciso, primeiramente, que se realizem certos acontecimentos.

Lacordaire — Paris, 1862

Os Espíritos Marcados

5. — Há muitos Espíritos superiores que concorrerão poderosamente para a obra regeneradora, mas nem todos são Messias. É preciso distinguir:

1. Os Espíritos superiores, que agem livremente e por sua própria vontade;

2. Os Espíritos marcados, isto é, designados para uma missão importante. Têm a irradiação luminosa, que é o sinal característico de sua superioridade. São escolhidos entre os Espíritos capazes de as cumprir; entretanto, como têm livre-arbítrio, podem falir por falta de coragem, de perseverança ou de fé e não estão livres dos acidentes que podem abreviar os seus dias. Mas como os desígnios de Deus não estão à mercê de um homem, o que um não faz, o outro é chamado a fazer. Eis por que há muitos chamados e poucos escolhidos. Feliz aquele que realiza sua missão segundo as vistas de Deus e sem desfalecimento!

3. Os Messias, seres superiores, chegados ao mais alto grau da hierarquia celeste, depois de terem atingido uma perfeição que os torna infalíveis daí por diante, e acima das fraquezas humanas, mesmo na encarnação. Admitidos nos conselhos do Altíssimo, recebem diretamente sua palavra, que são encarregados de transmitir e fazer cumprir. Verdadeiros representantes da Divindade, da qual têm o pensamento, é entre eles que Deus escolhe seus enviados especiais, ou seus Messias, para as grandes missões gerais, cujos detalhes de execução são confiados a outros Espíritos encarnados ou desencarnados, agindo por suas ordens e sob sua inspiração.

Espíritos dessas três categorias devem concorrer ao grande movimento regenerador que se opera.

Êxtase sonambúlico — Paris, 1866

6. — Venho, meus amigos, confirmar a esperança dos altos destinos que esperam o Espiritismo. Esse glorioso futuro que vos anunciamos será realizado pela vinda de um Espírito superior, que resumirá, na essência de sua perfeição, todas as doutrinas antigas e novas, e que, pela autoridade de sua palavra, ligará os homens às crenças novas. Semelhante ao Sol nascente, dissipará todas as obscuridades amontoadas sobre a eterna verdade, pelo fanatismo e pela inobservância dos preceitos do Cristo.

Estrela da nova crença, o futuro Messias cresce na sombra; mas já os seus inimigos tremem e as virtudes dos céus estão abaladas.

Perguntais se esse novo Messias é a pessoa mesma de Jesus de Nazaré? Que vos importa, se é o mesmo pensamento que os anima a ambos? São as imperfeições que dividem os Espíritos; mas quando as perfeições são iguais, nada os distingue; formam unidades coletivas, sem perderem a sua individualidade.

O começo de todas as coisas é obscuro e vulgar; o que é pequeno cresce; nossas manifestações, a princípio acolhidas com o desdém, a violência ou a indiferença banal da curiosidade ociosa, espalharão ondas de luz sobre os cegos e os regenerarão.

Todos os grandes acontecimentos têm seus profetas, ora incensados, ora desprezados. Assim como Moisés conduzia os hebreus, nós vos conduziremos para a terra prometida da inteligência.

Similitude impressionante! os mesmos fenômenos se repetem, não mais no sentido material, destinado a ferir os homens infantis, mas na sua acepção espiritual. As crianças se tornaram adultos; crescendo o objetivo, os exemplos não mais se dirigem aos olhos; a vara de Aarão está partida, e a única transformação que operamos é a de vossos corações, tornados atentos ao grito de amor que, do Céu, repercute na Terra.

Espíritas! compreendei a gravidade de vossa missão; estremecei de alegria, porque não está longe a hora em que o divino enviado alegrará o mundo. Espíritas laboriosos, sede benditos em vossos esforços e perdoados em vossos erros. A ignorância e a perturbação ainda vos ocultam uma parte da verdade que só o celeste Mensageiro vos pode revelar inteiramente.

São Luís — Paris, 1862.

7. — A vinda do Cristo trouxe à vossa Terra sentimentos que, por um instante, a submeteram à vontade de Deus; mas os homens, enceguecidos por suas paixões, não puderam guardar no coração o amor do próximo, o amor do Mestre do céu. O enviado do Todo-Poderoso abriu à Humanidade a estrada que conduz à mansão dos bem-aventurados; mas a Humanidade recuou um passo imenso que o Cristo a tinha feito dar; caiu no ramerrão do egoísmo, e o orgulho a fez esquecer o seu Criador.

Deus permite que ainda uma vez sua palavra seja pregada na Terra, e tereis que o glorificar porque fostes dos primeiros a quem ele se dignou chamar a crer no que mais tarde será ensinado. Rejubilai-vos, porque estão próximos os tempos em que essa palavra se fará ouvir. Melhorai-vos, aproveitando os ensinamentos que ele permite que vos demos.

Que a árvore da fé, que neste momento finca raízes tão vigorosas, produza os seus frutos; que esses frutos amadureçam, como amadurecerá a fé que hoje anima alguns entre vós.

Sim, meus filhos, o povo se comprimirá sobre os passos do novo mensageiro anunciado pelo próprio Cristo, e todos virão escutar essa divina palavra, porque nela reconhecerão a linguagem da verdade e o caminho da salvação. Deus, que permitiu que vos esclarecêssemos, que sustentássemos vossa marcha até hoje, permitirá ainda que vos demos as instruções que vos são necessárias.

Mas também vós, os primeiros favorecidos pela crença, tendes vossa missão a cumprir; tereis de trazer aqueles do vosso meio que ainda duvidam das manifestações que Deus permite; tereis de fazer luzir aos seus olhos os benefícios daquilo que tanto vos consolou; porque nos vossos dias de tristeza e de abatimento a vossa crença não vos sustentou? não fez nascer em vosso coração esta esperança que, sem ela, teríeis ficado no desalento?

Eis o que é preciso fazer partilhar os que ainda não creem, não por uma precipitação intempestiva, mas com prudência e sem chocar de frente os preconceitos longamente arraigados. Não se arranca uma velha árvore de um golpe só, como se fora um pé de erva, mas pouco a pouco.

Semeai desde agora o que mais tarde quereis colher; semeai o grão que virá frutificar no terreno que tiverdes preparado e cujos frutos vós mesmos colhereis, porque Deus vos levará em conta o que tiverdes feito por vossos irmãos.

Lamennais — Havre, 1862

Futuro do Espiritismo

8. — Depois de suas primeiras etapas, o Espiritismo, aguerrido, desembaraçando-se cada vez mais das obscuridades que lhe serviram de fraldas, em breve fará sua aparição na grande cena do mundo.

Os acontecimentos marcham com tal rapidez que não se pode ignorar a poderosa intervenção dos Espíritos que presidem aos destinos da Terra. Há como que um estremecimento íntimo nos flancos do vosso globo, em trabalho de gestação; novas raças saídas das altas esferas vêm rodopiar em torno de vós, esperando a hora de sua encarnação messiânica, e para isto se preparando pelo estudo das vastas questões que hoje agitam a Terra.

De todos os lados veem-se sinais de decrepitude nos usos e legislações, que não mais estão de acordo com as ideias modernas. As velhas crenças adormecidas há séculos parecem despertar de seu torpor secular e se admiram de se verem em luta com novas crenças, emanadas dos filósofos e dos pensadores deste e do século passado. O sistema degenerado de um mundo que não passava de um simulacro, se esboroa ante a aurora do mundo real, do mundo novo. A lei de solidariedade, da família passou aos habitantes dos Estados, para em seguida conquistar a Terra inteira; mas esta lei tão sábia, tão progressiva, essa lei divina, numa palavra, não se limitou a esse resultado único; infiltrando-se no coração dos grandes homens, ensinou-lhes não só que ela era necessária ao grande melhoramento da vossa habitação, mas que se estendia a todos os mundos do vosso sistema solar, para de lá se estender a todos os mundos da imensidade!

É bela essa lei de solidariedade universal, porque nela se encontra essa máxima sublime: Todos por um e um por todos.

Eis, meus filhos, a verdadeira lei do Espiritismo, a verdadeira conquista de um futuro próximo. Marchai, pois, imperturbavelmente em vossa estrada, sem vos preocupar com as zombarias de uns e o amor-próprio ferido de outros. Estamos e ficaremos convosco, sob a égide do Espírito de Verdade, meu e vosso mestre.

Erasto — Paris, 1863

9. — Cada dia o Espiritismo estende o círculo de seu ensino moralizador. Sua grande voz ecoou de um extremo a outro da Terra. A sociedade se comoveu com ela e de seu seio partiram adeptos e adversários.

Adeptos fervorosos, adversários hábeis, mas cuja habilidade e renome serviram à própria causa que queriam combater, chamando para a doutrina nova a atenção das massas e lhes dando o desejo de conhecer os ensinos regeneradores, que seus adeptos preconizam, e que os faziam escarnecer e ridicularizar.

Contemplai o trabalho realizado e rejubilai-vos com o resultado! Mas que efervescência indizível não se produzirá entre os povos, quando seus mais amados escritores vierem juntar-se aos nomes mais obscuros ou menos conhecidos dos que se aglomeram em torno da bandeira da verdade!

Vede o que produziram os trabalhos de alguns grupos isolados, na maioria entravados pela intriga e pela malquerença, e julgai da revolução que se operará quando todos os membros da grande família espírita se derem as mãos e declararem, de fronte altiva e coração firme, a sinceridade de sua fé e de sua crença na realidade do ensinamento dos Espíritos.

As massas amam o progresso, buscam-no, mas não o temem. O desconhecido inspira um secreto terror aos filhos ignorantes de uma sociedade embalada em preconceitos, que ensaia os primeiros passos na via da realidade e do progresso moral. As grandes palavras de liberdade, de progresso, de amor, de caridade ferem o povo sem o comover; muitas vezes ele prefere seu estado presente e medíocre a um futuro melhor, mas desconhecido.

A razão desse pavor do futuro está na ignorância do sentimento moral num grande número, e do sentimento inteligente em outros. Mas, como disseram vários filósofos, divagando sobre uma concepção falsa da origem das coisas, inclusive eu — por que coraria de o dizer? não poderia enganar-me? — não é verdade que a Humanidade seja má por essência. Não; aperfeiçoando a sua inteligência ela não dará um impulso maior às suas más qualidades. Afastai de vós esses pensamentos desesperadores, que repousam num falso conhecimento do espírito humano.

A Humanidade não é má por natureza; mas é ignorante e, por isso mesmo, mais apta a se deixar governar por suas paixões. É progressiva e deve progredir para atingir os seus destinos; esclarecei-a; mostrai seus inimigos ocultos na sombra; desenvolvei sua essência moral, nela inata, e apenas adormecida sob a influência dos maus instintos e reanimareis a centelha da eterna verdade, da eterna presciência do infinito, do belo e do bom, que reside para sempre no coração do homem, mesmo o mais perverso.

Filhos de uma doutrina nova, reuni vossas forças; que o sopro divino e o socorro dos Espíritos bons vos sustentem, e fareis grandes coisas. Tereis a glória de haver posto as bases dos princípios imperecíveis, cujos frutos vossos descendentes recolherão.

Montaigne — Paris, 1865

As Estrelas cairão do Céu

10. — Oh! como é bela a luz do Senhor! que brilho prodigioso espalham seus raios! Santa Sião! bem-aventurados os que estão sentados à sombra de teus tabernáculos! Oh! que harmonia é comparável às esferas do Senhor? Beleza incompreensível para olhos mortais, incapazes de perceber tudo quando não depende do domínio dos sentidos!

Aurora esplêndida de um dia novo, o Espiritismo vem iluminar os homens. Os clarões mais fortes já aparecem no horizonte; os Espíritos das trevas, vendo que seu império vai desmoronar, são vítimas de raivas impotentes e já põem sua última energia em complôs infernais; o anjo radioso do progresso já estende suas brancas asas coloridas; as virtudes dos céus já se abalam e as estrelas caem de sua abóbada, mas transformadas em Espíritos puros, que vêm, como anuncia a Escritura em linguagem figurada, proclamar sobre as ruínas do velho mundo o advento do Filho do Homem.

Bem-aventurados aqueles cujos corações estão preparados para receber a semente divina, que os Espíritos do Senhor lançam a todos os ventos do céu! Bem-aventurados os que cultivam, no santuário da alma, as virtudes que o Cristo lhes veio ensinar, e que ainda lhes ensina pela voz dos médiuns, isto é, dos instrumentos que repetem as palavras dos Espíritos! Bem-aventurados os justos, porque o reino dos céus lhes pertencerá!

Ó, meus amigos! continuai a marchar no caminho que vos é traçado; não vos constituais em obstáculos à verdade que quer esclarecer o mundo. Não; sede propagadores zelosos e infatigáveis como os primeiros apóstolos, que não tinham teto para abrigar suas cabeças, mas que marchavam para a conquista que Jesus havia começado; que marchavam sem ideia preconcebida, sem hesitação; que tudo sacrificavam, até a última gota de seu sangue, a fim de que o Cristianismo fosse implantado.

Vós, meus amigos, não necessitais de sacrifícios tão grandes. Não; Deus não vos pede vossa vida, mas o vosso coração, vossa boa vontade. Sede, pois, zelosos e marchai unidos e confiantes, repetindo a palavra divina: “Meu Pai, que seja feita a vossa vontade, e não a minha!”

Dupuch — Bispo de Argel — Bordeaux, 1863

Os Mortos Sairão de seus Túmulos

11. — Povos, escutai!... Uma voz se faz ouvir de um extremo a outro dos mundos: é a do precursor anunciando a vinda do Espírito de Verdade, que vem endireitar os caminhos tortuosos por onde o espírito humano se desgarrava em falsos sofismas. É a trombeta do anjo vindo despertar os mortos para que saiam de seus túmulos.

Muitas vezes tendes lido a revelação de João e vos perguntastes: Mas, que quer ele dizer? Como se cumprirão essas coisas surpreendentes? E, confusa, vossa razão mergulhava num tenebroso labirinto, de onde não podia sair, porque queríeis tomar ao pé da letra o que estava escrito em sentido figurado.

Agora que chegou o tempo em que uma parte dessas predições vai cumprir-se, pouco a pouco aprendereis a ler nesse livro onde o discípulo bem-amado consignou as coisas que lhe tinha sido dado ver. Entretanto, as más traduções e as falsas interpretações ainda vos aborrecerão um pouco, mas com um trabalho perseverante chegareis a compreender o que, até o presente, tinha sido para vós uma carta fechada.

Apenas compreendei que, se Deus permite que os selos sejam levantados mais cedo para alguns, não é para que esse conhecimento fique estéril em suas mãos, mas para que, pioneiros infatigáveis, desbravem as terras incultas; é para que fecundem com o doce orvalho da caridade os corações ressequidos pelo orgulho e impedidos pelos embaraços mundanos, onde a boa semente da palavra de vida não pôde ainda germinar.

Ah! quantos encaram a vida humana como devendo ser uma festa perpétua, em que as distrações e os prazeres se sucedem sem interrupção! Inventam mil nadas para encantar os seus lazeres; cultivam seu espírito, porque é uma das facetas brilhantes que servem para fazer ressaltar sua personalidade; são semelhantes a essas bolhas efêmeras, refletindo as cores do prisma e se balançando no espaço: atraem os olhares por algum tempo, depois as procurais... e elas desapareceram sem deixar traços. Do mesmo modo, essas almas mundanas brilharam com uma luz que não lhes era própria, durante sua curta passagem terrena, e dela nada restou de útil, nem para os seus semelhantes, nem para elas mesmas.

Vós que conheceis o valor do tempo, vós a quem as leis da eterna sabedoria são reveladas pouco a pouco, sede nas mãos do Todo-Poderoso, instrumentos dóceis servindo para levar a luz e a fecundidade a essas almas, das quais é dito: “Têm olhos e não veem, ouvidos e não escutam”, porque se tendo desviado do facho da verdade e escutado a voz das paixões, sua luz não passa de trevas, em meio das quais o Espírito não pode reconhecer a estrada que o faz gravitar para Deus.

O Espiritismo é essa voz poderosa que já repercute até os confins da Terra; todos a ouvirão. Felizes os que, não tapando voluntariamente os ouvidos, sairão de seu egoísmo, como o fariam os mortos de seus sepulcros, e daí por diante realizarão os atos da vida verdadeira, a do Espírito se desembaraçando dos entraves da matéria, como fez Lázaro de seu sudário, à voz do Salvador.

O Espiritismo marca a hora solene do despertar das inteligências que usaram o seu livre-arbítrio para se demorarem nos atalhos lamacentos, cujos miasmas deletérios infectaram a alma com um veneno lento, que lhe dá as aparências da morte. O Pai celeste tem piedade desses filhos pródigos, caídos tão baixo que nem mesmo pensam na morada paterna e é para eles que permite essas manifestações brilhantes, destinadas a convencer que, além deste mundo de formas perecíveis, a alma conserva a lembrança, o poder e a imortalidade.

Possam eles, esses pobres escravos da matéria, sacudir o torpor que os impediu de ver e compreender até hoje; possam estudar com sinceridade, a fim de que a luz divina, penetrando sua alma, dela expulse a dúvida e a incredulidade.

João Evangelista — Paris, 1866

O Juízo Final

12. — Jesus virá sobre as nuvens para julgar os vivos e os mortos. Sim, Deus o enviará, como o envia todos os dias, para fazer esta justiça soberana nas planícies imensas do éter. Ah! quando São Tiago foi precipitado do alto da torre do templo de Jerusalém, pelos pontífices e fariseus, por ter anunciado ao povo reunido esta verdade ensinada pelo Cristo e seus apóstolos, lembrai-vos de que a esta palavra do justo a multidão se prosternou, exclamando: Glória a Jesus, filho de Deus, no mais alto dos céus!

Ele virá sobre as nuvens proferir suas temíveis sentenças: não é vos dizer, ó espíritas, que ele vem perpetuamente receber as almas dos que entram na erraticidade? Passai à minha direita, diz o pastor às suas ovelhas, vós que agistes bem, segundo as vistas de meu Pai, passai à minha direita e subi para ele; quanto a vós, que vos deixastes dominar pelas paixões terrenas, passai à minha esquerda; estais condenados.

Sim, estais condenados a recomeçar o caminho percorrido, em nova existência terrestre, até que vos tenhais saciado de matérias e iniquidades, e que, enfim, tenhais expulsado o impuro que vos domina. Sim, estais condenados; ide e voltai ao inferno da vida humana, enquanto vossos irmãos da minha direita vão se precipitar nas esferas superiores, de onde as paixões da Terra estão excluídas, até o dia em que entrarem no reino de meu Pai, por uma maior purificação.

Sim, Jesus virá julgar os vivos e os mortos. Os vivos: os justos, os da sua direita; os mortos: os impuros, os da sua esquerda; e quando brotarem as asas dos justos, a matéria ainda se apossará dos impuros. E isto até que estes saiam vencedores dos combates contra a impureza e enfim se despojem, para sempre, de suas crisálidas humanas.

Ó espíritas! vedes que a vossa doutrina é a única que consola, a única que dá esperança, não condenando a uma danação eterna os infelizes que se comportaram mal durante alguns minutos da eternidade; a única, enfim, que preside ao fim verdadeiro da Terra pela elevação gradual dos Espíritos.

Progredi, pois, despojando o homem velho, para entrar na região dos Espíritos amados por Deus.

Erasto — Paris, 1861

13. — A sociedade em geral ou, melhor dizendo, a reunião dos seres, tanto encarnados quando desencarnados, que compõem a população flutuante de um mundo, numa palavra, a Humanidade, não é senão uma grande criança coletiva que, como todo ser dotado de vida, passa por todas as fases que se sucedem em cada um, desde o nascimento até a mais avançada idade; e assim como o desenvolvimento do indivíduo é acompanhado por certas perturbações físicas e intelectuais, que se dão mais particularmente em certos períodos da vida, a Humanidade tem as suas doenças de crescimento, suas perturbações morais e intelectuais. É a uma dessas grandes épocas que terminam um período e que começam outro que vos é dado assistir. Participando ao mesmo tempo das coisas do passado e das do futuro, nos sistemas que se aniquilam e nas verdades que se estabelecem, tende cuidado, meus amigos, de vos pôr do lado da solidez, da progressão e da lógica, se não quiserdes ser arrastados sem rumo; e abandonai os palácios suntuosos quanto à aparência, mas vacilantes pela base, e que logo sepultarão sob suas ruínas os infelizes bastante insensatos que deles não querem sair, a despeito dos avisos de toda natureza que lhes são prodigalizados.

Todas as frontes se tornam sombrias, e a calma aparente que desfrutais não serve senão para acumular maior número de elementos destruidores.

Algumas vezes a tempestade que destrói o fruto dos suores de um ano é precedida por mensageiros que permitem tomar as precauções necessárias para evitar, tanto quanto possível, a devastação. Desta vez não será assim. O céu carregado parecerá iluminar-se; as nuvens fugirão; depois, de repente, todos os furores, por muito tempo reprimidos, se desencadearão com uma violência inaudita.

Infeliz dos que não tiverem preparado um abrigo! infelizes dos fanfarrões que enfrentarem o perigo de mãos desarmadas e peito descoberto! infelizes dos que desafiarem o perigo com a taça na mão! Que decepção terrível os espera! Antes que a taça que sustentam alcancem seus lábios eles serão atingidos!

À obra, pois, espíritas, e não esqueçais que deveis ser todo prudência e todo previdência. Tendes um escudo, sabei dele vos servir; uma tábua de salvação: não a desprezeis.

Clélie Duplantier — Paris, 1867

Apreciação da Obra A Gênese

(Paris, 18 de dezembro de 1867 — Médium: Sr. Desliens)

Esta obra vem na hora certa, na medida em que a doutrina está hoje bem estabelecida do ponto de vista moral e religioso. Seja qual for a direção que tome de agora em diante, tem precedentes muito arraigados no coração dos adeptos, para que ninguém possa temer que ela se desvie de seu caminho.

O que importava satisfazer antes de tudo, eram as aspirações da alma; era suprir o vazio deixado pela dúvida nas almas vacilantes em sua fé. Esta primeira missão hoje está cumprida. O Espiritismo entra atualmente em uma nova fase; ao atributo de consolador, alia o de instrutor e diretor do espírito, em ciência e em filosofia, como em moralidade. A caridade, sua base inabalável, dele fez o laço das almas ternas; a Ciência, a solidariedade, a progressão, o espírito liberal dele farão o traço de união das almas fortes. Conquistou os corações que amam com armas de doçura; hoje viril, é às inteligências viris que se dirige. Materialistas, positivistas, todos os que, por um motivo qualquer, se afastaram de uma espiritualidade cujas imperfeições suas inteligências lhes mostravam, nele vão encontrar novos alimentos para sua insaciabilidade. A Ciência é sua senhora, mas uma descoberta chama outra, e o homem avança sem cessar com ela, de desejo em desejo, sem encontrar completa satisfação. É que o Espírito também tem suas necessidades; é que a alma mais ateísta tem aspirações secretas, inconfessadas, e que essas aspirações reclamam seu alimento.

A religião, antagonista da Ciência, respondia pelo mistério a todas as questões da filosofia céptica. Ela violava as leis da Natureza e as adaptava à sua fantasia, para daí extrair uma explicação incoerente de seus ensinamentos. Vós, ao contrário, vos sacrificais à Ciência; aceitais todos os seus ensinamentos sem exceção e lhe abris horizontes que ela supunha intransponíveis. Tal será o efeito desta nova obra; não poderá senão assegurar mais os fundamentos da crença espírita nos corações que já a possuem, e fará dar um passo à frente para a unidade a todos os dissidentes, à exceção, entretanto, dos que o são por interesse ou por amor-próprio; esses o veem com despeito sobre bases cada vez mais inabaláveis, que os lançam para trás e os rechaçam na sombra. Só havia pouco ou nenhum terreno comum onde se pudessem encontrar. Hoje, o materialismo vos acotovela por toda parte, porque estando em seu terreno, não estareis menos no vosso, e ele não poderá fazer outra coisa senão aprender a conhecer os hóspedes que lhe traz a filosofia espírita. É um instrumento de duplo efeito: uma sapa, uma mina que ainda derruba algumas ruínas do passado, uma colher de pedreiro que edifica para o futuro.

A questão de origem que se prende à Gênese é para todos uma questão apaixonada. Um livro escrito sobre esta matéria deve, em consequência, interessar a todos os espíritos sérios. Por esse livro, como vos disse, o Espiritismo entra numa nova fase e esta preparará as vias da fase que mais tarde se abrirá, porque cada coisa deve vir a seu tempo. Antecipar o momento propício é tão prejudicial quanto deixá-lo escapar.

São Luís


 

Bibliografia

Síntese da Doutrina Espírita

Por Florent Loth, de Amiens[2]

Esse livro, que apenas pudemos anunciar em nosso último número, é um resumo dos princípios mais essenciais da Doutrina Espírita. Compõe-se, em sua maior parte, de citações textuais tomadas das obras fundamentais, e de exemplos tirados de O Céu e o Inferno, próprios a dar, sobre as consequências da maneira pela qual se emprega a vida, uma ideia mais justa, mais racional, mais satisfatória e, sobretudo, mais conforme à justiça de Deus que a doutrina das chamas eternas. O autor não faz de seu livro uma questão de amor-próprio, nem de interesse. Espírita fervoroso e devotado, publicou-o sobretudo com vistas a propagar a Doutrina nos campos de seu Departamento; a modéstia de seus pontos de vista não impede que esse livrinho possa ser muito útil em outros lugares.

Eis o relato que o Journal d’Amiens, de 29 de dezembro de 1867, deu desse opúsculo. Fazemo-lo seguir da carta dirigida pelo Sr. Loth, a propósito desse relato, ao autor do artigo, e que o mesmo jornal publicou em seu número de 17 de janeiro.

Síntese da Doutrina Espírita

Eis um livrinho bastante curioso, escrito por um aldeão de Saint-Sauflieu. É verdade que o autor morou muito tempo em Paris, e foi nesta cidade que pôde entrar em contato com os apóstolos do Espiritismo.

Como nos interessamos por todas as publicações de nossa região, quisemos travar conhecimento com esta obra. Haviam-nos dito que a obra do Sr. Florent Loth tinha sido posta no índex, nas comunas vizinhas de sua aldeia; esta notícia excitou a nossa curiosidade e nos decidimos a ler a Síntese da Doutrina Espírita. A gente gosta mesmo do fruto proibido.

Quanto a nós, que não temos o menor interesse em censurar ou aprovar a obra do autor, diremos francamente, para nos pormos à vontade, que não acreditamos no Espiritismo, que não damos nenhum crédito às mesas girantes ou falantes, porque à nossa razão repugna admitir que objetos materiais possam ser dotados da menor inteligência. Também não acreditamos no dom da segunda vista, ou, melhor dizendo, na faculdade de ver através de paredes espessas, ou de distinguir a grandes distâncias o que se passa ao longe, isto é, a várias centenas de léguas. Enfim, para continuar nossas confissões preliminares, acrescentamos que não temos nenhuma fé nos Espíritos que voltam, e que o homem, mais ou menos inspirado, não tem o poder de evocar e, sobretudo, de fazer falarem as almas dos mortos.

Dito isto, para limpar o terreno de tudo o que não entra em nossos pontos de vista, reconhecemos que o livro do Sr. Florent Loth não é uma obra má. Sua moral é pura, o amor do próximo aí é recomendado, a tolerância para as crenças alheias nele é defendido: isto explica a boa saída desta obra.

Mas dizer que adeptos convictos da Doutrina Espírita, com todas as suas partes admitidas, se formarão em consequência da leitura da obra do nosso compatriota, seria avançar um fato que não se realizará. No que nos parece razoável e, falemos claro, ter senso comum, segundo a melhor acepção destes termos, há coisas excelentes. Assim, certos abusos são repelidos com razões evidentes, claras e precisas; e se o autor procura convencer, é sempre pela doçura e pela persuasão.

Portanto, deixando de lado tudo quanto se liga às práticas materiais  do Espiritismo, práticas nas quais não acreditamos absolutamente, poder-se-ia retirar da leitura do livro em questão muito boas noções de moral, de tolerância e de amor pelo próximo. Sob esse ponto de vista, aprovamos inteiramente o Sr. Florent Loth e não compreendemos o interdito lançado contra o seu opúsculo.

A Síntese da Doutrina Espírita  será um dia proibida pela Congregação do Índex, cuja sede está em Roma? É uma questão ainda não resolvida, porque este livrinho não está destinado a transpor nossas fronteiras picardas. Contudo, se o fato se desse, o Sr. Florent Loth recolheria por sua obra uma notoriedade na qual jamais deverá ter pensado.

Quanto às experiências físicas  do Espiritismo, deixemos falar aqui o Sr. Georges Sauton, um dos nossos confrades, o qual no Liberté  de quarta-feira, 11 de setembro de 1867, assim se exprimia sobre uma sessão espírita realizada em Paris, em casa de um doutor em Medicina:

“O doutor F... amealhou certa fortuna. Ele a consome fazendo sessões espíritas, que lhe custam muito caro em velas e em médiuns.

 “Ontem à noite ele havia convidado a imprensa para a sua reunião mensal. Esses espíritos deviam ser interrogados a respeito do zuavo Jacob e dizer sua maneira de pensar relativamente a esse interessante militar. O Sr. Babinet, do Instituto, havia prometido honrar a reunião com a sua presença; pelo menos o anfitrião, pelas cartas de convite, o tinha deixado entender.

“Albert Brun, Victor Noir e eu fomos à casa do doutor. Nada, absolutamente nada do Sr. Babinet.

“Dez pessoas em volta de uma mesa faziam girar o móvel, que girava mal; trinta outras, entre as quais muitos condecorados, as olhavam.”

“Os Espíritos, sem dúvida indispostos, foram reticentes no falar. Apenas se dignaram imitar o ruído da serra, dos martelos dos tanoeiros e dos ferreiros batendo nos tonéis e na bigorna. Pediram-lhes que cantassem A mulher de barba  e Tenho bom tabaco, mas eles não cantaram. Intimaram-nos a fazer uma pêra saltar no ar, mas a pêra não saltou.”

Nada acrescentaremos a este pequeno e espirituoso relato.

Terminemos por um extrato do prefácio do autor, no qual a parte moral  de suas ideias é exposta:

“O Espiritismo não tem a pretensão de impor sua crença; só pela persuasão é que ele espera chegar ao seu objetivo, que é o bem da Humanidade. Liberdade de consciência: assim, creio firmemente na existência da alma e na sua imortalidade; creio nas penas e recompensas futuras; creio nas manifestações dos Espíritos, isto é, nas almas dos que viveram nesta Terra ou em outros mundos; e creio nisto em virtude do direito que tem o meu vizinho de não crer; mas me é tão fácil provar-lhe a minha afirmação, quanto lhe é impossível me provar a sua negação, porque a negação dos incrédulos não é uma prova. O fato, dizem eles, é contrário às leis conhecidas. Pois bem! é que repousa sobre uma lei desconhecida; não se podem conhecer todas as leis da Natureza, porque

Deus é grande e tudo pode!...

“Pessoas malévolas espalharam o boato que o Espiritismo era um obstáculo ao progresso da religião. Essas pessoas, mais ignorantes do que realmente piedosas, não conhecendo absolutamente a Doutrina, nem podem apreciá-la nem julgá-la.

“Nós dizemos, nós, e ainda provamos, que o ensino dos Espíritos é muito cristão, que se apoia na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, na justiça de Deus e na moral do Cristo.”

A citação desta profissão de fé pelo autor será suficiente para dar a conhecer a sua maneira de ver. Cabe ao leitor apreciar a obra de que falamos.

Fazendo este relato, apenas quisemos constatar um fato: é que em nossa província da Picardia, o Espiritismo tinha encontrado um defensor fervoroso e convicto.

Não admitimos todas as ideias do autor. Esperamos que, em virtude de sua doçura, que ele não se aborreça com a nossa franqueza. Enquanto a paz pública não for perturbada por doutrinas ímpias, enquanto a ordem social não for abalada por máximas subversivas, nossa tolerância fraternal nos fará dizer o que aqui dizemos do livro do Sr. Florent Loth:

Paz às consciências! Respeito às crenças do próximo!

M. A. Gabriel Rembault

 “Senhor Diretor,

“Eu vos serei reconhecido se quiserdes inserir em vosso jornal minha reposta à crítica do Sr. Gabriel Rembault sobre a minha Síntese da Doutrina Espírita, artigo que apareceu em 29 de dezembro último.

“Não quero travar polêmica com o Sr. Gabriel Rembault; não estou à altura de seu talento de escritor, talento incontestável que todos lhe reconhecem; mas que me permita lhe demonstrar as razões que me levaram a escrever este livro.

Antes de tudo, devo reconhecer que a crítica do Sr. Gabriel Rembault é cortês e polida; emana de um homem convencido, mas não irritado. Oh! não posso dizer o mesmo de outros críticos, que lançam o anátema aos espíritas por insultos e palavras grosseiras! Nada compreendo dessa demonstração de ódio e de injúrias, dessas palavras malsonantes de loucos e de patifes, que nos lançam à face e que só inspiram profundo desgosto às pessoas decentes. Entretanto, esses homens intolerantes sabem perfeitamente que, segundo os princípios de nossa sociedade moderna, todas as consciências são livres e têm o direito a um respeito inviolável.

“Perdoai-me esta digressão, senhor Diretor, como perdôo a esses insultadores; perdôo-lhes de todo o coração e peço a Deus que se digne esclarecê-los sobre a caridade. Deveriam praticar melhor essa virtude evangélica para com o próximo.

“Volto ao meu assunto.

“Foi pelo estudo, pela meditação e sobretudo pela prática, que adquiri a prova de certos fatos físicos, até aqui encarados como sobrenaturais. É pelo fluido universal que se pode explicar os fenômenos do magnetismo. Esses fenômenos não podem mais ser contestados hoje; é graças ao mesmo fluido que o Espírito transpõe o espaço, possui a dupla vista, é dotado da penetração etérea, à qual não poderia opor-se a opacidade dos corpos. Esses fenômenos não são senão a libertação momentânea do Espírito. É verdade que a incredulidade não quer admitir esses fenômenos, mas constatações autênticas e numerosas já não permitem pô-los em dúvida.

“Assim, as maravilhas de que acusam o magnetismo e o Espiritismo não passam, todas, de efeitos cuja causa reside nas leis da Natureza.

“E já que o Sr. Gabriel Rembault citou um artigo do jornal Liberté, eu me permito, por minha vez, citar uma passagem de um livro novíssimo — A Razão do Espiritismo — fruto de longos estudos de um honrado magistrado. Diz ele, na página 216:

“Alguma vez teria Deus derrogado as leis que instituiu para levar sua obra a bom termo? Aquele que tudo previu não proveu a tudo? Como poderíeis pretender que a mediunidade, a comunicação dos Espíritos não seja conforme às leis da natureza do homem? E se a revelação é a consequência necessária da mediunidade, por que diríeis que é uma derrogação da lei de Deus, quando ela entraria ostensivamente nas vistas da Providência e da economia humana?

“Paro após esta citação. É um argumento no sentido oposto às ideias dos Sr. Gabriel Rembault, e que submeto à apreciação dos vossos leitores.

“Em resumo, estou de acordo com ele quando diz: ‘Paz às consciências! respeito às crenças do próximo!’

“Recebei, senhor Diretor, meus cumprimentos respeitosos.”

Florent Loth

Saint-Sauflieu, 16 de janeiro de 1868

Ressalta do relato acima que o autor do artigo não conhecia uma palavra da Doutrina; como tantos outros, ele a julgava por ouvir dizer, sem se ter dado ao trabalho de ir ao fundo da questão e levantar o manto do ridículo, que a crença malévola ou mais ou menos interessada se deleitou em cobri-la. Fez como o macaco da fábula, que rejeitava a noz, porque apenas tinha mordido a casca verde. Se tivesse conhecido os seus primeiros elementos, não teria suposto os espíritas tão simplórios para crerem na inteligência de uma mesa, como ele próprio não acredita na inteligência da pena que, em suas mãos, transmite os pensamentos de seu próprio espírito. Como ele, os espíritas não admitem que objetos materiais possam ser dotados da menor inteligência; mas, como ele, sem dúvida, admitem que esses mesmos objetos podem ser instrumentos a serviço de uma inteligência. O livro do Sr. Loth não o convenceu, mas lhe mostrou o lado sério e as tendências morais da doutrina, e isto lhe bastou para compreender que a coisa tinha algo bom e merecia ao menos o respeito devido às crenças do próximo. Deu prova de louvável imparcialidade, inserindo imediatamente a retificação que lhe foi dirigida pelo autor.

O que o tocou não foram os fatos de manifestação, dos quais aliás pouco se trata no livro, mas as tendências liberais e anti-retrógradas, o espírito de tolerância e de conciliação da Doutrina. Tal é, com efeito, a impressão que produzirá em todos os que se derem ao trabalho de a estudar. Sem aceitar a sua parte experimental que, para os espíritas, é a prova material da verdade de seus princípios, eles aí verão um poderoso auxiliar para a reforma dos abusos contra os quais se levantam todos os dias. Em vez de fanáticos de um novo gênero, verão em todos os espíritas, cujo número aumenta sem cessar, um exército que combate pelo mesmo objetivo, embora com outras armas. Mas, que lhes importam os meios, se o resultado é o mesmo?

Sua ignorância das tendências do Espiritismo é tal que nem mesmo sabem que é uma doutrina liberal, emancipadora da inteligência, inimiga da fé cega, que vem proclamar a liberdade de consciência e o livre-exame como base essencial de toda crença séria. Não sabem sequer que foi o primeiro a inscrever em sua bandeira esta máxima imortal: Fora da caridade não há salvação, princípio de união e de fraternidade universais, único que pode pôr um termo aos antagonismos dos povos e das crenças; enquanto o creem puerilmente absorvido com uma mesa que gira, não suspeitam que a criança deixou os brinquedos pela armadura, que cresceu e que agora abarca todas as questões que interessam ao progresso da Humanidade. Não falta aos seus adversários desinteressados e de boa-fé  senão conhecê-lo, para o julgar de modo diverso por que o fazem. Se refletissem na rapidez de sua propagação, que nada pode entravar, chegariam à conclusão de que não pode ser o efeito de uma ideia completamente oca; e mesmo que encerrasse uma única verdade, se essa verdade é capaz de mexer em tantas consciências, merece ser levada em consideração; que se causa tanto pavor em certo mundo, é que não o consideram como uma fumaça inútil.

O artigo referido acima constata, além disso, um fato importante: é que a interdição lançada contra esse livrinho pelo clero do interior serviu para o propagar, o que não podia deixar de ocorrer, tão poderosa é a sedução do fruto proibido. Pensa o autor do artigo, e com razão, que se fosse condenado pela congregação do Índex, sediada em Roma, adquiriria uma notoriedade não pretendida pelo Sr. Loth. Ele ignora que as obras fundamentais da doutrina tiveram esse privilégio, e que foi graças aos raios lançados contra a Doutrina em nome desse Índex que esses livros foram procurados nos meios onde eram desconhecidos. Fizeram esta reflexão muito natural: quanto mais forte trovejam, mais importante a coisa devia ser; leram-nos primeiro por curiosidade; depois, como ali encontrassem coisas boas, os aceitaram. Isto pertence à História.

Caráter da Revelação Espírita

Por Allan Kardec

Muitas pessoas consideraram o artigo publicado sob esse título em setembro de 1867 e que, completado, forma o primeiro capítulo de A Gênese, como adequado a dar a conhecer o verdadeiro caráter da Doutrina Espírita e, ao mesmo tempo, como uma refutação de certas críticas. Em consequência, elas pensavam que seria útil à propagação da ideia espalhar esse artigo. Para aquiescer ao seu desejo, fizemos uma tiragem à parte do primeiro capítulo de A Gênese, numa brochura que será entregue nas mesmas condições que a Simples Expressão [3], isto é, a 15 c; pelo correio, 20 c. Dez exemplares em conjunto, 2 fr., ou 10 c. por exemplar; pelo correio, 2 fr. 60 c.

Tendo sofrido atraso, a tiragem desta brochura atualmente está terminada.

Segunda Edição de A Gênese

Estando quase esgotada a primeira edição de A Gênese, neste momento procede-se à tiragem da segunda edição, na qual não foi feita nenhuma alteração.

Nota — Pela tarifa indicada no número de janeiro, para as despesas postais desta obra para o estrangeiro, as da Suíça foram, por equívoco, elevadas em 1 franco, conforme a antiga tarifa. Hoje não passam de 60 centavos.

Os Pensamentos do Zuavo Jacob

1 volume in-12, de 220 páginas. Preço: 2 fr. 50 c.; pelo correio, 2 fr. 75 c.

No editor, 70, rue Bonaparte, Paris.

Estando este número no prelo quando nos chegou o livro do Sr. Jacob, adiamos o seu comentário para o próximo número.

Psiché

Giornale di Studi Psicologici

Pubblicato sotto la direzione del signor Pietro Cassella

Esse jornal circulará nos dias 1º e 15 de cada mês, a partir de 1º de março próximo, em Nápoles, 49, Cagliardi alle Pigne, 2º piso. Preço: 6 fr. por ano; 3 francos por semestre.

Daremos mais detalhes no próximo número.

Allan Kardec




[1] As comunicações deste gênero são inumeráveis. Aqui só nos referimos a algumas, e se as publicamos hoje é que é chegado o momento de levar o fato ao conhecimento de todos, e porque é útil para os espíritas saber em que sentido se pronuncia a maioria dos Espíritos.

[2] Pequena brochura in-8 , de 150 páginas; preço: 1 fr. 25 c. — Pelo correio: 1 fr. 50 c. — Amiens, principais livrarias. Também nos escritórios da Revista Espírita.

[3] N. do T.: Kardec se refere ao opúsculo O Espiritismo na sua expressão mais simples.

Março de 1868

Comentários Sobre os Messias do Espiritismo

(Ver o número de fevereiro de 1868)

Tendo-nos sido dirigidas várias perguntas a respeito das comunicações sobre os messias, publicadas no último número da Revista, julgamos dever completá-las por alguns desenvolvimentos, que farão compreender melhor o seu sentido e o seu alcance.

1º — Como a primeira dessas comunicações recomendasse guardar segredo até nova ordem, embora a mesma coisa fosse ensinada em diferentes regiões, se não quanto à forma e as circunstâncias de detalhes, ao menos pelo fundo da ideia, perguntaram-nos se os Espíritos, num consentimento geral, tinham reconhecido a urgência desta publicação, o que teria uma significação de certa gravidade.

A opinião da maioria dos Espíritos é um poderoso controle para o valor dos princípios da Doutrina, mas não exclui o do julgamento e da razão, cujo uso sério todos os Espíritos recomendam. Quando o ensino se generaliza espontaneamente sobre uma questão, num determinado sentido, é indício certo de que essa questão chegou ao seu tempo; mas a oportunidade, no caso de que se trata, não é uma questão de princípio e julgamos não dever esperar o conselho da maioria para esta publicação, já que a sua utilidade nos estava demonstrada. Seria puerilidade crer que, fazendo abnegação de nossa iniciativa, não obedecêssemos, como instrumento passivo, senão a um pensamento que se nos impunha.

A ideia da vinda de um ou de vários messias era mais ou menos geral, mas encarada sob pontos de vista mais ou menos errôneos, por força das circunstâncias de detalhes, contidos em certas comunicações, e de uma assimilação demasiado literal, por parte de alguns, com as palavras do Evangelho sobre o mesmo assunto. Esses erros podiam ter inconvenientes materiais, cujos sintomas já se faziam sentir; importava, pois, não deixar que se propagassem. Eis por que julgamos útil dar a conhecer o verdadeiro sentido no qual essa previsão era entendida pela maioria dos Espíritos, retificando, assim, pelo ensinamento geral, o que o ensino isolado podia ter de parcialmente defeituoso.

2º — Disseram que os messias do Espiritismo, vindo após a sua constituição, apenas secundário seria o seu papel, e se perguntaram se este era bem o caráter dos messias. Aquele que Deus encarrega de uma missão pode vir utilmente quando o objeto de sua missão está realizado? Não seria como se o Cristo tivesse vindo depois do estabelecimento do Cristianismo, ou como se o arquiteto encarregado da construção de uma casa chegasse quando esta estivesse construída?

A revelação espírita deveria realizar-se em condições diferentes de suas irmãs mais velhas, porque as condições da Humanidade não são as mesmas. Sem voltar ao que foi dito a respeito dos caracteres desta revelação, lembramos que em vez de ser individual, ela devia ser coletiva e, ao mesmo tempo, produto do ensino dos Espíritos e do trabalho inteligente do homem; não devia ser localizada, mas fincar raízes simultaneamente em todos os pontos do globo. Esse trabalho se realiza sob a direção dos grandes Espíritos, que receberam missão  de presidir à regeneração da Humanidade. Se não cooperam na obra como encarnados, nem por isso deixam de dirigir os trabalhos como Espíritos, como disso temos as provas. Seu papel de messias, portanto, não se apagou, pois que o realizam antes de sua encarnação e não é senão maior. Sua ação, como Espíritos, é mesmo mais eficaz, porque podem estendê-la a toda parte, ao passo que, como encarnados, é necessariamente circunscrita. Hoje eles fazem, como Espíritos, o que o Cristo fazia como homem: ensinam, mas pelas mil vozes da mediunidade; a seguir virão fazer, como homens, o que o Cristo não pôde fazer: instalar sua doutrina.

A instalação de uma doutrina chamada a regenerar o mundo não pode ser obra de um dia, e a vida de um homem não bastaria para isto. Primeiro é preciso elaborar os princípios ou, se se quiser, confeccionar o instrumento; depois limpar o terreno dos obstáculos e lançar os primeiros fundamentos. Que fariam esses Espíritos na Terra durante o trabalho, de certo modo material, de limpeza? Sua vida se consumiria nessa luta. Assim, eles virão mais utilmente quando a obra estiver elaborada e o terreno preparado; a eles, então, incumbirá pôr a última demão ao edifício e o consolidar; numa palavra, fazer frutificar a árvore que tiver sido plantada. Mas, enquanto esperam, não estão inativos: dirigem os trabalhadores. A encarnação não será, pois, senão uma fase de sua missão. Só o Espiritismo podia fazer compreender a cooperação dos Espíritos da erraticidade numa obra terrestre.

3º — Além disso, perguntaram se não seria para temer que o anúncio desses messias não tentassem alguns ambiciosos, que se atribuiriam pretensas missões, e realizariam esta predição: Haverá falsos cristos e falsos profetas?

A resposta disto é muito simples; está inteirinha no capítulo XXI de O Evangelho segundo o Espiritismo. Lendo esse capítulo, ver-se-á que o papel do falso cristo não é tão fácil quanto se poderia supor, porque aqui é o caso de dizer que o hábito não faz o monge. Em todos os tempos houve intrigantes que se quiseram fazer passar por aquilo que não eram; sem dúvida podem imitar a forma exterior, mas, quando se trata de justificar o fundo, sucede com eles o que se dá com o jumento vestido com pele de leão.

Diz o bom-senso que Deus não pode escolher seus messias entre os Espíritos vulgares, mas entre os que sabe capazes de realizar seus desígnios. O que pretendesse ter recebido tal favor deveria, então, justificá-lo pela eminência de suas capacidades e de suas virtudes, e sua presunção seria o primeiro desmentido dado a essas mesmas virtudes. Que diriam de um versejador que se desse como o príncipe dos poetas? Dar-se por cristo ou messias seria dizer-se o homem mais virtuoso do Universo, e não se é virtuoso quando não se é modesto.

É verdade que a virtude é simulada pela hipocrisia; mas há uma coisa que desafia toda imitação: é o gênio, porque deve afirmar-se por obras positivas; quanto à virtude de fachada, é uma comédia que não se pode representar muito tempo sem se trair. Na primeira linha das qualidades morais que distinguem o verdadeiro missionário de Deus, deve-se colocar a humildade sincera, o devotamento sem limites e sem segundas intenções, o desinteresse material e moral absoluto, a abnegação da personalidade, virtudes pelas quais não brilham nem os ambiciosos, nem os charlatães, que, antes de tudo, buscam a glória ou o lucro. Podem ter inteligência e dela precisam para vencer pela intriga; mas não é essa inteligência que coloca o homem acima da Humanidade terrestre. Se o Cristo voltasse a encarnar na Terra, viria com todas as suas virtudes. Se, pois, alguém se desse por ele, deveria igualá-lo em tudo. Uma só qualidade de menos bastaria para desmascarar a impostura.

Assim como se reconhece a qualidade da árvore por seu fruto, o verdadeiro messias será reconhecido pela qualidade de suas obras, e não por suas pretensões. Não são os que se proclamam, porque, talvez, eles próprios se ignorem; vários estarão na Terra sem ter sido reconhecidos. É vendo o que terão sido e o que terão feito que os homens dirão, como disseram do Cristo: Aquele devia ser um messias.

Há cem pedras-de-toque para reconhecer os messias e os profetas de contrabando. A definição do caráter dos que são verdadeiros é antes feita para desencorajar os contrafatores, do que para os excitar a representar um papel que não têm força para desempenhar, e só lhes acarretaria dissabores. É, ao mesmo tempo, dar aos que tentassem abusar os meios de evitar serem vítimas de sua velhacaria.

4º — Parece que algumas pessoas temeram que a qualificação de messias  espalhasse sobre a Doutrina um verniz de misticismo.

Para quem conhece a Doutrina, ela é, de ponta a outra, um protesto contra o misticismo, pois tende a reconduzir todas as crenças para o terreno positivo das leis da Natureza. Mas, entre os que não a conhecem, há pessoas para as quais tudo o que sai da humanidade tangível é místico. Não temos que nos preocupar com a sua opinião.

A palavra messias  é empregada pelo Espiritismo em sua acepção literal de mensageiro, enviado, abstração feita da ideia de redenção e de mistério,  particular aos cultos cristãos. O Espiritismo não tem que discutir esses dogmas, que não são de sua alçada; diz o sentido no qual emprega essa palavra, para evitar qualquer equívoco, deixando cada um crer conforme a sua consciência, que não procura perturbar.

Assim, para o Espiritismo, todo Espírito encarnado para cumprir uma missão especial junto à Humanidade é um messias, na acepção geral da palavra, isto é, um missionário  ou enviado, com a diferença, entretanto, que o vocábulo messias  implica mais particularmente a ideia de uma missão direta da Divindade e, consequentemente, a da superioridade do Espírito e da importância da missão. Daí se segue que há uma distinção a fazer entre os messias  propriamente ditos, e os Espíritos simples missionários. O que os distingue é que, para uns, a missão ainda é uma prova, porque podem falir, enquanto para os outros é um atributo de sua superioridade. Do ponto de vista da vida corporal, os messias entram na categoria das encarnações ordinárias de Espíritos, e a palavra não tem qualquer caráter de misticismo.

Todas as grandes épocas de renovação viram aparecer messias encarregados de dar impulso ao movimento regenerador e o dirigir. Sendo a época atual uma das de maiores transformações da Humanidade, terá também os seus messias, que a presidem já como Espíritos, e terminarão sua missão como encarnados. Sua vinda não será marcada por nenhum prodígio, e Deus, para os tornar conhecidos, não perturbará a ordem das leis da Natureza. Nenhum sinal extraordinário aparecerá no céu, nem na Terra, e não serão vistos descendo das nuvens, acompanhados por anjos. Nascerão, viverão e morrerão como o comum dos homens, e sua morte não será anunciada ao mundo nem por terremotos, nem pelo obscurecimento do Sol; nenhum sinal exterior os distinguirá, assim como o Cristo, em vida, não se distinguia dos outros homens. Nada, pois, os assinalará à atenção pública, a não ser a grandeza de suas obras, a sublimidade de suas virtudes, e a parte ativa e fecunda que tomarão na fundação da nova ordem de coisas. A antiguidade pagã deles fez deuses; a História os colocará no Panteão dos grandes homens, dos homens de gênio, mas, sobretudo, entre os homens de bem, cuja memória será honrada pela posteridade.

Tais serão os messias do Espiritismo; grandes homens entre os homens, grandes Espíritos entre os Espíritos, marcarão sua passagem por prodígios da inteligência e da virtude, que atestam a verdadeira superioridade, muito mais que a produção de efeitos materiais que qualquer um pode realizar. Este quadro um pouco prosaico talvez faça caírem algumas ilusões; mas é assim que as coisas se passarão, muito naturalmente, e os seus resultados não serão menos importantes por não serem rodeados das formas ideais e um tanto maravilhosas, com que certas imaginações se comprazem em os cercar.

Dissemos os messias  porque, com efeito, as previsões dos Espíritos anunciam que haverá vários, o que nada tem de admirável, segundo o sentido ligado a essa palavra, e em razão da grandeza da tarefa, pois que se trata, não do adiantamento de um povo ou de uma raça, mas da regeneração da Humanidade inteira. Quantos serão? Uns dizem três, outros mais, outros menos, o que prova que a coisa está nos segredos de Deus. Um deles terá supremacia? É ainda o que pouco importa, o que até seria perigoso saber antecipadamente.

A vinda do Messias, como fato geral, está anunciada, porque era útil que dela se estivesse prevenido; é uma garantia do futuro e um motivo de tranquilidade, mas as individualidades não devem revelar-se senão por seus atos. Se alguém deve abrigar a infância de um deles, o fará inconscientemente, como para o primeiro vindo; assisti-lo-á e o protegerá por pura caridade, sem a isto ser solicitado por um sentimento de orgulho, do qual talvez não pudesse defender-se, que mau grado seu resvalaria para o coração e lhe faria perder o fruto de sua ação. Seu devotamento talvez não fosse tão desinteressado moralmente quanto ele próprio o imaginasse.

Além disso, a segurança do predestinado exige que ele seja coberto por um véu impenetrável, porque ele terá seus Herodes. Ora, um segredo só é bem guardado quando ninguém o conhece. Portanto, ninguém deve conhecer sua família, nem o lugar de seu nascimento, e os próprios Espíritos vulgares não sabem. Nenhum anjo virá anunciar sua vinda à sua mãe, porque esta não deve fazer diferença entre ele e os outros filhos; magos não virão adorá-lo em seu berço e lhe oferecer ouro e incenso, porque ele não deve ser saudado senão quando tiver dado suas provas. Será protegido pelos invisíveis, encarregados de velar por ele, e conduzido à porta onde deverá bater, e o dono da casa não reconhecerá aquele que receberá em seu lar.

Falando do novo Messias, disse Jesus: “Se alguém vos disser: o Cristo está aqui, ou está ali, não vades lá, porque lá não estará.” Deve-se, pois, desconfiar das falsas indicações que têm por fim ludibriar, com vistas a fazer procurá-lo onde ele não está. Uma vez que não é permitido aos Espíritos revelar o que deve ficar secreto, toda comunicação circunstanciada sobre este ponto deve ser tida por suspeita, ou como uma provação para quem a recebe.

Pouco importa, pois, o número dos messias; só Deus sabe o que é necessário. Mas o que é indubitável é que ao lado dos messias propriamente ditos, Espíritos superiores, em número ilimitado, encarnar-se-ão, ou já estão encarnados, com missões especiais, para os secundar. Surgirão em todas as classes, em todas as posições sociais, em todas as seitas e em todos os povos. Havê-los-á nas ciências, nas artes, na literatura, na política, nos chefes de estado, enfim por toda parte onde sua influência possa ser útil à difusão das ideias novas e às reformas que serão a sua consequência. A autoridade de sua palavra será maior ainda, porque fundada na estima e na consideração de que serão cercados.

Mas, interrogarão, nessa multidão de missionários de todas as categorias, como distinguir os messias? Que importa se os distinguirmos ou não? Eles não vêm à Terra para aí se fazerem adorar, nem para receber as homenagens dos homens. Não trarão, pois, nenhum sinal na fronte; mas, assim como pela obra se reconhece o artífice, dirão após a sua partida: Aquele que fez a maior quota de bem deve ser o maior.

Sendo o Espiritismo o principal elemento regenerador, importava que o instrumento estivesse pronto, quando vierem os que dele devem servir-se. É o trabalho que se realiza neste momento, e que os precede de pouco; mas, antes, é preciso que a grade tenha passado na terra para purgá-la das ervas parasitas que abafariam o bom grão.

É sobretudo o século vinte que verá florescerem os grandes apóstolos do Espiritismo, e que poderá ser chamado o século dos messias. Então a antiga geração terá desaparecido e a nova estará em toda a sua pujança; a Humanidade, livre de suas convulsões e formada de elementos novos ou regenerados, entrará definitivamente e pacificamente na fase do progresso moral, que deve elevar a Terra na hierarquia dos mundos.


 

Correspondência Inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia

Os espíritas são numerosos em São Petersburgo e contam entre si homens sérios e esclarecidos, que compreendem o objetivo e o elevado alcance humanitário da doutrina. Um deles, que não tínhamos a honra de conhecer, houve por bem nos dirigir um documento, tanto mais precioso para a história do Espiritismo, quanto era desconhecido e toca nas mais altas regiões sociais. Eis o que diz o nosso honrado correspondente, na carta que nos enviou:

“A Biblioteca Imperial de São Petersburgo publicou, em 1858, num pequeno número de exemplares, uma coletânea de cartas inéditas do célebre fisionomista Lavater. Essas cartas, até então desconhecidas na Alemanha, foram dirigidas à imperatriz Maria da Rússia, esposa de Paulo I e avó do imperador reinante. A leitura dessas cartas me impressionou pelas ideias filosóficas, eminentemente espíritas, que encerram, sobre as relações que existem entre o mundo visível e o mundo invisível, a mediunidade intuitiva e a influência dos fluidos que a produzem.

“Presumindo que estas cartas, provavelmente desconhecidas na França, poderiam interessar aos espíritas esclarecidos desse país, mostrando-lhes que suas convicções íntimas eram partilhadas pelo eminente filósofo suíço e por duas cabeças coroadas, tomo a liberdade, senhor, de vos remeter anexa a tradução quase literal dessas cartas, que talvez julgueis oportuno inserir em vossa sábia e tão interessante publicação mensal.

“Aproveito a ocasião, senhor, para vos exprimir os sentimentos de minha profunda e perfeita estima, partilhada pelos espíritas sinceros de todos os países, que sabem dignamente apreciar os serviços eminentes que o vosso zelo infatigável prestou ao desenvolvimento científico e à propagação da sublime e tão consoladora Doutrina Espírita. Esta terceira revelação terá por consequência a regeneração, o progresso moral e a consolidação da fé na pobre Humanidade, infelizmente extraviada, e que flutua entre a dúvida e a indiferença, em matéria de religião e de moral.”

W. de F.

Publicamos integralmente o manuscrito do Sr. de F. Sua extensão nos obriga a dele fazer objeto de três artigos.

Preâmbulo

No castelo do grão-duque de Pawlowsk, situado a vinte e quatro quilômetros de Petersburgo, onde o imperador Paulo da Rússia passou os mais felizes anos de sua vida, e que, em consequência, tornou-se a residência favorita da imperatriz Maria, sua augusta viúva, verdadeira benfeitora da humanidade sofredora, acha-se uma seleta biblioteca, fundada pelo casal imperial, na qual, entre muitos tesouros científicos e literários, se encontra um pacote de cartas do próprio punho de Lavater, que ficaram desconhecidas dos biógrafos do célebre fisionomista.

Estas cartas são datadas de Zurique, em 1798. Dezesseis anos antes, Lavater tivera oportunidade, naquela cidade e em Schaffouse, de conhecer o conde e a condessa do Nord (título sob o qual o grão-duque da Rússia e sua esposa viajavam pela Europa), e, de 1796 a 1800, ele mandara à Rússia, endereçada à imperatriz Maria, reflexões sobre a fisionomia, às quais juntava cartas, tendo por objetivo descrever o estado da alma depois da morte.

Nessas cartas, Lavater toma como ponto de partida que uma alma, tendo deixado seu corpo, inspira suas ideias a um homem de sua escolha, apto para a luz (lichtfaehing) e lhe faz escrever cartas dirigidas a um amigo que ficou na Terra, para o instruir sobre o estado em que ela se encontra.

Estas cartas inéditas de Lavater foram descobertas durante uma verificação na biblioteca grão-ducal, pelo doutor Minzloff, bibliotecário da biblioteca imperial de Petersburgo, e por ele postas em ordem. Com a autorização do detentor atual do castelo de Pawlowsk, Sua Alteza Imperial o grão-duque Constantino, e sob os auspícios esclarecidos do barão de Korff, atualmente membro do conselho do império, antigo diretor-chefe dessa biblioteca, que lhe deve seus mais notáveis melhoramentos, elas foram publicadas em 1858, em Petersburgo, sob o título: Johann-Kaspar Lavater’s briefe, an die Kaïserin Maria Feodorowna, gemahlin kaïser Paul I von Russland (Cartas de João Gaspar Lavater à imperatriz Maria Feodorowna, esposa do imperador Paulo I da Rússia). Essa carta foi impressa por conta da biblioteca imperial e oferecida em homenagem ao senado da Universidade de Iena, por ocasião do 300o aniversário de sua fundação.

Essas cartas, em número de seis, apresentam o mais alto interesse, por provarem positivamente que as ideias espíritas e, notadamente, a possibilidade das relações entre o mundo espiritual e o mundo material, já germinavam na Europa há bem setenta anos, e que não só o célebre fisionomista tinha convicção dessas relações, mas era ele próprio o que no Espiritismo se chama médium intuitivo, isto é, um homem que recebia por intuição as ideias dos Espíritos e transcrevia suas comunicações. As cartas de um amigo morto, que Lavater juntara às suas, são eminentemente espíritas. Elas desenvolvem e esclarecem de maneira tão engenhosa quanto espiritual, as ideias fundamentais do Espiritismo, e vêm apoiar tudo o que esta doutrina oferece de mais racional, de mais profundamente filosófico, religioso e consolador para a Humanidade. As pessoas que não conhecem o Espiritismo poderão supor que essas cartas de um Espírito ao seu amigo da Terra não passam de uma forma poética, que Lavater dá às suas próprias ideias espiritualistas; mas os que são iniciados nas verdades do Espiritismo as encontrarão nessas comunicações, tais como foram e ainda são dadas pelos Espíritos, por meio de diferentes médiuns intuitivos, audientes, escreventes, falantes, extáticos, etc. Não é natural supor que Lavater tenha podido conceber ele próprio e expor com tão grande lucidez e tanta precisão, ideias abstratas e tão elevadas sobre o estado da alma após a morte, e seus meios de comunicação com os Espíritos encarnados, isto é, os homens. Essas ideias não podiam provir senão dos próprios Espíritos desencarnados. É incontestável que um deles, tendo guardado sentimentos de afeição por um amigo ainda habitante da Terra, lhe deu, por intermédio de um médium intuitivo (talvez o próprio Lavater fosse esse amigo), noções sobre esse assunto, para o iniciar nos mistérios do túmulo, na medida do que é permitido a um Espírito desvendar aos homens, e que estes estejam em estado de compreender.

Damos aqui a tradução exata das cartas de Lavater, escritas em alemão, bem como das comunicações de além-túmulo, que dirigia à imperatriz Maria, conforme o desejo que esta havia manifestado, de conhecer as ideias do filósofo alemão sobre o estado da alma após a morte do corpo.

Primeira Carta

Sobre o Estado da Alma Após a Morte

Ideias Gerais

Mui venerada Maria da Rússia!

Dignai-vos conceder-me permissão para não vos dar o título de majestade, que vos é devido da parte do mundo, mas que não se harmoniza com a santidade do assunto que desejastes que eu vos entretivesse, e a fim de vos poder escrever com franqueza e inteira liberdade.

Desejais conhecer algumas das minhas ideias sobre o estado das almas após a morte.

A despeito do pouco que é dado saber sobre isto ao mais douto entre nós, já que nenhum dos que partiram para o país desconhecido de lá voltou, o homem pensante, o discípulo dAquele que do céu desceu entre nós, está, no entanto, em condições de dizer, sobre isto, tanto quando nos é necessário saber para nos encorajar, nos tranquilizar e nos fazer refletir.

Desta vez limitar-me-ei a vos expor, a respeito, algumas das ideias mais gerais.

Penso que deve existir uma grande diferença entre o estado, a maneira de pensar e de sentir de uma alma separada de seu corpo material, e o estado no qual se encontrava durante sua união com este último. Essa diferença deve ser, no mínimo, tão grande quanto a que existe entre o estado de um recém-nascido e o de uma criança vivendo no seio materno.

Estamos ligados à matéria, e são os nossos sentidos e os nossos órgãos que dão à nossa alma as percepções e o entendimento.

Conforme a diferença que exista entre a construção do telescópio, do microscópio e dos óculos, de que se servem os nossos olhos para ver, os objetos que olhamos por seu intermédio nos aparecem sob uma forma diferente. Nossos sentidos são os telescópios, os microscópios e os óculos necessários à nossa vida atual, que é uma vida material.

Creio que o mundo visível deve desaparecer para a alma separada de seu corpo, assim como lhe escapa durante o sono. Ou então o mundo, que a alma entrevia durante sua existência corporal, deve aparecer à alma desmaterializada sob um aspecto completamente diverso.

Se, durante algum tempo, ela pudesse ficar sem corpo, o mundo material não existiria para ela. Mas se ela for, logo depois de haver deixado o seu corpo — o que acho muito verossímil — provida de um corpo espiritual, que teria retirado do seu corpo material, o novo corpo lhe dará indispensavelmente uma percepção muito diferente das coisas. Se, o que facilmente pode acontecer às almas impuras, esse corpo ficasse, durante algum tempo, imperfeito e pouco desenvolvido, todo o Universo apareceria à alma num estado de perturbação, como se fosse visto através de um vidro fosco.

Mas se o corpo espiritual, o condutor e o intermediário de suas novas impressões, fosse ou se tornasse mais desenvolvido ou mais bem organizado, o mundo da alma lhe pareceria, conforme a natureza e as qualidades de sua harmonia e de sua perfeição, mais regular e mais belo.

Os órgãos se simplificam, adquirem harmonia entre si e são mais apropriados à natureza, ao caráter, às necessidades e às forças da alma, conforme ela se concentre, se enriqueça e se depure aqui na Terra, perseguindo um só objetivo e agindo num sentido determinado. Existindo na Terra, a alma aperfeiçoa, ela mesma, as qualidades do corpo espiritual, do veículo no qual continuará a existir após a morte de seu corpo material, e que lhe servirá de órgão para conceber, sentir e agir em sua nova existência. Esse novo corpo, apropriado à sua natureza íntima, a tornará pura, amante, vivaz e apta a mil belas sensações, impressões, contemplações, ações e gozos.

Tudo o que se pode, e tudo o que ainda não podemos dizer sobre o estado da alma após a morte, sempre se baseará neste único axioma, permanente e geral: O homem recolhe o que semeou.

É difícil encontrar um princípio mais simples, mais claro, mais abundante e mais próprio a ser aplicado a todos os casos possíveis.

Existe uma lei geral da Natureza, estreitamente ligada, mesmo idêntica, ao princípio acima mencionado, concernente ao estado da alma após a morte, uma lei equivalente em todos os mundos, em todos os estados possíveis, no mundo material e no mundo espiritual, visível e invisível, a saber:

“O que se assemelha tende a se reunir. Tudo o que é idêntico se atrai reciprocamente, se não existirem obstáculos que se oponham a sua união.”

Toda a doutrina sobre o estado da alma após a morte é baseada neste simples princípio. Tudo quanto chamamos ordinariamente: julgamento prévio, compensação, felicidade suprema, danação, pode ser explicado desta maneira: “Conforme semeaste o bem em ti mesmo, nos outros e fora de ti, pertencerás à sociedade dos que, como tu, semearam o bem em si mesmos e fora de si; gozarás da amizade daqueles com os quais te assemelhaste em sua maneira de semear o bem.”

Cada alma separada de seu corpo, livre das cadeias de matéria, aparece a si mesma tal qual é na realidade. Todas as ilusões, todas as seduções que a impedem de se reconhecer e de ver suas forças, suas fraquezas e seus defeitos desaparecerão. Experimentará uma tendência irresistível para se dirigir às almas que se lhe assemelham e afastar-se das que lhe são desiguais. Seu próprio peso interior, como obedecendo à lei da gravitação, a atrairá para abismos sem fundo (pelo menos é assim que lhe parecerá); ou, então, conforme o grau de sua pureza, ela se precipitará nos ares, como uma fagulha levada por sua leveza, e passará rapidamente pelas regiões luminosas, fluídicas e etéreas.

A alma se dá a si mesma um peso que lhe é próprio, por seu sentido interior; seu estado de perfeição a impele para frente, para trás ou para o lado; seu próprio caráter, moral ou religioso, lhe inspira certas tendências particulares. O bom se elevará para os bons; a necessidade que sente do bem o atrairá para eles. O mau é forçosamente impelido para os maus. A queda precipitada das almas grosseiras, imorais e irreligiosas para as almas que se lhes assemelham, será também tão rápida e inevitável quanto a queda de uma bigorna num abismo, quando nada a detém.

Por ora é bastante.

João Gaspar Lavater

Zurique, 1º de agosto de 1798

(Com a permissão de Deus, continua semanalmente.)

Segunda Carta

As necessidades experimentadas pelo espírito humano, durante seu exílio no corpo material, continuam as mesmas, logo depois que o deixou. Sua felicidade consistirá na possibilidade de poder satisfazer suas necessidades espirituais; sua danação, na impossibilidade de poder satisfazer seus apetites carnais, num mundo menos material.

As necessidades não satisfeitas constituem a danação; sua satisfação constitui a felicidade suprema.

Gostaria de dizer a cada homem: “Analisa a natureza de tuas necessidades; dá-lhes o seu verdadeiro nome; pergunta a ti mesmo: são admissíveis num mundo menos material? Podem aí encontrar sua satisfação? E se, verdadeiramente, aí pudessem ser contentadas, seriam as que um Espírito intelectual e imortal possa honestamente confessar e desejar a sua satisfação, sem sentir uma profunda vergonha diante de outros seres intelectuais e imortais como ele?

A necessidade que sente a alma de satisfazer as aspirações espirituais de outras almas imortais; de lhes proporcionar os puros deleites da vida, de lhes inspirar a segurança de sua existência após a morte, de cooperar assim no grande plano da sabedoria e do amor supremos, o progresso adquirido por essa nobre atividade, tão digna do homem, assim como o desejo desinteressado do bem, dão às almas humanas a aptidão, e, portanto, o direito  de serem recebidas nos grupos e nos círculos de Espíritos mais elevados, mais puros, mais santos.

Mui veneranda imperatriz, quando temos a íntima persuasão de que a necessidade mais natural e, no entanto, muito rara, que possa nascer numa alma imortal: a de Deus, a necessidade de dele se aproximar cada vez mais, sob todos os respeitos e de se assemelhar ao Pai invisível de todas as criaturas, é uma vez tornada predominante em nós, oh! então não devemos experimentar o menor receio concernente ao nosso estado futuro, quando a morte nos tiver desembaraçado de nosso corpo, esse muro espesso que nos ocultava Deus. Esse corpo material, que nos separava dele, está caído, e o véu que nos escondia a vista do mais santo dos santos está rasgado. O Ser adorável, que amávamos acima de tudo, com todas as suas graças resplandecentes, terá então livre acesso em nossa alma dele faminta e o recebendo com alegria e amor.

Logo que o amor sem limites por Deus tiver triunfado em nossa alma, em consequência dos esforços que ela tiver feito para dele se aproximar e a ele se parecer em seu amor vivificante da Humanidade, e por todos os meios que tinha em seu poder, essa alma, desembaraçada de seu corpo, passando necessariamente por muitos degraus para se aperfeiçoar sempre mais, subirá com uma facilidade e uma rapidez espantosas para o objeto de sua mais profunda veneração e seu amor ilimitado, para a fonte inesgotável e a única suficiente para a satisfação de todas as suas necessidades, de todas as suas aspirações.

Nenhum olho fraco, doente ou velado está em condições de olhar o Sol de frente; do mesmo modo, nenhum Espírito não depurado, ainda envolto no nevoeiro grosseiro de uma vida exclusivamente material, mesmo no momento de sua separação do corpo, não estaria em condições de suportar a vista do mais puro sol dos Espíritos, em sua claridade resplandecente, seu símbolo, seu foco, de onde escapam essas ondas de luz, que penetram mesmo os seres finitos do sentimento de sua infinidade.

Quem melhor que vós, senhora, sabe que os bons não são atraídos senão pelos bons! Que só as almas elevadas sabem fruir da presença de outras almas de escol! Todo homem que conhece a vida e os homens, aquele que muitas vezes foi obrigado a encontrar-se na companhia desses lisonjeadores desonestos, efeminados, baldos de caráter, sempre apressados em revelar e fazer valer a palavra mais insignificante, a menor alusão daqueles cujo favor disputam, ou então desses hipócritas, que procuram astuciosamente penetrar as ideias alheias, para em seguida as interpretar num sentido absolutamente contrário, aquele, digo eu, deve saber quanto essas almas vis e escravas se embaraçam subitamente a uma simples palavra pronunciada com firmeza e dignidade; quanto um só olhar severo os confunde, fazendo-lhes sentir profundamente que são conhecidos e julgados em seu justo valor! Como então se lhes torna penoso suportar a presença de um homem honesto! Nenhuma alma manhosa e hipócrita é feliz ao contato de uma alma proba e enérgica, que a penetre. Cada alma impura, tendo deixado o seu corpo, deve, segundo sua natureza íntima, como impulsionada por uma força oculta e invencível, fugir à presença de todo ser puro e luminoso, para lhe ocultar, tanto quanto possível, a vista de suas numerosas imperfeições, que não está em estado de ocultar a si própria, nem aos outros.

Mesmo que não tivesse sido escrito: “Ninguém, sem ser depurado, poderá ver o Senhor” , estaria perfeitamente na ordem das coisas. Uma alma impura se acha numa impossibilidade absoluta de entrar em qualquer relação com uma alma pura, nem de sentir por ela a menor simpatia. Uma alma assustada pela luz não pode, por isto mesmo, ser atraída para a fonte da luz. A claridade, privada de toda obscuridade, deve queimá-la como um fogo devorador.

E quais são as almas, senhora, que chamamos impuras? Penso que são aquelas nas quais o desejo de se depurarem, de se corrigirem e de se aperfeiçoarem jamais predominou. Penso que são aquelas que não estão submetidas ao princípio elevado do desinteresse em todas as coisas; as que se elegem como centro único de todos os seus desejos e de todas as suas ideias; as que se olham como o objeto de tudo o que está fora delas, que não buscam senão o meio de satisfazer suas paixões e seus sentidos; enfim, aquelas nas quais reinam o egoísmo, o orgulho, o amor-próprio e o interesse pessoal, que querem servir a dois mestres que se contradizem, e isto simultaneamente.

Penso que semelhantes almas, após a separação de seus corpos, devem achar-se no miserável estado de uma horrível contemplação de si mesmas; ou então, o que dá no mesmo, do desprezo profundo que sentem por si próprias, e serem arrastadas por uma força irresistível para a horrorosa sociedade de outras almas egoístas, condenando-se elas próprias incessantemente.

É o egoísmo que produz a impureza da alma e a faz sofrer. Ele é combatido em todas as almas humanas por alguma coisa que lhe é contrário, algo de puro, de divino: o sentimento moral. Sem esse sentimento, o homem não é capaz de nenhum prazer moral, de nenhuma estima, de nenhum desprezo por si mesmo, não compreendendo nem o céu, nem o inferno. Esta luz divina lhe torna insuportável toda obscuridade que descobre em si, e é a razão pela qual as almas delicadas, as que possuem o senso moral, sofrem mais cruelmente quando o egoísmo delas se apodera e subjuga esse sentimento.

Da concordância e da harmonia que subsistem no homem, entre ele próprio e a sua lei interior, dependem a sua pureza, a sua aptidão para receber a luz, sua felicidade, seu céu, seu Deus. Seu Deus lhe parece na sua semelhança consigo mesmo. Àquele que sabe amar, Deus aparece como o supremo amor, sob mil formas amantes. Seu grau de felicidade e sua aptidão a tornar felizes os outros são proporcionados ao princípio do amor que nele reina. Aquele que ama com desinteresse fica em harmonia incessante com a fonte de todo amor e com todos os que aí bebem o amor.

Tratemos de conservar em nós o amor em toda a sua pureza, senhora, e seremos sempre arrastados por ele para as almas mais amantes. Purifiquemo-nos todos os dias, cada vez mais, das manchas do egoísmo, e, então ainda que tivéssemos de deixar este mundo hoje mesmo ou amanhã, devolvendo à terra o nosso invólucro mortal, nossa alma tomará o seu voo com a rapidez do relâmpago para o modelo de todos os que amam, e se reunirá a eles com uma felicidade inexprimível.

Nenhum de nós pode saber em que se tornará sua alma após a morte do corpo e, no entanto, estou plenamente persuadido de que o amor depurado deve necessariamente dar ao nosso Espírito, liberto do corpo, uma liberdade sem limites, uma existência cêntupla, um gozo contínuo de Deus, e um poder ilimitado para tornar felizes todos os que estão aptos para desfrutar da felicidade suprema.

Oh! como é incomparável a liberdade moral do Espírito despojado de seu corpo! com que leveza a alma do ser amante, cercada de uma luz resplandecente, efetua a sua ascensão! Como a ciência infinita, como a força de se comunicar aos outros, se tornam o seu apanágio! Quanta luz jorra dela mesma! Que vida anima todos os átomos de que é formada! Torrentes de gozos se lançam de todos os lados ao seu encontro, para satisfazer suas necessidades mais puras e mais elevadas! Legiões inumeráveis de seres amantes lhe estendem os braços! Vozes harmoniosas se fazem ouvir nesses coros numerosos e radiantes de alegria e lhe dizem: “Espírito de nosso Espírito! Coração de nosso coração! Amor bebido na fonte de todo amor! Alma amante, tu nos pertences a nós todos, e nós somos todos de ti! Cada um de nós é teu e tu pertences a cada um de nós. Deus é amor e Deus é nosso. Estamos todos cheios de Deus e o amor encontra sua felicidade na felicidade de todos.”

Desejo ardentemente, mui venerada imperatriz, que vós, vosso nobre e generoso esposo, o imperador, tão voltados um e outro para o bem, e eu convosco, jamais possamos nos tornar estranhos ao amor que é Deus e homem ao mesmo tempo; que nos seja concedido nos prepararmos para os gozos, por nossas ações, nossas preces e nossos sofrimentos, aproximando-nos daquele que se deixou pregar na cruz do Gólgota.

João Gaspar Lavater

Zurique, 18 de agosto de 1798

(Continua proximamente, se Deus o permitir.)

Já se pode ver em que ordem de ideias Lavater escrevia à imperatriz Maria, e até que ponto possuía a intuição dos princípios do Espiritismo moderno. Poder-se-á julgá-lo melhor ainda pelo complemento dessa correspondência notável. Esperando as reflexões com que a seguiremos, cremos dever, desde já, fazer notar um fato importante: é que para sustentar uma correspondência sobre semelhante assunto com a imperatriz, era preciso que esta partilhasse dessas ideias, e várias circunstâncias não permitem duvidar que o mesmo se passava com o czar, seu esposo. Era a pedido dela, ou melhor, a pedido de ambos, que Lavater escrevia, e o tom de suas cartas prova que ele se dirigia a pessoas convictas. Como se vê, as crenças espíritas, nas altas regiões, não datam de hoje. Aliás, pode-se ver, na Revista de abril de 1866, o relato de uma aparição tangível de Pedro, o Grande, a esse mesmo Paulo I.

Lidas na Sociedade de Paris, as cartas de Lavater provocaram uma conversação a propósito. Paulo I, sem dúvida atraído pelo pensamento que na ocasião lhe era dirigido, manifestou-se espontaneamente e sem evocação, por um dos médiuns, ao qual ditou a seguinte comunicação.

(Sociedade de Paris, 7 de fevereiro de 1868 — Médium: Sr. Leymarie)

O poder é coisa pesada, e os aborrecimentos que deixa impressionam dolorosamente a nossa alma! Os dissabores são contínuos; é preciso conformar-se aos hábitos, às velhas instituições, ao preconceito, e Deus sabe quanta resistência é necessária para se opor a todos os apetites que vêm bater no trono, como ondas tumultuosas. Assim, que felicidade quando, deixando um instante essa túnica de Nessus, chamada realeza, a gente possa recolher-se a um lugar pacífico, a fim de poder repousar em paz, longe do ruído e do tumulto das ambições!

Minha cara Maria gostava da calma. Natureza sólida, doce, resignada, amante, teria preferido o esquecimento das grandezas para se devotar completamente à caridade, para estudar as altas questões filosóficas que eram da alçada de suas faculdades. Como ela, eu gostava desses recreios intelectuais; eram um bálsamo para as minhas feridas de soberano, uma força nova para me guiar no dédalo da política europeia.

Lavater, esse grande coração, esse grande Espírito, esse irmão predestinado, nos iniciava em sua sublime doutrina; suas cartas, que hoje possuís, eram por nós esperadas com ansiedade febril. Tudo o que elas encerram eram a miragem dos nossos ideais pessoais; líamos essas cartas queridas com uma alegria infantil, felizes por depor a nossa coroa, a sua gravidade, a sua etiqueta, para discutir os direitos da alma, sua emancipação e seu curso divino para o eterno.

Todas essas questões, hoje muito ardentes, nós as aceitamos há setenta anos; elas faziam parte de nossa vida, de nosso repouso. Muitos efeitos estranhos, aparições e ruídos tinham fortificado a nossa opinião a esse respeito. A imperatriz Maria via e ouvia os Espíritos; por eles ela tinha sabido dos acontecimentos passados a grandes distâncias. Um príncipe Lopoukine, morto em Kiew, a várias centenas de léguas, tinha vindo nos anunciar a sua morte, os incidentes que tinham precedido a sua partida, a expressão de suas últimas vontades. A imperatriz tinha escrito, ditado pelo Espírito Lopoukine, e só vinte dias depois se ficou sabendo na corte de todos os detalhes que possuíamos. Foram para nós uma confirmação estrondosa, e também a prova de que Lavater e nós éramos iniciados nas grandes verdades.

Hoje, conhecemos melhor, por vós, a Doutrina cuja base alargastes. Viremos vos pedir alguns instantes e vos agradecer antecipadamente, se vos dignardes escutar Maria da Rússia e aquele que teve o privilégio de a ter por companheira.

Paulo I


 

Flageolet — Espírito Mistificador

O fato seguinte nos é relatado por um dos nossos correspondentes de Maine-et-Loire, o Sr. doutor E. Champneuf. Embora em si mesmo o fato não saia do círculo dos fenômenos conhecidos de manifestações físicas, é instrutivo no sentido de provar, uma vez mais, a diversidade dos tipos que se encontram no mundo invisível, e que, aí entrando, certos Espíritos não se despojam imediatamente de seu caráter. É o que se ignorava, antes que o Espiritismo nos tivesse posto em relação com os habitantes desse mundo. Eis o relato que nos é dirigido:

“Permiti-me vos dar a conhecer um fato bastante curioso, não de um transporte, mas de uma subtração por um Espírito, produzida há oito dias em nosso meio.

Há um Espírito, freqüentador do nosso grupo de Saumur há vários anos, que, desde algum tempo, se fez ainda mais familiar do nosso grupo de Vernantes. Disse chamar-se Flageolet; mas nosso médium, pelo qual se fez reconhecer, e que, com efeito, o conheceu quando vivia neste mundo, nos disse que ele tinha o nome de Biron, violinista, muito corajoso, boêmio, correndo tabernas onde fazia dançar. É um Espírito leviano, mistificador, mas não é mau.

Assim, Flageolet instalou-se em casa de meu irmão, onde ocorrem nossas sessões. E os almoços e jantares são alegrados pelas árias tocadas, que lhe pedem ou não, feliz quando os copos e os pratos não são derrubados por seus gracejos deveras escandalosos.

Há oito dias meu irmão, que fuma bastante, tinha, como de ordinário, sua tabaqueira ao seu lado, sobre a mesa e, como também de costume, Flageolet assistia ao jantar de família. Após algumas árias e marchas, o Espírito se pôs a tocar a ária: Tenho bom tabaco em minha tabaqueira. Nesse momento meu irmão procurou a sua, que não estava mais ao seu lado; relanceou o olhar em torno de si, remexeu os bolsos, nada. A mesma ária continua com mais animação; ele se levanta, explora a mesinha da chaminé, os móveis, leva as investigações até os cômodos vizinhos e a ária da tabaqueira, cantada com mais vigor, o persegue com redobrada zombaria, à medida que ele se afasta e se anima em suas buscas. Se se aproxima da chaminé, as batidas tornam-se mais fortes e mais precipitadas. Enfim o procurador, irritado com essa harmonia impiedosa, pensa em Flageolet e lhe diz: — Foste tu que pegaste minha tabaqueira? — Sim. — Queres ma devolver? — Sim. — Pois bem! fala.

Tomaram o alfabeto e um lápis e o Espírito dita: ‘Eu a pus no fogo.’ Remexem as cinzas muito quentes e ali encontram, no fundo da lareira, a tabaqueira, cujo pó estava calcinado.

Todos os dias há alguma surpresa de sua parte ou algum truque à sua maneira. Há três dias ele nos deu a conhecer o conteúdo de um cesto bem amarrado, que acabava de chegar.

“Ontem à noite, era uma nova malícia contra meu irmão. Este, durante o dia, entrando em casa procura o boné que usa no interior e, não o encontrando, decide não pensar mais no caso. À noite, Flageolet, sem dúvida aborrecido de tocar suas árias sem que lhe dessem atenção, e sem que pensassem em o interrogar, pediu para escrever. Pusemo-nos à sua disposição e ele ditou:

“— Eu surrupiei teu barrete. — Queres dizer onde está? — Sim. — Onde o colocaste? — Eu o dei a Napoleão.

“Persuadidos de que era uma brincadeira do Espírito, perguntamos: — Qual? — O teu.

 “Desde alguns anos há uma estátua de Napoleão I, de médio porte, na sala onde se realizam as nossas sessões. Dirigimo-nos para a estátua, lâmpada na mão, e encontramos o boné desaparecido, que recobria o pequeno chapéu histórico.”

Observação — Tudo, no Espiritismo, é assunto de estudo para o observador sério; fatos aparentemente insignificantes têm sua causa e esta causa pode ligar-se aos mais importantes princípios. As grandes leis da Natureza não se revelam no menor inseto, como no animal gigantesco? no grão de areia que cai, como no movimento dos astros? O botânico despreza uma flor porque é humilde e sem brilho? Dá-se o mesmo na ordem moral, onde tudo tem o seu valor filosófico, como na ordem física tudo tem o seu valor científico.

Enquanto certas pessoas não verão no fato acima relatado senão uma coisa curiosa, divertida, um assunto de distração, outros aí verão uma aplicação da lei que rege a marcha progressiva dos seres inteligentes e colherão um ensinamento. Sendo o mundo invisível o meio onde fatalmente desemboca a Humanidade, nada do que pode ajudar a torná-lo conhecido poderia ser indiferente. O mundo corporal e o mundo espiritual, desaguando incessantemente um no outro, pelas mortes e pelos nascimentos, se explicam um pelo outro. Eis uma das grandes leis reveladas pelo Espiritismo.

O caráter desse Espírito não é o de uma criança travessa? Entretanto, em vida era um homem feito e mesmo de certa idade. Então alguns Espíritos retornariam crianças? Não; o Espírito realmente adulto não volta atrás, como o rio não remonta à sua fonte. Mas a idade do corpo não é absolutamente um índice da idade do Espírito. Como é necessário que todos os Espíritos que se encarnam passem pela infância corporal, resulta que em corpos de crianças se encontram, forçosamente, Espíritos adiantados. Ora, se esses Espíritos morrem prematuramente, revelam sua superioridade desde que se despojaram de seu envoltório. Pela mesma razão, um Espírito jovem, espiritualmente falando, não podendo chegar à maturidade no curso de uma existência, que é menos que uma hora em relação à vida do Espírito, um corpo adulto pode encerrar um Espírito criança, pelo caráter e pelo desenvolvimento moral.

Flageolet pertencia incontestavelmente a esta última categoria de Espíritos; avançará mais rapidamente que outros, porque apenas tem em si a leviandade, e no fundo não é mau. O meio sério no qual se manifesta, o contato de homens esclarecidos amadurecerão suas ideias; sua educação é uma tarefa que lhes incumbe, ao passo que nada ganharia com pessoas fúteis, que se teriam divertido com suas facécias, como com as de um palhaço.


 

Ensaio Teórico das Curas Instantâneas

De todos os fenômenos espíritas, um dos mais extraordinários é, sem contradita, o das curas instantâneas. Compreende-se as curas produzidas pela ação continuada de um bom fluido; mas se pergunta como esse fluido pode operar uma transformação súbita no organismo e, sobretudo, por que o indivíduo que possui essa faculdade não tem acesso sobre todos os que são atingidos pela mesma doença, admitindo que haja especialidades. A simpatia dos fluidos é uma razão, sem dúvida, mas que não satisfaz completamente, porque nada tem de positivo, nem de científico. Entretanto, as curas instantâneas são um fato, que não poderia ser posto em dúvida. Se não se tivesse em apoio senão exemplos dos tempos recuados, poder-se-ia, com alguma aparência de fundamento, considerá-los como lendários, ou, pelo menos, como amplificados pela credulidade; mas quando os mesmos fenômenos se reproduzem aos nossos olhos, no século mais céptico, a respeito das coisas sobrenaturais, a negação já não é possível, e se é forçado a neles ver, não um efeito miraculoso, mas um fenômeno que deve ter sua causa nas leis da Natureza, ainda desconhecidas.

A explicação seguinte, deduzida das indicações fornecidas por um médium em estado de sonambulismo espontâneo, está baseada em considerações fisiológicas, que nos parecem projetar luz nova sobre a questão. Ela foi dada por ocasião de uma pessoa atingida por graves enfermidades, e que perguntava se um tratamento fluídico lhe poderia ser salutar.

Por mais racional que nos pareça esta explicação, não a damos como absoluta, mas a título de hipótese e como tema de estudo, até que tenha recebido a dupla sanção da lógica e da opinião geral dos Espíritos, único controle válido das doutrinas espíritas, e que pode assegurar a sua perpetuidade.

Na medicação terapêutica são necessários remédios apropriados ao mal. Não podendo o mesmo remédio ter virtudes contrárias: ser, ao mesmo tempo, estimulante e calmante, muito picante e refrescante, não pode convir a todos os casos. É por isto que não existe um remédio universal.

Dá-se o mesmo com o fluido curador, verdadeiro agente terapêutico, cujas qualidades variam conforme o temperamento físico e moral dos indivíduos que o transmitem. Há fluidos que superexcitam e outros que acalmam, fluidos duros e outros suaves e de muitas outras nuanças. Segundo as suas qualidades, o mesmo fluido, como o mesmo remédio, poderá ser salutar em certos casos, ineficaz e mesmo nocivo em outros; de onde se segue que a cura depende, em princípio, da apropriação das qualidades do fluido à natureza e à causa do mal. Eis o que muitas pessoas não compreendem e porque se admiram que um curador não cure todos os males. Quanto às circunstâncias que influem sobre as qualidades intrínsecas dos fluidos, foram suficientemente desenvolvidas no capítulo XIV de A Gênese, sendo supérfluo aqui as relembrar.

A esta causa inteiramente física das não-curas, deve-se acrescentar uma, toda moral, que o Espiritismo nos dá a conhecer. É que a maioria das doenças, como todas as misérias humanas, são expiações do presente ou do passado, ou provas para o futuro; são dívidas contraídas, cujas consequências devem ser sofridas, até que tenham sido saldadas. Aquele, pois, que deve suportar sua provação até o fim não pode ser curado. Este princípio é um motivo de resignação para o doente, mas não deve ser uma desculpa para o médico que procurasse, na necessidade da provação, um meio cômodo para abrigar a sua ignorância.

Consideradas unicamente do ponto de vista fisiológico, as doenças têm duas causas, que até hoje não foram distinguidas, e que não podiam ser apreciadas antes dos novos conhecimentos trazidos pelo Espiritismo. É da diferença destas duas causas que ressalta a possibilidade das curas instantâneas, em casos especiais, e não em todos.

Certas moléstias têm sua causa original na própria alteração dos tecidos orgânicos; é a única que a Ciência admite até hoje. E como, para a remediar, não conhece senão as substâncias medicamentosas tangíveis, não compreende a ação de um fluido impalpável, tendo a vontade como propulsor. Entretanto, aí estão os curadores magnéticos para provar que não é uma ilusão.

Na cura das doenças desta natureza, pelo influxo fluídico, há substituição das moléculas orgânicas mórbidas por moléculas sadias. É a história de uma velha casa, cujas pedras carcomidas são substituídas por boas pedras; tem-se sempre a mesma casa, mas restaurada e consolidada. A torre Saint-Jacques e Notre-Dame de Paris acabam de sofrer um tratamento deste gênero.

A substância fluídica produz um efeito análogo ao da substância medicamentosa, com esta diferença: sendo maior a sua penetração, em razão da tenuidade de seus princípios constituintes, age mais diretamente sobre as moléculas primeiras do organismo do que o podem fazer as moléculas mais grosseiras das substâncias materiais. Em segundo lugar, sua eficácia é mais geral, sem ser universal, porque suas qualidades são modificáveis pelo pensamento, enquanto as da matéria são fixas e invariáveis e não podem aplicar-se senão em determinados casos.

Tal é, em tese geral, o princípio sobre o qual repousam os tratamentos magnéticos. Acrescentemos sumariamente, e de memória, já que não podemos aprofundar aqui o assunto, que a ação dos remédios homeopáticos em doses infinitesimais, é baseada no mesmo princípio; a substância medicamentosa, levada pela divisão ao estado atômico, até certo ponto adquire as propriedades dos fluidos, menos, todavia, o princípio anímico, que existe nos fluidos animalizados e lhes dá qualidades especiais.

Em resumo, trata-se de reparar uma desordem orgânica pela introdução, na economia, de materiais sãos, substituindo materiais deteriorados. Esses materiais sãos podem ser fornecidos pelos medicamentos ordinários in natura; por esses mesmos medicamentos em estado de divisão homeopática; enfim, pelo fluido magnético, que não é senão matéria espiritualizada. São três modos de reparação, ou melhor, de introdução e de assimilação dos elementos reparadores; todos os três estão igualmente na Natureza, e têm sua utilidade, conforme os casos especiais, o que explica por que um tem êxito onde outro fracassa, porquanto seria parcialidade negar os serviços prestados pela medicina ordinária. Em nossa opinião, são três ramos da arte de curar, destinados a se suplementarem e a se completarem, conforme as circunstâncias, mas dos quais nenhum tem lastro para se julgar a panaceia universal do gênero humano.

Cada um desses meios poderá, pois, ser eficaz, se empregado a propósito e adequado à especialidade do mal; mas, seja qual for, compreende-se que a substituição molecular, necessária ao restabelecimento do equilíbrio, não pode operar-se senão gradualmente, e não por encanto e por um golpe de batuta; se possível, a cura só pode ser o resultado de uma ação contínua e perseverante, mais ou menos longa, conforme a gravidade dos casos.

Entretanto, as curas instantâneas são um fato, e como não podem ser mais miraculosas que as outras, é preciso que se realizem em circunstâncias especiais. O que o prova é que não se dão indistintamente para todas as doenças, nem para todos os indivíduos. É, pois, um fenômeno natural, cuja lei deve ser buscada. Ora, eis a explicação que se lhe dá; para a compreender, era preciso ter o ponto de comparação que acabamos de estabelecer.

Certas afecções, mesmo muito graves e passadas ao estado crônico, não têm como causa primeira a alteração das moléculas orgânicas, mas a presença de um mau fluido que, a bem dizer, as desagrega, perturbando a sua economia.

Sucede aqui como num relógio, em que todas as peças estão em bom estado, mas cujo movimento é parado ou desregulado pela poeira; nenhuma peça deve ser substituída e, contudo, ele não funciona; para restabelecer a regularidade do movimento basta expurgar o relógio do obstáculo que o impedia de funcionar.

Tal é o caso de grande número de doenças, cuja origem é devida aos fluidos perniciosos de que é penetrado o organismo. Para obter a cura, não são moléculas deterioradas que devem ser substituídas, mas um corpo estranho que se deve expulsar; desaparecida a causa do mal, o equilíbrio se restabelece e as funções retomam seu curso.

Concebe-se que em semelhantes casos os medicamentos terapêuticos, destinados, por sua natureza, a agir sobre a matéria, não tenham eficácia sobre um agente fluídico; por isso a medicina ordinária é impotente em todas as moléstias causadas por fluidos viciados, e elas são numerosas. À matéria pode-se opor a matéria, mas a um fluido mau é preciso opor um fluido melhor e mais poderoso. A medicina terapêutica  naturalmente falha contra os agentes fluídicos; pela mesma razão, a medicina fluídica  falha onde é preciso opor a matéria à matéria; a medicina homeopática  nos parece ser o intermediário, o traço de união entre esses dois extremos, e deve particularmente triunfar nas afecções que poderiam chamar-se mistas.

Seja qual for a pretensão de cada um destes sistemas à supremacia, o que há de positivo é que, cada um de seu lado, obtém incontestáveis sucessos, mas que, até o presente, nenhum justificou estar na posse exclusiva da verdade; donde se deve concluir que todos têm sua utilidade, e que o essencial é os aplicar adequadamente.

Não temos que nos ocupar aqui dos casos em que o tratamento fluídico é aplicável, mas da causa pela qual esse tratamento pode, por vezes, ser instantâneo, ao passo que em outros casos exige uma ação continuada.

Esta diferença se prende à própria natureza e à causa primeira do mal. Duas afecções que, aparentemente, apresentam sintomas idênticos, podem ter causas diferentes; uma pode ser determinada pela alteração das moléculas orgânicas e, neste caso, é preciso reparar, substituir, como me disseram, as moléculas deterioradas por moléculas sadias, operação que só pode ser feita gradualmente; a outra, por infiltração, nos órgãos saudáveis, de um fluido mau, que lhe perturba as funções. Neste caso, não se trata de reparar, mas de expulsar. Esses dois casos requerem, no fluido curador, qualidades diferentes; no primeiro, é preciso um fluido mais suave que violento, sobretudo rico em princípios reparadores; no segundo, um fluido enérgico, mais adequado à expulsão do que à reparação; segundo a qualidade desse fluido, a expulsão pode ser rápida e como por efeito de uma descarga elétrica. O doente, subitamente livre da causa estranha que o fazia sofrer, sente-se aliviado imediatamente, como acontece na extirpação de um dente estragado. Não estando mais obliterado, o órgão volta ao seu estado normal e retoma suas funções.

Assim podem explicar-se as curas instantâneas, que não são, na realidade, senão uma variedade da ação magnética. Como se vê, elas repousam sobre um princípio essencialmente fisiológico e nada têm de mais miraculoso que os outros fenômenos espíritas. Compreende-se desde logo por que essas espécies de cura não são aplicáveis a todas as doenças. Sua obtenção se deve, ao mesmo tempo, à causa primeira do mal, que não é a mesma em todos os indivíduos, e às qualidades especiais do fluido que se lhe opõe. Disso resulta que uma pessoa que produz efeitos rápidos, nem sempre é adequada para um tratamento magnético regular, e que excelentes magnetizadores são impróprios para curas instantâneas.

Esta teoria pode assim resumir-se: “Quando o mal exige a reparação de órgãos alterados, necessariamente a cura é lenta e requer uma ação contínua e um fluido de qualidade especial; quando se trata da expulsão de um mau fluido, ela pode ser rápida e, mesmo, instantânea.”

Para simplificar a questão, não consideramos senão os dois pontos extremos; mas entre os dois há matizes infinitos, isto é, uma multidão de casos em que as duas causas coexistem em diferentes graus, e com mais ou menos preponderância de cada uma; em que, por consequência, é necessário, ao mesmo tempo, expulsar e reparar. Conforme aquela das duas causas que predomina, a cura é mais ou menos lenta; se for a do mau fluido, após a expulsão é preciso a reparação; se for a desordem orgânica, após a reparação é necessária a expulsão. A cura só é completa após a destruição das causas. É o caso mais comum. Eis por que os tratamentos terapêuticos muitas vezes precisam ser complementados por um tratamento fluídico e reciprocamente; eis, também, por que as curas instantâneas, que ocorrem nos casos em que a predominância fluídica é, por assim dizer, exclusiva, jamais poderão tornar-se um meio curativo universal; conseguintemente, elas não são chamadas a suplantar nem a Medicina, nem a Homeopatia, nem o magnetismo ordinário.

A cura instantânea, radical e definitiva, pode ser considerada como um caso excepcional, considerando-se que é raro: 1º — que a expulsão do mau fluido seja completa no primeiro golpe; 2º — que a causa fluídica não seja acompanhada de alguma alteração orgânica, o que obriga, num e noutro caso, a ele voltar várias vezes.

Enfim, não podendo os maus fluidos emanar senão de Espíritos maus, sua introdução na economia se liga muitas vezes à obsessão. Daí resulta que, para obter a cura, é preciso tratar, ao mesmo tempo, o doente e o Espírito obsessor.

Estas observações mostram quantas coisas devem ser levadas em conta no tratamento das doenças, e quanto ainda resta aprender a tal respeito. Além disso, vêm confirmar um fato capital, que ressalta da obra A Gênese — a aliança do Espiritismo e da Ciência. O Espiritismo marcha sobre o mesmo terreno que a Ciência, até os limites da matéria tangível; mas, enquanto a Ciência se detém nesse ponto, o Espiritismo continua seu caminho e prossegue suas investigações nos fenômenos da Natureza, com o auxílio dos elementos que colhe no mundo extramaterial; apenas aí está a solução das dificuldades contra as quais se choca a Ciência.

Nota — A pessoa cujo pedido motivou esta explicação está no caso das doenças de causa complexa. Seu organismo está profundamente alterado e, ao mesmo tempo, saturado dos fluidos mais perniciosos, que a tornam incurável apenas pela terapêutica ordinária. Uma magnetização violenta e muito enérgica não produziria mais que uma superexcitação momentânea, logo seguida de maior prostração, ao ativar o trabalho da decomposição. Ser-lhe-ia necessária uma magnetização suave, continuada por muito tempo, um fluido reparador penetrante, e não um fluido que abala, mas que nada repara. Consequentemente, ela é inacessível à cura instantânea.


 

Notas Bibliográficas

Os Pensamentos do Zuavo Jacob

Precedidos de sua prece e da maneira de curar os que sofrem[1]

As citações são a melhor maneira de dar a conhecer o espírito de um livro. Para começar, tomamos do anúncio e do prefácio do editor as passagens seguintes do que acaba de publicar o Sr. Jacob. Os fatos aos quais ele deve a sua notoriedade são muito conhecidos para que seja preciso relembrá-los. Aliás, nós os expusemos suficientemente na Revista de outubro e novembro de 1866, e nos números de outubro e novembro de 1867.

“Henri Jacob, hoje músico no regimento dos zuavos da guarda imperial, nasceu no dia 6 de março de 1828, em Saint-Martin-des-Champs (Saône-et-Loire). Todos os seus estudos consistem em um ano de classe na escola comunal; assim, não recebeu outra educação senão a que o pai lhe pôde dar; ela não ultrapassa a da simples leitura e escrita e, no entanto, foi ele quem, sem o auxílio de ninguém, redigiu este escrito, que entregamos à publicidade.

“Jacob não é um escritor profissional; é um homem de aspirações religiosas, que só se decidiu a entregar este volume à publicidade em virtude de insistentes solicitações. Para ele está obra é a sua profissão de fé no Deus criador; uma prece, a bem dizer um hino, que dirige ao Todo-Poderoso. É escrito num bom espírito, sem paixão, e aí não faz alusão a nenhum culto nem a nenhum espírito de partido político.

“Jacob é um ser dotado de alguma imaginação, nada mais. O leitor se enganaria muito se visse nos seus sentimentos outra coisa senão Deus e a Humanidade. Toda a sua ambição é trazer algum lenitivo a esta última.

“Nestas páginas vemos uma espécie de heroísmo e de grandeza, refletindo-se nos atos de filantropia, tão maravilhosamente realizados por Jacob, crente firme, que sabe que pode muito, porque Deus vem em seu auxílio em seus trabalhos tão difíceis, e que só Deus o leva a bom termo.”

Antes de mais, o Sr. Jacob dá conta, em termos simples e sem ênfase, de um sonho ou visão, que contribuiu para a elevação de seus pensamentos para Deus, e para fixar suas ideias sobre o futuro.

Vem, a seguir, uma profissão de fé, em forma de epístola, intitulada: “Aos meus irmãos em Espiritismo” , e da qual extraímos as seguintes passagens:

“Antes de minha iniciação na ciência espírita, eu vivia nas trevas; meu coração jamais havia sentido as doçuras da paz! minha alma jamais tinha conhecido a alegria; eu vivia amarrado à Terra, com os tormentos que ela suscita aos homens materiais, sem pensar que há mundos melhores, que Deus, nosso pai de todos, criou para que gozassem de uma felicidade inefável os que praticam o bem neste mundo.

“Por minha iniciação na Doutrina Espírita, adquiri a convicção de que Deus, em sua misericórdia, nos envia Espíritos bons para nos aconselhar e nos encorajar na prática do bem, e nos deu o poder de nos comunicarmos com eles e com os que deixaram esta Terra e são caros aos nossos corações. Esta convicção iluminou a minha alma! vi a luz! Pouco a pouco, fortaleci-me em minha convicção e, por este meio, atingi a faculdade de médium escrevente.

“Minhas conversas com os Espíritos e seus bons conselhos encheram-me de uma fé viva, confirmando-me as verdades da ciência espírita, que fortificaram minha fé, e pela fé a faculdade de curar me foi dada.

“Assim, pois, meus caros amigos, que uma fé viva esteja sempre em vós, pela prática das máximas espíritas, que são: o amor de Deus, a fraternidade e a caridade. Amemo-nos uns aos outros, e todos possuiremos a faculdade de nos aliviarmos mutuamente e muitos poderão chegar a curar, de que estou plenamente convencido.

“Sejamos, pois, sempre caridosos e generosos e sempre seremos assistidos pelos Espíritos bons. Vós todos, que sois iniciados na Doutrina Espírita, ensinai-a aos que ainda estão nas trevas da matéria; abri suas almas à luz e eles gozarão, por antecipação, da felicidade que aguarda, nos mundos superiores, os que praticam o bem entre nós.

“Sede firmes em vossas boas resoluções; vivei sempre numa grande pureza de alma, e Deus vos dará o poder de curar os vossos semelhantes. Eis a minha prece:

“Meu Deus, tende a bondade de permitir aos bons e benevolentes Espíritos que me venham assistir, de intenção e de fato, na obra de caridade que desejo realizar, aliviando os infelizes que sofrem. É em vosso nome e em vosso louvor, meu Deus, que esses benefícios se espalham sobre nós.”

 “Crede, tende fé! e quando quiserdes aliviar um doente, depois de vossa prece, ponde vossa mão sobre o seu coração, e pedi calorosamente a Deus o socorro de que necessitais; e, estou convicto, o eflúvio divino se infiltrará em vós para aliviar ou curar vosso irmão que sofre. Minha primeira cura consciente foi fazer sair de seu leito de dor um colérico, operando desta maneira. Por que queríeis que eu fosse mais privilegiado do que vós, por Deus, que é sabedoria e justiça?

“Por vossas cartas, pedis-me que me corresponda convosco e vos ajude com os meus conselhos. Vou comunicar-vos os que os Espíritos me inspiraram, e responder ao vosso apelo, cheio de boa vontade de ser útil à vossa felicidade. A minha seria grande se eu pudesse cooperar para o triunfo do grau de perfeição em que desejo ver-vos chegar.”

Segue-se uma série de 217 cartas que, a bem dizer, constituem o corpo do volume. São comunicações obtidas pelo Sr. Jacob, como médium escrevente, em diferentes grupos ou reuniões espíritas. São excelentes conselhos de moral, em estilo mais ou menos escorreito; estímulos à prática da caridade, da fraternidade, da humildade, da doçura, da benevolência, do devotamento pela Doutrina Espírita, do desinteresse moral e material; exortações à reforma de si mesmo. O mais severo moralista aí não encontrará nenhum defeito, e seria desejável que todos os médiuns, curadores e outros, e todos os espíritas em geral, pusessem em prática esses sábios conselhos. Não se pode senão felicitar o Sr. Jacob pelos sentimentos que ele expressa; e lendo esse livro, não virá ao pensamento de ninguém que é obra de um charlatão; é, pois, um desmentido dado às acusações que a malevolência interessada se deleitou em lançar contra ele; e aos que, por irrisão, o apresentaram como um taumaturgo ou fazedor de milagres.

Embora essas numerosas comunicações sejam todas concebidas num excelente espírito, é de lamentar que a uniformidade dos assuntos tratados lancem um pouco de monotonia sobre essa leitura. Elas não encerram explicações, nem instruções especiais sobre a mediunidade curadora, que é apenas a parte acessória do livro. O relato de alguns fatos autênticos de curas e das circunstâncias que as acompanharam, teria juntado interesse e utilidade prática a esta obra.

Aliás, eis como o Sr. Jacob descreve o que se passa nas sessões onde se reúnem os doentes:

“No momento da sessão, depois de ter dirigido a Deus minha curta mas fervorosa prece, sinto meus dedos se contraírem e, ao tocar o doente, reconheço a força do fluido pela umidade das mãos; às vezes elas são inundadas de transpiração; e o calor que ganha as partes inferiores é também um complemento de indício do alívio quase instantâneo que ele experimenta.

“Entretanto, não é por minha própria inspiração que os doentes devem ver desaparecerem os males que os acabrunham, mas antes pela vontade de Deus; vejo, também, errando em volta de mim, em meio a uma brilhante luz, um grande número de Espíritos benevolentes, que parecem associar-se à minha penosa missão. Há sobretudo um que me deixa perceber muito distintamente a auréola que deve cingir sua cabeça venerável. Ao seu lado se acham duas pessoas muito radiosas, cercadas de inúmeros Espíritos. O primeiro parece guiar-me e inspirar-me em minhas operações, se assim me posso exprimir; enfim, a sala onde dou as consultas está sempre cheia de uma viva luz, que vejo continuamente refletir-se sobre os doentes.

“Depois da sessão não me resta qualquer lembrança do que se passou; é por isto que recomendo com muita insistência às pessoas presentes que prestem a maior atenção às palavras que dirijo aos doentes que se me oferecem para ser curados, se, todavia, isto é possível.”

A obra termina por alguns conselhos sobre o regime higiênico que devem seguir os doentes de que ele cuida.

O Espiritismo ante a Razão

Por Valentin Tournier, antigo jornalista — Brochura in-18, de 72 páginas.

Preço: 1 fr. — Carcassonne, nas livrarias Lajoux e Maillac.

O autor deste opúsculo se propunha fazer duas conferências públicas sobre o Espiritismo. Tendo sido impedido por circunstâncias independentes de sua vontade, são essas conferências que hoje publica. Dirigindo-se ao público não convicto, examina sucessivamente as seguintes questões: O Espiritismo é uma coisa séria? — Os estudos espíritas oferecem perigos? — Esses estudos são úteis? — Os fenômenos são possíveis?  — São reais? — Qual a autoridade competente para conhecer os fatos?

Voltaremos a esta interessante publicação, que hoje nos limitamos a assinalar.

Terceira Edição de A Gênese[2]

A segunda edição de A Gênese  está quase esgotada. Neste momento tira-se a terceira, de maneira a não haver interrupção.


 

Instruções dos Espíritos — A Regeneração

(Lyon, 11 de março de 1867 — Médium: Sra. B...)

“Naquele tempo não haverá mais gritos, nem luto, nem trabalho, porque o que era antes terá passado.”

Esta predição do Apocalipse foi ditada há dezoito séculos, e ainda se espera que tais palavras se realizem, porque sempre se encaram os acontecimentos quando se passaram, e não quando se desdobram aos nossos olhos.

Todavia, esta época predita chegou. Não há mais dores para aquele que soube colocar-se à margem da estrada, a fim de deixar passar as mesquinharias da vida, sem as deter para delas fazer uma arma ofensiva contra a sociedade.

Estais em meio a estes tempos como a espiga dourada está na colheita; vivei sob o olhar de Deus e sua irradiação vos ilumina! Por que vos inquietais com a marcha dos acontecimentos, que foram previstos por Deus, quando não passáveis de crianças da geração de que falava Jesus, quando dizia: “Antes que esta geração passe acontecerá grandes coisas?”

O que sois, Deus o sabia; o que sereis Deus o vê! Cabe a vós bem vos compenetrardes do caminho que vos é traçado, porque vossa tarefa é de vos submeterdes a tudo o que Deus decidiu. Vossa resignação, e sobretudo a vossa amenidade, não são senão testemunhos de vossa inteligência e de vossa fé na eternidade.

Acima de vós, neste Universo onde se move o vosso mundo, planam os Espíritos mensageiros, que receberam a missão de vos guiar. Eles sabem quando se realizarão os acontecimentos preditos. Eis por que vos dizem: “Não haverá mais gritos, nem luto, nem trabalho.”

Sem dúvida não pode mais haver grito para aquele que se submete às vontades de Deus, e que aceita as suas provas. Não há mais luto, visto que sabeis que os Espíritos que vos precederam não estão perdidos para vós, mas estão em viagem. Ora, não se veste luto quando um amigo se ausenta.

O próprio trabalho se torna um favor, pois se sabe que é um concurso à obra harmônica que Deus dirige; então, executa-se a sua parte de trabalho com a solicitude do escultor que se põe a polir a sua estátua. É uma recompensa infinita que Deus vos concede.

Entretanto, ainda encontrareis entraves em vossas tentativas para chegar ao melhoramento social. É que jamais se chega ao resultado sem que a luta venha firmar os seus esforços. O artista é obrigado a vencer os obstáculos que se opõem à irradiação de seu pensamento; não se torna vitorioso senão quando soube elevar-se acima das privações e dos vapores brumosas que envolvem seu gênio, ao nascer.

A ideia que surge foi semeada pelos Espíritos quando Deus lhes disse: “Ide e instruí as nações; ide e espalhai a luz.” Essa ideia, que cresceu com a rapidez de uma inundação, naturalmente deve ter encontrado contraditores, opositores e incrédulos. Ela não seria a fonte da vida, se tivesse sucumbido sob as zombarias que a acolheram em seu começo. Mas o próprio Deus guiava este pensamento através da imensidade; ele a fecundava na terra e ninguém a destruirá! Seria inútil que procurassem extirpar suas raízes; trabalhariam em vão para aniquilá-la nos corações; as crianças trazem-na ao nascer, e dir-se-ia que um sopro de Deus a incrusta em seu berço, como outrora a Estrela do Oriente iluminava os que vinham perante Jesus, trazendo ele mesmo a ideia regeneradora do Cristianismo.

Bem vedes, pois, que esta geração não passará sem que aconteçam grandes coisas, pois que com a ideia, a fé se eleva e a esperança irradia... Coragem! o que foi predito pelo Cristo deve realizar-se. Nestes tempos de aspiração à verdade, a luz que ilumina todo homem que vem a este mundo brilha de novo sobre vós. Perseverai na luta, sede firmes e desconfiai das armadilhas que vos estendem; permanecei ligados a essa bandeira em que inscrevestes: Fora da caridade não há salvação, e depois esperai, porque aquele que recebeu a missão de vos regenerar volta, e ele disse: Bem-aventurados os que conhecerem meu nome de novo!

Um Espírito


 

Errata

Número de abril de 1867, onde se lê Salmo XXV, v. 17, lede: Salmo XXI, v. 18 e 19.

Allan Kardec




[1] Um vol. in-12, de 220 páginas. Preço: 2 fr. 50 c. No editor, rue Bonaparte, 70.

[2] N. do T.: Embora este subtítulo não conste aqui, foi contemplado por Kardec no sumário deste volume.

Abril de 1868

Correspondência Inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia

(Continuação — Vide o número de março de 1868.)

Terceira Carta

Mui venerada imperatriz,

A sorte exterior de cada alma despojada de seu corpo corresponderá ao seu estado interior, isto é, tudo lhe parecerá tal qual é ela mesma. À boa, tudo parecerá no bem; o mal só aparecerá às almas dos maus. Naturezas amantes cercarão a alma amante; a alma odienta atrairá para si naturezas odientas. Cada alma se verá a si própria refletida nos Espíritos que se lhe assemelham. O bom se tornará melhor e será admitido nos círculos compostos de seres que lhe são superiores; o santo se tornará mais santo pela só contemplação dos Espíritos mais puros e mais santos que ele; o Espírito amante tornar-se-á ainda mais amoroso; mas, também, cada ser malvado tornar-se-á pior unicamente por seu contato com outros seres malévolos. Se já na Terra nada é mais contagioso e mais empolgante que a virtude e o vício, o amor e o ódio, do mesmo modo, no além-túmulo, toda perfeição moral e religiosa, bem como todo sentimento imoral e irreligioso, devem necessariamente tornar-se ainda mais empolgantes e mais contagiosos.

Vós vos tornareis, mui honrada imperatriz, todo amor nos círculos de almas benevolentes.

O que ainda restar em mim de egoísmo, de amor-próprio, de tibieza para o reino e os desígnios de Deus, será inteiramente engolido pelo sentimento de amor, se foi predominante em mim, e se depurará ainda sem cessar, pela presença e o contato dos Espíritos puros e amantes.

Depurados pelo poder de nossa aptidão para amar, largamente exercido neste mundo; purificados ainda mais pelo contato e a irradiação, sobre nós, do amor dos Espíritos puros e elevados, seremos gradualmente preparados para a visão direta do mais perfeito amor, para que não nos deslumbremos, não nos amedrontemos e nem sejamos impedidos de o gozar com delícias.

Mas como, venerada imperatriz, um frágil mortal poderia, ousaria fazer uma ideia da contemplação desse amor personificado? E tu, caridade inesgotável! como poderias aproximar-te daquele que bebe em ti só o amor, sem o amedrontar e o deslumbrar?

Penso que no começo aparecerá invisivelmente ou sob uma forma irreconhecível.

Não agiu ele sempre desta maneira? Quem amou mais invisivelmente do que Jesus? Quem, melhor que ele, sabia representar a individualidade incompreensível do desconhecido? Quem, melhor que ele, soube tornar-se irreconhecível, ele que podia fazer-se conhecer melhor que nenhum mortal ou qualquer Espírito imortal? Ele, que todos os céus adoram, veio sob a forma de um modesto operário e conservou até a morte a individualidade de um nazareno. Mesmo depois de sua ressurreição, primeiro apareceu sob uma forma irreconhecível e só depois se fez reconhecer. Penso que conservará sempre esse modo de ação, tão análogo à sua natureza, à sua sabedoria e ao seu amor. É sob a forma de um jardineiro que aparece a Maria no jardim onde ela o procurava e onde já não tinha esperança de o encontrar. Primeiro irreconhecível, só foi reconhecido alguns instantes depois.

Foi também sob uma forma irreconhecível que se aproximou de dois de seus discípulos, que marchavam cheios dele e o aspiravam. Caminhou muito tempo ao lado deles; seus corações queimavam numa chama santa; sentiam a presença de algum ser puro e elevado, mas de outro ser, e não ele; só o reconheceram no momento de partir o pão, no momento de seu desaparecimento e quando, ainda na mesma noite, o viram em Jerusalém. A mesma coisa sucedeu às margens do lago de Tiberíades, e quando, radiante em sua glória deslumbrante, apareceu a Saulo.

Como todas as ações de Nosso Senhor, todas as suas palavras e todas as suas revelações são sublimes e dramáticas!

Tudo segue uma marcha incessante que, impelindo sempre para frente, se aproxima cada vez mais de um objetivo que, no entanto, não é o objetivo final. O Cristo é o herói, o centro, a personagem principal, ora visível, ora invisível, nesse grande drama de Deus, tão admiravelmente simples e complicado ao mesmo tempo, que jamais terá fim, embora tendo parecido mil vezes acabado.

Ele aparece sempre, a princípio irreconhecível, na existência de cada um de seus adoradores. Como o amor poderia recusar-se a aparecer ao ser que o ama, no momento exato em que este mais precisa dele?

Sim, tu, o mais humano dos homens, aparecerás aos homens da maneira mais humana! Aparecerás à alma amante a quem escrevo! Tu me aparecerás também, a princípio irreconhecível e depois tu te farás reconhecer por nós. Nós te veremos uma infinidade de vezes, sempre outro e sempre o mesmo, sempre mais belo, à medida que nossa alma se melhorar e jamais pela última vez.

Elevemo-nos mais vezes para esta ideia inebriante que, com a permissão de Deus, tentarei esclarecer mais amplamente em minha próxima carta, e de vos tornar mais comovente, por uma comunicação dada por um defunto.

Lavater

1º de setembro de 1798

Quarta Carta

Em minha carta precedente, mui venerada imperatriz, eu vos prometi enviar a carta de um defunto ao seu amigo da Terra. Ela poderá vos fazer compreender melhor e captar minhas ideias sobre o estado de um cristão após a morte de seu corpo. Tomo a liberdade de juntá-la a esta. Julgai-a do ponto de vista que vos indiquei e dirigi vossa atenção antes para o assunto principal do que para alguns detalhes particulares que o cercam, embora eu tenha razões  para supor que estes últimos também encerrem alguma coisa de verdadeiro.

Para a compreensão das matérias que vos exporei na continuação sob essa forma, creio necessário fazer-vos notar que tenho quase certeza de que, malgrado a existência de uma lei geral, idêntica e imutável, de castigo e de felicidade suprema, cada Espírito, segundo o seu caráter individual, não somente moral e religioso, mas mesmo pessoal e oficial, terá sofrimentos a suportar após a sua morte terrestre e gozará de felicidades que não serão apropriadas senão a ele mesmo. A lei geral individualizar-se-á para cada indivíduo em particular, isto é, em cada um produzirá um efeito diferente e pessoal, da mesma forma que um raio de luz, atravessando um vidro colorido, convexo ou côncavo, dele tira, em parte, sua cor e sua direção. Eu queria, pois, que fosse aceito positivamente; que, embora todos os Espíritos bem-aventurados, menos felizes ou sofredores se encontrem sob a mesma lei muito simples de semelhança ou dessemelhança com o mais perfeito amor, deve-se presumir que o caráter substancial, pessoal, individual de cada Espírito constitua para ele um estado de sofrimento ou de felicidade essencialmente diferente do estado de sofrimento ou de felicidade de um outro Espírito. Cada um sofre de uma maneira que difere do sofrimento de um outro, e sente prazeres que um outro não seria capaz de sentir. A cada um dos mundos material e imaterial, Deus e o Cristo se apresentam sob uma forma particular, sob a qual não aparecem a ninguém, exceto a ele. Cada um tem seu ponto de vista que não pertence senão a si próprio. A cada Espírito Deus fala uma língua só por ele compreendida. A cada um se comunica em particular e lhe concede prazeres que só ele está em estado de experimentar e conter.

Esta ideia, que considero uma verdade, serve de base a todas as comunicações seguintes, dadas por Espíritos desencarnados aos seus amigos da Terra.

Sentir-me-ia feliz se soubesse que compreendestes como cada homem, pela formação de seu caráter individual e pelo aperfeiçoamento de sua individualidade, pode preparar para si mesmo prazeres particulares e uma felicidade apropriada só para si.

Como nada se esquece tão depressa, e nada é menos procurado pelos homens que essa felicidade apropriada a cada indivíduo, embora cada um tenha toda a possibilidade de se a proporcionar e dela desfrutar, tomo a liberdade, sábia e venerada imperatriz, de vos rogar com instância que vos digneis analisar com atenção esta ideia que, certamente, não podeis encarar como inútil para a vossa própria edificação e vossa elevação para Deus: Deus colocou-se a si mesmo e colocou o Universo no coração de cada homem.

Todo homem é um espelho particular do Universo e de seu Criador. Envidemos, pois, todos os nossos esforços, mui venerada imperatriz, para mantermos esse espelho tão puro quanto possível, a fim de que Deus aí possa ver a si mesmo  e sua mil vezes bela Criação, refletidos para sua inteira satisfação.

João Gaspar Lavater

Zurique, 14 de setembro de 1798

Carta de um Defunto ao seu Amigo da Terra

(Sobre o estado dos Espíritos desencarnados)

Enfim, meu bem-amado, me é possível satisfazer, conquanto apenas em parte, meu desejo e o teu, e de te comunicar alguma coisa concernente ao meu estado atual. Desta vez não te posso dar senão pouquíssimos detalhes. No futuro, tudo dependerá do uso que fizeres de minhas comunicações.

Sei que o desejo que experimentas, de ter noções sobre mim, como em geral sobre o estado de todos os Espíritos desencarnados, é muito grande, mas não ultrapassa o meu de te ensinar o que é possível revelar. O poder de amar daquele que amou no mundo material, aumenta inexprimivelmente, quando se torna cidadão do mundo imaterial. Com o amor aumenta também o desejo de se comunicar aos que conheceu, aquilo que ele pode, o que lhe é permitido  transmitir.

Devo começar por te explicar, meu bem-amado, a ti que amo cada vez mais, como me é possível te escrever, sem, ao mesmo tempo, poder tocar o papel e conduzir a pena, e como posso falar a ti numa língua inteiramente terrestre e humana que, em meu estado habitual, não compreendo.

Esta só indicação deve servir-te de traço de luz, para poder compreender como deves encarar o nosso estado presente.

Imagina meu estado atual, diferente do anterior, mais ou menos como o estado da borboleta, adejando no ar, difere de seu estado de crisálida. Sou justamente essa crisálida transfigurada e emancipada, já tendo sofrido duas metamorfoses. Exatamente como a borboleta volita em redor das flores, nós voejamos muitas vezes em torno das cabeças dos bons, mas nem sempre. Uma luz, invisível para vós mortais, visível apenas para bem poucos de vós, irradia ou brilha docemente em redor da cabeça de todo homem bom, amante e religioso. A ideia da auréola com que cercam a cabeça dos santos, é essencialmente verdadeira e racional. Simpatizando esta luz com a nossa — todo ser bem-aventurado não o é senão pela luz — o atrai para ela, conforme o grau de sua claridade, que corresponde à nossa. Nenhum Espírito impuro ousa e pode aproximar-se dessa santa luz. Repousando-nos nessa luz, acima da cabeça do homem bom e piedoso, podemos ler incontinenti em seu espírito. Vemo-lo tal qual ele é em realidade. Cada raio que dele sai é para nós uma palavra, por vezes todo um discurso; respondemos aos seus pensamentos. Ele ignora que somos nós que respondemos. Nele excitamos ideias que, sem nossa ação, ele jamais teria estado em condição de as conceber, embora a disposição e a aptidão para as receber sejam inatas em sua alma.

O homem digno de receber a luz torna-se, assim, um órgão útil e muito proveitoso para o Espírito simpático, que deseja comunicar-lhe suas luzes.

Encontrei um Espírito, ou antes, um homem acessível à luz, do qual pude aproximar-me, e é por seu órgão que te falo. Sem sua intermediação, ter-me-ia sido impossível entreter-me contigo humanamente, verbalmente, palpavelmente, numa palavra, escrever-te.

Desta maneira, pois, recebes uma carta anônima da parte de um homem que não conheces, mas que nutre em si uma forte tendência para as matérias ocultas e espirituais. Plano acima dele; posto-me sobre ele, mais ou menos como o mais divino de todos os Espíritos se postou sobre o mais divino de todos os homens, após o seu batismo; suscito-lhe ideias; ele as transmite sob a minha intuição, sob minha direção, por efeito de minha irradiação. Por um leve toque, faço vibrarem as cordas de sua alma de maneira conforme à minha e à sua individualidade. Ele escreve o que desejo fazê-lo escrever; escrevo por seu intermédio; minhas ideias tornam-se as suas. Ele se sente feliz escrevendo. Torna-se mais livre, mais animado, mais rico em ideias. Parece-lhe que vive e plana num elemento mais alegre, mais claro. Marcha lentamente, como um amigo conduzido pela mão de um amigo, e é desta maneira que de mim recebes uma carta. Aquele que escreve supõe-se livre e o é realmente. Não sofre nenhuma violência; é livre como o são dois amigos que, embora andando de braço dado, se conduzem mutuamente.

Tu deves sentir que meu  Espírito se acha em relação direta com o teu; concebes o que te digo; escutas os meus mais íntimos pensamentos. É bastante por esta vez. O dia em que ditei esta carta chama-se entre vós 15 de setembro de 1798.

Quinta Carta

Mui venerada imperatriz,

De novo uma cartinha chegada do mundo invisível.

No futuro, se Deus o permitir, as comunicações seguir-se-ão mais de perto.

Esta carta contém uma parte muito pequena do que pode ser dito a um mortal, sobre a aparição e a visão do Senhor. É simultaneamente e sob milhões de formas diferentes, que o Senhor aparece às miríades de seres. Ele quer e se multiplica ele próprio por suas inúmeras criaturas, individualizando-se, ao mesmo tempo, para cada uma delas em particular.

A vós, imperatriz, ao vosso Espírito de luz, ele aparecerá um dia, como apareceu a Maria Madalena, no jardim do sepulcro. De sua boca divina o ouvireis um dia, quando sentirdes a maior necessidade e quando menos o esperardes, vos chamar por vosso nome Maria. Rabi! respondereis ao seu chamado, penetrada do mesmo sentimento de felicidade suprema que tomou conta de Madalena, e, cheia de adoração, como o apóstolo Tomé, direis: “Meu Senhor e meu Deus!” [1]

Tivemos pressa em atravessar as noites de trevas para chegar à luz; passamos pelos desertos para alcançar a terra prometida; sofremos as dores do nascimento para renascer para a verdadeira vida.

Que Deus e o vosso Espírito estejam convosco e vosso Espírito.

João Gaspar Lavater

Zurique, 13 de novembro de 1798


 

Carta de um Espírito Bem-Aventurado

(Ao seu amigo da Terra sobre a primeira visão do Senhor)

Caro amigo,

De mil coisas com que desejaria entreter-te, desta vez não direi senão uma, que te interessará mais que todas as outras. Obtive autorização para o fazer. Os Espíritos nada podem fazer sem uma permissão especial. Vivem sem a sua própria vontade, somente na vontade do Pai celeste, que transmite suas ordens a milhares de seres ao mesmo tempo, como a um só, e responde instantaneamente a uma infinidade de assuntos, a milhares de suas criaturas, que a ele se dirigem.

Como te fazer compreender de que maneira eu vivo o Senhor? Oh! de uma maneira muito diferente daquela que vós, seres ainda mortais, o podeis imaginar.

Depois de muitas aparições, instruções, explicações e prazeres que foram concedidos pela graça do Senhor, certa vez atravessei uma região paradisíaca, com cerca de doze outros Espíritos, que tinham subido, mais ou menos pelos mesmos degraus da perfeição que eu. Planamos, volitamos um ao lado do outro, em doce e agradável harmonia, como que formando uma leve nuvem, e parecia que experimentávamos o mesmo arrastamento, a mesma propensão para um objetivo muito elevado. Pressionávamos cada vez mais um contra o outro. À medida que avançávamos, tornávamo-nos cada vez mais íntimos, mais livres, mais alegres, mais prazenteiros e cada vez mais aptos a gozar, e dizíamos: Oh! como é bom e misericordioso Aquele  que nos criou! Aleluia ao Criador!  foi o amor que nos criou! Aleluia ao Ser amante! Animados por tais sentimentos, prosseguimos nosso voo e nos detivemos ao pé de uma fonte.

Aí sentimos a aproximação de uma brisa leve. Ela não trazia nem um homem, nem um anjo; e, contudo, o que avançava para nós tinha qualquer coisa de tão humano, que atraiu toda a nossa atenção. Uma luz resplandecente, de certo modo semelhante à dos Espíritos bem-aventurados, mas não a ultrapassando, nos inundou. “Aquele também é dos nossos!” pensamos simultaneamente e como por intuição. Ela desapareceu, e a princípio pareceu-nos que estávamos privados de alguma coisa. “Que ser particular! dissemo-nos; que atitude real! e, ao mesmo tempo, que graça infantil! que amenidade e que majestade!”

Enquanto assim falávamos a nós mesmos, subitamente uma forma graciosa nos apareceu, saindo de um bosque encantador, e nos saudou amigavelmente. O recém-chegado não se assemelhava à aparição precedente, mas também tinha algo de superior, algo elevado e, ao mesmo tempo, de inexprimivelmente simples. “Sede bem-vindos, irmãos e irmãs!” disse ele. Respondemos em uníssono: “Sê bem-vindo tu, o abençoado do Senhor! o céu se reflete em tua face e o amor de Deus irradia de teus olhos.”

— Quem sois? perguntou o desconhecido. — Somos os alegres adoradores do todo-poderoso Amor, respondemos.

— Quem é o todo-poderoso Amor? perguntou-nos com uma graça perfeita.

— Não conheces o todo-poderoso Amor? perguntamos, por nossa vez, ou antes, fui eu quem lhe dirigiu a pergunta, em nome de todos.

— Eu o conheço, disse o desconhecido, com uma voz ainda mais doce.

— Ah! se pudéssemos ser dignos de o ver e ouvir a sua voz! mas não nos sentimos bastante depurados para merecer contemplar diretamente a mais santa pureza.

Em resposta a estas palavras, ouvimos retinir atrás de nós uma voz que nos disse: “Estais lavados de toda mancha, estais purificados. Sois declarados justos por Jesus-Cristo e pelo Espírito do Deus vivo!”

Uma felicidade inexprimível espalhou-se em nós, no momento que, virando-nos na direção de onde partia a voz, queríamos nos precipitar de joelhos para adorar o interlocutor invisível.

Que aconteceu? Cada um de nós ouviu um nome instantaneamente, que jamais tinha ouvido pronunciar, mas que cada um compreendeu e ao mesmo tempo reconheceu ser o seu próprio novo nome, expresso pela voz do desconhecido. Espontaneamente, com a rapidez do relâmpago, nós nos voltamos, como um ser único, para o adorável interlocutor, que nos apostrofou assim, com uma graça indizível: “Encontrastes o que buscáveis. Aquele que me vê, vê também o todo-poderoso Amor. Conheço os meus e os meus me conhecem. Dou às minhas ovelhas a vida eterna e elas não perecerão na eternidade; ninguém poderá arrancá-las de minhas mãos, nem das mãos de meu Pai. Eu e meu Pai somos um!

Como poderia eu exprimir em palavras a doce e suprema felicidade em que nos expandimos, quando aquele que, a cada momento, se tornava mais luminoso, mais gracioso, mais sublime, estendeu para nós os seus braços e pronunciou as seguintes palavras, que vibrarão eternamente para nós, e que nenhum poder será capaz de fazer desaparecer de nossos ouvidos e de nossos corações: “Vinde aqui, vós, eleitos de meu Pai: herdai do reino que vos foi preparado desde o começo do Universo.”  Depois disto, abraçou-nos a todos simultaneamente, e desapareceu. Guardamos silêncio e, sentindo-nos estreitamente unidos para a eternidade, espalhamos, sem nos mover, um no outro, docemente e cheios de uma felicidade suprema. O Ser infinito tornou-se uno conosco e, ao mesmo tempo, nosso tudo, nosso céu, nossa vida no seu sentido mais verdadeiro. Mil vidas novas pareceram nos penetrar. Nossa existência anterior acabou-se para nós; recomeçamos a ser; ressentimos a imortalidade, isto é, uma superabundância de vida e de forças, que trazia a marca da indestrutibilidade.

Enfim, recobramos a palavra. Ah! se eu pudesse te comunicar, ainda que um único som, de nossa alegre adoração! “Ele existe! nós somos! Por Ele, por Ele só! — Ele é, — seu ser não é senão vida e amor! — Aquele que o vê, vive e ama, é inundado de eflúvios da imortalidade e do amor que emana de sua face divina, de seu olhar cheio de felicidade suprema!

“Nós te vimos, amor todo-poderoso! Tu te mostraste a nós sob a forma humana, Tu, Deus dos deuses! E, contudo, Tu não foste nem homem, nem Deus, Tu Homem-Deus!

“Tu não foste senão amor, todo-poderoso apenas como amor! — Tu nos sustentaste por tua onipotência, para impedir que a força, mesmo atenuada por teu amor, nela nos absorvesse.

“És Tu, és Tu? — Tu, que todos os céus glorificam; Tu, oceano de beatitude; — Tu, onipotência; — Tu, que outrora encarnando nos ossos humanos, levaste os fardos da Terra e, banhado de sangue, suspenso a uma cruz, Te fizeste cadáver?

“Sim, és Tu, — Tu, glória de todos os seres! Ser diante do qual se inclinam todas as naturezas, que desapareciam diante de Ti, para serem chamadas a viver em Ti!

“Num dos teus raios encontra-se a vida de todos os mundos, e de teu hálito não jorra senão o amor!”

Isto, caro amigo, não passa de uma bagatela mínima, caída na terra, da mesa cheia de uma felicidade inefável de que me nutria. Aproveita-a, e logo te será dado mais. — Ama, e serás amado. — Só o amor pode aspirar à felicidade suprema. — Só o amor pode dar a felicidade, mas unicamente aos que amam.

Oh! meu querido, é porque amas que posso aproximar-me de ti, comunicar-me contigo e te conduzir mais depressa à fonte da vida.

Amor! Deus e o céu vivem em ti, tanto quanto vivem na face e no coração de Jesus-Cristo!

Escrevo isto, conforme a vossa cronologia terrestre, em 13 de novembro de 1798.

Makariosenagape

(Termina no próximo número)


 

O Fim do Mundo em 1911

O fim do mundo em 1911, tal é o título de uma pequena brochura in-18, de 58 páginas, espalhada em Lyon com profusão e que se acha naquela cidade na livraria Josserand, place Bellecour, no 3. Às considerações tiradas da concordância do estado atual das coisas com os sinais precursores anunciados no Evangelho, o autor acrescenta, conforme uma outra profecia, um cálculo cabalístico que fixa o fim do mundo para o ano 1911, nem mais, nem menos, isto é, dentro de 43 anos. De sorte que, entre os vivos de hoje, mais de um será testemunha dessa grande catástrofe. Ora, aqui não se trata de uma figura; é o fim bem real, o aniquilamento da Terra, a dispersão de seus elementos e a destruição completa de seus habitantes. É lamentável que a maneira por que se realizará este acontecimento não seja indicada, mas também é preciso deixar alguma coisa sem avisar.

Será precedido pelo reino do Anticristo. Segundo os mesmos cálculos, que não foram feitos por Arago, esse personagem nasceu em 1855 e deve viver 55 anos e meio; e como sua morte deve marcar o fim dos tempos, isto nos leva justo a 1911, a menos que tenha havido algum erro de cálculo, como para 1840.

Com efeito, a gente se lembra de que o fim do mundo também tinha sido predito para o ano de 1840; acreditavam com tanta certeza, que tinha sido pregado nas igrejas, e o vimos anunciado em certos catecismos de Paris às crianças da primeira comunhão, o que não deixou de impressionar deploravelmente alguns cérebros jovens. Como o melhor meio de salvar sua alma sempre foi dar dinheiro, despojar-se dos bens deste mundo, que são uma causa de perdição, foram feitas coletas e doações com este objetivo. Mas o Espírito do mal se insinua por toda parte neste século de racionalistas e impele aos piores pensamentos; ouvimos, com os próprios ouvidos, alunos de catecismo fazendo esta reflexão: "Se, diziam eles, o fim do mundo chega no próximo ano, como nos asseguram, será tanto para os padres quanto para os outros; então para que lhes servirá o dinheiro que pedem?” Na verdade não há mais crianças, mas meninos terríveis.

Sucederá o mesmo com o ano de 1911? A brochura em questão nos dá um meio certo de nos assegurarmos disto: é o retrato do Anticristo, pelo qual será fácil reconhecer o original; é bastante característico para que possa haver engano. É traçado por um célebre profeta alemão, Holzauzer, nascido em 1613, e que escreveu um comentário sobre o Apocalipse.

Segundo Holzauzer, o Apocalipse não é senão a história completa da Igreja católica, desde o seu nascimento até o fim do mundo, história que ele divide em sete épocas, figuradas, diz ele, pelas sete igrejas, às quais se dirige São João. Eis alguns dos traços mais característicos do Anticristo e dos acontecimentos que devem preceder a sua vinda.

“Tocamos neste momento o fim da quinta época. É então que sucederão essas espantosas desgraças anunciadas no Apocalipse (cap. VIII). A peste, a guerra, a fome, os terremotos farão vítimas inumeráveis. Todos os povos se levantarão uns contra os outros; a guerra será geral na Europa; mas o incêndio rebentará primeiro na Alemanha...

“Depois destas guerras formidáveis, que ensanguentarão o mundo inteiro, o protestantismo desaparecerá para sempre e o império dos turcos se desmoronará. Será o começo da sexta idade.

 “Os povos, esgotados por esses combates mortais, apavorados pelos horríveis flagelos, que marcarão o fim da quinta época, voltarão ao culto do verdadeiro Deus. Saindo vitoriosa das lutas sem-número que terá sustentado contra as heresias, a indiferença e a corrupção geral, a religião do Cristo reflorescerá mais brilhante que nunca. Jamais a Igreja católica terá tido um triunfo tão espetacular. Seus ministros, modelos de todas as virtudes, percorrerão o mundo para fazer ouvir aos homens a palavra de Deus...

“Mas esse triunfo da religião será de curta duração. O vício, abatido mas não aniquilado, pouco a pouco erguerá a cabeça, e logo a corrupção, fazendo rápidos progressos, invadirá novamente todas as classes da sociedade, e se introduzirá até no santuário. É então que se verá a abominação da desolação, anunciada pelo profeta. O mundo inteiro não será mais que uma imensa sentina de vícios e de crimes de toda sorte. Assim terminará a sexta idade.

“Então virá à Terra aquele que os profetas e os Pais da Igreja designaram sob o nome de Anticristo.

“Pobre e desconhecido, viverá uma vida miserável durante sua infância e a primeira juventude. Educado por seu pai no estudo das ciências ocultas, a elas se aplicará com furor e fará rápidos progressos. Dotado de inteligência pouco comum, de um espírito ardente e resoluto e de um caráter de ferro, mostrará, desde o berço, as mais violentas paixões. Reconhecendo nesse menino as temíveis qualidades daquele que deve um dia secundá-lo tão ardentemente em sua luta contra o gênero humano, Satã estremecerá de alegria e, pouco a pouco, lhe comunicará todo o seu poder.

“Todos os que dele se aproximarem ficarão maravilhados com os seus discursos e ações. Encará-lo-ão como um menino predestinado a grandes coisas, e dirão que a mão do Senhor estendeu-se sobre ele para o proteger e conduzir...

“Pouco a pouco, ajudado pelo renome, e aumentando ainda as maravilhas atribuídas ao jovem chefe, o número de seus sectários tornar-se-á rapidamente muito considerável...

“Logo se vendo à testa de um verdadeiro exército, composto de homens devotados até a morte, ele não hesitará mais em tomar o título de rei. Durante algum tempo ocupar-se-á em organizar o seu poder e pôr um pouco de ordem entre os seus novos súditos, mas nada negligenciando para lhes aumentar o número. Não tendo nome de família, tomará o nome de Cristo, que os judeus já lhe terão dado...

“Crescendo sua ambição com a fortuna, formará, no seu orgulho, o desígnio de conquistar toda a Terra e submeter todos os povos às suas leis...

“Em alguns dias o Anticristo reunirá um exército imenso e ver-se-á esse novo Átila engolir a Europa sob as ondas de suas hordas bárbaras. Os exércitos inimigos, feridos de pavor à vista dos numerosos prodígios que ele fará, deixar-se-ão dispersar e aniquilar, sem mesmo tentar combater. Três grandes reinos serão conquistados sem qualquer resistência. Seus soberanos expiarão nos mais cruéis suplícios sua recusa à submissão, e os povos vencidos serão entregues sem piedade a todos os furores de uma soldadesca desenfreada. Terrificadas ao saber dessas bárbaras vinganças, as outras nações imediatamente se submeterão. Então a Terra inteira não formará mais que um só e vasto reino, que o Anticristo governará a seu talante. Fará reconstruir, com uma magnificência inaudita, a cidade de Jerusalém, e dela fará a sede de seu império.

“Arrastado por seu fatal destino, ele fará todos os esforços por destruir todas as religiões, sobretudo a religião católica. Sobre os escombros do antigo culto, reconstruirá o edifício de um culto novo, do qual será, ao mesmo tempo, o sumo-sacerdote e o ídolo. Esta nova religião terá os seus defensores e os seus sacerdotes em toda parte. Um dos mais encarniçados e mais terríveis, aquele que São João designou nos versículos 11, 12 e 13 do capítulo XIII, como a besta de dois chifres, semelhantes aos do cordeiro, será o grande apóstata. Holzauzer o chama assim porque será um dos primeiros a renunciar ao Cristianismo para se dedicar com furor ao culto do Anticristo.

“Nessa época reinará sobre o trono de São Pedro um pontífice santo, com o nome de Pedro. Ferido de dor à vista dessas desgraças horrendas, e prevendo os perigos terríveis que correrão os fiéis, enviará a toda a cristandade santas exortações para premunir cada um contra as seduções do Anticristo, cuja perfídia desvendará claramente. Furioso por essa resistência aberta e pela imensa influência do Santo Padre, o grande apóstata entrará em Roma à frente de um exército e, com as próprias mãos, matará o último sucessor de Pedro nos degraus do altar...

“Por toda parte as igrejas serão invadidas, os santuários violados, os objetos do culto profanados. Os livros santos serão queimados, a cruz e todos os símbolos de nossa augusta religião serão pisados e arrastados no pó. Os quadros e as estátuas expostos à veneração dos fiéis serão derrubados; em seu lugar elevar-se-á a estátua maldita do Anticristo. — E esta estátua falará, diz o profeta...

“E ver-se-ão homens instruídos e eloquentes pregando essa idolatria de um novo gênero e, numa linguagem brilhante e imaginosa, exaltando os louvores daquele cuja estátua fala e faz milagres...

“Para ferir os olhos da multidão e subjugar as massas, o Anticristo realizará prodígios admiráveis. Transportará montanhas, andará sobre as águas e se elevará nos ares, todo brilhante de glória. Fará aparecerem vários sóis simultaneamente, ou mergulhará a Terra na mais completa escuridão. À sua voz, o raio cairá do céu, os rios suspenderão seu curso, as muralhas desabarão. Tornando-se invisível à vontade, irá de um lugar a outro com incrível rapidez e se mostrará em vários lugares ao mesmo tempo. Assim, como vimos, animará a sua imagem e lhe comunicará uma parte de seu poder. Mas, em sua maioria, esses prodígios não passarão de ilusões de óptica e o resultado de uma fantasmagoria diabólica; não serão verdadeiros  milagres, porque Satã, com toda a sua força, não poderia mudar as leis da Natureza... ”

Observação — Se não são milagres, na acepção rigorosa da palavra, não sabemos a que se pode dar esse nome; e se são, em sua maioria, ilusões de óptica, essas ilusões se afastam singularmente das leis da Natureza, e elas próprias seriam milagres, porquanto jamais se viu o raio cair e as muralhas desabarem por efeitos de óptica. O que ressalta de mais claro desta explicação é a dificuldade em distinguir os verdadeiros milagres dos falsos, e de fazer, nos efeitos dessa natureza, a parte dos santos e a do diabo.

“Ao mesmo tempo que ferirá todos os espíritos de espanto e admiração, o Anticristo, para ganhar todos os corações, exibirá todas as aparências da mais austera virtude. Enquanto se entrega à mais vergonhosa devassidão no fundo do seu palácio, aparentará temperança e caridade. Prodigalizando ouro e prata em seu redor, fará grandes bens aos pobres e não haverá em toda parte senão concertos e louvores por sua beneficência e sua caridade. Vê-lo-ão cada dia passar horas inteiras em prece no seu templo; numa palavra, ele se cobrirá com o manto da hipocrisia com tanta habilidade, que mesmo os seus mais fiéis servidores serão persuadidos de sua virtude e de sua santidade.

“Entretanto, o Senhor não deixará seus filhos sem defesa e sem socorro durante esses tempos de provação. Enoque e Elias voltarão à Terra para pregar a palavra de Deus, sustentar a coragem dos fiéis e desmascarar as imposturas dos falsos profetas. Durante mil duzentos e sessenta dias, ou três anos e meio, percorrerão o mundo, exortando todos os homens a fazer penitência e a voltar ao culto de Jesus-Cristo. Oporão verdadeiros milagres aos pretensos prodígios do Anticristo e de seus apóstolos... Mas, depois de terem acabado o seu testemunho, a besta que sobe do abismo (o Anticristo) lhes fará guerra, os vencerá e os matará.”

Observação — Não se poderia afirmar mais claramente a reencarnação. Não é aqui uma aparência, uma ilusão de óptica, é bem a reencarnação em carne e osso, pois os dois profetas são mortos.

“Então o orgulho do Anticristo não conhecerá mais limites. Orgulhoso da vitória que acaba de conquistar sobre os dois profetas que afrontavam tão impunemente o seu poder há três anos e meio, mandará construir um trono magnífico no Monte das Oliveiras e lá, cercado de uma legião de demônios transformados em anjos de luz, far-se-á adorar pela imensa multidão que será reunida para gozar de seu triunfo.

“Mas, chegado o vigésimo quinto dia, o corpo dos dois profetas, animado pelo sopro de Deus, ressuscitará e eles subirão ao céu, brilhantes de glória, à vista da multidão espantada. Enceguecido pela cólera e pelo ódio, o Anticristo anunciará que vai subir ao céu para buscar os seus inimigos e os precipitar na Terra. Com efeito, partindo nas asas dos demônios que o cercam, ele se elevará nos ares; mas nesse momento o céu se abrirá  e o Filho do Homem aparecerá sobre uma nuvem luminosa. O Anticristo será precipitado do céu com seu cortejo de demônios e, fendendo-se a terra, descerá vivo para o inferno...

“Então o fim do mundo estará próximo. Não se escoarão mais anos, nem meses, mas poucos dias, último termo dado aos homens para fazer penitência. Os prodígios mais assustadores se sucederão sem parar, até que o mundo inteiro pereça numa imensa perturbação.

“Eis o que anuncia Holzauzer, e isto não é senão a explicação do que está contido no Apocalipse; é a doutrina de todos os Pais da Igreja, encerrada no Evangelho e nos Atos dos Apóstolos.”

Observação — Assim, pois, acabará o mundo! Não é o sonho de um homem, é a doutrina de todos os Pais, que são a luz da Igreja. Aqueles de nossos leitores que apenas têm uma vaga ideia do Anticristo nos agradecerão, porque fizemos que o conhecessem com alguns detalhes, conforme as autoridades competentes. Se não há senão quarenta e três anos à sua frente, não tardaremos a ver esse reino maravilhoso. Por esses sinais reconheceremos a aproximação da data fatal.

O que há de estranho nesse relato é a obliteração do poder de Deus e de sua Igreja diante do Anticristo. Com efeito, após um triunfo de curta duração, a Igreja sucumbe novamente para não mais se erguer; a fé de seus ministros não é bastante grande para impedir a corrupção de introduzir-se até no santuário. Não é uma confissão ingênua de fraqueza e de impotência? São coisas que se pode pensar, mas é inabilidade gritar de cima dos telhados.

Teria sido deveras surpreendente que o Espiritismo não tivesse encontrado lugar nessa predição. Com efeito, ele aí está indicado como um dos sinais dos tempos, e eis em que termos. Não é mais Holzauzer quem fala, é o autor da brochura:

“Mas eis que esses ruídos se precisam, que esses terrores, que parecem quiméricos, tomam consistência e se formulam claramente. O fim do mundo se aproxima, gritam de todos os lados! Na Europa, nos países católicos, recordam-se as velhas profecias que, todas, anunciam esse grande acontecimento para a nossa época...

 “Não são senão os Espíritos batedores que dão o alarme. Abri O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, e lede na primeira página, nos prolegômenos, as palavras seguintes: ‘Os Espíritos anunciam que chegaram os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal e que, sendo eles os ministros de Deus e os agentes de sua vontade, têm por missão instruir e esclarecer os homens, abrindo uma nova era para a regeneração da Humanidade’.”

Observação — Não vemos que anunciar a regeneração  da Humanidade seja anunciar o seu fim; estas duas ideias se contradizem. Os Espíritos, em vez de darem o alarme, vêm trazer a esperança.

“Logo de começo o profeta Joel nos diz: ‘ Naqueles tempos a magia cobrirá toda a Terra, e ver-se-ão até crianças de peito fazendo coisas extraordinárias e discursando como pessoas grandes.’”

“O Espiritismo, esta magia do século dezenove, invadiu o mundo. Há apenas alguns anos, na América, na Inglaterra, na França, fenômenos admiráveis, inauditos, excitaram a curiosidade geral. Móveis inertes, animando-se à vontade dos operadores, entregavam-se às mais fantásticas evoluções, e respondiam sem hesitação às perguntas que lhes dirigiam. Buscou-se qual podia ser a causa inteligente desses efeitos inteligentes. As mesas responderam: São Espíritos, as almas dos homens que a morte levou, que vêm comunicar-se com os vivos. Novos fenômenos se produziram. Ouviram-se como que golpes batidos nos móveis, nas paredes das casas; viram-se objetos, movendo-se espontaneamente; ouviam-se vozes, sinfonias; viram-se mesmo aparições de pessoas mortas há muito tempo. Os prodígios se multiplicavam. Era preciso querer para ver; era preciso ver para ficar convencido.

“Em breve uma nova religião se organizou. Interrogados, os próprios Espíritos redigiram um código de sua nova doutrina. Foi, é preciso confessar, um sistema filosófico admiravelmente bem combinado sob todos os aspectos. Jamais o mais hábil sofista soube tão bem disfarçar a mentira e o paradoxo. Não podendo, sem desvendar sua origem e despertar suspeitas, quebrar de um golpe as ideias de Deus e de virtude, os Espíritos começam reconhecendo altamente a existência de Deus, a necessidade desta virtude; mas fazem tão pouca diferença entre a sorte dos justos e a dos maus, que se é forçosamente levado, por essas crenças, a satisfazer a todas as suas paixões e a buscar na morte um refúgio contra a infelicidade. O crime e o suicídio são as duas consequências fatais desses princípios que, à primeira vista, parecem marcados por uma moral tão bela e tão pura.

“Para explicar a anomalia dessas comunicações de além-túmulo, os Espíritos não puderam deixar de anunciar, como vimos, que os tempos marcados pela providência tinham chegado; mas, não querendo falar do fim do mundo, o que absolutamente não entrava em seu sistema, acrescentaram: para a regeneração universal da Humanidade.”

Observação — Por uma singular coincidência, no mesmo dia, 24 de fevereiro, em que nos chegou essa brochura, que nos era enviada por um de nossos correspondentes de Lyon, e no momento que líamos estes últimos parágrafos, recebemos das cercanias de Boulogne-sur-Mer uma carta, da qual extraímos as seguintes passagens:

“É do fundo de um vale obscuro do Boulonais que vos chegam estas poucas palavras, reflexos de uma existência sofredora; porque o Espiritismo penetra por toda parte, para espalhar a luz e as consolações. Pessoalmente, quanto alívio não lhe devo, bem como a vós, senhor, que sois o seu dispensador!

“Nascido de pais muito pobres, carregados de oito filhos, dos quais sou o mais velho, ai! até agora não ganhei o meu pão, embora tenha vinte e nove anos, pela debilidade de minha constituição. Juntai a isto uma propensão inata ao orgulho, à vaidade, à violência, etc., e julgai o que tive de suportar de males, na minha miserável condição, antes que o Espiritismo tivesse vindo explicar-me o enigma de meu destino. Cheguei a tal ponto que resolvi suicidar-me.

“Para este fim, para acalmar as minhas apreensões e as censuras de minha consciência, eu me tinha dito, na minha fé de católico: Ferir-me-ei com um golpe que, embora mortal, não me fará morrer instantaneamente e me deixará dispor de alguns instantes de vida, suficientes para que eu tenha a possibilidade de me confessar, comungar e manifestar o meu arrependimento; numa palavra, de me pôr em condições de me assegurar uma vida ditosa no outro mundo, escapando aos males deste.

“Meu raciocínio era muito absurdo, não acha, senhor? E, contudo, não era consequente com o dogma que nos afirma que todo pecado, todo crime mesmo, é apagado pela simples confissão feita a um sacerdote que dá a absolvição?

“Agora, graças ao conhecimento do Espiritismo, semelhantes ideias estão para sempre banidas do meu pensamento; entretanto, quanta imperfeição ainda me resta a despojar!”

Assim, o Espiritismo impediu um ato, um crime que teria sido cometido, não na ausência de toda fé, mas antes, diz a pessoa, pela consequência mesma de sua fé católica. Neste caso, qual foi a mais poderosa para impedir o mal? Esse rapaz será danado por ter seguido o impulso do Espiritismo, obra do demônio, segundo o autor da brochura, ou teria sido salvo, suicidando-se, por ter recebido, antes de morrer, a absolvição de um sacerdote? Que o autor da brochura, com a mão na consciência, responda a esta pergunta.

Tendo sido lidos os fragmentos acima na Sociedade de Paris, o nosso antigo colega Jobard veio dar, espontaneamente, sobre o assunto, a comunicação seguinte, por um médium em sonambulismo espiritual:

(Sociedade de Paris, 28 de fevereiro — Médium: Sr. Morin)

Eu passava, quando o eco me trouxe a vibração de uma imensa gargalhada. Prestei atenção e, tendo reconhecido o ruído do riso dos encarnados e dos desencarnados, me disse: Sem dúvida a coisa é interessante; vamos ver!... E eu não acreditava, senhores, ter o prazer de vir passar a noite junto de vós. Contudo, estou feliz por isto, crede-o bem, porque sei toda a simpatia que conservastes por vosso antigo colega.

Assim, aproximei-me e os ruídos da Terra me chegaram mais distintos: O fim do mundo! exclamavam; o fim do mundo!... Oh! meu Deus, me disse eu, se é o fim do mundo, em que se vão tornar?... A voz de vosso presidente e meu amigo, chegando até mim, compreendi que vos lia algumas passagens de uma brochura na qual se anuncia o fim do mundo como muito próximo. O assunto interessou-me; escutei atentamente e, após ter refletido maduramente, venho, como o autor da brochura, dizer-vos: Sim, senhores, o fim do mundo está próximo!... Oh! não vos assusteis, senhoras, porque é preciso estar bem perto para o tocar; e quando o tocardes o vereis.

Esperando, se me permitis, vou dar-vos minha apreciação sobre esta palavra, espantalho dos cérebros fracos e, também, dos Espíritos fracos; porque, sabei-o, se o temor do fim do mundo aterroriza os seres pusilânimes do vosso mundo, fere igualmente de terror os seres atrasados da erraticidade. Todos os que não estão desmaterializados, isto é, que, embora Espíritos, vivem mais materialmente que espiritualmente, se apavoram à ideia do fim do mundo, porque compreendem, por esta palavra, a destruição da matéria. Não vos admireis, pois, de que essa ideia emocione certos Espíritos, que não saberiam em que se tornar, se a Terra não existisse mais, porquanto a Terra ainda é o seu mundo, o seu ponto de apoio.

Por mim, me disse: Sim, o fim do mundo está próximo; está aí, eu o vejo, o toco... está próximo para os que, mau grado seu, trabalham para precipitar o seu advento!... Sim, o fim do mundo está próximo; mas, o fim de que mundo?

Será o fim do mundo da superstição, do despotismo, dos abusos mantidos pela ignorância, pela malevolência e pela hipocrisia; será o fim do mundo egoísta e orgulhoso, do pauperismo, de tudo o que é vil e rebaixa o homem; numa palavra, de todos os sentimentos baixos e cúpidos, que são o triste apanágio do vosso mundo.

Esse fim do mundo, essa grande catástrofe que todas as religiões concordam em prever, é o que elas entendem? Ao contrário, não se deve ver a realização dos altos destinos da Humanidade? E se refletirmos em tudo o que se passa em torno de nós, esses sinais precursores não serão o sinal do começo de um outro mundo, isto é, de um outro mundo moral, em vez do da destruição do mundo material?

Sim, senhores, um período de depuração terrestre termina neste momento; um outro vai começar... Tudo concorre para o fim do velho mundo, e os que se esforçam por sustentá-lo trabalham energicamente, sem o querer, para a sua destruição. Sim, o fim do mundo está próximo para eles; pressentem-no e se apavoram, crede bem, mais que do fim do mundo terrestre, porque é o fim de sua dominação, de sua preponderância, a que se apegam mais do que a qualquer outra coisa; e isto não será, em relação a eles, a vingança de Deus, pois Deus não se vinga, mas a justa recompensa de seus atos.

Como vós, os Espíritos são filhos de suas obras; se são bons, é porque trabalharam para o ser; se são maus, não é porque tenham trabalhado para o ser, mas porque não trabalharam para se tornarem bons.

Amigos, o fim do mundo está próximo e vos convido vivamente a tomar boa nota desta previsão; ele está tanto mais próximo quanto já se trabalha para o reconstruir. A sábia previdência dAquele a quem nada escapa, quer que tudo se construa, antes que tudo seja destruído; e quando o edifício novo for concluído, quando a cumeeira estiver coberta, então é que desabará o antigo; cairá por si mesmo, de sorte que entre o mundo novo e o velho não haverá solução de continuidade.

É assim que se deve entender o fim do mundo, que já pressagiam tantos sinais precursores. E quais serão os poderosos obreiros para esta grande transformação? Sois vós, senhoras; sois vós senhoritas, com o auxílio da dupla alavanca da instrução e do Espiritismo. Na mulher na qual o Espiritismo penetrou, há mais que uma mulher, há um trabalhador espiritual; nesse estado, tudo trabalhando por ela, a mulher trabalha ainda muito mais que o homem na edificação do monumento, porque, quando ela conhecer todos os recursos do Espiritismo e dele souber servir-se, a maior parte da obra por ela estará feita. Amamentando o corpo de seu filho, também poderá alimentar o seu espírito; e que melhor ferreiro do que o filho de um ferreiro, aprendiz de seu pai? Assim o menino sugará, ao crescer, o leite da espiritualidade, e quando tiverdes espíritas, filhos de espíritas e pais de espíritas, o fim do mundo, tal qual o compreendemos, não estará realizado? Depois disto, admirai-vos de que o Espiritismo seja um espantalho para tudo o que se prende ao velho mundo, e do encarniçamento com que procuram sufocá-lo em seu berço?

Jobard


 

Intolerância e Perseguição com Respeito ao Espiritismo

O fato seguinte nos foi assinalado por um dos nossos correspondentes. Por conveniência, calamos o nome do lugar onde se passou, mas, se necessário, temos em mãos a peça justificativa.

O cura de..., tendo sabido que uma de suas paroquianas havia recebido O Livro dos Espíritos, veio à sua casa e lhe fez uma cena escandalosa, apostrofando-a com epítetos muito pouco evangélicos; além disso, ameaçou-a de não a enterrar, quando morresse, se ela não acreditasse no diabo e no inferno; depois, apoderando-se do livro, levou-o.

Alguns dias mais tarde aquela senhora, que pouco se abalara com aquela altercação, foi à casa do padre lhe reclamar o seu livro, dizendo a si mesma que se ele não o devolvesse, não lhe seria difícil adquirir outro e que saberia pô-lo em lugar seguro.

O livro foi devolvido, mas num estado que provava que uma santa cólera se havia descarregado sobre ele. Estava manchado de rasuras, de anotações, de refutações, nas quais os Espíritos eram tratados de mentirosos, de demônios, de estúpidos, etc. A fé daquela senhora, longe de ficar abalada, fortaleceu-se ainda mais. Dizem que se apanham mais moscas com mel do que com vinagre. O padre lhe apresentou vinagre; ela preferiu o mel, e disse: Perdoai-lhe, Senhor, porque ele não sabe o que faz. De que lado estava o verdadeiro Cristianismo?

Cenas desta natureza eram muito frequentes há sete ou oito anos, e por vezes tinham um caráter de violência que raiava o burlesco. Recorde-se aquele missionário que escumava de raiva pregando contra o Espiritismo, e se agitava com tanto furor que temiam que de uma hora para outra caísse do púlpito. E aquele outro pregador que convidava todos os detentores de obras espíritas para que lhas trouxessem, a fim de serem queimadas em praça pública. Infelizmente para ele não lhe trouxeram uma só, contentando-se em queimar no pátio do seminário todos os volumes que puderam comprar nas livrarias. Hoje que se reconheceu sua inutilidade e inconveniência, essas demonstrações excêntricas são muito raras; a experiência provou que elas desviaram mais fiéis da Igreja do que do Espiritismo.

O fato relatado acima tem um caráter de particular gravidade. Em sua igreja, o padre está em sua casa, no seu terreno; dar ou recusar preces, conforme a sua consciência, está no seu direito; usa-o, sem dúvida, de maneira mais prejudicial que útil à causa que defende, mas, enfim, está no seu direito e achamos ilógico que pessoas que estão, por pensamento, se não de fato, separadas da Igreja, que não cumprem nenhum dos deveres que esta impõe, tenham a pretensão de constranger um padre a fazer o que, com ou sem razão, ele considera como contrário à sua regra. Se não credes na eficácia de suas preces, porque lhas exigir? Mas, pela mesma razão, ele ultrapassa o seu direito, quando se impõe aos que não o pedem.

No caso de que se trata, com que direito aquele padre ia violentar a consciência daquela senhora em seu próprio domicílio, ali fazer uma visita inquisitorial e apoderar-se do que não lhe pertencia? Que ganha a religião com esse excesso de zelo? Os amigos inábeis são sempre prejudiciais.

O fato em si é de pouca importância e não é, em última análise, senão uma pequena pirraça, que prova a estreiteza das ideias de seu autor; dele não teríamos falado se não se ligasse a fatos mais graves, às perseguições propriamente ditas, cujas consequências são mais sérias.

Estranha anomalia! Seja qual for a posição de um homem, oficial ou subordinada a um título qualquer, não lhe contestam o direito de ser protestante, judeu ou mesmo absolutamente nada; pode ser abertamente incrédulo, materialista ou ateu; pode preconizar tal ou qual filosofia, mas não tem o direito de ser espírita. Se for suspeito de Espiritismo, como outrora se era suspeito de jansenismo, é suspeito; se a coisa é confessada, é olhado de soslaio por seus superiores, quando estes não pensam como ele, considerado como perturbador da sociedade, ele que abjura toda ideia de ódio e de vingança, que tem como regra de conduta a caridade cristã na sua mais rigorosa acepção, a benevolência para com todos, a tolerância, o esquecimento e o perdão das injúrias, numa palavra, todas as máximas que são a garantia da ordem social, e o maior freio das más paixões. Pois bem! o que, em todos os tempos e em todos os povos civilizados, é um título à estima das pessoas honestas, torna-se um sinal de reprovação aos olhos de certa gente, que não perdoa a um homem ter-se tornado melhor pelo Espiritismo!  Sejam quais forem as suas qualidades, os seus talentos, os serviços prestados, se não for independente, se sua posição não for invulnerável, uma mão, instrumento de uma vontade oculta, o oprime e fere, se puder, nos seus meios de subsistência, em suas afeições mais caras, e até em sua consideração.

Que semelhantes coisas se passem em regiões onde a fé exclusiva erige a intolerância em princípio, como a sua melhor salvaguarda, nada tem de surpreendente; mas que ocorram em países onde a liberdade de consciência está inscrita no código das leis como um direito natural, é mais difícil de compreender. É preciso, então, que se tenha muito medo desse Espiritismo, embora o apresentem como uma ideia oca, uma quimera, uma utopia, uma bagatela que um sopro da razão pode abater! Se esta luz fantástica ainda não está extinta, não é, entretanto, por não a terem soprado. Soprai, pois, soprai sempre: há chamas que são atiçadas soprando, em vez de serem apagadas.

Alguns, contudo, perguntarão: o que se pode censurar àquele que não quer e não pratica senão o bem? que cumpre os deveres de seu cargo com zelo, probidade, lealdade e devotamento? que ensina a amar a Deus e ao próximo? que prega a concórdia e convida todos os homens a se tratarem como irmãos, sem acepção de cultos nem de nacionalidades? Não trabalha ele para o apaziguamento das dissensões e dos antagonismos que causaram tantos desastres? Não é o verdadeiro apóstolo da paz? Unindo por seus princípios o maior número possível de aderentes, por sua lógica, pela autoridade de sua posição e, sobretudo, por seu exemplo, não evitará conflitos lamentáveis? Se, em lugar de um, forem dez, cem, mil, sua influência salutar não será tanto maior? Tais homens são auxiliares preciosos; nunca são bastantes; não se deveria encorajá-los, honrá-los? A doutrina que faz penetrar esses princípios no coração do homem pela convicção apoiada numa fé sincera, não é um penhor de segurança? Aliás, onde se viu que os espíritas fossem provocadores de perturbações? Ao contrário, não são eles sempre e por toda parte assinalados como gente pacífica e amiga da ordem? Todas as vezes que foram provocados por atos de malevolência, em vez de usar represálias não evitaram com cuidado tudo quanto pudesse ter sido uma causa de desordem? Alguma vez a autoridade já os castigou por algum ato contrário à tranquilidade pública? Não, porque um funcionário, encarregado da manutenção da ordem, há pouco dizia que se todos os seus administrados fossem espíritas, ele poderia fechar a sua repartição. Haverá homenagem mais característica, prestada aos sentimentos que os animam? E a que palavra de ordem obedecem? unicamente à de sua consciência, pois não denotam nenhuma personalidade patente ou oculta na sombra. Sua doutrina é sua lei, e essa lei lhes prescreve fazer o bem e evitar o mal; por seu poder moralizador ela conduziu à moderação homens exaltados, nada temendo, nem Deus, nem a justiça humana, e capazes de tudo. Se ela fosse popular, com que peso não se apresentaria nos momentos de efervescência e nos centros turbulentos? Em que, então, pode esta doutrina ser um motivo de reprovação? Como pode chamar a perseguição sobre aqueles que a professam e a propagam?

Admirai-vos de que uma doutrina que não produz senão o bem tenha adversários! Mas, então, não conheceis a cegueira do espírito de partido? Alguma vez ele já considerou o bem que pode fazer uma coisa, quando contrária às suas opiniões e aos seus interesses materiais? Não esqueçais que certos oponentes o são por sistema, muito mais que por ignorância. Seria em vão que esperaríeis atraí-los a vós pela lógica de vossos raciocínios e pela perspectiva dos efeitos salutares da Doutrina; eles sabem isto tão bem quanto vós, e é precisamente porque o sabem que não o querem; quanto mais rigorosa e irresistível é essa lógica, mais ela os exaspera, porque lhes fecha a boca. Quanto mais lhes demonstram o bem que produz o Espiritismo, mais se irritam, porque sentem que aí está a sua força; por isso, ainda que ele devesse salvar o país dos maiores desastres, mesmo assim o repeliriam. Triunfais de um incrédulo, de um ateu de boa-fé, de uma alma viciosa e corrompida, mas nunca de gente de ideias preconcebidas!

Que esperam, pois, da perseguição? Deter o impulso das ideias novas pela intimidação? Vejamos, em algumas palavras, se tal objetivo pode ser atingido.

Todas as grandes ideias, todas as ideias renovadoras, assim na ordem científica como na ordem moral, receberam o batismo da perseguição, e isto era inevitável, porque elas ferem os interesses dos que viviam velhas ideias, preconceitos e abusos. Mas, desde que essas ideias constituem verdades, já se viu alguma vez a perseguição deter o seu curso? Não está aí a história de todos os tempos para provar que, ao contrário, elas cresceram, consolidaram-se, propagadas pelo efeito mesmo da perseguição? A perseguição foi o estimulante, o aguilhão que as impeliu para frente e fez avançar mais depressa, superexcitando os espíritos, de sorte que os perseguidores trabalharam contra si mesmos e não ganharam senão ser estigmatizados pela posteridade. Só se perseguiram as ideias nas quais se via o futuro; as que julgaram sem consequência deixaram que morressem de morte natural.

O Espiritismo, ele também, é uma grande ideia; devia, pois, receber seu batismo como seus precursores, porque o espírito dos homens não mudou, e lhe acontecerá o que aconteceu aos outros: um acréscimo de importância aos olhos da multidão e, por conseguinte, maior popularidade. Quanto mais em evidência estiverem as vítimas por sua posição, maior repercussão haverá em razão da extensão de suas relações.

A curiosidade é tanto mais superexcitada quanto mais a pessoa é cercada de mais estima e consideração; cada um quer saber o porquê e o como; conhecer o fundo dessas opiniões, que despertam tanta cólera; interrogam, leem, e eis como uma porção de gente, que talvez jamais se teria ocupado de Espiritismo, é levada a conhecê-lo, a julgá-lo, a apreciá-lo e a adotá-lo. Tal foi, como se sabe, o resultado das declamações furibundas, das interdições pastorais, das diatribes de toda sorte. Tal será o das perseguições. Estas fazem mais: elevam o Espiritismo ao nível das crenças sérias, porque diz o bom-senso que não se combatem quimeras.

A perseguição contra as ideias falsas, errôneas, é inútil, porque estas se desacreditam e caem por si mesmas. Tem como efeito criar partidários e defensores, e retardar a sua queda, porque muitos as consideram como boas, precisamente porque são perseguidas. Quando a perseguição se ataca a ideias verdadeiras, vai diretamente contra o seu objetivo, porque lhe favorece o desenvolvimento; é, pois, em todos os casos, uma inabilidade que se volta contra os que a cometem.

Um escritor moderno lamentava que não tivessem queimado Lutero, a fim de destruir o protestantismo em sua raiz; mas como não poderiam tê-lo queimado senão após a emissão de suas ideias, se o tivessem feito o protestantismo talvez estivesse duas vezes mais espalhado do que está. Queimaram João Huss; que ganhou com isso o concílio de Constança? cobrir-se com uma nódoa indelével. Mas as ideias do mártir não foram queimadas com ele: foram um dos fundamentos da Reforma. A posteridade conferiu a glória a João Huss e a vergonha ao concílio. ( Revista Espírita, agosto de 1866). Hoje já não queimam, mas perseguem de outras maneiras.

Sem dúvida, quando desaba uma tempestade, muitos se põem ao abrigo. As perseguições podem, pois, impedir momentaneamente a livre manifestação do pensamento; os perseguidores, crendo tê-la abafado, adormecem numa segurança enganadora; mas o seu pensamento não subiste menos, e as ideias reprimidas são como as plantas em estufa: crescem mais depressa.


 

O Espiritismo em Cadiz, em 1853 e 1868

Temos dito em várias ocasiões que o Espiritismo conta numerosos adeptos na Espanha, o que prova que a restrição das ideias não as impede de produzir-se. Desde muito tempo já sabíamos que Cadiz era a sede de um importante centro espírita. Um dos membros dessa sociedade, tendo vindo a Paris o ano passado, deu-nos a respeito detalhes circunstanciados de alto interesse, e que depois nos lembrou em sua correspondência. Só a abundância das matérias nos impediu de os publicar mais cedo.

Os espíritas de Cadiz, reivindicam para a sua cidade a honra de ter sido uma das primeiras, se não a primeira na Europa, a possuir uma reunião espírita constituída, recebendo comunicações regulares dos Espíritos, pela escrita e pela tiptologia, sobre assuntos de moral e de filosofia. Com efeito, esta pretensão é justificada pela publicação, em 1854, de um livro impresso em língua espanhola. Contém de início um prefácio explicativo sobre a descoberta das mesas falantes e a maneira de as utilizar; depois a relação de respostas a perguntas dirigidas aos Espíritos numa série de sessões realizadas desde 1853. O procedimento consistia numa mesinha de três pés e de um alfabeto dividido em três séries, correspondendo cada uma a um dos pés da mesinha. Sem dúvida as respostas são muito elementares, comparativamente ao que hoje se obtém, e nem todas são de uma exatidão irreprochável, mas na maioria concordam com o ensinamento atual. Citaremos apenas algumas delas, para mostrar que na época, aliás quase por toda parte, em que não se ocupavam das mesas girantes senão como objeto de distração, em Cadiz já pensavam em utilizar o fenômeno para instruções sérias.

(8 de novembro de 1853) — Aqui está presente um Espírito? — Sim. — Como te chamas? — Eqe. — Em que parte do mundo habitaste? — Na América do Norte. — Eras homem ou mulher? — Mulher. — Dize-nos o teu nome em inglês. — Akka. — Como traduzes belo  em inglês? — Fine. — Por que vieste aqui? — Para fazer o bem. — A ti ou a nós? — A todos. — Então podes dar-nos esse bem? — Posso; tudo está no trabalho. — Como alcançaremos o bem? — Emancipando a mulher; tudo depende dela.

(11 de novembro). O Espírito Eqe. — Há um outro modo de comunicação com os Espíritos? — Sim, pelo pensamento. — De que maneira? — Lê o teu. — E como poderíamos nos entender com o pensamento dos Espíritos? — Pela concentração. — Há um meio de chegar a isto facilmente? — Sim, a felicidade. — Como se obtém a felicidade? — Amando-vos uns aos outros.

(25 de novembro). Anna Ruiz. — Para onde vai nossa alma ao se separar do corpo? — Ela não deixa a Terra. — Queres dizer o corpo? — Não, a alma. — Tens os mesmos gozos na outra vida que nesta aqui? — Os mesmos e melhores: trabalhamos em todo o Universo.

(26 de novembro). Odiuz. — Os Espíritos revestem uma forma? — Sim. — Qual? — A forma humana. Há dois corpos: um material, outro de luz. — O corpo de luz é o Espírito? — Não; é uma agregação de éter; fluidos leves formam o corpo de luz. — Que é um Espírito? — Um homem em estado de essência. — Qual é o seu destino? — Organizar o movimento material cósmico; cooperar com Deus para a ordem e nas leis dos mundos no Universo.

(30 de novembro). Um Espírito espontaneamente. A ordem distribui as harmonias. Esta lei vos diz que cada globo do sistema solar é habitado por uma humanidade como a vossa; cada membro dessa humanidade é um ser completo na classe que ocupa; possui uma cabeça, um tronco e membros. Cada um tem a sua destinação marcada, coletiva ou terrestre, visível ou invisível. O Sol, como os planetas e seus satélites, tem seus habitantes com um destino complexo. Cada uma das humanidades que povoam esses diversos globos tem sua dupla existência, visível e invisível, e uma palavra espiritual apropriada a cada um desses estados.

(1º de dezembro). Odiuz. Lede João e tereis a significação da palavra verbo. Sabereis o que é o verbo  da humanidade solar; cada humanidade tem a sua Providência, seu homem-Deus; a luz do homem-Deus solar é a Providência antropomórfica de todos os globos do sistema solar.

(8 de dezembro). — Há analogia entre a luz material e a luz espiritual? — O Sol ilumina, os planetas refletem sua luz. A inteligência solar ilumina as inteligências planetárias e estas as de seus satélites. A luz inteligente emana do cérebro da humanidade solar, que é a centelha inteligente, como o Sol é a centelha material de todos os astros. Há também analogia no modo de expansão da luz inteligente em cada humanidade que a recebe do foco principal para a comunicar aos seus membros.

Há unidade de sistema entre o mundo material e o mundo espiritual.

Nós temos a Natureza que reflete as leis que precederam a Criação. A seguir vem o Espírito humano que analisa a Natureza para descobrir estas leis, interpretá-las e compreendê-las. Esta análise é para a luz espiritual o que é a refração para a luz física, porque a Humanidade inteira forma um prisma intelectual, no qual a luz divina única se refrata de mil maneiras diferentes.

(4 de janeiro de 1854). — Por que nem sempre os Espíritos vêm ao nosso apelo? — Porque são muito ocupados. — Por que alguns Espíritos que se apresentaram até agora responderam por enigmas ou absurdos? — Porque eram Espíritos ignorantes e levianos. — Como os distinguir dos Espíritos sérios? — Por suas respostas.

— Podem os Espíritos tornar-se visíveis? — Algumas vezes. — Em que caso? — Quando se trata de humilhar o fanatismo. — Sob que forma o Espírito se apresentou ao arcebispo de Paris? Forma humana. — Qual a verdadeira religião? — Amar-vos uns aos outros.

O extrato seguinte, de uma carta do nosso correspondente, datada de 17 de agosto de 1867, dará uma ideia do espírito que preside à Sociedade Espírita atual de Cadiz:

“Desde onze anos estamos em comunicação com Espíritos da vida superior e, nesse espaço de tempo, eles nos fizeram importantes revelações sobre a moral, a vida espiritual e outros assuntos de interesse do progresso.

“Reunimo-nos cinco vezes por semana. O Espírito presidente de nossa Sociedade, ao qual os outros Espíritos concedem uma certa supremacia, chama-se Pastoret. Temos na Sra. J... um excelente médium vidente e falante. Ela se comunica por meio de uma mesinha de três pés, que não lhe serve senão para estabelecer a corrente fluídica, e vê as palavras escritas numa espécie de fita fluídica, que passa incessantemente diante de seus olhos, e nela lê como num livro. Esse meio de comunicação, aliado à benevolência dos Espíritos que vêm às nossas sessões, permite-nos apresentar as nossas observações e estabelecer discussões quase familiares com esses mesmos Espíritos.

“Cada noite a sessão é aberta com a presença do Espírito Gardoqui, que conhecemos e que, em vida, exercia a Medicina em Cadiz. Depois de dar conselhos aos nossos irmãos presentes, vai visitar os doentes que lhe recomendamos; indica os remédios necessários, e quase sempre com sucesso.

“Depois da visita do médico vem o Espírito familiar do círculo, que nos traz outros Espíritos, ora superiores para nos instruírem, ora inferiores, a fim de que os auxiliemos com os nossos conselhos e os nossos encorajamentos. Por indicação dos nossos guias, realizamos periodicamente missões de caridade em favor dos pobres.

“Além do ridículo, contra o qual vós outros, franceses, tendes de lutar tanto quanto nós, lutamos contra a intolerância. Contudo não desanimamos, porque a força de convicção que Deus nos dá é mais poderosa que os obstáculos.

“Terminamos cada sessão pela seguinte prece:

“Pai universal! Senhor todo-poderoso! dirigimo-nos a ti, porque te reconhecemos como o Deus único e eterno. Pai! desejamos não incorrer na tua censura, mas, ao contrário, avançar a nossa purificação para nos aproximarmos de ti, único bem verdadeiro, suprema felicidade prometida aos que retornam junto a ti.

“Senhor! lembramos-te continuamente os nossos pecados, a fim de que no-los perdoes, após a expiação que merecem. Quanto já não devemos à tua imensa bondade! Sede misericordioso para conosco.

 “Pai eterno, tu me deste a vida e, com a vida, a inteligência para te conhecer, um coração para te amar e para amar os meus semelhantes. Minha inteligência crescerá quando eu pensar em ti e quando me elevar a ti.

“Pai universal de todos os seres, grande arquiteto do Universo, água benta com que estancamos a sede do amor divino, nem o curso do tempo, nem a diferença das inteligências impedem de te reconhecer, porque teu grande poder e teu grande amor se veem por toda parte.

“Pai! nós nos confiamos à tua misericórdia e, como prova de nossa sinceridade, nós te ofertamos as nossas vidas, os nossos bens, tudo quanto nos deste. Nada possuímos que não venha de ti; pomos tudo à disposição dos nossos irmãos necessitados, para que aproveitem o fruto da nossa inteligência e do nosso trabalho.

“Somos teus filhos, Senhor! e solicitamos de tua infinita bondade um raio de luz para nos conduzir no caminho que nos mostraste, até que cheguemos ao complemento de nossa felicidade.

“Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia, dá-nos hoje. Perdoa as nossas ofensas como perdoamos os que nos ofenderam, agora e sempre, até na hora de nossa morte.

“Nós te dirigimos as nossas preces, Pai infinitamente bom, por todos os nossos irmãos que sofrem na Terra e no espaço. Nosso pensamento é para eles e a nossa confiança está em ti.”

Que os espíritas de Cadiz recebam, por nosso intermédio, os sinceros cumprimentos de seus irmãos de todos os países. A iniciativa que tomaram, na extremidade da Europa e numa terra refratária, sem relações com os outros centros, sem outro guia além de suas próprias inspirações, quando o Espiritismo, quase por toda parte, ainda estava na infância, é uma prova a mais de que o movimento regenerador recebe seu impulso de mais alto que a Terra e que seu foco está em toda parte; que, assim, é temerário e presunçoso esperar sufocá-lo comprimindo-o num ponto, pois que, em falta de uma saída, há mil outros pelos quais será feita a luz. Para que servem as barreiras contra aquilo que vem do alto? De que serve esmagar alguns indivíduos, quando há milhões disseminados sobre toda a Terra, que recebem a luz e a espalham? Querer aniquilar o que está fora do poder do homem, não é representar o papel dos gigantes que queriam escalar o céu?


 

Dissertação Espírita — Instrução das Mulheres

(Joinville, Haute-Marne, 10 de março de 1868 — Médium: Sra. P...)

Neste momento a instrução da mulher é uma das mais graves questões, porque não contribuirá pouco para realizar as grandes ideias de liberdade, que dormitam nos fundos dos corações.

Honra aos homens corajosos que tomaram a sua iniciativa! eles podem, de antemão, estar certos do sucesso de seus trabalhos. Sim, soou a hora da libertação da mulher; ela quer ser livre e para isto deve libertar a sua inteligência dos erros e dos preconceitos do passado. É pelo estudo que ela alargará o círculo de seus conhecimentos estreitos e mesquinhos. Livre, ela fundará a sua religião sobre a moral, que é de todos os tempos e de todos os países. Ela quer ser, ela será a companheira inteligente do homem, sua conselheira, sua amiga, a instrutora de seus filhos, e não um joguete, do qual se servem como uma coisa, e que depois deixam de lado para tomar uma outra.

Ela quer trazer a sua pedra ao edifício social, que se ergue neste momento ao poderoso sopro do progresso.

É verdade que, uma vez instruída, ela escapa das mãos daqueles que dela fazem um instrumento. Como um pássaro cativo, ela quebra a sua gaiola e voa para os vastos campos do infinito. É verdade que, pelo conhecimento das leis imutáveis que regem os mundos, ela compreenderá Deus de modo diferente do que lhe ensinam; não acreditará mais num Deus vingador, parcial e cruel, porque sua razão lhe dirá que a vingança, a parcialidade e a crueldade não podem conciliar-se com a justiça e a bondade; o seu Deus — dela — será todo amor, mansuetude e perdão.

Mais tarde ela conhecerá os laços de solidariedade que unem os povos entre si, e os aplicará em seu redor, espalhando com profusão tesouros de caridade, de amor e de benevolência para todos. Seja qual for a seita a que pertença, saberá que todos os homens são irmãos, e que o mais forte não recebeu a força senão para proteger o fraco e o elevar na sociedade ao verdadeiro lugar que deve ocupar.

Sim, a mulher é um ser perfectível como o homem, e suas aspirações são legítimas; seu pensamento é livre e nenhum poder do mundo tem o direito de a escravizar ao sabor de seus interesses ou de suas paixões. Ela reclama sua parte de atividade intelectual, e a obterá, porque há uma lei mais poderosa que todas as leis humanas: a do progresso, à qual toda a Criação está submetida.

Um Espírito

Observação — Temos dito e repetido muitas vezes: a emancipação da mulher será a consequência da difusão do Espiritismo, porque ele funda os seus direitos, não numa ideia filosófica generosa, mas sobre a própria identidade do Espírito. Provando que não há Espíritos homens e Espíritos mulheres, que todos têm a mesma essência, a mesma origem e o mesmo destino, ele consagra a igualdade dos direitos. A grande lei da reencarnação vem, além disso, sancionar este princípio. Desde que os mesmos Espíritos podem encarnar, ora como homens, ora como mulheres, disso resulta que o homem que escraviza a mulher poderá ser escravizado por sua vez; que, assim, trabalhando pela emancipação das mulheres, os homens trabalham pela emancipação geral e, por conseguinte, em proveito próprio. As mulheres têm, pois, um interesse direto na propagação do Espiritismo, porque ele fornece em apoio de sua causa os mais poderosos argumentos que jamais foram invocados. (Vide a Revista Espírita, janeiro de 1866; junho de 1867).

Allan Kardec




[1] Para alguns exegetas da Boa Nova, tais palavras não teriam sido pronunciadas pelo apóstolo Tomé, mas interpoladas no Evangelho de João para justificar o dogma da divindade do Cristo.

Maio de 1868

Correspondência Inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia

(Continuação e fim. Vide o número de abril de 1868)

Sexta Carta

Mui venerada imperatriz,

Junto ainda uma carta chegada do mundo invisível! Possa ela, como as precedentes, ser apreciada  por vós e sobre vós produzir um efeito salutar!

Aspiramos sem cessar a uma comunicação mais íntima com o Amor, o mais puro que se manifestou no homem e se glorificou em Jesus, o Nazareno!

Muito venerada imperatriz, nossa felicidade futura está em nosso poder, uma vez que nos é concedida a graça de compreender que só o amor pode nos dar a felicidade suprema, e que só a fé no amor divino faz brotar em nossos corações o sentimento que torna eternamente felizes, a fé que desenvolve, depura e completa nossa aptidão para amar.

Muitos temas ainda me restam para vos comunicar. Procurarei acelerar a continuação do que comecei a vos expor, e me consideraria muito feliz se pudesse esperar ter podido ocupar agradavelmente e utilmente alguns momentos de vossa preciosa vida.

João Gaspar Lavater

Zurique, 16 de dezembro de 1798

Carta de um Defunto ao seu Amigo

SOBRE AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE OS ESPÍRITOS E AQUELES QUE ELES AMARAM NA TERRA

Meu bem-amado, antes de tudo devo advertir-te que, das mil coisas que desejas aprender de mim e que eu teria tanto desejado poder dizer-te, ouso apenas comunicar-te uma só, pois não dependo absolutamente de mim mesmo. Como já te disse, minha vontade depende da vontade dAquele que é a suprema sabedoria. Minhas relações contigo não são baseadas senão no teu amor. Esta sabedoria, este amor personificados, muitas vezes nos impelem, a mim e aos meus mil vezes mil convivas de uma felicidade que se torna continuamente mais elevada e mais inebriante para os homens ainda mortais, e nos fazem entrar com eles em relações certamente agradáveis para nós, embora muitas vezes obscurecidas e nem sempre bastante puras e santas. Recebe de mim algumas noções acerca destas relações. Não sei como conseguirei fazer-te compreender esta grande verdade que, provavelmente, te surpreenderá muito, a despeito de sua realidade: é que nossa própria felicidade muitas vezes depende, relativamente, bem entendido, do estado moral daqueles que deixamos na Terra e com os quais entramos em relações diretas.

Seu sentimento religioso nos atrai; sua impiedade nos repele.

Nós nos regozijamos com suas puras e nobres alegrias, isto é, com suas alegrias espirituais desinteressadas. Seu amor contribui para a nossa felicidade; por isso sentimos, se não um sentimento semelhante ao sofrimento, ao menos uma diminuição de prazer, quando eles se deixam cobrir-se de sombras  por sua sensualidade, seu egoísmo, suas paixões animais ou pela impureza de seus desejos.

Meu amigo, detém-te, eu te peço, ante esta expressão: cobrir-se de sombras.

Todo pensamento divino produz um raio de luz, que jorra do homem amante, e que não é visto nem compreendido senão pelas naturezas amantes e radiantes. Toda espécie de amor tem seu raio de luz, que lhe é particular. Esse raio, reunindo-se à auréola que circunda os santos, a torna ainda mais resplendente e mais agradável à vista. Do grau desta claridade e desta amenidade depende, muitas vezes, o grau de nossa própria felicidade, ou da felicidade que sentimos de nossa existência. Com a desaparição do amor, essa luz se desvanece, e com ela o elemento de felicidade daqueles que amamos. Um homem que se torna estranho ao amor se cobre de sombras, no sentido mais literal e mais positivo da palavra; torna-se mais material, por conseguinte mais elementar, mais terrestre, e as trevas da noite o cobrem com seu véu. A vida, ou o que para nós é a mesma coisa — o amor do homem — produz o grau de sua luz, sua pureza luminosa, sua identidade com a luz, a magnificência de sua natureza.

Só estas últimas qualidades tornam possíveis e íntimas as nossas relações com ele. A luz atrai a luz. É-nos impossível agir sobre as almas sombrias. Todas as naturezas não amantes nos parecem sombrias. A vida de cada mortal, sua verdadeira vida, é como o seu amor; sua luz se assemelha ao seu amor; de sua luz decorre a nossa comunicação com ele e a sua conosco. Nosso elemento é a luz, cujo segredo não é compreendido por nenhum mortal. Atraímos e somos atraídos por ela. Essa vestimenta, esse órgão, esse veículo, esse elemento, no qual reside a força primitiva, que tudo produz, a luz numa palavra, forma para nós o traço característico de todas as naturezas.

Nós clareamos na medida do nosso amor; somos reconhecidos por esta claridade, e somos atraídos por todas as naturezas amantes e radiantes como nós. Por efeito de um movimento imperceptível, dando uma certa direção aos nossos raios, podemos fazer nascer em naturezas que são simpáticas, ideias mais humanas, suscitar ações, sentimentos mais nobres e mais elevados; mas não temos o poder de forçar ou de dominar ninguém, nem de impor nossa vontade aos homens cuja vontade é absolutamente independente da nossa. O livre-arbítrio do homem nos é sagrado. É-nos impossível comunicar um só raio de nossa pura luz a um homem a quem falta sensibilidade. Ele não possui nenhum sentido, nenhum órgão para poder receber de nós a mínima coisa. Do grau de sensibilidade que possui um homem depende — oh! permite que to repita em cada uma de minhas cartas — sua aptidão para receber a luz, sua simpatia com todas as naturezas luminosas e com o seu protótipo primordial. Da ausência da luz nasce a incapacidade de se aproximar das fontes da luz, ao passo que milhares de naturezas luminosas podem ser atraídas por uma só natureza semelhante.

O Homem-Jesus, resplandecente de luz e de amor, foi o ponto luminoso que atraía incessantemente para ele legiões de anjos. Naturezas sombrias, egoístas, atraem para si Espíritos sombrios, grosseiros, privados de luz, malévolos e, ademais, são envenenados por eles, ao passo que as almas amantes tornam-se ainda mais puras e mais amantes, por seu contato com os Espíritos bons e amantes.

Jacob adormecido, cheio de sentimentos piedosos, vê os anjos do Senhor chegarem a ele em multidão, e a sombria alma de Judas Iscariotes dá ao chefe dos Espíritos sombrios o direito, direi mesmo o poder, de penetrarem na sombria atmosfera de sua natureza odienta. Os Espíritos radiosos são abundantes onde se encontra um Elíseo; legiões de Espíritos sombrios pululam entre as almas sombrias.

Meu bem-amado, medita bem no que acabo de dizer-te. Encontrarás numerosas aplicações para isto nos livros bíblicos, que encerram verdades ainda intactas, bem como instruções da mais alta importância concernentes às relações que existem entre os mortais e os imortais, entre o mundo material e o mundo dos Espíritos.

Não depende senão de ti encontrar-te sob a influência benéfica dos Espíritos amantes ou de os afastar de ti; podes conservá-los junto a ti, ou forçá-los a te deixar. Depende de ti tornar-me mais ou menos feliz.

Agora deves compreender que todo ser amante torna-se mais feliz quando encontra um ser tão amante quanto ele; que o mais feliz e o mais puro dos seres torna-se menos feliz, quando encontra uma diminuição de amor naquele que ama; que o amor abre o coração ao amor, e que a ausência deste sentimento torna mais difícil, por vezes até impossível, o acesso de toda comunicação íntima.

Se desejas que eu já desfrute da felicidade suprema, que me torne ainda mais feliz, torna-te melhor ainda. Por isto tu me tornarás mais radioso e poderás simpatizar mais com todas as naturezas radiosas e imortais. Elas se apressarão a vir junto a ti; sua luz reunir-se-á à tua e a tua à delas; a sua presença tornar-te-á mais puro, mais irradiante, mais vivaz e, o que te parecerá difícil acreditar, mas não o é por isto menos positivo, elas mesmas, por efeito de tua  luz, a que irradiará de ti, elas se tornarão mais luminosas, mais vivazes, mais felizes de sua existência e, por efeito de teu amor, ainda mais amantes.

Meu bem-amado, existem relações imperecíveis entre o que chamais os mundos visível  e invisível, uma comunhão incessante entre os habitantes da Terra e os do Céu que sabem amar, uma ação benéfica recíproca de cada um desses mundos sobre o outro.

Meditando e analisando esta ideia com cuidado, reconhecerás cada vez mais a sua verdade, sua urgência e sua santidade.

Não te esqueças, irmão da Terra: vives visivelmente num mundo que ainda é invisível para ti!

Não o esqueças! no mundo dos Espíritos amantes, alegrar-se-ão por teu crescimento em amor puro e desinteressado.

Nós nos encontramos junto de ti, quando nos julgas bem longe. Jamais um ser amante se acha só e isolado.

A luz do amor rompe as trevas do mundo material, para entrar num mundo menos material.

Os Espíritos amantes e luminosos acham-se sempre na vizinhança do amor e da luz.

Estas palavras do Cristo são literalmente verdadeiras: “Onde duas ou três pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí estarei com elas.”

Também é indubitavelmente certo que podemos afligir o Espírito de Deus por nosso egoísmo, e o alegrar  por nosso verdadeiro amor, conforme o sentido profundo destas palavras: “O que ligardes na Terra será ligado no Céu; o que desligardes na Terra será também desligado no Céu.”  Desligais pelo egoísmo, ligais pela caridade, isto é, pelo amor. Aproximai-vos e afastai-vos de nós.

Nada é mais claramente compreendido no Céu do que o amor dos que amam na Terra.

Nada é mais atraente para os Espíritos bem-aventurados pertencentes a todos os graus de perfeição, do que o amor dos filhos da Terra.

Vós, que ainda sois chamados mortais, pelo amor podeis fazer descer o Céu sobre a Terra.

Poderíeis entrar conosco, bem-aventurados, numa comunhão infinitamente mais íntima do que podeis supor, se vossas almas se abrissem à nossa influência pelos impulsos do coração.

Muitas vezes estou junto a ti, meu bem-amado! Gosto de me encontrar na tua esfera de luz.

Permite-me dirigir-te ainda algumas palavras de confiança.

Quando te aborreces, a luz que irradia de ti, no momento em que pensas naqueles que tu amas ou nos que sofrem, se obscurece e, então, sou forçado a afastar-me de ti, pois nenhum Espírito amante pode suportar as trevas da cólera. Ainda recentemente tive que te deixar. Eu, a bem dizer, te perdi de vista e me dirigi para um outro amigo, ou antes, a luz de seu amor atraiu-me para ele. Ele orava, derramando lágrimas por uma família benfazeja, momentaneamente caída na maior miséria e que ele não estava em condições de socorrer. Oh! como seu corpo terrestre  já me parecia luminoso; foi como se uma claridade deslumbrante o inundasse. Nosso Senhor aproximou-se dele e um raio de seu espírito caiu nessa luz. Que felicidade para mim poder mergulhar nesta auréola e, retemperado por esta luz, estar em estado de inspirar à sua alma a esperança de um socorro próximo! Pareceu-me ouvir uma voz do fundo de sua alma, dizer-lhe: “Nada temas! Crê! desfrutarás a alegria de poder aliviar aqueles por quem acabas de pedir a Deus.” Levantou-se inundado de alegria depois da prece. No mesmo instante, fui atraído para um outro ser radioso, também em prece... Era a nobre alma de uma virgem, que orava e dizia: “Senhor! ensina-me a fazer o bem segundo a tua vontade.” Pude e ousei inspirar-lhe a seguinte ideia: “Não farei bem mandando a esse homem caridoso, que conheço, um pouco de dinheiro, para que o empregue ainda hoje em benefício de alguma família pobre?”

Ela apegou-se a esta ideia com uma alegria infantil; recebeu-a como teria recebido um anjo descido do céu. Essa alma piedosa e caridosa reuniu uma soma considerável; depois escreveu uma cartinha muito afetuosa, dirigida àquele por quem acabava de orar, e que recebeu, assim como o dinheiro, apenas uma hora depois de sua prece, vertendo lágrimas de alegria e cheio de um profundo reconhecimento a Deus!

Eu o segui, desfrutando eu mesmo uma felicidade suprema e alegrando-me em sua luz. Ele chegou à porta da pobre família. “Deus terá piedade de nós?” perguntou a piedosa esposa a seu piedoso marido. — “Sim, ele terá piedade de nós, como tivemos piedade dos outros.” — Ouvindo essa resposta do marido, aquele que tinha orado encheu-se de alegria; abriu a porta e, sufocado por sua ternura, mal pôde pronunciar estas palavras: “Sim, ele terá piedade de vós, como vós mesmos tivestes piedade dos pobres; eis uma prova da misericórdia de Deus. O Senhor vê os justos e ouve as suas súplicas.”

Com que viva luz brilharam todos os assistentes, quando, depois de ter lido a cartinha, erguêramos os olhos e os braços para o céu! Massas de Espíritos se apressaram a chegar de todos os lados. Como nos alegramos! como nos abraçamos! Como todos louvamos a Deus e o bendissemos! como todos nos tornamos mais perfeitos, mais amantes!

Tu, em breve brilharás outra vez; eu pude e ousei chegar junto a ti; tu tinhas feito três coisas que me conferiam o direito de aproximar-me de ti e de te alegrar. Tinhas derramado lágrimas de vergonha por tua cólera; tinhas refletido, ficando seriamente enternecido pelos meios de poder dominar-te; tinhas pedido sincero perdão àquele a quem a tua exaltação havia ofendido, e buscavas de que maneira poderias compensá-lo, proporcionando-lhe alguma satisfação. Essa preocupação restituiu a calma ao teu coração, a alegria aos teus olhos, a luz ao teu corpo.

Podes julgar, por este exemplo, se estamos sempre bem instruídos do que fazem os amigos que deixamos na Terra, e quanto nos interessamos por seu estado moral. Agora também deves compreender a solidariedade que existe entre o mundo visível e o mundo invisível, e que depende de vós proporcionar-nos alegrias ou aflições.

Oh! meu bem-amado, se te pudesses compenetrar desta grande verdade, que um amor nobre e puro encontra em si mesmo a sua mais bela recompensa; que os gozos mais puros, o gozo de Deus, não são senão o produto de um sentimento mais depurado, apressar-te-ias em te depurar de tudo o que é egoísmo.

Doravante, jamais poderei escrever-te sem voltar a este assunto. Nada tem preço sem o amor. Só ele possui o golpe de vista claro, justo, penetrante, para distinguir o que merece ser estudado, o que é eminentemente verdadeiro, divino, imperecível. Em cada ser mortal e imortal, animado de um amor puro, nós vemos, com um inexprimível sentimento de prazer, refletir-se o próprio Deus, como vedes o Sol brilhar em cada gota de água pura. Todos os que amam, na Terra como no Céu, não fazem senão um pelo sentimento. É do grau do amor que depende o grau de nossa perfeição e de nossa felicidade interior e exterior. É o teu amor que regula tuas relações com os Espíritos que deixaram a Terra, tua comunicação com eles, a influência que podem exercer sobre ti e sua ligação íntima com o teu Espírito.

Escrevendo-te isto, um sentimento de previsão, que jamais engana, ensina-me que neste momento te achas em excelente disposição moral, pois que meditas uma obra de caridade. Cada uma de tuas ações, de teus pensamentos, traz um cunho particular, instantaneamente compreendido e apreciado por todos os Espíritos desencarnados. Que Deus venha em teu auxílio!

Escrevi-te isto em,

16 de dezembro de 1798

Seria supérfluo ressaltar a importância destas cartas de Lavater que, por toda parte, excitaram o mais vivo interesse. Elas atestam, de sua parte, não só o conhecimento dos princípios fundamentais do Espiritismo, mas uma justa apreciação de suas consequências morais. Apenas sobre alguns pontos parece ter tido ideias um pouco diferentes do que hoje sabemos, mas a causa dessas divergências que, aliás, prendem-se mais à forma do que ao fundo, é explicada na comunicação seguinte, por ele dada na Sociedade de Paris. Nós não as levantaremos, porque cada um as terá compreendido; o essencial era constatar que, muito antes do aparecimento oficial do Espiritismo, homens, cuja alta inteligência não poderia ser posta em dúvida, dele tiveram a intuição. Se não empregaram a palavra, é que esta não existia.

Não obstante, chamaremos a atenção sobre um ponto, que poderia parecer estranho: é a teoria segundo a qual a felicidade dos Espíritos estaria subordinada à pureza dos sentimentos dos encarnados, e se acharia alterada pela mais leve imperfeição destes. Se assim fosse, considerando o que são os homens, não haveria Espíritos realmente felizes, e a felicidade verdadeira não existiria no outro mundo, como não existe na Terra. Os Espíritos devem sofrer tanto menos as imperfeições dos homens, quanto mais o sabem perfectíveis. Para eles os homens imperfeitos são como crianças, cuja educação não está feita, e na qual têm missão de trabalhar, eles que igualmente passaram pela fileira da imperfeição. Mas se se puser de lado o que o princípio desenvolvido nesta carta pode ter de muito absoluto, não se pode deixar de reconhecer um sentido muito profundo, uma admirável penetração das leis que regem as relações do mundo visível e do mundo invisível, e as nuanças que caracterizam o grau de adiantamento dos Espíritos encarnados ou desencarnados.

Opinião Atual de Lavater sobre o Espiritismo

COMUNICAÇÃO VERBAL PELO SR. MORIN, EM SONAMBULISMO ESPONTÂNEO

(Sociedade de Paris, 13 de março de 1868)

Desde que a misericórdia divina permitiu que eu, humilde criatura, recebesse a revelação por meio dos mensageiros da imensidade, até esse dia os anos caíram, um a um, no abismo dos tempos; e à medida que se escoavam, aumentavam também os conhecimentos dos homens e se alargava o seu horizonte intelectual.

Desde que me foram dadas algumas das páginas que vos foram lidas, muitas outras foram dadas no mundo inteiro, sobre o mesmo assunto e pelo mesmo meio. Não creiais que eu tenha a pretensão, eu, humilde entre todos, de ter sido o primeiro a ter tido a honra insigne de receber um tal favor. Não. Outros, antes de mim, também tinham recebido a revelação; mas, como eu, oh! eles compreenderam incompletamente certas partes. É que é preciso, senhores, levar em conta o tempo, o grau de instrução moral e, sobretudo, o grau de emancipação filosófica dos povos.

Os Espíritos, dos quais hoje me sinto feliz em fazer parte, formam, também eles, povos, mundos, mas não têm raças; estudam, veem, e seus estudos podem ser incontestavelmente maiores, mais vastos que os estudos dos homens; contudo, partem sempre dos conhecimentos adquiridos e do ponto culminante do progresso moral e intelectual do tempo e do meio onde vivem. Se os Espíritos, esses mensageiros divinos, vêm diariamente vos dar instruções de ordem mais elevada, é que a generalidade dos seres que os recebem está em condição de os compreender. Em consequência das preparações que sofreram, há instantes em que os homens não necessitam deixar passar sobre si a eternidade de um século para compreender. Desde que se vê elevar-se rapidamente o nível moral, uma espécie de atração os leva para uma certa corrente de ideias, que devem assimilar, e para o objetivo a que devem aspirar; mas esses instantes são curtos e cabe aos homens aproveitá-los.

Eu disse que era preciso levar em conta os tempos e, sobretudo, o grau de emancipação filosófica que a época comportava. Reconhecido à Divindade, que me permitira adquirir, por um favor especial, mais depressa do que outros homens, partidos do mesmo ponto, certos conhecimentos, recebi comunicações dos Espíritos. Mas a primeira educação, os ensinamentos estreitos, a tradição e o costume pesaram em mim; malgrado as minhas aspirações em adquirir uma liberdade, uma independência de espírito que eu desejava, amante atraído pelos Espíritos que vinham comunicar-se comigo, não conhecendo a ciência que vos foi revelada depois, eu não podia atrair senão os seres de ideias similares às minhas, às minhas aspirações, e que, com um horizonte mais largo, tinham, não obstante, a mesma visão limitada. Daí, eu confesso, alguns erros que pudestes notar no que vos veio de mim; mas o fundo, o corpo principal não é, senhores, conforme a tudo o que, depois, vos foi revelado por esses mensageiros dos quais eu falava há pouco?

Espírito encarnado, por instinto levado ao bem; natureza tumultuosa apoderando-se de um pensamento que me levava ao verdadeiro, tão rápido, oh! como aqueles que me impeliam ao erro, talvez aí esteja o motivo que provocou as inexatidões de minhas comunicações, não tendo, para as retificar, os controles dos pontos de comparação; porque, para que uma revelação seja perfeita, é preciso que se dirija a um homem perfeito e este não existe; não é, pois, senão do conjunto que se podem extrair os elementos da verdade: foi o que pudestes fazer. Mas, em meu tempo, podia-se formar um conjunto de algumas parcelas da verdade, de algumas comunicações excepcionais? Não. Sou feliz por ter sido um dos privilegiados do século passado; obtive essas comunicações, algumas diretamente por meu intermédio, e a maior parte através de um médium, amigo meu, completamente estranho à linguagem da alma e, é preciso dizer, mesmo à do bem.

Feliz por fazer partilhar essas ideias a inteligências que eu julgava acima da minha, uma porta me foi aberta; eu a aproveitei com ardor, e todas as revelações da vida de além-túmulo foram por mim levadas ao conhecimento de uma imperatriz que, por sua vez, as levou ao conhecimento do seu círculo, e assim por diante.

Crede-o bem, o Espiritismo não foi revelado espontaneamente; como toda coisa saída das mãos de Deus, desenvolveu-se progressivamente, lentamente, seguramente. Esteve em germe no primeiro germe das coisas, e cresceu com esse germe até que estivesse bastante forte para se subdividir ao infinito e espalhar por toda parte a sua semente fecunda e regeneradora. É por ele que sereis felizes, que será assegurada a felicidade dos povos — que digo eu? a felicidade de todos os mundos; porque o Espiritismo, palavra que eu ignorava, é chamado a fazer grandes revoluções! Mas, tranquilizai-vos; essas revoluções jamais ensanguentarão a sua bandeira; são revoluções morais, intelectuais; revoluções gigantescas, mais irresistíveis que as provocadas pelas armas, pelas quais tudo é de tal modo chamado a se transformar, que tudo quanto conheceis não passa de um fraco esboço do que elas produzirão. O Espiritismo é uma palavra tão vasta, tão grande, por tudo o que contém, que me parece que um homem que pudesse compreender toda a sua profundeza não a poderia pronunciar sem respeito.

Senhores, eu, Espírito muito tacanho, a despeito da grande inteligência com que me gratificais, e em relação àqueles muito superiores que me é dado contemplar, venho dizer-vos: Credes, então, que seja por efeito do acaso que esta noite pudestes ouvir o que Lavater tinha obtido e escrito? Não, não é por acaso, e seguramente a minha mão espiritual as dirigiu até vós. Mas se esses poucos pensamentos vieram ao vosso conhecimento por meu intermédio, não creiais que nisto eu tenha buscado uma vã satisfação do amor-próprio; não, longe disto. O objetivo era maior, e nem mesmo me tinha vindo o pensamento de as levar ao conhecimento universal da Terra. Tal conhecimento tinha a sua utilidade; deve ter consequências graves, e é por isto que vos foi dado espalhá-la. Nas menores coisas encontra-se o germe das maiores renovações. Estou feliz, senhores, por me ter sido deixado o direito de vos pressentir sobre o alcance que terão essas poucas reflexões, essas comunicações, bem pobres ao lado das que obtendes atualmente; e se entrevejo o seu resultado, se me sinto feliz por isto, por que não o seríeis vós?

Voltarei, senhores, e o que disse esta noite é tão pouco em relação com o que tenho por missão vos ensinar, que ouso apenas dizer-vos: é Lavater.

Pergunta — Agradecemos as explicações que houvestes por bem nos dar, e ficaremos muito contentes por contar convosco, doravante, no número de nossos Espíritos instrutores. Receberemos as vossas instruções com o mais vivo reconhecimento. Enquanto esperamos, permiti-nos uma simples questão sobre a vossa comunicação de hoje:

1º — Dissestes que a imperatriz levou essas ideias ao conhecimento de seu círculo, e assim por diante. Seria por esta iniciativa, partida do ponto culminante da sociedade, que a Doutrina Espírita deve encontrar tão numerosas simpatias entre as sumidades sociais na Rússia?

2º — Um ponto de que me admira não ver mencionado em vossas cartas, é o grande princípio da reencarnação, uma das leis naturais que mais testemunham a justiça e a bondade de Deus.

Resposta — É evidente que a influência da imperatriz e de algumas outras grandes personagens foi predominante para determinar, na Rússia, o desenvolvimento do movimento filosófico no sentido espiritualista; mas, se muitas vezes o pensamento dos príncipes da Terra determina o pensamento dos grandes, que se acham sob a sua dependência, não se dá o mesmo com os pequenos. Os que têm chance de desenvolver no povo as ideias progressistas são os filhos do povo; são eles que farão triunfar, em toda parte, os princípios de solidariedade e de caridade, que são a base do Espiritismo.

Por isso Deus, em sua sabedoria, escalonou os elementos do progresso; estão no alto, embaixo, sob todas as formas e preparados para combater todas as resistências. Sofrem, assim, um movimento de vai-e-vem constante, que não pode deixar de estabelecer a harmonia dos sentimentos entre as altas e as baixas classes, e fazer triunfar solidariamente os princípios da autoridade e da liberdade.

Como sabeis, os povos são formados de Espíritos que têm entre si uma certa afinidade de ideias, que os predispõem mais ou menos para assimilar as ideias de tal ou qual ordem, porque essas mesmas ideias neles estão em estado latente e não esperam senão ocasião para se desenvolverem. O povo russo e vários outros estão neste caso em relação ao Espiritismo. Por pouco que o movimento fosse secundado, em vez de ser entravado, não se passariam dez anos antes que todos os indivíduos, sem exceção, fossem espíritas. Mas esses mesmos entraves são úteis para temperar o movimento que, embora um pouco devagar, não deixa de ser mais refletido. A Onipotência, por cuja vontade tudo se realiza, saberá bem remover os obstáculos, quando for tempo. Um dia o Espiritismo será a fé universal, e se admirarão de que não tenha sido sempre assim.

Quanto ao princípio da reencarnação terrestre, confesso-vos que a minha iniciação não tinha chegado até lá, e sem dúvida intencionalmente, porque eu não teria deixado de fazer, como das outras revelações, o assunto de minhas instruções à imperatriz, e talvez isto tivesse sido prematuro. Os que presidem ao movimento ascensional bem sabem o que fazem. Os princípios nascem um a um, segundo os tempos, os lugares e os indivíduos, e estava reservado à vossa época vê-los reunidos num feixe sólido, lógico e inatacável.

Lavater


 

Educação de Além-Túmulo

Escrevem-nos de Caen:

“Uma mãe e suas três filhas, querendo estudar a Doutrina Espírita, não podiam ler duas páginas sem sentir um mal-estar, de que não se davam conta. Um dia encontrei-me em casa dessas senhoras com uma jovem médium, sonâmbula muito lúcida; Esta adormeceu espontaneamente e viu perto de si um Espírito que reconheceu como o abade L..., antigo cura do lugar, morto há uns dez anos.

“P. — Sois vós, senhor cura, que impedis esta família de ler?

“Resp. — Sim, sou eu. Velo incessantemente sobre o rebanho confiado aos meus cuidados. Há muito tempo que vos vejo querer instruir minhas penitentes em vossa triste doutrina. Quem vos deu o direito de ensinar? Fizestes estudos para isto?

“P. — Dizei-me, senhor abade, estais no céu?

“Resp. — Não; não sou bastante puro para ver a Deus.

“P. — Então estais nas chamas do purgatório?

“Resp. — Não, pois não sofro.

 “P. — Vistes o inferno?

“Resp. — Fazeis-me tremer! vós me perturbais! Não posso vos responder, porque talvez me digais que devo estar numa destas três coisas. Tremo ao pensar no que dizeis e, contudo, sou atraído para vós pela lógica de vossos raciocínios. Voltarei e discutirei convosco.

“Com efeito, ele voltou muitas vezes. Discutimos e ele compreendeu tão bem que o entusiasmo o ganhou. Ultimamente exclamava: ‘Sim, agora sou espírita, dizei-o a todos os que ensinam. Ah! como gostaria que compreendessem Deus como este anjo mo fez conhecer!’ Falava de Cárita, que tinha vindo a nós, e diante da qual ele caiu de joelhos, dizendo que não era um Espírito, mas um anjo. Desde esse momento ele tomou por missão instruir os que pretendem instruir os outros.”

Nosso correspondente acrescenta o seguinte fato:

“Entre os Espíritos que vêm ao nosso círculo, tivemos o doutor X..., que se apodera do nosso médium, e que é como uma criança. É preciso dar-lhe explicações sobre tudo; ele avança, compreende e está cheio de entusiasmo; vai junto dos sábios que conheceu; quer explicar-lhes o que vê, o que agora sabe, mas eles não o compreendem; então se irrita e os trata de ignaros. Um dia, numa reunião de dez pessoas, ele se apoderou da mocinha, como de hábito (a jovem médium, pela qual fala e age); perguntou-me quem era eu e por que sabia tanto sem nada ter aprendido; tomou-me a cabeça com as mãos e disse: ‘Eis a matéria; aí me reconheço; mas como estou aqui, eu? como posso fazer falar este organismo que, entretanto, não é meu? Falais-me da alma; mas onde está a que habita este corpo?’

“Depois de lhe ter feito notar o laço fluídico que une o Espírito ao corpo durante a vida, ele exclamou de repente, falando da jovem médium: ‘Conheço esta menina; eu a vi em minha casa; seu coração estava doente; como é que não está mais? Dizei-me quem a curou.’ Fiz-lhe ver que se enganava e que jamais a tinha visto. — ‘Não, disse ele, não me engano, e a prova é que lhe piquei o braço e ela não sentiu nenhuma dor.’

“Quando a jovem despertou, nós lhe perguntamos se havia conhecido o doutor e se tinha ido consultá-lo. ‘Não sei, respondeu ela, se foi ele; mas, estando em Paris, levaram-me a um célebre médico, do qual não me lembro nem o nome, nem o endereço.’

“Suas ideias se modificam rapidamente; é agora um Espírito no delírio da felicidade do que sabe; queria provar a todo o mundo que o nosso ensino é incontestável. O que sobretudo o preocupa é a questão dos fluidos. ‘Eu quero, diz ele, curar como o vosso amigo; não quero mais me servir de venenos; não os tomeis jamais.’ Estuda hoje o homem, não mais no seu organismo, mas em sua alma; fez-nos dizer como se operava a união da alma com o corpo na concepção, e pareceu muito feliz com isto. O bom doutor Demeure veio em seguida e nos disse que não nos admirássemos com as perguntas, por vezes pueris, que ele poderia fazer-nos; e disse: Ele é como uma criança, a quem se deve ensinar a ler no grande livro da Natureza; mas, como é ao mesmo tempo uma grande inteligência, instrui-se rapidamente, e para isso nós concorremos do nosso lado.”

Esses dois exemplos vêm confirmar estes três grandes princípios revelados pelo Espiritismo, a saber:

1º — Que a alma conserva no mundo dos Espíritos, por um tempo mais ou menos longo, as ideias e os preconceitos que tinha durante a vida terrestre;

2º — Que se modifica, progride e adquire novos conhecimentos no mundo dos Espíritos;

3º — Que os encarnados podem concorrer para o progresso dos Espíritos desencarnados.

Estes princípios, resultado de inumeráveis observações, têm uma importância capital, porque derrubam todas as ideias implantadas pelas crenças religiosas sobre o estado estacionário e definitivo dos Espíritos após a morte. Desde que é demonstrado o progresso no estado espiritual, todas as crenças fundadas sobre a perpetuidade de uma situação uniforme qualquer caem diante da autoridade dos fatos. Também caem diante da razão filosófica, que diz que o progresso é uma lei da Natureza, e que o estado estacionário dos Espíritos seria, ao mesmo tempo, a negação dessa lei e da justiça de Deus.

Progredindo o Espírito fora da encarnação, disso resulta esta outra consequência não menos capital: que, voltando à Terra, traz a dupla conquista das existências anteriores e da erraticidade. Assim se realiza o progresso das gerações.

É incontestável que quando o médico e o padre, dos quais se falou acima, renascerem, trarão ideias e opiniões completamente diversas das que tinham na existência que acabam de deixar; um não será mais fanático, o outro não será mais materialista, e ambos serão espíritas. O mesmo se pode dizer do doutor Morel Lavallé, do bispo de Barcelona e de tantos outros. Há, pois, utilidade para o futuro da sociedade em se ocupar da educação dos Espíritos.

O Doutor Philippeau

IMPRESSÕES DE UM MÉDICO MATERIALISTA NO MUNDO DOS ESPÍRITOS

Numa reunião íntima de família, em que se ocupavam de comunicações pela tiptologia, dois Espíritos se manifestaram espontaneamente, sem qualquer evocação prévia e sem que ninguém pensasse neles: um era o de um médico distinto, que designaremos sob o nome de Philippeau, morto há pouco e que, em vida, tinha feito profissão aberta do mais absoluto materialismo; o outro era o de uma mulher que assinou Santa Vitória. É essa conversa que relatamos a seguir. É de notar que as pessoas que obtiveram esta manifestação não conheciam o médico senão por sua reputação, mas não tinham qualquer ideia de seu caráter, de seus hábitos, nem de suas opiniões; a comunicação, portanto, não poderia ser de modo algum o reflexo de seu pensamento, e isto tanto menos quanto, sendo obtida pela tiptologia, era inteiramente inconsciente.

Perguntas do médico — O Espiritismo me ensina que é preciso esperar, amar, perdoar; eu faria tudo isto se soubesse como proceder para começar. É preciso esperar o quê? É preciso perdoar o que e a quem? É preciso amar o quê? Respondei-me.

Philippeau

Resposta — É preciso esperar na misericórdia de Deus, que é infinita; é preciso perdoar aos que vos ofenderam; é preciso amar ao próximo como a si mesmo; é preciso amar a Deus, a fim de que Deus vos ame e vos perdoe; é preciso orar e lhe render graças por todas as suas bondades, por todas as vossas misérias, porquanto miséria e felicidade tudo nos vem dele, isto é, tudo nos vem dele conforme o que tenhamos merecido.

Aquele que expiou, mais tarde terá a sua recompensa; cada coisa tem a sua razão de ser, e Deus, que é soberanamente bom e justo, dá a cada um segundo as suas obras. Amar e orar, eis toda a vida, toda a eternidade.

Santa Vitória

O médico — Eu queria, de toda a minha alma, vos satisfazer, senhora, mas temo muito não o poder fazer inteiramente; contudo, vou tentar.

Uma vez morto, materialmente falando, pensava que tudo estivesse acabado; assim, quando minha matéria ficou inerte, fui tomado de espanto ao me sentir ainda vivo.

Vi esses homens me levarem e disse a mim mesmo: Mas eu não estou morto! Então esses médicos imbecis não veem que eu vivo, respiro, ando, olho-os, sigo-os, a essa gente que vem ao meu enterro? Que é então o que enterram?... Então não sou eu... Escutava uns e outros: “Esse pobre Philippeau, diziam eles, fez muitas curas; matou alguns; hoje é a sua vez; quando a morte chega, nós perdemos o nosso tempo.” Por mais que eu gritasse: “Mas Philippeau não morre assim; não estou morto!”, não me escutavam, não me viam.

Assim se passaram três dias; eu estava desaparecido do mundo, e me sentia mais vivo que nunca. Seja acaso, seja Providência, meus olhos caíram sobre uma brochura de Allan Kardec; li suas descrições sobre o Espiritismo, e me disse: Seria eu, por acaso, um Espírito?... Li, reli e então compreendi a transformação de meu ser; eu não era mais um homem, mas um Espírito!... Sim; mas, então, que tinha a fazer nesse mundo novo? nessa nova esfera?... Eu errava, procurava: encontrei o vazio, o sombrio, enfim o abismo.

Que fizera, então, ao deixar o mundo, para vir habitar essas trevas?... Então o inferno é negro e foi nesse inferno que caí?... Por quê?... Por que trabalhei toda a vida? Por que empreguei minha existência a cuidar de uns e de outros, a salvá-los quando minha ciência mo permitia?... Não!... não!... Por que, então? Por quê?... procura! procura! Nada; não encontro nada.

Então reli Allan Kardec; esperar, perdoar e amar, eis a solução. Agora compreendo o resto; o que não compreendera, o que negara: Deus, o Ser invisível e supremo, é preciso que lhe peça; o que eu fizera pela Ciência, é preciso que faça para Deus; que estude, que realize a minha missão espiritual. Compreendo essas coisas ainda vagamente e vejo longos combates em minha mente, porque todo um mundo novo se abre para mim e recuo apavorado diante do que tenho a percorrer. E, contudo, dizeis que é preciso expiar; esta Terra me foi muito penosa, pois me foi necessário mais sofrimento do que podeis imaginar para chegar aonde cheguei! A ambição era o meu único móvel; eu a queria e cheguei.

Agora tudo está para refazer. Fiz tudo ao contrário do que devia. Aprendi, aprofundei a Ciência, não por amor a ela, mas por ambição, para ser mais que os outros, para que falassem de mim. Tratei do meu próximo, não para o aliviar, mas para me enriquecer; numa palavra, fui todo para a matéria, quando se deve ser todo para o espírito. Quais são hoje as minhas obras? A riqueza, a Ciência; nada! nada! Tudo esta por refazer?

Terei coragem para isto? terei a força, os meios, a facilidade?... O mundo espiritual em que marcho é um enigma; a prece me é desconhecida; que fazer? quem me ajudará? Talvez vós, que já me respondestes... Cuidado! a tarefa é rude, difícil, o aprendiz rebelde às vezes... Contudo procurarei render-me às vossas boas razões e vos agradecer antecipadamente as vossas bondades.

Philippeau


 

O Espiritismo em Toda Parte

A literatura contemporânea, periódica e outras, penetra-se diariamente de ideias espíritas; e tanto isto é verdade, como temos dito desde muito tempo, que essas ideias são uma mina fecunda para os trabalhos de imaginação, rica em quadros poéticos e em situações cativantes; assim, os escritores aí colhem a mancheias. As doutrinas materialistas lhes oferecem um campo muito limitado, muito prosaico. O que daí se pode tirar, susceptível de tocar o coração e de elevar o pensamento? que poesia oferece a perspectiva do nada, da destruição eterna de si mesmo e daqueles a quem se ama? O materialista sente necessidade de falar à alma de seus leitores, se não as quiser gelar; de oferecer uma alma às suas personagens, se quiser que se interessem. Em todos os tempos os poetas e os literatos tomaram das ideias espiritualistas suas mais belas imagens e suas mais emocionantes situações. Mas hoje o Espiritismo, precisando as crenças no futuro, dá corpo aos pensamentos e uma acentuação que eles não tinham; abre um novo campo que começa a ser explorado. Já citamos numerosos exemplos do fato, e continuaremos a fazê-lo, de vez em quando, porque é um sinal característico da reação que se opera nas ideias.

Além das obras literárias propriamente ditas, a imprensa também registra, diariamente, fatos que entram no quadro do Espiritismo.

A Condessa de Monte-Cristo

Sob esse título, o jornal Petite Presse  publica um romance-folhetim, no qual se encontram as passagens seguintes, extraídas dos capítulos XXX e XXXI:

“— Meu paraíso, querida mãe, dizia à condessa de Monte-Cristo sua filha agonizante, será ficar perto de ti, junto a vós! sempre viva em vossos pensamentos, escutando-vos e vos respondendo, conversando baixinho com as vossas almas.

“Quando a flor embalsamar o jardim, e a levares ao teu lábio, estarei na flor e serei eu quem receberá o beijo! Também me farei o raio, o sopro que passa, o murmúrio que sussurra. O vento que agitar os teus cabelos será a minha carícia; o perfume que dos lilases floridos se elevar para a tua janela será o meu hálito; o canto longínquo que te fará chorar será a minha voz...

“Mãe, não blasfemes! Nada de cólera contra Deus! Oh! essas cóleras e essas blasfêmias talvez nos separassem para sempre.

“Enquanto ficares aqui, eu me farei tua companheira de exílio;  mais tarde, porém, quando, resignada às vontades de nosso Pai, que está nos céus, por tua vez tiveres fechado os olhos para não mais os abrir, então por minha vez estarei à tua cabeceira, esperando a tua libertação; e, inebriadas de uma alegria eterna, nossos dois corações, unidos para sempre, enlaçados para a eternidade, voarão num mesmo impulso para o céu clemente. Compreendes esta alegria, mãe? jamais nos deixarmos, sempre nos amarmos, sempre!  Formar, por assim dizer, ao mesmo tempo dois seres distintos e um só; ser tu e eu ao mesmo tempo? Amar e saber que se é amada e que a medida do amor que se inspira é a mesma do que se experimenta?

“Aqui não nos conhecemos; ignoro-te, como me ignoras; entre os nossos dois Espíritos nossos dois corpos representam um obstáculo; não nos vemos senão confusamente, através do véu da carne. Mas lá no alto, leremos claramente no coração uma da outra. E saber a que ponto a gente se ama é o verdadeiro paraíso, não vês?

“Ai! todas essas promessas de felicidade mística e infinita, longe de acalmar as angústias de Helena, não faziam senão torná-las mais intensas, fazendo-lhe medir o valor do bem que ia perder.

“Entretanto, de quando em quando, ao sopro destas palavras inspiradas, a alma de Helena alçava vôo quase às alturas serenas onde planava a da Pippione. Suas lágrimas se estancavam, a calma voltava em seu seio transtornado; parecia-lhe que seres invisíveis flutuavam no quarto, soprando a Blanche as palavras à medida que as pronunciava.

 “A criança adormecera e, em seu sonho, parecia conversar com alguém que não via, escutar vozes que só ela ouvia, e lhes responder.

“De repente, um brusco sobressalto agitou seus membros frágeis, ela abriu largamente os grandes olhos e chamou sua mãe, que sonhava apoiada à janela.

“Aproximou-se do leito e Pippione tomou sua mão, com a sua já úmida pelos últimos suores.

“— Chegou o momento, disse ela. Esta noite é a última. Eles me chamam, eu os escuto!  Queria muito ficar ainda, pobre mãe, mas não posso; a vontade deles é mais forte que a minha; eles estão lá no alto e me fazem sinal.

“— Loucura! gritou Helena; visão! sonho! Tu, morrer hoje, esta noite, entre os meus braços! Isto é possível?

“— Não, não morrer, disse a Pippione; nascer! eu saio do sonho, em vez de nele entrar; o pesadelo acabou, eu desperto. Oh! se tu soubesses como é belo, e que luz brilha aqui, junto à qual o vosso Sol não passa de uma mancha negra!

“Ela se deixou cair sobre as almofadas, ficou um instante silenciosa, depois continuou:

“São curtos os instantes que tenho para passar junto de vós. Quero que todos estejais aqui para me dizer o que chamais um eterno adeus, o que não é, na realidade, senão um breve até-logo. Todos, entendeste bem? Primeiro tu, o bom doutor, Úrsula, Cipriana e José.

“Este nome foi pronunciado mais baixo que os outros; era o último suspiro, o último pesar humano da Pippione. A partir desse instante ela pertencia inteiramente ao céu...

“— Era minha filha!

 “— Era!... repetiu com voz quase paternal o doutor Ozam, atraindo Helena ao peito. Era!... então não é mais... Que resta aqui? um pouco de carne meio decomposta, nervos que não vibram mais, sangue que se engrossa, olhos sem olhar, uma garganta sem voz, ouvidos que não mais escutam, um pouco de lama!

“Vossa filha! este cadáver no qual a Natureza fecunda já fez germinar a vida inferior, que disseminará os seus elementos? — Vossa filha, esse lodo que amanhã reverdecerá em erva, florirá em rosas e devolverá ao solo todas as forças vivas que dele tirou? Não, não. Isto não é vossa filha! isto não passa da vestimenta delicada e encantadora que ela tinha criado para atravessar a nossa vida de provações, um andrajo que ela abandonará com desdém, como um vestido velho que se joga fora!

“Se quiserdes ter uma lembrança viva de vossa filha, pobre mulher, é preciso olhar alhures... e mais alto.

“— Vós também credes nisto, doutor, perguntou ela, nesta outra vida? Diziam que éreis materialista.

“O doutor esboçou um doce sorriso irônico.

“Talvez eu o seja, mas não da maneira por que o entendeis.

“Não é numa outra vida que eu creio, mas na vida eterna, na vida que não começou e que, por conseguinte, não terá fim. — Cada ser, no começo igual aos outros, faz, a bem dizer, a educação de sua alma e aumenta as suas faculdades e o seu poder, na medida de seus méritos e de seus atos. Consequência imediata desta argumentação[1]: a alma mais perfeita agrega em torno de si um envoltório igualmente mais perfeito. Finalmente, chega um dia em que este envoltório não lhe basta mais, e então, como se diz, a alma rompe o corpo.

“Mas ela o rompe para encontrar outro mais em relação com as suas necessidades e qualidades novas? Onde? Quem sabe? Talvez num desses mundos superiores, que brilham sobre as nossas cabeças, num mundo onde encontrará um corpo mais perfeito, dotado de órgãos mais sensíveis, por isto mesmo melhor e mais feliz!

“Nós mesmos, seres perfeitos, dotados desde o primeiro dia de todos os sentidos que nos põem em relação com a natureza exterior, de quantos esforços não necessitamos! Que trabalhos latentes não são precisos para que a criança se torne homem, o ser ignorante e fraco, rei da Terra! E, incessantemente, até a morte, os corajosos e os bons perseveram nesta via árdua do trabalho; alargam a inteligência pelo estudo, o coração pelo devotamento. Eis o trabalho misterioso da crisálida humana, o trabalho pelo qual ela adquire o poder e o direito de romper o invólucro do corpo e de planar com asas.”

Observação — O autor, que até aqui tinha guardado o anonimato, é o Sr. du Boys, jovem escritor dramático. Por certas impressões quase textuais, vê-se que, evidentemente, ele se inspirou na Doutrina.

O Barão Clootz

Sob o título de: Um voto humanitário, Anacharsis Clootz, barão prussiano, convencional francês, aos seus concidadãos de Paris e de Berlim, o  Progrès de Lyon, de 27 de abril de 1867, publicava, sob a forma de uma carta supostamente escrita do outro mundo, pelo convencional Clootz, um artigo muito longo, começando assim:

“No outro mundo em que habito, desde a terrível jornada de 24 de março de 1794, que, confesso, me desiludiu um pouco sobre os homens e sobre as coisas, só a palavra guerra  guarda o privilégio de me lembrar as preocupações da política terrestre. Aquilo que mais amei, que digo eu? adorei e servi, quando habitava o vosso planeta, foi a fraternidade dos povos e a paz. A esse grande objeto de estudo e de amor, dei um penhor muito sério: minha cabeça, à qual as minhas cem mil libras de renda, aos olhos de muita gente, acrescenta importante valor. O que me consolava mesmo um pouco, ao subir os degraus do cadafalso, eram os considerandos pelos quais Saint-Just acabava de justificar a minha prisão. Era dito, se bem me lembro, que doravante a paz, a justiça e a probidade seriam postas na ordem do dia. Eu teria dado minha vida, declaro altivamente e sem hesitar, e duas vezes em vez de uma, para obter a metade desse resultado. E notai, por favor, que meu sacrifício seria mais completo e mais profundo do que teria sido o da maior parte dos meus colegas. Eu era de boa-fé e guardava o respeito à justiça no fundo do coração; mas, sem falar dos cultos aos quais tinha horror, o próprio Ser Supremo de Robespierre me irritava os nervos, e a vida futura tinha para mim a aparência de um bonito conto de fadas. Sem dúvida me perguntareis o que ela é. Eu estava errado? Eis o grande segredo dos mortos. Julgai vós mesmos os vossos riscos e perigos. Contudo, parece que eu ia um pouco longe, porquanto, nesta ocasião solene, me é permitido vos escrever.”

Sendo o artigo exclusivamente político e saindo do nosso quadro, citamos apenas este fragmento, para mostrar que, mesmo nesses graves assuntos, pode-se tirar partido da ideia dos mortos, dirigindo-se aos vivos, para continuar junto a estes relações interrompidas. A cada instante o Espiritismo vê realizar-se esta ficção. É mais que provável que é ele que tenha dado esta ideia. Aliás, se ela fosse dada como real, ele não a desaprovaria.

Metempsicose

“Conheceis a causa dos ruídos que nos chegam? dizia a Sra. Des Genêts. Será alguma nova cena de tigres enfurecidos, que esses senhores nos preparam?

“— Sossegai, cara amiga, tudo está em segurança: os nossos vivos e os nossos mortos. Escutai a encantadora melodia do rouxinol, que canta no salgueiro! Talvez seja a alma de um dos nossos mártires, que plana em torno de nós sob essa forma amável. Os mortos têm esses privilégios; e eu de boa vontade me convenço de que eles voltam assim junto àqueles a quem amaram.

“— Oh! se dissésseis a verdade! exclamou vivamente a senhora Des Genêts.

“— Eu o creio sinceramente, disse a jovem duquesa. É tão bom acreditar nas coisas consoladoras! Aliás, meu pai, que é muito sábio, como não o ignorais, assegurou-me que esta crença tinha sido espalhada antigamente por grande filósofos. O próprio Lesage também nela acredita.”

Esta passagem é tirada de um romance-folhetim, intitulado: O calabouço da Torre dos Pinheiros, por Paulin Capmat, publicado pelo Liberté  de 4 de novembro de 1867. Aqui a ideia não é tomada à Doutrina Espírita, porque esta, em todos os tempos, ensinou e provou que a alma humana não pode renascer num corpo animal, o que não impede que certos críticos, que não leram a primeira palavra do Espiritismo, repitam que ele professa a metempsicose; mas é sempre o pensamento da alma individual sobrevivendo ao corpo, voltando sob uma forma tangível junto daqueles a quem amou. Se a ideia não é espírita, pelo menos é espiritualista, e melhor seria ainda crer na metempsicose do que não crer em nada. Essa crença, ao menos, não é desesperadora como o materialismo; nada tem de imoral, ao contrário; ela conduziu todos os povos que a professaram a tratar os animais com doçura e benevolência. Esta exclamação: É tão bom crer nas coisas consoladoras  é o grande segredo do sucesso do Espiritismo.

Enterro do Sr. Marc Michel

Lê-se no Temps  de 27 de março de 1868:

“Ontem, no enterro do Sr. Marc Michel, o Sr. Jules Adenis disse adeus, em nome da Sociedade dos Autores Dramáticos, ao escritor que a comédia alegre e ligeira acaba de perder.

“Encontro esta frase em seu discurso:

“Foi Ferdinand Langlé quem, recentemente, precedeu no túmulo aquele que hoje choramos... E, quem sabe? quem pode dizê-lo?... assim como acompanhamos aqui estes despojos mortais, talvez a alma de Langlé tenha vindo receber a alma de Marc Michel no limiar da eternidade.”

“Com toda certeza a falta é de meu espírito muito leviano, mas confesso que me é difícil imaginar, com a gravidade conveniente, a alma do autor do Sourd, do Camarade de lit,  de Une Sangsue,  da Grève des portiers, vindo receber no limiar da eternidade a alma do autor de Maman Sabouleux, de Mesdames de Montenfriche, de um Tigre du Bengale  e da Station de Champbaudet.”

X. Feyrnet

O pensamento emitido pelo Sr. Jules Adenis é do mais puro Espiritismo. Suponhamos que o autor do artigo, o Sr. Feyrnet, que acha difícil conservar a gravidade conveniente  ouvindo dizer que a alma do Sr. Marc Michel talvez esteja presente e venha receber a alma de Marc Michel, tivesse tomado a palavra e, por sua vez, assim se tivesse expressado: “Senhores, acabam de vos dizer que a alma de nosso amigo Langlé está aqui, que nos vê e nos ouve! Ele não precisaria mais senão acrescentar que nos pode falar. Não acrediteis uma só palavra; a alma de Langlé não existe mais; ou, então, o que dá no mesmo, ela se fundiu na imensidade. De Marc Michel não resta mais nada; será o mesmo quando morrerdes, como vossos pais e amigos. Esperar que eles vos aguardem, que venham vos receber no desembarque da vida, é loucura, superstição, iluminismo. Eis o positivo: Quando se morre, tudo está acabado.” Qual dos dois oradores teria encontrado mais simpatia entre os assistentes? Qual teria enxugado mais lágrimas, dado mais coragem e resignação aos aflitos? O infeliz, que não espera mais alívio neste mundo, não teria razões para lhe dizer: “Se é assim, acabemos o mais cedo possível com a vida?” Deve-se lamentar o Sr. Feyrnet por não poder manter-se sério ante a ideia de que seu pai e sua mãe, caso os tenha perdido, ainda vivam, velem à sua cabeceira e que os verá de novo.

Um Sonho

Extrato do Figaro  de 12 de abril de 1868:

“Por mais extraordinário que pareça o relato seguinte, o autor, declarando tê-lo recebido do próprio vice-presidente do Corpo Legislativo (o barão Jérôme David), dá às suas palavras uma autoridade incontestável.

“Durante sua estada em Saint-Cyr, David foi testemunha de um duelo entre dois de seus camaradas de promoção, Lambert e Poirée. Este último recebeu uma estocada e foi curar-se na enfermaria, onde seu amigo David subia para vê-lo todos os dias.

“Uma manhã Poirée lhe pareceu singularmente perturbado; crivou-o de perguntas e acabou por lhe arrancar a confissão de que sua emoção provinha de um simples pesadelo.

 “— Eu sonhava que estávamos à beira de um rio, recebia uma bala na testa, acima do olho, e tu me sustentavas em teus braços; eu sofria muito e me sentia morrer; recomendava-te minha mulher e meus filhos, quando despertei.

“— Meu caro, estás com febre, respondeu-lhe David sorrindo; refaze-te; estás no teu leito, não és casado e não tens bala acima do olho; é um sonho muito estúpido; não te atormentes assim, se queres curar-te depressa.

“— É singular, murmurou Poirée, jamais acreditei em sonhos, neles não creio e, contudo estou abalado.

“Dez anos depois, o exército francês desembarcava na Criméia; os saint-cyrianos se tinham perdido de vista. David, oficial ajudante, ligado à divisão do príncipe Napoleão, recebeu ordem de ir descobrir um vau a montante do Alma. Para impedir que os russos o fizessem prisioneiro, apoiaram esse reconhecimento por uma companhia de fuzileiros, tomada do regimento mais próximo. Os russos faziam cair uma chuva de balas sobre os homens da escolta, que se desdobraram no contra-ataque.

“Não se tinham passado dez minutos quanto um dos nossos oficiais rolou por terra, mortalmente ferido. O capitão David saltou do cavalo e correu para o levantar; ele apoiou a cabeça em seu braço esquerdo e, desprendendo o cantil da cintura, aproximou-o dos lábios do ferido. Um grande buraco acima do olho ensanguentava-lhe o rosto; um soldado trouxe um pouco de água e o derrabou sobre a cabeça do moribundo, que já agonizava.

“David olhou com atenção os traços, que parecia reconhecer; um nome foi pronunciado ao seu lado; nada de dúvida: era ele, era Poirée! Chama-o; seus olhos se abrem, o agonizante por sua vez reconhece o camarada de Saint-Cyr...

“— David! Tu aqui?... O sonho... minha mulher...

 “Estas palavras entrecortadas não tinham acabado e já a cabeça caía inerte no braço de David. Poirée estava morto, deixando sua mulher e seus filhos à lembrança e à amizade de David.

“Eu não ousaria contar semelhante história se eu mesmo não a tivesse ouvido do honrado vice-presidente do Corpo Legislativo.

“Vox populi.”

Com que propósito o narrador acrescenta as palavras vox populi? Poder-se-ia entendê-las assim: Os fatos desta natureza são de tal modo frequentes que são atestados pela voz do povo, isto é, por um assentimento geral.

Espíritos Batedores na Rússia

Enviam-nos de Riga, com data de 8 de abril de 1868, o extrato a seguir, do Courrier russe  de São Petersburgo:

“Acreditais em Espíritos batedores? Por mim, não; absolutamente. E, contudo, acabo de ver um fato material, palpável, que foge de tal modo das regras do senso comum, e também está de tal maneira em desacordo com os princípios de estabilidade e da gravidade dos corpos, que me inculcou o meu professor do quarto ano, que não sei qual dos dois é mais ferido, se o Espírito ou eu.

“Outro dia nosso secretário de redação recebeu um senhor de semblante agradável, de uma idade a não se lhe poder atribuir a ideia de uma piada de mau gosto. Cumprimentos, apresentação, etc.; tudo acabado, o senhor conta que vem ao nosso escritório pedir um conselho; que o que lhe acontece está a tal ponto fora de todos os fatos da vida social, que julga no dever de publicá-lo.

 “— Minha casa, disse ele, está cheia de Espíritos batedores; toda noite, em torno de dez horas, começam seus exercícios, transportando os objetos menos transportáveis, batendo, pulando e, numa palavra, pondo todo o meu apartamento de pernas para o ar. Recorri à polícia; um soldado passou várias noites em minha casa. A desordem não cessou, embora a cada alarme ele tenha desembainhado o sabre de maneira ameaçadora. Minha casa está isolada, só tenho uma criada, minha mulher e minha filha, e quando esses fatos se passam estamos reunidos. Moro numa rua muito afastada, em Vassili-Ostroff.

“Eu tinha entrado durante a conversa e escutava de boca aberta. Como vos disse, não acredito em Espíritos batedores, absolutamente. Expliquei a esse senhor que para dar publicidade a esses fatos, era preciso que estivéssemos convencidos de sua existência, e lhe propus ir eu mesmo para me dar conta da coisa. Marcamos encontro para a noite e às nove horas eu estava na casa do homem. Introduziram-me num pequeno salão, mobiliado com muito conforto; examinei a disposição das peças; eram apenas quatro, inclusive a cozinha, tudo ocupando o andar do meio de uma casa de madeira; ninguém mora em cima; o térreo é ocupado por um armazém.

“Por volta de dez horas estávamos reunidos no salão, o homem, a mulher, sua esposa, sua filha, a cozinheira e eu. Uma meia hora e nada de novo! De repente uma porta se abriu e uma galocha caiu no meio da sala; acreditei num comparsa e quis assegurar-me de que a escada estava vazia, quando a galocha saltou sobre um móvel e de lá novamente no soalho; depois foi a vez das cadeiras na peça vizinha, que não tinha saída senão pela que ocupávamos, e que eu acabava de constatar perfeitamente vazia. Só ao cabo de uma hora o silêncio se restabeleceu, e o Espírito, os Espíritos, o hábil comparsa, ou Deus é quem sabe, desapareceu, deixando-nos numa estupefação que, eu vos garanto, nada tinha de jogo. Eis os fatos, eu os vi com os próprios olhos; não me encarrego de vo-los explicar. Se desejardes vós mesmos procurar a explicação, temos à vossa disposição todas as informações, a fim de que possais fazer vossas observações nos locais”

Henri de Brenne


 

A Fome na Argélia

Os detalhes dados pelos jornais sobre o flagelo que neste momento dizima as populações árabes da Argélia nada têm de exagerado, e são confirmados por todas as correspondências particulares. Um dos nossos assinantes de Sétif, o Sr. Dumas, houve por bem nos mandar uma fotografia, representando a multidão de indígenas, reunidos em frente à casa onde distribuem socorro. Esse desenho, de uma verdade dolorosa, é acompanhado da seguinte notícia impressa:

“Depois dos anos sucessivamente calamitosos que nossa grande colônia atravessou, um flagelo ainda mais terrível veio abater-se sobre ela: a fome.

“Mal os primeiros rigores do inverno se fizeram sentir, vê-se que às nossas portas os árabes morrem de fome. Chegam em bandos numerosos, seminus, o corpo extenuado, chorando de fome e de frio, implorando a comiseração pública, disputando à voracidade dos cães alguns restos lançados com as imundícies na via pública.

“Embora os habitantes de Sétif também tenham sido reduzidos a cruéis extremos, não podem contemplar tamanha miséria com olhar impassível. Logo, e espontaneamente, organizou-se uma comissão de beneficência, sob a presidência do Sr. Bizet, cura de Sétif. Está aberta uma subscrição; cada um dá o seu óbolo e, em consequência, foram distribuídos socorros diários no presbitério, a duzentas e cinquenta mulheres e crianças indígenas.

“Nos últimos dias de janeiro, enquanto uma neve abundante e longamente desejada caía em nossas regiões, pôde-se fazer melhor ainda. Foi instalado um forno num vasto local; aí, duas vezes por dia, os membros da comissão distribuem alimentos, não mais a duzentas e cinquenta, mas a quinhentas mulheres ou crianças indígenas. Ali, enfim, esses infelizes encontram um asilo e um abrigo.

“Mas, ai! os europeus são obrigados, muito a contragosto, a limitar seus socorros às mulheres e às crianças... Para aliviar todas as misérias, seria preciso uma boa parte do trigo que os poderosos alcaides detêm em seus silos. Entretanto, esperam continuar suas distribuições até metade do mês de abril.”

Se, nesta circunstância, não abrimos uma subscrição especial nos escritórios da Revista, é que sabíamos que nossos irmãos em crença não foram os últimos a levar sua oferenda aos escritórios de sua circunscrição, abertos, para tal efeito, pelos cuidados da autoridade. Os donativos que nos foram enviados com essa finalidade lá foram depositados.

O Sr. capitão Bourgès, da guarnição de Laghouat, escreveu-nos a respeito o seguinte:

“Desde alguns anos os flagelos se sucedem na Argélia: terremotos, invasão de gafanhotos, cólera, seca, tifo, fome, miséria profunda vieram, sucessivamente, atingir os indígenas, que agora expiam sua imprevidência e seu fanatismo. Os homens e até os animais morrem de fome e se extinguem sem ruído. A fome se estende ao Marrocos e à Tunísia; entretanto, creio que é a Argélia que mais sofre. Não poderíeis crer quanto é comovente ver esses corpos macilentos e definhados, procurando alimento em toda parte e o disputando com os cães de rua. Pela manhã, esses esqueletos vivos acorrem em volta do campo e se precipitam sobre os excrementos para deles extrair os grãos de cevada não digeridos pelos cavalos, com os quais se repastam imediatamente. Outros roem ossos, para sugar a gelatina que neles ainda se possa encontrar, ou comem a erva rara que cresce próximo aos oásis. Do meio desta miséria surge um deboche horrível, que ganha as camadas mais baixas da colônia, e espalha nos corpos materiais essas chagas corrosivas, que deviam ser a lepra da antiguidade. Meus olhos se fecham para não ver tanta vergonha, e minha alma sobe ao Pai celeste, para lhe pedir que preserve os bons do contato impuro e dar aos homens fracos a força de não se deixarem arrastar nesse abismo enfermiço.

“A Humanidade ainda está muito longe do progresso moral que certos filósofos acreditavam já realizado. Não vejo à minha volta senão epicuristas, que não querem ouvir falar do Espírito; não querem sair da animalidade; seu orgulho faz que se atribuam uma origem nobre e, contudo, seus atos dizem bastante o que foram outrora.

“Vendo o que se passa, acreditar-se-ia realmente que a raça árabe está fadada a desaparecer do solo, porquanto, a despeito da caridade que se exerce para com ela, e os socorros que se lhe levam, ela se compraz em sua preguiça, sem nenhum sentimento de reconhecimento. Essa miséria física, proveniente das chagas morais, ainda tem a sua utilidade. O egoísta, obsedado, acotovelado a toda hora pelo infortunado que o segue, acaba por abrir a mão, e seu coração comovido sente, enfim, as suaves alegrias que a caridade proporciona. Um sentimento que não se apagará e talvez mesmo o do reconhecimento surgirá no coração daquele que se assiste. Um laço simpático então se forma; novos socorros vêm dar vida ao infeliz que se extinguia e, do desencorajamento, este último passe à esperança. O que parecia um mal fez nascer um bem: um egoísta a menos e um homem corajoso a mais.”

Os Espíritos não se enganaram quando anunciaram que flagelos de toda sorte devastariam a Terra. Sabe-se que a Argélia não é o único país em provação. Na Revista  de julho de 1867, descrevemos a terrível doença que, há um ano, flagelava a ilha Maurício. Uma carta recente diz, que à doença, vieram juntar-se novas desgraças, e muitas outras regiões neste momento são vítimas de acontecimentos desastrosos.

Deve-se acusar a Providência por todas essas misérias? Não, mas a ignorância, a incúria, consequências da ignorância, o egoísmo, o orgulho e as paixões dos homens. Deus só quer o bem; fez tudo para o bem; deu aos homens os meios para serem felizes: a estes cabe aplicá-los, se não quiserem adquirir a experiência à própria custa. Seria fácil demonstrar que todos os flagelos poderiam ser conjurados, ou pelo menos atenuados, de maneira a lhes paralisar os efeitos; é o que faremos ulteriormente, numa obra especial. Os homens não devem culpar senão a si mesmos pelos males que suportam. A Argélia nos oferece neste momento um notável exemplo: são as populações árabes, despreocupadas e imprevidentes, embrutecidas pelo fanatismo, que sofrem fome, ao passo que os europeus souberam prevenir-se contra ela. Mas há outros flagelos, não menos desastrosos, contra os quais estes últimos ainda não souberam premunir-se.

A própria violência do mal constrangerá os homens a buscarem o remédio; e, quando, inutilmente, tiverem esgotado os paliativos, compreenderão a necessidade de atacar o mal na própria raiz, por meios heroicos. Este será um dos resultados da transformação que se opera na Humanidade.

Mas, dirão, que importa aos que sofrem agora a felicidade das gerações futuras? Terão tido o trabalho e os outros o proveito; terão trabalhado, suportado o fardo de todas as misérias inseparáveis da ignorância, preparado os caminhos, e os outros colherão, porque Deus os terá feito nascer em tempos melhores. Que faz às vítimas da exação da Idade Média o regime mais saudável no qual vivemos? Pode-se chamar a isto de justiça?

É notório que, até hoje, nenhuma filosofia, nenhuma doutrina religiosa tinha resolvido esta grave questão, de tão poderoso interesse, entretanto, para a Humanidade. Só o Espiritismo lhe dá uma solução racional pela reencarnação, essa chave de tantos problemas, que se julgavam insolúveis. Em virtude da pluralidade das existências, as gerações que se sucedem são compostas das mesmas individualidades espirituais, que renascem em diferentes épocas e aproveitam os melhoramentos que elas próprias prepararam, da experiência que adquiriram no passado. São novos homens que nascem; são os mesmos homens que renascem mais adiantados. Trabalhando cada geração para o futuro, na realidade trabalha para sua própria conta. A Idade Média foi, seguramente, uma época muito calamitosa; revivendo hoje, os homens daquele tempo se beneficiam do progresso realizado e são mais felizes, porque têm melhores instituições. Mas quem fez melhores estas instituições? Os mesmos que outrora as tinham feito más. Devendo os de hoje reviver mais tarde, num meio ainda mais depurado, recolherão o que houverem semeado; serão mais esclarecidos, e nem os seus sofrimentos, nem os seus trabalhos anteriores terão sido em vão. Que coragem, que resignação não lhes daria esta ideia, inculcada no espírito dos homens! (Vide A Gênese, cap. XVIII, nos 34 e 35).


 

Dissertação dos Espíritos — Ontem, Hoje e Amanhã

(Comunicação verbal em sonambulismo espontâneo)

Lyon, 2 de fevereiro de 1868.

Onde estamos hoje? onde está a luz? Tudo é sombrio, tudo está turvo à nossa volta. Ontem era o passado; amanhã é o futuro; hoje é o presente... Que é que distingue esses três dias? Viveu-se ontem, vive-se ainda hoje, viver-se-á amanhã, e sempre no mesmo círculo. De onde sai, então, esta Humanidade e para onde vai ela? Mistério que só será esclarecido amanhã.

Moisés é o tempo passado; o Cristo, o tempo presente; o Messias a vir, que é o amanhã, ainda não apareceu... Moisés tinha que combater a idolatria; o Cristo, os fariseus; o Messias a vir terá também os seus adversários: a incredulidade, o cepticismo, o materialismo, o ateísmo e todos os vícios que acabrunham o gênero humano... Três épocas que marcam o progresso da Humanidade; parênteses filiais que se sucedem um ao outro; ontem era Moisés, hoje é o Cristo e amanhã será o novo Messias.

Digo que é o Cristo hoje, porque é a sua palavra, a sua doutrina, a sua caridade, todos os seus sublimes ensinamentos que devem espalhar-se por toda parte; porque, vós mesmos o vedes, a Humanidade não progrediu muito. Apenas dezoito séculos nos separam do Cristo: dezoito séculos de trevas, de tirania, de orgulho e de ambição.

Apropriai-vos do passado, do presente; amanhã contemplareis o vosso futuro... Idólatras do passado, fariseus do presente, adversários de amanhã, a luz brilha para todos os povos, para todos os mundos, para todos os indivíduos, e não quereis vê-la!

Criatura, tu desanimas hoje, que é o presente; esperas a realização dos prodígios anunciados; verás que se realizam. Logo toda a Terra tremerá... o século vinte ofuscará o brilho dos séculos precedentes, porque verá a realização do que foi predito.

O Messias que deve presidir ao grande movimento regenerador da Terra já nasceu, mas ainda não revelou sua missão, e não nos é permitido dizer nem o seu nome, nem o país onde habita; ele se anunciará por suas obras e os homens tremerão à sua voz potente, porque o número dos justos ainda é muito pequeno.

Ligai-vos à matéria, homens egoístas e ambiciosos, que não viveis senão para satisfazer as vossas paixões e os vossos desejos mundanos. O tempo é curto para vós; agarrai-o, enlaçai-o, porque ontem é passado, hoje se põe e logo será amanhã.

Ai! fariseu do presente, tu esperas sempre. Que ribombe o trovão, tu não te espantarás diante do relâmpago precursor que vem deslumbrar os teus olhos. Tu que te comprazes no egoísmo e no orgulho, que persistes no passado e no presente, teu futuro consistirá em seres rejeitado para um outro mundo, a fim de que teu Espírito possa chegar um dia à perfeição a que Deus te chama.

Vós, espíritas, que estais aqui, que recebeis as instruções dos Espíritos, sede pacientes, dóceis, conscientes de vossos atos; não desanimeis; esperai com calma esse amanhã que vos deve livrar de todas as perseguições. Deus, para quem nada é oculto, que lê nos corações, vos vê e não vos abandonará. A hora se aproxima e logo estaremos no amanhã.

Mas esse Messias que deve vir é o próprio Cristo? questão difícil de compreender no tempo presente, e que amanhã será esclarecida. Como um bom pai de família, Deus, que é todo sabedoria, não impõe todo o trabalho a um só de seus filhos. Atribui a cada um a sua tarefa, segundo as necessidades do mundo para onde os envia. Disso devemos concluir que o novo Messias nem será tão grande, nem tão poderoso quanto o Cristo? Seria absurdo; mas esperai que soe a hora para compreender a obra dos mensageiros invisíveis, que vieram desbravar o caminho, porque os Espíritos fizeram um imenso trabalho. É o Espiritismo que deve remover as grandes pedras que poderiam dificultar a passagem daquele que deve vir. Esse homem será poderoso e forte, e numerosos Espíritos estão na Terra para aplanar o caminho e fazer cumprir o que foi predito.

Esse novo Messias será chamado o Cristo? É uma pergunta a que não posso responder; esperai o amanhã. Quantas coisas eu teria ainda a vos revelar! Mas eu paro, porque o dia de amanhã ainda não aparece. Mal nos aproximamos da meia-noite.

Amigos que estais aqui, todos animados do desejo do vosso adiantamento, trabalhai sobre vós mesmos para vos regenerardes, a fim de que o Mestre vos encontre preparados. Coragem, irmãos, porque o vosso esforço não será perdido; trabalhai para quebrar os laços da matéria, que impedem o Espírito de progredir.

Tende fé, porque ela conduz o homem seguramente ao fim de sua viagem. Tende amor, porque amar aos seus irmãos é amar a Deus. Vigiai e orai: a prece fortalece o Espírito que se deixa tomar pelo desânimo. Pedi ao vosso Pai celeste a força de triunfar dos obstáculos e das tentações. Armai-vos contra os vossos defeitos; mantende-vos prontos, porque o amanhã não está longe. A aurora do século marcado por Deus para a realização dos fatos que devem mudar a face deste mundo começa a surgir no horizonte.

O Espírito da Fé

Médium: Sr. Duboin, em sonambulismo espontâneo

Allan Kardec




[1] N. do T.: No original augmentation (aumento) Erro de revisão?

Junho de 1868

Mediunidade no Copo d’Água

Um dos nossos correspondentes de Genebra nos transmite interessantes detalhes sobre um novo gênero de mediunidade vidente, que consiste em ver num copo d’água magnetizado. Essa faculdade tem muitas relações com a do vidente de Zimmerwald, do qual fizemos um relato circunstanciado na Revista de outubro de 1864 e outubro de 1865. A diferença consiste em que este último se serve de um copo vazio, sempre o mesmo e que a faculdade, de certo modo, lhe é pessoal; ao contrário, o fenômeno que nos é assinalado se produz com o auxílio de qualquer copo que contenha água magnetizada, e que parece vulgarizar-se. Se assim é, a mediunidade vidente poderia tornar-se tão comum quanto a pela escrita. Eis as informações que nos são dadas, segundo as quais cada um poderá experimentar, desde que se coloque em condições favoráveis:

“A mediunidade vidente pelo copo d’água magnetizada acaba de se revelar entre nós num certo número de pessoas. Em um mês temos quinze médiuns videntes deste gênero, tendo cada um a sua especialidade. Um dos melhores é uma jovem senhora, que não sabe ler nem escrever; é mais particularmente apta para as doenças, e eis como nossos Espíritos bons procedem, para nos mostrar o mal e o remédio. Tomo um exemplo ao acaso: Uma pobre mulher, que se achava na reunião, havia recebido um golpe certeiro no peito; apareceu no copo absolutamente como uma fotografia; levou a mão sobre a parte lesada. A Sra. V... (o médium) viu em seguida o peito se abrir e notou que havia sangue coagulado no lugar onde se dera o golpe; depois tudo desapareceu para dar lugar à imagem dos remédios, que consistiam num emplastro de resina branca e um copo contendo benjoim. Esta mulher ficou perfeitamente curada depois de ter seguido o tratamento.

“Quando se trata de um obsedado, o médium vê os Espíritos maus que o atormentam; a seguir aparecem, como remédio, o Espírito simbolizando a prece, e duas mãos que magnetizam.

“Temos um outro médium, cuja especialidade é ver os Espíritos. Pobres Espíritos sofredores muitas vezes nos têm apresentado, por seu intermédio, cenas comovedoras, para nos fazer compreender as suas angústias. Um dia evocamos o Espírito de um indivíduo que se afogara voluntariamente; apareceu na água turva; não se lhe via senão a parte posterior da cabeça e os cabelos semimergulhados na água. Durante duas sessões foi-nos impossível ver-lhe o rosto. Fizemos a prece pelos suicidas; no dia seguinte o médium viu a cabeça fora d’água, sendo possível reconhecer os traços de um parente de uma das pessoas da Sociedade. Continuamos nossas preces e, embora o rosto ainda exibisse uma expressão de sofrimento, parecia retomar a vida.

“Desde algum tempo vinham-se produzindo ruídos semelhantes aos de Poitiers, em casa de uma senhora que reside nos subúrbios de Genebra, e que causavam grande agitação em toda a casa. Essa senhora, que não conhecia absolutamente o Espiritismo, dele tendo ouvido falar, veio nos ver com seu irmão, pedindo para assistir às nossas sessões. Nenhum dos nossos médiuns os conhecia. Um deles viu em seu copo uma casa, no interior da qual um Espírito mau punha tudo em desordem, remexia os móveis e quebrava as louças. Pela descrição feita, aquela senhora reconheceu a mulher de seu jardineiro, muito má em vida, e que lhe tinha prejudicado bastante. Dirigimos ao Espírito algumas palavras benevolentes, para o trazer a melhores sentimentos, e à medida que lhe falávamos, seu rosto adquiria uma expressão mais doce. No dia seguinte, fomos à casa daquela dama e à noite foi completado o trabalho da véspera. Os ruídos cessaram quase completamente, desde a partida da cozinheira que, parece, servia de médium inconsciente àquele Espírito. Como tudo tem sua razão de ser e sua utilidade, penso que tais ruídos tinham por objetivo levar aquela família ao conhecimento do Espiritismo.

“Eis agora o que nossas observações nos ensinaram quanto à maneira de operar:

“É preciso um copo liso, bem uniforme no fundo; enchem-no de água até a metade, magnetizando-a pelos processos ordinários, isto é, pela imposição das mãos e, sobretudo, pela extremidade dos dedos, na boca do copo, auxiliada pela ação contínua do olhar e do pensamento. A duração da magnetização é de cerca de dez minutos na primeira vez; mais tarde bastam cinco minutos. A mesma pessoa pode magnetizar vários copos ao mesmo tempo.

“O médium vidente, ou aquele que quer experimentar, não deve magnetizar o seu próprio copo, pois consumiria o fluido que lhe é necessário para ver. Para a magnetização é preciso um médium especial, havendo, para isto, os dotados de um poder mais ou menos grande. A ação magnética não produz na água qualquer fenômeno que indique a sua saturação.

 “Feito isto, cada experimentador coloca o copo à sua frente e o olha durante vinte ou trinta minutos no máximo, algumas vezes menos, conforme a aptidão. Esse tempo só é necessário nas primeiras tentativas; quando a faculdade está desenvolvida, bastam alguns minutos. Durante esse tempo, uma pessoa faz a prece para chamar o concurso dos Espíritos bons.

“Os que são aptos a ver distinguem, de início, no fundo do copo, uma espécie de pequena nuvem; é um indício certo de que verão. Pouco a pouco essa nuvem toma uma forma mais acentuada, e a imagem se desenha à vista do médium. Entre si os médiuns podem ver nos copos uns dos outros, mas não as pessoas que não sejam dotadas desta faculdade. Algumas vezes parte do assunto aparece num copo e a outra parte em outro; para as doenças, por exemplo, um verá o mal e o outro o remédio. Outras vezes dois médiuns verão simultaneamente, cada um em seu copo, a imagem da mesma pessoa, mas geralmente em condições diferentes.

“Muitas vezes a imagem se transforma, muda de aspecto, depois desaparece. Em geral ela é bastante espontânea; o médium deve esperar e dizer o que vê. Mas também pode ser provocada por uma evocação.

“Ultimamente fui ver uma senhora que tem uma jovem operária de dezoito anos e que jamais ouvira falar do Espiritismo. A senhora pediu-me que lhe magnetizasse um copo d’água. A moça o olhou cerca de um quarto de hora, e disse: ‘Vejo um braço; dir-se-ia que é o de minha mãe; vejo a manga de seu vestido, levantada, como era seu costume.’ Essa mãe, que conhecia a sensibilidade da filha, sem dúvida não quis mostrar-se subitamente para lhe evitar uma impressão muito grande. Então pedi àquele Espírito, se fosse o da mãe do médium, que se desse a conhecer. O braço desapareceu e o Espírito se apresentou do tamanho de uma fotografia, mas virado de costas. Era ainda uma precaução para preparar a filha para a ver. Esta reconheceu o seu gorro, um ficho, as cores e os desenhos de seu vestido. Vivamente emocionada, dirigiu-lhe as mais ternas palavras, pedindo-lhe que deixasse ver o seu rosto. Eu mesmo lhe pedi que atendesse ao desejo de sua filha.

Então ela se apagou, deu-se a perturbação e o rosto apareceu. A jovem chorou de reconhecimento, agradecendo a Deus a dádiva que ele acabava de lhe conceder.

“A própria senhora desejava muito ver. No dia seguinte fizemos uma sessão em sua casa, que foi cheia de bons ensinamentos. Depois de ter olhado inutilmente no copo cerca de meia-hora, disse ela: ‘Meu Deus! se ao menos eu pudesse ver o diabo no copo, ficaria contente!’ Mas Deus não lhe concedeu esta satisfação.

“Os incrédulos não deixarão de creditar esses fenômenos à conta da imaginação. Mas os fatos aí estão para provar que, numa porção de casos, a imaginação aí não entra absolutamente. Primeiro, nem todo mundo vê, por mais desejo que tenha. Eu mesmo muitas vezes fiquei com o espírito superexcitado com este objetivo, sem jamais obter o menor resultado. A senhora de quem acabo de falar, malgrado seu desejo de ver o diabo, após meia hora de espera e de concentração, nada viu. A jovem não pensava em sua mãe quando esta lhe apareceu; e, depois, todas essas precauções para não se mostrar senão gradualmente atestam uma combinação, uma vontade estranha, nas quais a imaginação do médium não podia de modo algum participar.

“Para ter uma prova ainda mais positiva, fiz a seguinte experiência. Tendo ido passar alguns dias no campo, a algumas léguas de Genebra, havia, na família onde me encontrava, várias crianças. Como fizessem muito barulho, propus-lhe, para as ocupar, um jogo mais tranquilo. Tomei um copo d’água e o magnetizei, sem que ninguém percebesse, e lhes disse: ‘Qual dentre vós terá a paciência de olhar este copo durante vinte minutos, sem desviar os olhos?’ Abstive-me de acrescentar que eles poderiam nele ver alguma coisa; era a título de simples passatempo. Vários perderam a paciência antes do fim da prova; uma menina de onze anos foi mais perseverante; ao cabo de doze minutos, soltou um grito de alegria, dizendo que via uma magnífica paisagem, cuja descrição nos fez. Uma outra menina de sete anos, por sua vez tendo querido olhar, adormeceu instantaneamente. Com medo de a fatigar, logo a despertei. Onde está aqui o efeito da imaginação?

“Esta faculdade pode, pois, ser ensaiada numa reunião de pessoas, mas aconselho que, nas primeiras reuniões, não sejam admitidas pessoas hostis. Sendo necessários a calma e o recolhimento, a faculdade não se desenvolverá senão mais facilmente; quando formada, é menos susceptível de ser perturbada.

“O médium só vê com os olhos abertos; quando os fecha, está na escuridão. Pelo menos é o que notamos, e isto denota uma variedade na mediunidade vidente. O médium não fecha os olhos senão para repousar, o que lhe acontece duas ou três vezes por sessão. Vê tão bem de dia quanto de noite, mas à noite é preciso luz.

“A imagem das pessoas vivas se apresenta no copo tão facilmente quanto a das pessoas mortas. Tendo perguntado a razão disto ao meu Espírito familiar, ele me respondeu: ‘São suas imagens que vos apresentamos; os Espíritos são tão hábeis para pintar quanto para viajar.’ Entretanto, os médiuns distinguem sem esforço o Espírito de uma pessoa viva; há qualquer coisa de menos material.

“O médium do copo d’água difere do sonâmbulo pelo fato de o Espírito deste último se destacar; é-lhe necessário um fio condutor para ir procurar a pessoa ausente, enquanto o primeiro tem a sua imagem sob os olhos, que é o reflexo de sua alma e de seus pensamentos. Fatiga-se menos que o sonâmbulo, e está também menos exposto a se deixar intimidar pela visão dos Espíritos maus que podem apresentar-se. Esses Espíritos podem bem o fatigar, porque procuram magnetizá-lo, mas ele pode, à vontade, subtrair-se ao seu olhar, deles recebendo, aliás, uma impressão menos direta.

“Dá-se nesta mediunidade como em todas as outras: o médium atrai a si os Espíritos que lhe são simpáticos; ao médium impuro apresentam-se de bom grado Espíritos impuros. O meio de atrair os Espíritos bons é estar animado de bons sentimentos, só perguntar coisas justas e razoáveis, não se servir desta faculdade senão para o bem, e não para coisas fúteis. Se dela fizermos um objeto de distração, de curiosidade ou de tráfico ilegal, cairemos inevitavelmente na turba de Espíritos levianos e enganadores, que se divertem em apresentar imagens ridículas e falaciosas.”

Observação — Como princípio, esta mediunidade certamente não é nova. Mas aqui se desenha de maneira mais precisa, sobretudo mais prática, e se mostra em condições particulares. Pode-se, pois, considerá-la como uma das variedades que foram anunciadas. Do ponto de vista da ciência espírita, ela nos faz penetrar mais adiante o mistério da constituição íntima do mundo invisível, cujas leis conhecidas confirma, ao mesmo tempo que nos mostra suas novas aplicações. Ela ajudará a compreender certos fenômenos ainda incompreendidos da vida diária e, por sua vulgarização, não deixará de abrir novo caminho à propagação do Espiritismo. Quererão ver, experimentarão; quererão compreender, estudarão, e muitos entrarão no Espiritismo por esta porta.

Este fenômeno oferece uma particularidade notável. Até agora se compreendia a visão direta dos Espíritos em certas condições, a visão a distância de objetos reais: é hoje uma teoria elementar; mas aqui não são os próprios Espíritos que são vistos, e que não podem vir alojar-se num copo d’água, do mesmo modo que aí não se alojam casas, paisagens e pessoas vivas.

Aliás, seria erro acreditar que aí estivesse um meio melhor que outro de saber tudo o que se deseja. Os médiuns videntes, por este processo ou qualquer outro, não veem à vontade; não veem senão o que os Espíritos lhes querem fazer ver, ou têm a permissão de lhes fazer ver quando a coisa é útil. Não se pode forçar a vontade dos Espíritos, nem a faculdade dos médiuns. Para o exercício de uma faculdade mediúnica qualquer, é preciso que o aparelho sensitivo, se assim nos podemos exprimir, esteja em condições de funcionar. Ora, não depende do médium fazê-lo funcionar à sua vontade. Eis por que a mediunidade não pode ser uma profissão, já que poderia faltar no momento em que fosse necessária para satisfazer o cliente. Daí a incitação à fraude, para simular a ação do Espírito.

Prova a experiência que os Espíritos, sejam quais forem, jamais  estão ao capricho dos homens, não mais do que e menos ainda, do que quando estavam neste mundo; e, por outro lado, diz o simples bom-senso que, com mais forte razão, os Espíritos sérios não poderiam vir ao apelo do primeiro que viesse para coisas fúteis e representar o papel de saltimbancos e de ledores de buena-dicha. Só o charlatanismo pode pretender a possibilidade de manter aberta uma banca de comércio com os Espíritos.

Os incrédulos riem dos espíritas, porque imaginam que estes acreditam em Espíritos confinados numa mesa ou numa caixa, e que os manobram como marionetes. Acham isto ridículo e estão cheios de razões; onde estão errados é quando creem que o Espiritismo ensine semelhantes absurdos, quando ele diz exatamente o contrário. Se, por vezes, no mundo, encontraram alguns de uma credulidade muito fácil, não foi entre os espíritas esclarecidos. Ora, nesse número, há necessariamente os que o são mais ou menos, como em todas as ciências.

Os Espíritos não se alojam no copo d’água; eis o que é positivo. Que há, pois, no copo? Uma imagem, e não outra coisa; imagem tirada da Natureza, daí por que muitas vezes é exata. Como é produzida? Eis o problema. O fato existe, portanto tem uma causa. Embora ainda não se lhe possa dar uma solução completa e definitiva, o artigo seguinte, parece-nos, lança uma grande luz sobre a questão.


 

Fotografia do Pensamento

Ligando-se o fenômeno da fotografia do pensamento ao das criações fluídicas, descrito em nosso livro A Gênese, no capítulo dos fluidos, reproduzimos, para maior clareza, a passagem desse capítulo onde o assunto é tratado, e o completamos por novas observações.

Os fluidos espirituais, que constituem um dos estados do fluido cósmico universal, são, a bem dizer, a atmosfera dos seres espirituais; o elemento donde eles tiram os materiais sobre que operam; o meio onde ocorrem os fenômenos especiais, perceptíveis à visão e à audição do Espírito, mas que escapam aos sentidos carnais, impressionáveis somente à matéria tangível; o meio onde se forma a luz peculiar ao mundo espiritual, diferente, pela causa e pelos efeitos da luz ordinária; finalmente, o veículo do pensamento, como o ar o é o do som.

Os Espíritos atuam sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas empregando o pensamento e a vontade. Para os Espíritos, o pensamento e a vontade são o que é a mão para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem àqueles fluidos tal ou qual direção, os aglomeram, combinam ou dispersam, organizam com eles conjuntos que apresentam uma aparência, uma forma, uma coloração determinadas; mudam-lhes as propriedades, como um químico muda a dos gases ou de outros corpos, combinando-os segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.

Algumas vezes, essas transformações resultam de uma intenção; doutras, são produto de um pensamento inconsciente. Basta que o Espírito pense uma coisa, para que esta se produza, como basta que modele uma ária, para que esta repercuta na atmosfera.

É assim, por exemplo, que um Espírito se faz visível a um encarnado que possua a vista psíquica, sob as aparências que tinha quando vivo na época em que o segundo o conheceu, embora haja ele tido, depois dessa época, muitas encarnações. Apresenta-se com o vestuário, os sinais exteriores — enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. — que tinha então. Um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não quer isso dizer que haja conservado essas aparências, certo que não, porquanto, como Espírito, ele não é coxo, nem maneta, nem zarolho, nem decapitado; o que se dá é que, retrocedendo o seu pensamento  à época em que tinha tais defeitos, seu perispírito lhes toma instantaneamente as aparências, que deixam de existir logo que o mesmo pensamento cessa de agir naquele sentido. Se, pois, de uma vez ele foi negro e branco de outra, apresentar-se-á como branco ou negro, conforme a encarnação a que se refira a sua evocação e à que se transporte o seu pensamento.

Por análogo efeito, o pensamento do Espírito cria fluidicamente os objetos que ele esteja habituado a usar. Um avarento manuseará ouro, um militar trará suas armas e seu uniforme, um fumante o seu cachimbo, um lavrador a sua charrua e seus bois, uma mulher velha a sua roca. Para o Espírito, que é, também ele, fluídico, esses objetos fluídicos são tão reais, como o eram, no estado material, para o homem vivo; mas, pela razão de serem criações do pensamento, a existência deles é tão fugitiva quanto a deste.

Sendo os fluidos o veículo do pensamento, este atua sobre os fluidos como o som sobre o ar; eles nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Pode-se pois dizer, sem receio de errar, que há, nesses fluidos, ondas e raios de pensamentos, que se cruzam sem se confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros.

Como se vê, é uma ordem de fatos inteiramente novos, que se passam fora do mundo tangível, e constituem, se assim nos podemos exprimir, a física e a química especiais do mundo invisível. Mas como, durante a encarnação, o princípio espiritual está unido ao princípio material, daí resulta que certos fenômenos do mundo espiritual se produzem conjuntamente com os do mundo material e são inexplicáveis por quem quer que não conheça as suas leis. Assim, o conhecimento dessas leis é tão útil aos encarnados quanto aos desencarnados, pois só ele pode explicar certos fatos da vida material.

Criando imagens fluídicas, o pensamento se reflete no envoltório perispirítico, como num espelho, ou ainda como essas imagens de objetos terrestres que se refletem nos vapores do ar; toma nele corpo e aí de certo modo se fotografa. Tenha um homem, por exemplo, a ideia de matar a outro: embora o corpo material se lhe conserve impassível, seu corpo fluídico é posto em ação pelo pensamento e reproduz todos os matizes deste último; executa fluidicamente o gesto, o ato que intentou praticar. O pensamento cria a imagem da vítima e a cena inteira é pintada, como num quadro, tal qual se lhe desenrola no espírito.

Desse modo é que os mais secretos movimentos da alma repercutem no envoltório fluídico; que uma alma pode ler noutra alma como num livro e ver o que não é perceptível aos olhos do corpo. Os olhos do corpo veem as impressões interiores que se refletem nos traços do rosto: a cólera, a alegria, a tristeza; mas a alma vê nos traços da alma os pensamentos que não se traduzem no exterior.

Contudo, vendo a intenção, o vidente bem pode pressentir a execução do ato que lhe será a consequência, mas não pode determinar o instante em que o mesmo ato será executado, nem lhe assinalar os pormenores, nem, ainda, afirmar que ele se dê, porque circunstâncias ulteriores poderão modificar os planos assentados e mudar as disposições. Ele não pode ver o que ainda não esteja no pensamento do outro; o que vê é a preocupação habitual do indivíduo, seus desejos, seus projetos, seus desígnios bons ou maus. Daí os erros nas previsões de certos videntes, quando um acontecimento está subordinado ao livre-arbítrio do homem; não podem senão pressentir a sua probabilidade, conforme o pensamento que veem, mas não podem afirmar que ocorrerá de tal maneira e em tal momento. Além disso, a maior ou menor exatidão nas previsões depende da extensão e da clareza da visão psíquica; em certos indivíduos, Espíritos ou encarnados, ela é difusa ou limitada a um ponto, enquanto noutros é clara e abarca o conjunto dos pensamentos e das vontades que devem concorrer para a realização de um fato; mas, acima de tudo, há sempre a vontade superior, que pode, na sua sabedoria, permitir uma revelação ou impedi-la. Neste último caso, um véu impenetrável é lançado sobre a visão psíquica mais perspicaz. (Vide em A Gênese o capítulo da “Presciência”).

A teoria das criações fluídicas e, por consequência, da fotografia do pensamento, é uma conquista do Espiritismo moderno e, doravante, pode ser considerada como demonstrada em princípio, salvo as aplicações de detalhe, que resultam da observação. Esse fenômeno é, incontestavelmente, a fonte das visões fantásticas, e deve representar um grande papel em certos sonhos.

Pensamos que aí se pode encontrar a explicação da mediunidade pelo copo d’água (Vide o artigo precedente). Desde que o objeto que se vê não pode estar no copo, a água deve fazer o papel de um espelho, que reflete a imagem criada pelo pensamento do Espírito. Essa imagem pode ser a reprodução de uma coisa real, como a de uma criação de fantasia. Em todo o caso, o copo d’água não é senão um meio de a reproduzir, mas não é o único, como o prova a diversidade dos processos empregados por alguns videntes. Este talvez convenha melhor a certas organizações.


 

A Morte do Sr. Bizet, Cura de Sétif — A Fome entre os Espíritos

Um dos nossos correspondentes da Argélia nos informa, nos seguintes termos, sobre a morte do Sr. Bizet, cura de Sétif:

“O Sr. Bizet, cura de Sétif, faleceu em 15 de abril, com a idade de quarenta e três anos, vitimado, sem dúvida, pelas fadigas que suportou durante a fome, quando desenvolveu uma atividade e um devotamento verdadeiramente exemplares. Nascido nas cercanias de Viviers, no Departamento do Ardèche, era, há dezessete anos, pastor dessa cidade, onde tinha sabido granjear as simpatias de todos os habitantes, sem distinção de culto, por sua prudência, por sua moderação e a sabedoria de seu caráter.

“Nos primórdios do Espiritismo nesta localidade e, principalmente, quando o Écho de Sétif  afirmou abertamente esta doutrina, por um instante o Sr. Bizet tinha tido a intenção de a combater; entretanto, absteve-se de entrar numa luta que estavam decididos a sustentar. Depois, tinha lido as vossas obras com atenção. É provavelmente a essa leitura que se deve atribuir a sua reserva cheia de sabedoria, quando lhe foi ordenado ler durante a homilia a famosa pastoral de monsenhor Pavie, bispo de Argel, que qualificava o Espiritismo como a nova vergonha da Argélia. O Sr. Bizet não quis ler em pessoa essa pastoral, do púlpito; fê-la ler por seu vigário, sem lhe acrescentar nenhum comentário.”

Além disso, extraímos do Journal de Sétif, de 23 de abril, a seguinte passagem do artigo necrológico que publicou sobre o Sr. Bizet:

“No dia seguinte à sua morte, em 15 de abril, foram celebradas as suas exéquias. Uma missa de réquiem  foi cantada às dez horas da manhã, pelo repouso de sua alma; um dos senhores grandes vigários, enviado há alguns dias pelo Sr. bispo, era o oficiante. Não faltou nenhum habitante de Sétif; as diferentes religiões estavam reunidas e misturadas para dizer um adeus ao Sr. cura Bizet. Os árabes, representados por alcaides e magistrados muçulmanos; os israelitas pelo rabino e os principais notáveis dentre eles; os protestantes por seu pastor, lá estavam, rivalizando em zelo e dedicação para prestar ao Sr. abade Bizet um último testemunho de estima, de afeição e de pesar.

“A reunião de tantas comunhões diversas num mesmo sentimento de simpatia é um dos mais belos sucessos conquistados pela caridade cristã que, no curso de seu apostolado em Sétif, não cessou de animar o abade Bizet. Vivendo em meio a uma população que está longe de ser homogênea, e entre a qual se encontram dissidentes de toda sorte, ele soube conservar intacto o legado católico que lhe tinha sido confiado, conservando, ao mesmo tempo, com os que não partilhavam de suas convicções religiosas, relações benevolentes e afetuosas, que lhe valeram as simpatias de todos.

“Mas o que transbordava de todos os corações era a lembrança dos sentimentos de caridade cristã que animavam o Sr. abade Bizet. Sua caridade era doce, paciente, sobretudo durante o longo inverno que acabamos de atravessar, em meio a uma miséria horrível, que tinha posto a seu encargo uma multidão de desgraçados. Sua caridade tudo cria, tudo esperava, tudo suportava e jamais desanimava. Foi no meio desse devotamento para socorrer os infelizes esfomeados, ameaçados todos os dias de morrer de frio e de fome, que contraiu o germe da moléstia que o levou deste mundo, se é que já não estava atingido, devido ao zelo excepcional que desenvolveu durante a cólera do verão passado.”

O Sr. Bizet era espírita? ostensivamente, não; interiormente, ignoramo-lo. Se não o era, pelo menos tinha o bom-senso de não lançar anátema a uma crença que conduz a Deus os incrédulos e os indiferentes. Aliás, que nos importa? Era um homem de bem, um verdadeiro cristão, um padre segundo o Evangelho. A este título, se nos tivesse sido hostil, nem por isto os espíritas deixariam de o ter colocado na classe dos homens cuja memória a Humanidade deve honrar e tomar como modelo.

A Sociedade Espírita de Paris quis dar-lhe um testemunho de sua respeitosa simpatia, chamando-o ao seu seio, onde ele deu a seguinte comunicação:

Sociedade de Paris, 14 de maio de 1868

“Estou feliz, senhor, pelo benevolente apelo que houvestes por bem me dirigir, e ao qual considero uma honra e um prazer responder. Se não vim diretamente ao vosso meio, é que a perturbação da separação e o espetáculo novo com que fui ferido não mo permitiram. E, depois, não sabia a quem ouvir; encontrei muitos amigos, cujo simpático acolhimento me ajudou poderosamente a me reconhecer; mas também tive sob os olhos o atroz espetáculo da fome entre os Espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses infelizes, mortos nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer a uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um pedaço de comida que se escondia em suas mãos, dilacerando-se mutuamente e, se posso dizer, se entredevorando; uma cena horrível, pavorosa, ultrapassando tudo quanto a imaginação humana pode conceber de mais desolador!... Muitos desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro grito foi: Pão!  Era em vão que eu tentava lhes fazer compreender a sua situação; eram surdos às minhas consolações. — Que coisa terrível é a morte em semelhantes condições, e como aquele espetáculo é mesmo susceptível de fazer refletir sobre o nada de certos pensamentos humanos!... Assim, enquanto na Terra se pensa que aqueles que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebe-se do outro lado que não é nada disso, e que o quadro não é menos sombrio, embora os autores tenham mudado de aparência.

“Perguntais se eu era espírita. Se, por esta palavra, entendeis aceitar todas as crenças que a vossa doutrina preconiza, não; eu não chegava até lá. Eu admirava os vossos princípios; julgava-os capazes de trazer a salvação aos que sinceramente os punham em prática; mas tinha minhas reservas sobre um grande número de pontos. Não segui, a vosso respeito, o exemplo de meus confrades e de alguns de meus superiores, que eu interiormente censurava, porque sempre pensei que a intolerância era mãe da incredulidade, e que era preferível ter uma crença que levasse à caridade e à prática do bem, a não a ter absolutamente. Eu era espírita de fato? Não me cabe pronunciar-me a respeito.

“Quanto ao pouco bem que pude fazer, estou realmente confuso com os exagerados elogios de que me tornaram objeto. Quem não teria agido como eu?... Não são ainda mais merecedores do que eu, se nisto há algum mérito, os que se devotaram em socorrer os infelizes árabes, e que a isto não foram levados senão pelo amor do bem?... Para mim a caridade era um dever, em consequência do caráter de que eu estava revestido. Faltando a ela, eu seria culpado, teria mentido a Deus e aos homens, aos quais eu havia consagrado a minha existência. Aliás, quem poderia ter ficado insensível diante de tantas misérias?...

“Vós o vedes, fizeram como sempre: aumentaram enormemente os fatos; cercaram-me de uma espécie de celebridade, que me deixa confuso e magoado e pela qual sofro em meu amor-próprio. Porque, enfim, bem sei que não mereço tudo isto, e estou bem certo, senhor, de que me conhecendo melhor, reduzireis ao seu justo valor o ruído que fazem em volta de mim. Se tenho algum mérito, que mo concedam, concordo; mas que não me levantem um pedestal com uma reputação usurpada: eu não poderia consentir com isto.

“Como vedes, senhor, ainda estou muito recente neste mundo novo para mim, sobretudo muito ignorante e mais desejoso de me instruir do que capaz de instruir os outros. Hoje os vossos princípios me parecem tanto mais justos quanto, depois de ter lido a sua teoria, vejo a sua mais larga aplicação prática. Assim, ficaria feliz em os assimilar completamente e vos seria reconhecido se me aceitásseis algumas vezes como um dos vossos ouvintes.”

Cura Bizet

Observação — A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos, que segundo eles são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe que esses mesmos Espíritos são seres como nós; que têm um corpo, fluídico é verdade, mas que não deixa de ser matéria; que, deixando seu invólucro carnal, certos Espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos ensina que tal é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo, nos Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos.

Completamente diversa é a posição dos que, desde esta vida, se desmaterializaram pela elevação de seus pensamentos e sua identificação com a vida futura. Todas as dores da vida corporal cessam com o último suspiro e logo o Espírito plana, radioso, no mundo etéreo, feliz como o prisioneiro liberto de suas cadeias.

Quem nos disse isto? É um sistema, uma teoria? Alguém disse que deveria ser assim e se acredita sob palavra? Não; são os próprios habitantes do mundo invisível que o repetem em todos os pontos do globo, para ensinamento dos encarnados.

Sim, legiões de Espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas quais? Os que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se desprenderem instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não; é uma lei da Natureza, inerente ao estado de inferioridade dos Espíritos e necessária ao seu adiantamento; é uma prolongação mista  da vida terrena durante alguns dias, alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. Estariam aptos para tachar de barbárie essa legislação, aqueles que preconizam o dogma das penas eternas, irremissíveis, e as chamas do inferno como um efeito da soberana justiça? Podem eles fazer um paralelo entre a situação temporária, sempre subordinada à vontade do indivíduo de progredir, e a possibilidade de avançar por novas encarnações? Aliás, não depende de cada um escapar a essa vida intermediária, que, francamente, nem é a vida material, nem a vida espiritual? Os espíritas a ela escapam naturalmente, porque, compreendendo o estado do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua situação.

As evocações nos mostram uma multidão de Espíritos que ainda se julgam deste mundo: suicidas, supliciados que não suspeitam que estão mortos e sofrem o seu gênero de morte; outros que assistem ao próprio enterro, como se fosse o de um estranho; avarentos que guardam seus tesouros, soberanos que julgam mandar ainda e que ficam furiosos por não serem obedecidos; depois de grandes desastres marítimos, náufragos que lutam contra o furor das ondas; após uma batalha, soldados que se batem; e, ao lado disto, Espíritos radiosos, que nada mais têm de terrestre e são para os encarnados o que a borboleta é para a lagarta. Pode perguntar-se para que servem as evocações, quando nos dão a conhecer, até nos mais ínfimos detalhes, esse mundo que nos espera a todos, ao sairmos deste? É a Humanidade encarnada que conversa com a Humanidade desencarnada; o prisioneiro que fala com o homem livre. Não, por certo elas nada servem ao homem superficial que nisto só vê um divertimento; elas não lhe servem mais do que a física e a química recreativas para a sua instrução. Mas para o filósofo, observador sério, que pensa no amanhã da vida, é uma grande e salutar lição; é todo um mundo novo que se descobre; é a luz lançada sobre o futuro; é a destruição dos preconceitos seculares sobre a alma e a vida futura; é a sanção da solidariedade universal que liga todos os seres. Dirão que se pode ser enganado; sem dúvida, como se o pode sobre todas as coisas, mesmo as que se vê e se toca; tudo depende da maneira de observar.

O quadro que apresenta o cura Bizet nada tem, pois, de estranho; vem, ao contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já se sabia; e, o que afasta toda ideia de reflexão de pensamentos, é que o fez espontaneamente, sem que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo dizer, sem que se lhe perguntasse, se aquilo era assim ou não? Sem dúvida a isto foi levado para a nossa instrução. Aliás, toda a comunicação traz um cunho de gravidade, de sinceridade e de modéstia, que é bem o seu caráter e que não é próprio dos Espíritos mistificadores.


 

O Espiritismo em Toda Parte

Jornal Solidariedade

O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõem todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem a mão para marchar em conjunto ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.

O Solidarité  é um jornal cujos redatores levam seu título a sério. E que campo mais vasto e mais fecundo para o filósofo moralista do que esta palavra que encerra todo o programa do futuro da Humanidade! É por isso que esta folha, se não tem a popularidade das folhas leves, conquistou um crédito mais sólido entre os pensadores sérios.[1] Embora até hoje ela não se tenha mostrado muito simpática às nossas doutrinas, não rendemos menos justiça à sinceridade de seus pontos de vista e ao incontestável talento de sua redação. É, pois, com viva satisfação que hoje a vemos, por sua vez, fazer justiça aos princípios do Espiritismo. Seus redatores nos farão também a de reconhecer que não fizemos nenhuma diligência para os trazer a nós. Sua opinião, portanto, não resulta de nenhuma condescendência pessoal.

Sob o título de: Boletim do movimento filosófico e religioso, o número de 1º de maio contém um artigo notável, do qual extraímos as passagens seguintes:

“A confusão vai aumentando sem cessar. Onde irá parar? Não é só em política que não se entendem mais; não é somente em economia social, é também em moral e em religião, de sorte que a perturbação se estende a todas as esferas da atividade humana, que invadiu todo o domínio da consciência, e que a própria civilização está em causa.

“Não que a ordem material esteja em perigo. Há hoje na sociedade muitos elementos conquistados e muitos interesses a conservar, para que a ordem material possa nela ser seriamente perturbada. Mas a ordem material nada prova. Pode persistir muito tempo, até que o princípio mesmo da vida social seja atingido e que a corrupção dissolva lentamente o organismo. A ordem reinava em Roma sob os césares, enquanto a civilização romana ia desmoronando dia a dia, não sob o esforço dos bárbaros, mas sob o peso de seus próprios vícios.

“Nossa sociedade chegará a eliminar de seu seio os elementos mórbidos que ameaçam transformar-se em germes de dissolução e de morte? Nós o esperamos, mas é necessário o ponto de apoio dos princípios eternos, o concurso de uma ciência verdadeiramente positiva, e a perspectiva de um ideal novo.

“Eis as condições da salvação social, porque aí estão, para os indivíduos, os meios de um verdadeiro renascimento. Uma sociedade não pode ser mais que o produto dos seres sociais que a constituem, e como o resultante de seu estado físico, intelectual e moral. Se quiserdes uma transformação social, fazei primeiro o homem novo.[2]

“Embora o círculo dos leitores das publicações filosóficas tenha crescido muito nestes últimos anos, quanta gente ainda ignora a existência desses jornais ou negligencia a sua leitura! É um erro. Sem eles, é impossível dar-se conta do estado das almas. Os órgãos da filosofia contemporânea têm ainda um outro alcance: preparam as questões que os acontecimentos levantarão em breve, e que será urgente resolver.

“Por certo a confusão é grande na imprensa filosófica; é um pouco a torre de Babel: cada um aí fala a sua língua e se preocupa muito mais em cobrir a voz do vizinho do que escutar as suas razões. Cada sistema aspira a ser único e exclui todos os outros. Mas é preciso guardar-se de os tomar ao pé da letra em seu exclusivismo. Talvez não haja um só que represente algum ponto de vista legítimo. Todos passarão: só a verdade é eterna; mas, talvez, nenhum deles seja completamente estéril; nenhum terá desaparecido sem juntar algo ao capital intelectual da Humanidade. O materialismo, o positivismo religioso e o positivismo filosófico, o independentismo (perdoem o barbarismo, que não é meu), o criticismo, o idealismo, o espiritualismo, o Espiritismo — pois é preciso contar com este recém-vindo, que tem mais partidários do que todos os outros reunidos — e, por outro lado, o protestantismo liberal, o idealismo liberal, e mesmo o catolicismo liberal: tais são os nomes das principais bandeiras que, a títulos diversos e com forças desiguais, se acham representados no campo filosófico. Sem dúvida não existe aí um exército, porque não há obediência a um chefe, nem hierarquia, nem disciplina, mas esses grupos, hoje divididos e independentes, podem ser reunidos por um perigo comum.

“O movimento filosófico a que assistimos precede de pouco tempo o grande movimento religioso que se prepara. Logo as questões religiosas apaixonarão os espíritos, como o faziam há pouco as questões sociais, e mais fortemente ainda.

“Que ordem deve fundar-se por uma simples evolução da ideia cristã, restabelecida na sua pureza primitiva, como o pensam alguns, ou por uma espécie de fusão das crenças no terreno vago de um deísmo judaico-cristão, como o esperam outros homens de boa vontade, ou, o que nos parece muito mais provável, pela intervenção de uma ideia mais larga e mais compreensível, que dá à vida humana o seu verdadeiro objetivo, a primeira necessidade da época em que estamos, é a liberdade: liberdade de pensar e de publicar o seu pensamento, liberdade de consciência e de culto, liberdade de propaganda e de pregação! Por certo, em meio a tantos sistemas que se defrontam, é impossível que não se veja abrir-se uma fase de discussões ardentes, apaixonadas, aparentemente desordenadas, embora essa fase preparatória seja necessária, como a agitação caótica é necessária à criação. Como os relâmpagos e os raios na atmosfera terrestre, a fermentação das ideias agita a atmosfera moral para a purificar. Quem pode temer a tempestade, sabendo que ela deve restabelecer o equilíbrio perturbado e renovar as fontes da vida?”

O mesmo número contém a seguinte apreciação de nossa obra sobre A Gênese. Não a reproduzimos senão porque se liga aos interesses gerais da doutrina:

“Passa-se em nossa época um fato de importância capital, e as pessoas fingem não ver. Contudo, aí há fenômenos a observar, que interessam à Ciência, notadamente a Física e a Fisiologia humanas; mas, ainda que os fenômenos chamados de Espiritismo só existissem na imaginação de seus adeptos, a crença no Espiritismo, espalhada com tanta rapidez por toda parte, é em si mesma um fenômeno considerável e muito digno de ocupar as meditações do filósofo.

“É difícil, mesmo impossível, apreciar o número das pessoas que creem no Espiritismo, mas pode dizer-se que essa crença é geral nos Estados Unidos, e que se propaga cada vez mais na Europa. Na França há toda uma literatura espírita. Paris possui dois ou três jornais que a representam. Lyon, Bordeaux, Marselha, cada uma tem o seu.

“Na França, o Sr. Allan Kardec é o mais eminente representante do Espiritismo. Foi uma felicidade para essa crença ter encontrado uma inteligência que soubesse mantê-la nos limites do racionalismo. Teria sido fácil, com toda essa mistura de fenômenos reais e de criações puramente ideais e subjetivas que constituem a maravilha do que se chama o Espiritismo, deixar-se arrastar pela atração do milagre e pela ressurreição das velhas superstições! O Espiritismo poderia ter dado aos inimigos da razão um poderoso apoio, se tivesse voltado à demonologia, e existe no seio do mundo católico um partido que para isto ainda faz todos os esforços. Há também toda uma literatura deplorável, prejudicial, mas felizmente sem influência. Ao contrário, o Espiritismo, na França como nos Estados Unidos, resistiu ao espírito da Idade Média. O demônio nele não representa nenhum papel, e o milagre aí não vem introduzir as suas tolas explicações.

“Pondo de lado a hipótese que constitui o fundo do Espiritismo, e que consiste na crença de que os Espíritos das pessoas mortas se entretêm com os vivos por meio de certos processos de correspondência, muito simples e ao alcance de todos; pondo de lado, dizíamos, a hipótese deste ponto de partida, encontramo-nos em presença de uma doutrina geral, que está perfeitamente em relação com o estado da Ciência em nossa época, e que responde perfeitamente às necessidades e às aspirações modernas. E o que há de notável é que a Doutrina Espírita é mais ou menos a mesma em toda parte. Se não é estudada senão na França, pode-se crer que as obras do Sr. Allan Kardec, que são como a enciclopédia do Espiritismo, aí o são por muitos. Mas esta paridade da doutrina se estende aos outros países; por exemplo, os ensinamentos de Davis, nos Estados Unidos, não diferem essencialmente dos do Sr. Allan Kardec. É verdade que nas ideias emitidas pelo Espiritismo, nada se encontra que não pudesse ter sido encontrado pelo espírito humano entregue só aos recursos da imaginação e da ciência positiva; mas, desde que as sínteses que são propostas pelos escritores espíritas são científicas e racionais, merecem ser examinadas sem prevenção, sem ideia preconcebida, pela crítica filosófica.

“A nova obra do Sr. Allan Kardec aborda as questões que constituem o objeto de nossos estudos. Hoje não podemos fazer-lhe um relatório. A ela voltaremos num próximo número e, ao mesmo tempo, diremos o que pensamos dos fenômenos ditos espíritas, e das explicações que dos mesmos podem ser dadas no estado atual da Ciência.”

Nota — Este mesmo número contém um notável artigo do Sr. Raisant, intitulado: Meu ideal religioso, e que os espíritas não desaprovariam.

Conferências

Numa série de conferências feitas em abril último, pelo Sr. Chavée, no Instituto Livre do boulevard des Capucines, no 39, o orador fez, com tanto talento quanto verdadeira ciência, um estudo analítico e filosófico dos Vedas indianos e das leis de Manu, comparadas com o livro de Jó e os Salmos. O tema conduziu a considerações de elevado alcance, que tocam diretamente os princípios fundamentais do Espiritismo. Eis algumas notas colhidas por um ouvinte dessas conferências; não são senão pensamentos apanhados a esmo, que perdem necessariamente ao serem destacados do conjunto e privados de seus desenvolvimentos, mas que bastam para mostrar a ordem das ideias seguidas pelo autor:

“De que serve lançar um véu sobre o que é? De que serve não dizer bem alto o que se pensa baixinho? É preciso ter a coragem de dizer. Quanto a mim, terei esta coragem.”

“Nos Vedas indianos está dito: ‘Têm-se os seus pares  no alto.’ E eu sou desta opinião.”

“Com os olhos da carne não se pode ver tudo.”

“O homem tem uma existência indefinida e o progresso da alma é indefinido. Seja qual for a soma de suas luzes, ela tem sempre a aprender, porque tem o infinito à sua frente e, embora não o possa atingir, seu objetivo será sempre dele se aproximar cada vez mais.”

 “O homem individual não pode existir sem um organismo que o limite no seio da Criação. Se a alma existe após a morte, então tem um corpo, um organismo que chamo organismo superior, em oposição ao corpo carnal, que é o organismo inferior. Durante a vigília, esses dois organismos estão, a bem dizer, confundidos; durante o sono, o sonambulismo e o êxtase, a alma não se serve senão de seu corpo etéreo ou organismo superior; ela é mais livre neste estado; suas manifestações são mais elevadas, porque age sobre esse organismo mais perfeito, que lhe oferece menos resistência; ela abarca um conjunto de relações admiráveis, o que não pode fazer com o seu organismo inferior, que limita a sua clarividência e o campo de suas observações.”

“A alma é sem extensão; ela não é estendida senão pelo seu corpo etéreo, e circunscrita pelos limites desse corpo, que São Paulo chama organismo luminoso.”

“Um organismo, etéreo nos seus elementos constitutivos, mas invisível e atingível  apenas pela indução científica, em nada contraria as leis conhecidas da Física e da Química.”

“Há fatos que a experimentação sempre pode reproduzir, constatando no homem a existência  de um organismo interno superior, que deve suceder ao organismo opaco habitual, no momento da destruição deste último.”

“Depois que a morte separou a alma de seu organismo carnal, ela continua a vida no espaço, com seu corpo etéreo, assim conservando a sua individualidade. Entre os homens de que falamos e que estão mortos segundo a carne, certamente os há aqui entre nós, que assistem, invisíveis, às nossas conversas; estão ao nosso lado e planam acima de nossas cabeças; veem-nos e nos escutam. Sim, estão aqui, eu vo-lo asseguro.”

“A escala dos seres é contínua; antes de ser o que somos, passamos por todos os graus desta escala, que estão abaixo de nós, e continuaremos a subir os que estão acima. Antes que nosso cérebro fosse réptil, foi peixe, e foi peixe antes de ser mamífero.”

“Os materialistas negam estas verdades; são honestos; são de boa-fé, mas se enganam! Desafio um materialista a vir aqui, a esta tribuna, provar que tem razão e que estou errado. Que venham provar o materialismo! Não, não o provarão; apenas emitirão ideias apoiadas no vazio; apenas oporão denegações, ao passo que vou demonstrar por fatos a verdade de minha tese.”

“Há fenômenos patológicos que provam a existência da alma após a morte? Sim, há, e vou citar um. Vejo aqui doutores em Medicina, que pretendem que isto não se dá. Apenas lhes responderei: Se não o vistes, é porque olhastes mal. Observai, buscai, estudai e o encontrareis, como eu próprio o achei.”

“É ao sonambulismo e ao êxtase que vou pedir as provas que vos prometi. — Ao sonambulismo? perguntar-me-ão. Mas a Academia de Medicina ainda não o reconheceu. — E daí? Nada tenho com a Academia de Medicina e a dispenso. — Mas o Sr. Dubois, de Amiens, escreveu um grosso volume in-8o contra essa doutrina. — Isto também não me importa; são opiniões sem provas, que desaparecem diante dos fatos.”

“Dir-me-ão ainda: ‘Não está mais na moda defender o sonambulismo.’ Responderei que não me preocupo em estar na moda, e que se poucos homens ousam professar verdades que ainda atraem o ridículo, sou daqueles a quem o ridículo não pode atingir, e que o afrontam de bom grado, para dizer corajosamente o que julgam ser a verdade. Se cada um de nós agisse assim, em breve a incredulidade perderia todo o terreno que ganhou desde algum tempo, e seria substituída pela fé. Não a fé, filha da revelação, mas a fé mais sólida, filha da Ciência, da observação e da razão.”

O orador cita numerosos exemplos de sonambulismo e de êxtase, que lhe deram a prova, de certo modo material, da existência da alma, de sua ação isolada do corpo carnal, de sua individualidade após a morte e, finalmente, de seu corpo etéreo, que não é senão o envoltório fluídico ou perispírito.

Como se vê, a existência do perispírito, suspeitada desde toda a antiguidade pelas inteligências de escol, mas ignorada pelas massas, demonstrada e vulgarizada nestes últimos tempos pelo Espiritismo, é toda uma revolução nas ideais psicológicas e, por conseguinte, na filosofia. Admitido este ponto de partida, chega-se forçosamente, de dedução em dedução, à individualidade da alma, à pluralidade das existências, ao progresso indefinido, à presença dos Espíritos entre nós, numa palavra, a todas as consequências do Espiritismo, até ao fato das manifestações que se explicam de maneira toda natural.

Por outro lado, demonstramos no tempo que, partindo do princípio da pluralidade das existências, hoje admitido por numerosos pensadores sérios, mesmo fora do Espiritismo, se chega exatamente às mesmas consequências.

Se, pois, homens, cujo saber tem autoridade, professam abertamente, pela palavra ou por seus escritos, mesmo sem falar do Espiritismo, uns a doutrina do perispírito sob um nome qualquer, outros a pluralidade das existências, na realidade é professar o Espiritismo, pois são dois caminhos que a ele conduzem forçosamente. Se hauriram essas ideias em si mesmos e em suas próprias observações, isto só prova melhor que elas estão em a Natureza e quão irresistível é o seu poder. Assim, o perispírito e a reencarnação são, de agora em diante, duas portas abertas para o Espiritismo, no domínio da filosofia e nas crenças populares.

As conferências do Sr. Chavée são, pois, verdadeiras conferências espíritas, menos a palavra; e, sob este último aspecto, diremos que no momento elas são mais proveitosas à Doutrina do que se empunhassem abertamente a sua bandeira. Popularizam as suas ideias fundamentais sem ofuscar os que, por ignorância da coisa, tivessem prevenção contra o nome. Uma prova evidente da simpatia que estas ideias encontram na opinião é o acolhimento entusiasta que é feito às doutrinas professadas pelo Sr. Chavée, pelo numeroso público que se comprime em suas conferências.

Estamos persuadidos de que mais de um escritor, que põe os espíritas em ridículo, aplaude o Sr. Chavée e suas doutrinas, que acha perfeitamente racionais, sem suspeitar que seja nada mais nada menos que o mais puro Espiritismo.

O jornal Solidarité, em seu número de 1º de maio, por nós citado acima, dá um relato dessas conferências, para o qual chamamos a atenção dos nossos leitores, já que completa, sob outros pontos de vista, os ensinamentos acima.

Nota — A abundância das matérias nos obriga a adiar para o próximo número o relato de dois interessantíssimos folhetins do Sr. Bonnemère, autor do Romance do Futuro, publicados no Siècle  de 24 e 25 de abril de 1868, sob o título de Paris sonâmbula. O Espiritismo é aí claramente definido.


 

Nota Bibliográfica — A Religião e a Política na Sociedade Moderna

Por Frédéric Herrenschneider[3]

O Sr. Herrenschneider é um antigo são-simonista e foi aí que colheu seu ardente amor ao progresso. Depois se tornou espírita e, contudo, estamos longe de partilhar sua maneira de ver sobre todos os pontos e aceitar todas as soluções que dá. A sua é uma obra de alta filosofia, em que o elemento espírita ocupa um lugar importante. Não a examinaremos senão do ponto de vista da concordância e da divergência de suas ideias, no que diz respeito ao Espiritismo. Antes de entrar no exame de sua teoria, algumas considerações preliminares nos parecem essenciais.

Três grandes doutrinas dividem os espíritos, sob os nomes de religiões diferentes e filosofias muito distintas: são o materialismo, o espiritualismo e o Espiritismo. Ora, pode-se ser materialista e crer ou não crer no livre-arbítrio do homem; no segundo caso é-se ateu  ou panteísta; no primeiro é-se inconsequente e ainda se toma o nome de panteísta ou de naturalista, positivista, etc.

A criatura é espiritualista desde que não é materialista, isto é, desde que admite um princípio espiritual distinto da matéria, seja qual for a ideia que se faça de sua natureza e de seu destino. Os católicos, os gregos, os protestantes, os judeus, os muçulmanos, os deístas são espiritualistas, a despeito das diferenças essenciais de dogmas que os dividem.

Os espíritas fazem da alma uma ideia mais clara e mais precisa; não é um ser vago e abstrato, mas um ser definido, que reveste uma forma concreta, limitada, circunscrita. Independentemente da inteligência, que é a sua essência, ela tem atributos e efeitos especiais, que constituem os princípios fundamentais de sua doutrina. Admitem: o corpo fluídico ou perispírito; o progresso indefinido da alma; a reencarnação ou pluralidade das existências, como necessidade do progresso; a pluralidade dos mundos habitados; a presença em nosso meio das almas ou Espíritos que viveram na Terra e a continuação de sua solicitude pelos vivos; a perpetuidade das afeições; a solidariedade universal, que liga os vivos e os mortos; os Espíritos de todos os mundos e, em consequência, a eficácia da prece; a possibilidade de comunicação com os Espíritos dos que não vivem mais; no homem, a visão espiritual ou física, que é um efeito da alma.

Rejeitam o dogma das penas eternas, irremissíveis, como inconciliável com a justiça de Deus; mas admitem que a alma, depois da morte, sofra e suporte as consequências de todo o mal que fez durante a vida, de todo o bem que poderia ter feito e não fez. Seus sofrimentos são a consequência natural  de seus atos; duram enquanto durar a perversidade ou a inferioridade moral do Espírito; diminuem à medida que ele se melhora e cessam pela reparação do mal, reparação que ocorre nas existências corporais sucessivas. Tendo sempre sua liberdade de ação, o Espírito é, assim, o próprio artífice de sua felicidade e de sua desgraça, neste mundo e no outro. O homem não é levado fatalmente nem ao bem, nem ao mal; realiza um e outro por sua vontade e se aperfeiçoa pela experiência. Em decorrência desse princípio, os espíritas não admitem os demônios fadados ao mal, nem a criação especial de anjos predestinados à felicidade infinita, sem terem tido o trabalho de a merecer. Os demônios são Espíritos humanos ainda imperfeitos, mas que melhorarão com o tempo; os anjos, Espíritos chegados à perfeição, depois de haverem passado, como os outros, por todos os graus da inferioridade.

O Espiritismo não admite, para cada um, senão a responsabilidade de seus próprios atos; segundo ele, o pecado original é pessoal, consistindo nas imperfeições que cada indivíduo traz ao nascer, porque delas ainda não se despojou em suas existências precedentes, e cujas consequências sofre naturalmente na existência atual.

Também não admite, como suprema recompensa final, a inútil e beata contemplação dos eleitos por toda a eternidade; mas, ao contrário, uma atividade incessante de alto a baixo da escala dos seres, em que cada um tem atribuições em conformidade com o seu grau de adiantamento.

Tal é, de forma muito resumida, a base das crenças espíritas. A gente é espírita desde o momento em que se entra nesta ordem de ideias, ainda mesmo quando não se admitissem todos os pontos da Doutrina em sua integridade ou em todas as suas consequências. Por não ser espírita completo  não se é menos espírita, o que faz que por vezes se o seja sem saber, algumas vezes sem o querer confessar e que, entre os sectários das diferentes religiões, muitos são espíritas de fato, quando não de nome.

Para os espiritualistas, a crença comum é acreditar num Deus criador e admitir que, após a morte, a alma continue a existir, sob a forma de Espírito puro, completamente desligada de toda a matéria e, também, que ela poderá, com ou sem a ressurreição de seu corpo material, fruir de uma existência eterna, ditosa ou infeliz.

Os materialistas, ao contrário, creem que a força é inseparável da matéria e não pode existir sem ela; assim, Deus não é para eles senão uma hipótese gratuita, a menos que seja a própria matéria; os materialistas negam com toda a sua força a concepção de uma alma essencialmente espiritual e de uma personalidade sobrevivente à morte.

Sua crítica é fundada, no que concerne à alma, tal qual a aceitam os espiritualistas, no sentido de que, sendo a força inseparável da matéria, uma alma pessoal, ativa e poderosa, não pode existir como um ponto geométrico no espaço, sem dimensão de qualquer espécie, nem comprimento, nem largura, nem altura. Que força, que poder, que ação pode ter uma tal alma sobre o corpo durante a vida? que progresso pode realizar e de que maneira conserva o seu traço, visto que nada é? como poderia ser susceptível de felicidade ou infelicidade após a morte? perguntam eles aos espiritualistas.

Não há por que dissimular essa argumentação especiosa, embora ela seja sem valor contra a doutrina dos espíritas. Eles admitem mesmo a alma distinta do corpo, como os espiritualistas, com uma vida eterna e uma personalidade indestrutível, mas consideram essa alma como indissoluvelmente unida à matéria; não à matéria do próprio corpo, mas a uma outra, mais etérea, fluídica e incorruptível, que chamam perispírito, palavra feliz, que bem exprime o pensamento que é a origem e a base mesma do Espiritismo.

Se resumirmos as três doutrinas, diremos que:

1º — Para os materialistas, a alma não existe; ou, se existe, confunde-se com a matéria, sem nenhuma personalidade distinta fora da vida presente, em que essa personalidade é mesmo mais aparente do que real;

2º — Para os espiritualistas, a alma existe no estado de Espírito, independente de Deus e de toda matéria;

3º — Para os espíritas, a alma é distinta de Deus, que a criou, inseparável de uma matéria fluídica e incorruptível, que se pode chamar perispírito.

Esta explicação preliminar permitirá compreender que existem espíritas sem o saber.

Com efeito, desde que não se seja materialista, nem espiritualista, não se pode ser senão espírita, apesar da repugnância que alguns parecem experimentar por esta qualificação.

Eis-nos bem longe das apreciações fantasistas dos que imaginam que o Espiritismo não repousa senão na evocação dos Espíritos. Entretanto, há espíritas que jamais fizeram uma evocação; outros que jamais as viram, nem se preocupam em as ver, pois sua crença dispensa esse recurso; e por se apoiar somente na razão e no estudo, essa crença não é menos completa e menos séria.

Pensamos mesmo que é sob sua forma filosófica e moral que o Espiritismo encontra os mais firmes e mais convictos aderentes; as comunicações não passam de meios de convicção, de demonstração e, sobretudo, de consolação. Não se deve a elas recorrer senão com reserva, e quando já se sabe bem o que se quer obter.

Não que as comunicações sejam partilha exclusiva dos espíritas; muitas vezes elas ocorrem espontaneamente e, por vezes mesmo, em meios hostis ao Espiritismo, do qual são independentes. Com efeito, não são senão o resultado de leis e ações naturais, que os Espíritos ou os homens podem utilizar, uns ou outros, quer independentemente, quer de acordo entre si.

Mas, assim como é prudente pôr instrumentos de Física, de Química e de Astronomia apenas nas mãos dos que deles sabem servir-se, convém não provocar comunicações senão quando possam ter uma utilidade real, e jamais com vistas a satisfazer uma curiosidade pueril.

Dito isto, podemos examinar a obra notável do Sr. Herrenschneider. É a obra de um profundo pensador e de um espírita convicto, se não completa, mas não aprovamos todas as conclusões a que chega.

O Sr. Herrenschneider admite a existência de um Deus criador, em tudo presente na Criação, penetrando todos os corpos com sua substância fluídica e se achando em nós como nós nele. É a notável solução que o Sr. Allan Kardec apresentou na sua obra A Gênese, a título de hipótese.

Mas, segundo o autor, no começo Deus enchia todo o espaço; teria criado cada ser retirando-se do lugar, que lhe concedia, para lhe deixar o livre desenvolvimento, sob sua proteção incessante. Esse desenvolvimento progressivo opera-se, a princípio, sob o efeito necessário das leis da Natureza e pela coerção do mal; depois, quando o Espírito já progrediu suficientemente, pode juntar a sua própria ação à ação fatal das leis naturais, para ativar o seu progresso.

Durante toda essa fase da existência dos seres, que começa pela molécula do mineral, prossegue no vegetal, desenvolve-se no animal e se determina no homem, o Espírito recolhe e conserva conhecimentos por seu perispírito, adquirindo, assim, uma certa experiência. Os progressos que se realizam são de grande lentidão e, quanto mais lentos, mais se multiplicam as encarnações.

Como se vê, o autor adota os princípios científicos do progresso dos seres, emitidos por Lamarck, Geoffroy Saint-Hilaire  e Darwin, com a diferença de que a ação moderadora das formas e dos órgãos animais já não é apenas o resultado da seleção e da concorrência vital, mas, também e sobretudo, o efeito da ação inteligente do espírito animal, modificando incessantemente as formas e a matéria, que reveste para realizar uma apropriação mais conforme à experiência que adquiriu.

É nesta ordem de ideias que queríamos ter visto o autor insistir sobre a ação benéfica e afetuosa dos seres mais elevados, concorrendo para o adiantamento dos mais fracos, guiando-os e protegendo-os por um sentimento de simpatia e de solidariedade, cujo desenvolvimento é felizmente apresentado no livro A Gênese e em todas as obras do Sr. Allan Kardec.

O Sr. Herrenschneider não fala da ação recíproca de uns seres sobre os outros, senão do triste ponto de vista da ação maléfica e do progresso necessário, que resulta do mal na Natureza. Sobre este ponto, ele bem compreendeu que o mal é apenas relativo, e que é uma das condições mesmas do progresso. Esta parte de seu trabalho é bem desenvolvida.

“Criados, diz ele, em extrema fraqueza, em extrema preguiça e devendo ser os meios do nosso próprio fim, somos obrigados a chegar à perfeição e ao poder, à felicidade e à liberdade por nossos próprios esforços; nosso destino é ser em tudo e por toda parte os filhos de nossas obras, criar-nos a nossa unidade, a nossa personalidade, a nossa originalidade, tão bem quanto a nossa felicidade.

“Eis, em minha opinião, quais são os desígnios de Deus a nosso respeito. Mas, para o conseguir, evidentemente o Criador não nos pode abandonar a nós mesmos, porque, criados nesse estado ínfimo e molecular, estamos naturalmente mergulhados num profundo entorpecimento; aí teríamos mesmo ficado perpetuamente, e jamais teríamos dado um passo à frente se, para nos despertar, para tornar sensível a nossa substância inerte e para ativar a nossa força privada de iniciativa, Deus não nos tivesse submetido a um sistema de coerção, que nos prende à nossa origem, jamais nos deixa e nos força a desenvolver esforços para satisfazer às necessidades e aos instintos morais, intelectuais e materiais, de que nos tornou escravos, em consequência do sistema de encarnação, que dispôs para este fim.”

Indo mais longe que os estoicos, que pretendiam que a dor, que não passava de uma palavra, vê-se que os espíritas chegam a pronunciar esta fórmula estranha: que o próprio mal é um bem, no sentido de que a ele conduz fatalmente, necessariamente.

Em tudo o que precede, faremos ao autor a crítica de haver esquecido que a mais estreita solidariedade liga todos os seres, e que os melhores de todos são os que, tendo compreendido melhor este princípio, o põem em ação incessantemente, de tal sorte que todos os seres na Natureza concorrem para o objetivo geral e para o progresso uns dos outros: uns sem o saber e sob o impulso de seus guias espirituais; outros, compreendendo o seu dever de elevar e de instruir os que os cercam, ou que deles dependem, e se ajudando com o concurso dos mais adiantados que eles próprios. Hoje todo o mundo compreende que os pais devem aos seus filhos uma educação conveniente, e que os que são felizes, instruídos e adiantados devem ajudar os pobres, os sofredores e os ignorantes.

Em consequência, deve-se compreender a utilidade da prece, que nos põe em relação com os Espíritos que nos podem guiar. Não nos acontece pedir aos que vivem como nós? que são nossos superiores ou nossos iguais? e nossa vida pode passar sem esse perpétuo apelo, que fazemos ao concurso dos outros? Não é, pois, admirável que, ouvindo-nos, os que não vivem mais sejam igualmente sensíveis às nossas preces, na medida do que podem fazer, como, aliás, o teriam feito em vida. Por vezes dá-se a quem não pediu, mas se dá sobretudo aos que pedem. Batei, e se vos abrirá; pedi, e se for possível, sereis atendidos.

Não creiais que tudo vos seja devido e que deveis esperar os benefícios sem os pedir e sem os merecer; não creiais que tudo chegue fatalmente e necessariamente, mas, ao contrário, refleti que estais no meio de seres livres e voluntários, tão numerosos quanto a areia do mar, e que a sua ação pode juntar-se à vossa, a pedido vosso e segundo a sua simpatia, que é preciso saber merecer.

Orar é um meio de agir sobre os outros e sobre si mesmo, mas não é este o momento de desenvolver este assunto importante. Digamos apenas que a prece não vale senão quando acompanha o esforço ou o trabalho, e nada pode sem este, enquanto o trabalho e os esforços gerais podem muito bem substituir a prece. É sobretudo entre os espíritas que se admite este velho adágio: Trabalhar é orar.

A parte mais importante do livro do Sr. Herrenschneider é aquela onde ele faz o que se poderia chamar a psicologia da alma, concebida tal qual a compreendem os espíritas. Neste ponto de vista, seu trabalho é novo e dos mais curiosos.

O autor determina claramente os fenômenos dependentes do perispírito, e como tem à disposição do espírito a soma inteira de seus progressos anteriores, conserva o traço dos esforços e dos progressos novos tentados e realizados pelo ser, seja em que momento for.

Conforme esses dados, a natureza da alma ou do perispírito deve ser considerada como um tesouro adquirido, conservado em nós e encerrando tudo o que concerne ao nosso ser na ordem moral, intelectual e prática.

Evitaremos utilizar os termos adotados pelo autor que, para exprimir que a alma pode agir, quer pelo efeito de seu tesouro adquirido ou natureza íntima (perispírito), quer por um esforço novo ou ação voluntária, se serve da expressão dualidade da alma, posto faça notar que a alma é una. Aí está uma expressão infeliz, que não expressa o verdadeiro pensamento do autor e que poderia prestar-se à confusão para um espírito pouco atento.

Como os espíritas, o Sr. Herrenschneider acredita na unidade da alma; como eles, admite a existência do perispírito, o que lhe permite fazer uma crítica muito fina da psicologia dos espiritualistas, que estuda mais especialmente segundo as obras do Sr. Cousin.

Partindo do mesmo ponto que Sócrates e Descartes: o conhecimento de si mesmo, o autor estabelece o fato primordial de onde resultam todos os nossos conhecimentos, isto é, a afirmação de nós mesmos, feita cada vez que empregamos a palavra eu. A afirmação do eu  é, pois, a verdadeira base da psicologia. Ora, há várias manifestações desse eu, que se apresentam à nossa observação, sem que uma tenha qualquer prioridade sobre as outras e sem que se engendrem reciprocamente: Eu me sinto, — eu me sei, — eu tenho consciência de minha individualidade, — eu tenho o desejo de ser satisfeito. Estes dois últimos fatos de consciência são evidentes e claros por si mesmos; constituem o princípio da unidade do ser e o de nossa causa final ou destino, a saber: ser feliz.

Para se sentir e para se saber, é preciso notar que se tem perfeita consciência de se sentir sem ter necessidade de fazer qualquer esforço; ao contrário, a percepção do sentir é um ato que resulta de um esforço da mesma ordem que a atenção; desde que não faço mais esforço, não penso mais, nem presto atenção, e então sinto todas as coisas exteriores que me causam impressão, até o momento em que uma delas me fere assaz vivamente para que eu a examine, a ela dirigindo a minha atenção. Assim, posso pensar ou sentir, ser impressionado ou perceber, e julgar minha impressão quando o desejar.

Há aí duas ordens psicológicas diferentes, heterogêneas, uma das quais é passiva  e se caracteriza pela sensibilidade e pela permanência; é o sentir; e a outra é ativa  e se distingue pelo esforço da atenção e por sua intermitência: é o pensamento voluntário.

É desta observação que o autor chega a concluir pela existência do perispírito, por uma série de deduções muito interessantes, mas longas demais para referir aqui.

Para o Sr. Herrenschneider, o perispírito, ou substância da alma, é uma matéria simples, incorruptível, inerte, extensa, sólida e sensível; é o princípio potencial  que, por sua sutileza, recebe todas as impressões, assimila-as, conserva-as e se transforma, sob essa ação incessante, de maneira a encerrar toda a nossa força moral, intelectual e prática.

A força da alma é de ordem virtual, espiritual ativa, voluntária e refletida; é o princípio de nossa atividade. Por toda parte onde se ache o nosso perispírito, encontra-se igualmente a nossa força. Do perispírito ou do tesouro adquirido de nossa natureza, dependem a nossa sensibilidade, as nossas sensações, os nossos sentimentos, a nossa memória, a nossa imaginação, as nossas ideias, o nosso bom-senso, a nossa espontaneidade, a nossa natureza moral e os nossos princípios de honra, assim como os sonhos, as paixões e mesmo a loucura.

De nossa força derivam, como qualidades virtuais, a atenção, a percepção, a razão, a lembrança, a fantasia, o humor, o pensamento, o raciocínio, a reflexão, a vontade, a virtude, a consciência e a vigilância, assim como o sonambulismo, a exaltação e a monomania.

Desde que estas qualidades podem substituir-se uma a outra sem se excluírem, e também porque os mesmos órgãos devem ser empregados tanto para a percepção quanto para a sensação, que se equivalem, pelo sentimento quanto pela razão, etc., resulta que cada Espírito raramente se serve das duas ordens de suas faculdades com a mesma facilidade. Desta observação, resulta para o autor que os indivíduos que funcionam mais facilmente, em virtude das faculdades ditas potenciais, terão estas mais desenvolvidas que os outros e delas se servirão mais à vontade, e reciprocamente.

Deste ponto de vista e de uma observação relativa à maior ou menor força virtual de certas coleções de indivíduos, geralmente grupados sob um mesmo nome de raça, o autor chega à conclusão de que existem Espíritos que se podem chamar Espíritos franceses, ingleses, italianos, chineses, negros, etc.

A despeito das dificuldades de explicação que resultariam de uma tal ordem de ideias, forçoso é convir que os estudos muito cuidadosos, feitos pelo Sr. Herrenschneider sobre os diversos povos, são muito notáveis e, em todo o caso, muito interessantes; mas gostaríamos que o autor tivesse indicado o seu pensamento com mais clareza, e que evidentemente é o seguinte: Os Espíritos se grupam, em geral, segundo as suas afinidades; é o que faz que Espíritos da mesma ordem e do mesmo grau de elevação tendam a encarnar num mesmo ponto do globo, daí resultando esse caráter nacional, fenômeno em aparência tão singular. Diremos, pois, que não há Espíritos franceses ou ingleses, mas que há Espíritos cujo estado, hábitos, tradições impelem uns a se encarnarem na França, outros na Inglaterra, como se os veem, durante a vida, grupar-se segundo as suas simpatias, seu valor moral e seus caracteres. Quanto ao progresso individual, depende sempre da vontade, e não do valor já adquirido do perispírito que, a bem dizer, não serve senão como ponto de partida, destinado a permitir uma nova elevação do Espírito, novas conquistas e novos progressos.

Deixaremos de lado a parte do livro que trata da ordem social e da necessidade de uma religião imposta, porque o autor, ainda imbuído dos princípios de autoridade que hauriu no são-simonismo, afasta-se muito, neste ponto, dos princípios de tolerância absoluta que o Espiritismo se gloria de professar. Achamos justo ensinar, mas temeríamos uma doutrina imposta e necessária, porquanto, mesmo que fosse justa para a geração atual, forçosamente se tornaria um entrave para as gerações seguintes, quando estas tivessem progredido.

O Sr. Herrenschneider não compreende que a moral possa ser independente da religião. Em nossa opinião, a questão está malposta, e cada um a discute justamente do ponto de vista em que tem razão. Os moralistas independentes estão certos quando dizem que a moral é independente dos dogmas religiosos, no sentido de que, sem acreditar em nenhum dos dogmas existentes, muitos dos antigos foram moralizados, e entre os modernos os há e muitos que têm o direito de gabar-se de o ser. Mas o que é certo é que a moral e, sobretudo, a sua aplicação prática, é sempre dependente de nossas crenças individuais, sejam quais forem. Ora, ainda que fossem das mais filosóficas, uma crença constitui a religião  daquele que a possui.

Isto se demonstra facilmente pelos fatos diários da existência, e os moralistas, que se dizem independentes, têm, eles próprios, como crença, que é preciso respeitar-se e respeitar os outros, desenvolvendo o mais possível, em si e nos outros, os elementos do progresso. Sua moral dependerá, pois, de sua crença; suas ações forçosamente dela se ressentirão e essa moral não será independente senão das religiões, das crenças e dos dogmas nos quais não têm fé, o que achamos muito justo e racional, mas, também, muito elementar.

O que se pode dizer é que, no estado atual da nossa sociedade, há princípios de moral que estão de acordo com todas as crenças individuais, sejam quais forem, porque os indivíduos modificaram suas crenças religiosas sobre certos pontos, em virtude dos progressos científicos e morais, dos quais os nossos ancestrais fizeram a feliz conquista.

Terminaremos dizendo que o autor é, sob muitos pontos, discípulo de Jean Reynaud. Seu livro é o resumo de estudos e pensamentos sérios, expressos claramente, e com força; é feito com um cuidado digno de louvar e esse cuidado vai até a minúcia nos detalhes materiais da impressão, o que tem grande importância para a clareza de um livro tão sério.

Malgrado o desacordo profundo que nos separa do Sr. Herrenschneider, tanto a respeito de sua maneira de ver para impor a religião, quanto sobre suas ideias relativas à autoridade, à família, que ele esqueceu muito, assim quanto à prece, à solidariedade benevolente dos Espíritos, que não soube apreciar, etc., ideias que o próprio Jean Reynaud já havia desaprovado, é impossível não ser tocado pelo mérito da obra e pelo valor do homem que soube achar pensamentos fortes, muitas vezes justos e sempre claramente expressos.

O Espiritismo é aí afirmado sem rodeios, pelo menos nos seus princípios fundamentais, e levado em consideração nos elementos da ciência filosófica. Há, contudo, esta diferença: no ponto de partida o autor chega ao resultado por indução, enquanto o Espiritismo, procedendo por via experimental, fundou sua teoria na observação dos fatos. É um escritor sério demais, que lhe dá direito de cidadania.

Emile Barrault, engenheiro

Allan Kardec



[1] Solidarité, jornal mensal de 16 páginas in-4, aparecendo no dia 1º de cada mês. Preço: Paris, 5 francos por ano; Departamentos, 6 francos; estrangeiro: 7 francos. Preço de um número: 25 centavos; pelos correios: 30 centavos. — Redação: rue des Saints-Pères, 13, na Livraria das Ciências Sociais.

[2] Escrevemos em 1862: “Antes de fazer as instituições para os homens, deve-se formar os homens para as instituições.” (Viagem Espírita.).

[3] 1 vol. in-12, de 600 páginas. Preço: 5 fr.; pelo correio, 5 fr. 75 c. Dentu, Palais-Royal.

Julho de 1868

A Ciência da Concordância dos Números e a Fatalidade

Várias vezes já nos perguntaram o que pensamos da concordância dos números, e se cremos no valor dessa ciência. Nossa resposta é bem simples: até o momento nada pensamos a respeito, porque com ela jamais nos ocupamos. Bem que temos visto alguns casos de concordâncias singulares entre as datas de certos acontecimentos, mas em pequeníssimo número para delas tirar uma conclusão, mesmo aproximada. A bem dizer, não vemos a razão de tal coincidência; mas, porque não se compreende uma coisa, isto não é motivo para que ela não exista. A Natureza não disse a sua última palavra, e o que hoje é utopia, amanhã pode ser verdade. É possível que, entre os fatos, exista uma certa correlação, que não suspeitamos, e que poderia traduzir-se por números. Em todo o caso, não se poderia dar o nome de ciência  a um cálculo tão hipotético quanto o das relações numéricas, no que concerne à sucessão dos acontecimentos. Uma ciência é um conjunto de fatos bastante numerosos para deles se deduzirem regras, e susceptíveis de demonstração. Ora, no estado atual dos nossos conhecimentos, seria de absoluta impossibilidade dar dos fatos desse gênero uma teoria qualquer, nem nenhuma explicação satisfatória. Não é, pois, ou, se preferirem, não é ainda uma ciência, o que não implica a sua negação.

Há fatos sobre os quais temos uma opinião pessoal; no caso de que se trata, não temos nenhuma, e se nos inclinássemos para um lado, seria antes para a negativa, até prova em contrário.

Baseamo-nos em que o tempo é relativo; não pode ser apreciado senão em termos de comparação e os pontos de referência estabelecidos na revolução dos astros, e esses termos variam conforme os mundos, porque fora dos mundos o tempo não existe: não há unidade para medir o infinito. Assim, não parece haver uma lei universal de concordância para a data dos acontecimentos, já que o cômputo da duração varia conforme os mundos, a menos que haja, sob esse aspecto, uma lei particular para cada mundo, destinada à sua organização, como há uma para a duração da vida de seus habitantes.

Seguramente, se tal lei existir, um dia será reconhecida. O Espiritismo, que assimila todas as verdades, quando estas são constatadas, não repelirá esta; mas como, até o presente, essa lei não é atestada por um número suficiente de fatos, nem por uma demonstração categórica, com ela nos devemos preocupar tanto menos quanto ela só nos interessa de maneira muito indireta. Não dissimulamos a gravidade dessa lei, se é que ela existe, mas como a porta do Espiritismo estará sempre aberta a todas as ideias progressivas, a todas as aquisições da inteligência, ele se ocupa com as necessidades do momento, sem temer ser ultrapassado pelas conquistas do futuro.

Tendo sido a questão exposta aos Espíritos num grupo muito sério do interior, e por isto mesmo geralmente bem assistido, foi respondido:

 “Há, certamente, no conjunto dos fenômenos morais, como nos fenômenos físicos, relações fundadas sobre os números. A lei da concordância das datas não é uma quimera; é uma das que vos serão reveladas mais tarde, e vos darão a chave das coisas que vos parecem anomalias. Porque, crede-o bem, a Natureza não tem caprichos; marcha sempre com precisão e com segurança. Aliás, esta lei não é tal qual imaginais; para a compreender na sua razão de ser, no seu princípio e na sua utilidade, necessitais adquirir ideias que ainda não possuís, e que virão a seu tempo. No momento, este conhecimento seria prematuro, razão por que não vos é dado; seria, pois, inútil insistir. Limitai-vos a recolher os fatos; observai sem nada concluir, com receio de vos enganar. Deus sabe dar aos homens o alimento intelectual à medida que estão em condição de o suportar. Trabalhai sobretudo no vosso adiantamento moral, o mais essencial, porque é por este que merecereis possuir novas luzes.”

Somos da mesma opinião. Pensamos, até, que haveria mais inconvenientes do que vantagens em vulgarizar prematuramente uma crença que, em mãos ignorantes, poderia degenerar em abuso e em práticas supersticiosas, por falta do contrapeso de uma teoria racional.

O princípio da concordância das datas é, pois, inteiramente hipotético; mas se nada é ainda permitido afirmar a este respeito, a experiência demonstra que, na Natureza, muitas coisas estão subordinadas a leis numéricas, susceptíveis do mais rigoroso cálculo. Este fato, de grande importância, talvez possa um dia lançar luz sobre a primeira questão. É assim, por exemplo, que as chances do acaso estão submetidas, no seu conjunto, a uma periodicidade de admirável precisão; a maior parte das combinações químicas, para a formação dos corpos compostos, dão-se em proporções definidas, isto é, precisa-se de um número determinado de moléculas de cada um dos corpos elementares, e que uma molécula a mais ou a menos muda completamente a natureza do corpo composto. (Vide A Gênese, cap. X, no 7 e seguintes); a cristalização se opera sob ângulos de uma abertura constante; em Astronomia, os movimentos e as forças seguem progressões de um rigor matemático, e a mecânica celeste é tão exata quanto a mecânica terrestre; dá-se o mesmo com a reflexão dos raios luminosos, calóricos e sonoros; é sobre cálculos positivos que são estabelecidas as chances de vida e de mortalidade nos seguros.

É certo, pois, que os números estão em a Natureza e que leis numéricas regem a maior parte dos fenômenos de ordem física. Dá-se o mesmo nos fenômenos de ordem moral e metafísica? É o que seria presunção afirmar, sem dados mais certos do que os que se possuem. Esta questão, aliás, levanta outras que têm a sua seriedade, e sobre as quais julgamos útil apresentar algumas observações de um ponto de vista geral.

Desde que uma lei numérica rege os nascimentos e a mortalidade dos indivíduos, não poderia dar-se o mesmo, embora em escala mais vasta, com as individualidades coletivas, tais como as raças, os povos, as cidades, etc? As fases de sua marcha ascendente, de sua decadência e de seu fim, as revoluções que marcam as etapas do progresso da Humanidade, não estariam sujeitas a uma certa periodicidade? Quanto às unidades numéricas para o cômputo dos períodos humanitários, se não são os dias, nem os anos, nem os séculos, poderiam ter por base as gerações, como alguns fatos tenderiam a fazer supor.

Aí não está um sistema; é ainda menos uma teoria, mas uma simples hipótese, uma ideia fundada numa probabilidade, e que um dia, talvez, possa servir de ponto de partida para ideias mais positivas.

Mas, dirão, se os acontecimentos que decidem a sorte da Humanidade, de uma nação, de uma tribo, têm prazos regulados por uma lei numérica, será a consagração da fatalidade e, então, em que se torna o livre-arbítrio do homem? Estará o Espiritismo laborando em erro, quando diz que nada é fatal, e que o homem é o senhor absoluto de suas ações e de sua sorte?

Para responder a esta objeção, há que tomar a questão de mais alto. Antes de mais, digamos que o Espiritismo jamais negou a fatalidade de certas coisas e que, ao contrário, sempre a reconheceu; mas ele diz que essa fatalidade não entrava o livre-arbítrio. Eis o que é fácil demonstrar.

Todas as leis que regem o conjunto dos fenômenos da Natureza têm consequências necessariamente fatais, isto é, inevitáveis, e essa fatalidade é indispensável à manutenção da harmonia universal. O homem, que sofre essas consequências, está, pois, em alguns aspectos, submetido à fatalidade, em tudo quanto não dependa de sua iniciativa. Assim, por exemplo, deve morrer fatalmente; é a lei comum, à qual não pode subtrair-se e, em virtude dessa lei, pode morrer em qualquer idade, quando chegar a sua hora; mas, se apressa voluntariamente a sua morte, pelo suicídio ou por seus excessos, age em virtude de seu livre-arbítrio, porque ninguém o pode constranger a fazê-lo. Deve comer para viver: é a fatalidade; mas se comer além do necessário, pratica um ato de liberdade.

Em sua cela, o prisioneiro é livre de mover-se à vontade, no espaço que lhe é concedido; mas as paredes que não pode transpor são para ele a fatalidade que lhe restringe a liberdade. Para o soldado a disciplina é uma fatalidade, pois o obriga a atos independentes de sua vontade, mas não é menos livre em suas ações pessoais, pelas quais é responsável. Assim é com o homem na Natureza. A Natureza tem as suas leis fatais, que lhe opõem uma barreira, mas aquém da qual ele pode mover-se à vontade.

Por que Deus não deu ao homem inteira liberdade? Porque Deus é como um pai previdente, que limita a liberdade dos filhos ao nível de seu raciocínio e do uso que dela podem fazer. Se o homem já se serve tão mal da que lhe é concedida, se não sabe governar-se a si mesmo, que seria se as leis da Natureza estivessem à sua disposição, e se não lhe opusessem um freio salutar?

O homem pode, pois, ser livre em suas ações, malgrado a fatalidade que preside ao conjunto; é livre em certa medida, no limite necessário para lhe deixar a responsabilidade de seus atos. Se, em virtude dessa liberdade, ele perturba a harmonia pelo mal que faz, se interpõe um obstáculo à marcha providencial das coisas, é o primeiro a sofrer por isto, e como as leis da Natureza são mais fortes que ele, acaba sendo arrastado na corrente; então sente necessidade de voltar para o bem e tudo retoma o seu equilíbrio. Assim, a volta ao bem é ainda um ato livre, embora provocado, mas não imposto, pela fatalidade.

O impulso dado pelas leis da Natureza, assim como os limites que elas estabelecem, são sempre bons, porque a Natureza é a obra da sabedoria divina. A resistência a essas leis é um ato de liberdade e essa resistência sempre desencadeia o mal. Sendo o homem livre para observar ou infringir essas leis, no que toca a sua pessoa, é, pois, livre de fazer o bem ou o mal. Se pudesse ser fatalmente levado a fazer o mal, e não podendo essa facilidade vir senão de um poder superior a ele, Deus seria o primeiro a transgredir suas leis.

Quem é aquele a quem muitas vezes aconteceu dizer: “Se eu não tivesse agido como agi em tal circunstância, não estaria na posição em que estou; se tivesse que recomeçar, agiria de outra maneira?” Não era reconhecer que era livre para fazer ou não fazer? que estava livre para fazer melhor outra vez, se se apresentasse ocasião? Ora, Deus, que é mais sábio que ele, prevendo os erros nos quais pode cair, o mal uso que pode fazer de sua liberdade, dá-lhe indefinidamente  a possibilidade de recomeçar pela sucessão de suas existências corporais, e ele recomeçará até que, instruído pela experiência, não mais se engane de caminho.

O homem pode, pois, conforme a sua vontade, apressar o termo de suas provas, e é nisto que consiste a liberdade. Agradeçamos a Deus por não nos ter fechado para sempre o caminho da felicidade, decidindo a nossa sorte definitiva após uma existência efêmera, notoriamente insuficiente para alcançarmos o topo da escada do progresso, e por nos haver dado, pela fatalidade mesma da reencarnação, os meios de adquirir incessantemente, renovando as provas nas quais fracassamos.

A fatalidade é absoluta para as leis que regem a matéria, porque a matéria é cega; não existe para o Espírito, ele próprio chamado para reagir sobre a matéria, em virtude de sua liberdade. Se as doutrinas materialistas fossem verdadeiras, elas seriam a mais formal consagração da fatalidade; porque se o homem fosse apenas matéria, não poderia ter iniciativa. Ora, se lhe concedeis a iniciativa, seja no que for, é que é livre; e se é livre, é que tem em si algo além da matéria. Sendo o materialismo a negação do princípio espiritual, é, por isso mesmo, a negação da liberdade e, contradição bizarra! os materialistas, os mesmos que proclamam o dogma da fatalidade, são os primeiros a tirar partido de sua liberdade; a reivindicá-la como um direito na sua mais absoluta plenitude, junto aos que a restringem, e isto sem suspeitar que é reclamar o privilégio do Espírito, e não da matéria.

Aqui se apresenta outra questão. A fatalidade e a liberdade são dois princípios que parecem excluir-se. A liberdade da ação individual é compatível com a fatalidade das leis que regem o conjunto, e esta ação não vem perturbar sua harmonia? Alguns exemplos tomados dos fenômenos mais vulgares da ordem material tornarão evidente a solução do problema.

Dissemos que as chances do acaso se equilibram com surpreendente regularidade. Com efeito, é um resultado muito conhecido no jogo do vermelho e preto que, a despeito de sua irregularidade de saída a cada lançamento, as cores são em número igual ao cabo de certo número de jogadas; isto é, em cem jogadas, haverá cinquenta vermelhas e cinquenta negras; em mil, quinhentas de uma e quinhentas da outra, aproximadamente. Dá-se o mesmo com os números pares e ímpares e com todas as chances ditas duplas. Se, em vez de duas cores, houver três, haverá um terço de cada; se forem quatro, um quarto, etc. Muitas vezes a mesma cor sai por série de duas, três, quatro, cinco, seis vezes seguidas; num certo número de jogadas, haverá tantas séries de duas vermelhas, quanto de duas pretas, tanto de três vermelhas quanto de três pretas, e assim por diante; mas as jogadas de duas serão metade menos numerosas que as de uma; as de três, um terço das de uma; as de quatro, um quarto, etc.

Nos dados, como estes têm seis faces, jogando-o sessenta vezes, chegar-se-á a dez vezes um ponto, dez vezes dois pontos, dez vezes três pontos e assim com os outros.

Na antiga loteria de França, havia noventa números colocados numa roda; tiravam-se cinco de cada vez. Os registros de vários anos constataram que cada número tinha saído na proporção de um nonagésimo e cada dezena na proporção de um nono.

A proporção é tanto mais exata quanto mais considerável o número de jogadas. Em dez ou vinte jogadas, por exemplo, pode ser muito desigual, mas o equilíbrio se estabelece à medida que aumenta o número de jogadas, e isto com uma regularidade matemática. Sendo isto um fato constante, é bem evidente que uma lei numérica preside a essa repartição, quando abandonada a si mesma e que nada vem forçá-la ou entravá-la. O que se chama acaso está, pois, submetido a uma lei matemática ou, melhor dizendo, não há acaso. A irregularidade caprichosa que se manifesta em cada jogada, ou num pequeno número de lances, não impede a lei de seguir o seu curso, donde se pode dizer que há nessa repartição uma verdadeira fatalidade; mas essa fatalidade, que preside ao conjunto, é nula, ou pelo menos inapreciável, para cada lance ou jogada isolada.

Estendemo-nos um pouco no exemplo dos jogos, porque é um dos mais admiráveis e fáceis de verificar, pela possibilidade de multiplicar os fatos à vontade, em curto espaço de tempo; e como a lei ressalta do conjunto dos fatos, foi esta multiplicidade que permitiu reconhecê-la, sem o que é provável que ainda a ignorassem.

A mesma lei pôde ser observada com precisão nas chances de mortalidade. A morte, que parece ferir indistintamente e às cegas, não segue menos, em seu conjunto, uma marcha regular e constante, segundo a idade. Sabe-se perfeitamente que, em mil indivíduos de todas as idades, em um ano morrerão tantos de um a dez anos, tantos de dez a vinte anos, tantos de vinte a trinta anos, e assim por diante; ou, então, que após um período de dez anos, o número dos sobreviventes será de tantos de um a dez anos, de tantos de dez a vinte anos, etc. Causas acidentais de mortalidade podem perturbar momentaneamente esta ordem, como no jogo a saída de uma longa série da mesma cor rompe o equilíbrio; mas se, em vez de um período de dez anos e de um número de mil indivíduos, estende-se a observação a cinquenta anos e cem mil indivíduos, o equilíbrio será restabelecido.

De acordo com isto, é permitido supor que todas as eventualidades que parecem ser efeito do acaso, assim na vida individual, como na dos povos e da Humanidade, são regidas por leis numéricas, e o que falta para as reconhecer é poder abarcar de um golpe de vista uma massa bastante considerável de fatos, e um lapso de tempo suficiente.

Pela mesma razão, nada haveria de absolutamente impossível que o conjunto de fatos de ordem moral e metafísica fosse igualmente subordinado a uma lei numérica, cujos elementos e as bases, até agora, nos são totalmente desconhecidos. Em todo o caso, vê-se, pelo que precede, que essa lei ou, se se preferir, essa fatalidade do conjunto, de modo algum anularia o livre-arbítrio. É o que nos tínhamos proposto demonstrar. Não se exercendo o livre-arbítrio senão sobre os pontos isolados de detalhe, não entravaria a realização da lei geral, como a irregularidade da saída de cada número não entrava a repartição proporcional desses mesmos números sobre um certo número de saídas. O homem exerce o seu livre-arbítrio na pequena esfera de sua ação individual; esta pequena esfera pode estar na confusão, sem que isto a impeça de gravitar no conjunto segundo a lei comum, assim como os pequenos redemoinhos causados nas águas de um rio pelos peixes que se agitam, não impedem a massa das águas de seguir o curso forçado que lhe imprime a lei de gravitação.

Tendo o homem o seu livre-arbítrio, a fatalidade não participa de suas ações individuais; quanto aos acontecimentos da vida privada, que por vezes parecem atingi-lo fatalmente, têm duas fontes bem distintas: uns são consequência direta de sua conduta na existência presente; muitas pessoas são infelizes, doentes, enfermas por sua falta; muitos acidentes são resultado da imprevidência; ele não pode queixar-se senão de si mesmo, e não da fatalidade ou, como se diz, de sua má estrela. Os outros são completamente independentes da vida presente e, por isto mesmo, parecem devidos a uma certa fatalidade; mas, ainda aqui, o Espiritismo nos demonstra que essa fatalidade é apenas aparente, e que certas situações penosas da vida têm sua razão de ser na pluralidade das existências. O Espírito as escolheu voluntariamente na erraticidade, antes de sua encarnação, como provações para o seu adiantamento; elas são, pois, produto do livre-arbítrio, e não da fatalidade. Se algumas vezes são impostas, como expiação, por uma vontade superior, é ainda em razão das más ações voluntariamente cometidas pelo homem numa precedente existência, e não como consequência de uma lei fatal, pois ele poderia tê-las evitado, agindo de outro modo.

A fatalidade é o freio imposto ao homem por uma vontade superior à sua, e mais sábia que ele, em tudo o que não é deixado à sua iniciativa; mas jamais é um entrave ao exercício de seu livre-arbítrio, no que concerne às suas ações pessoais. Ela também não pode impor-lhe nem o mal, nem o bem; desculpar uma ação má qualquer pela fatalidade ou, como se diz muitas vezes, pelo destino, seria abdicar do julgamento que Deus lhe deu, para pesar o pró e o contra, a oportunidade ou a inoportunidade, as vantagens ou os inconvenientes de cada coisa. Se um acontecimento está no destino de um homem, ele se realizará, a despeito de sua vontade, e será sempre para o seu bem; mas as circunstâncias da realização dependem do uso que ele faça de seu livre-arbítrio, e muitas vezes ele pode fazer redundar em seu prejuízo o que deveria ser um bem, se agir com imprevidência, e se se deixar arrastar pelas paixões. Engana-se mais ainda se toma o seu desejo ou os desvios de sua imaginação por seu destino. (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nos 1 a 11.)

Tais são as reflexões que nos sugeriram os três ou quatro pequenos cálculos de concordância de datas, que nos foram apresentados, e sobre os quais pediram a nossa opinião. Elas eram necessárias para demonstrar que em semelhante matéria, de alguns fatos idênticos não se podia concluir por uma aplicação geral. Aproveitamo-los para resolver, por novos argumentos, a grave questão da fatalidade e do livre-arbítrio.


 

A Geração Espontânea e A Gênese

Em nossa obra A Gênese, desenvolvemos a teoria da geração espontânea, apresentando-a como uma hipótese provável. Alguns partidários absolutos desta teoria admiraram-se de que não a tivéssemos afirmado como princípio. A isto responderemos que, se a questão está resolvida para uns, não o está para todos, e a prova é que a Ciência ainda está dividida a respeito. Aliás, ela é do domínio científico, onde o Espiritismo não pode colher e onde nada lhe cabe resolver de maneira definitiva, naquilo que não é essencialmente de sua alçada.

Pelo fato de o Espiritismo assimilar todas as ideias progressistas, não se segue que se faça campeão cego de todas as concepções novas, por mais sedutoras que sejam à primeira vista, com o risco de receber, mais tarde, um desmentido da experiência e de se expor ao ridículo de haver patrocinado uma obra inviável. Se não se pronuncia claramente sobre certas questões controvertidas, não é, como poderiam crer, para condescender com os dois partidos, mas por prudência, e para não se adiantar levianamente num terreno ainda não suficientemente explorado. Eis por que não aceita imediatamente as ideias novas, mesmo as que lhe pareçam justas, senão sob muita reserva, e de maneira definitiva apenas quando chegaram ao estado de verdades reconhecidas.

A questão da geração espontânea está neste número. Para nós, pessoalmente, é uma convicção, e se a tivéssemos tratado numa obra comum, tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei; não se baseando a Doutrina em probabilidades, não podíamos decidir uma questão de tal gravidade, apenas despontada, e que ainda está em litígio entre os especialistas. Afirmando a coisa sem restrição, teria sido comprometer a Doutrina prematuramente, o que jamais fazemos, mesmo para fazer prevalecerem as nossas simpatias.

O que, até aqui, deu força ao Espiritismo, o que dele fez uma ciência positiva e de futuro, é que jamais avançou levianamente; que não se constituiu sobre nenhum sistema preconcebido; que não estabeleceu nenhum princípio absoluto sobre a opinião pessoal, nem de um homem, nem de um Espírito, mas somente depois que esse princípio recebeu a consagração da experiência e de uma demonstração rigorosa, resolvendo todas as dificuldades da questão.

Quando, pois, formulamos um princípio é que, de antemão, estamos certos do assentimento da maioria dos homens e dos Espíritos. Eis por que não temos tido decepções. Tal é, também, a razão pela qual, nestes quase doze anos, nenhuma das bases que constituem a Doutrina recebeu desmentido oficial; os princípios de O Livro dos Espíritos  foram sucessivamente desenvolvidos e completados, mas nenhum caiu em desuso, e nossos escritos não estão, em nenhum ponto, em contradição com os primeiros, malgrado o tempo decorrido e as novas observações que foram feitas.

Certamente não seria o mesmo se tivéssemos cedido às sugestões dos que nos gritavam continuamente para irmos mais depressa, e se tivéssemos esposado todas as teorias que despontavam da direita e da esquerda. Por outro lado, se tivéssemos escutado os que nos pediam que fôssemos mais devagar, ainda estaríamos observando as mesas girantes. Vamos à frente quando sentimos que o momento é propício e vemos que os espíritos estão maduros para aceitarem uma ideia nova; mas nos detemos quando vemos que o terreno não é bastante sólido para aí fincar o pé. Com a nossa aparente lentidão e nossa circunspeção muito meticulosa para o gosto de certas pessoas, temos feito mais caminho do que se nos tivéssemos posto a correr, pois evitamos dar uma cambalhota na estrada. Não tendo motivo para lamentar a marcha que temos seguido até agora, dela não nos desviaremos.

Dito isto, completaremos com algumas observações o que dissemos em A Gênese, no que concerne à geração espontânea. Sendo a Revista um terreno de estudo e de elaboração dos princípios, e nela dando sem rodeios a nossa opinião, não tememos empenhar a responsabilidade da Doutrina, porque a Doutrina a adotará, se for justa, e a rejeitará, se for falsa.

Hoje é fato cientificamente demonstrado que a vida orgânica nem sempre existiu na Terra, e que aí teve um começo; a Geologia permite seguir o seu desenvolvimento gradual. Os primeiros seres do reino vegetal e do reino animal que então apareceram, devem ter-se formado sem procriação, e pertencer às classes inferiores, como o constatam as observações geológicas. À medida que os elementos dispersos se reuniram, as primeiras combinações formaram corpos exclusivamente inorgânicos, isto é, pedras, águas e minerais de toda sorte. Quando esses mesmos elementos se modificaram pela ação do fluido vital — que não é o princípio inteligente — formaram corpos dotados de vitalidade, de uma organização constante e regular, cada um na sua espécie. Ora, assim como a cristalização da matéria bruta não ocorre senão quando uma causa acidental vem opor-se ao arranjo simétrico das moléculas, os corpos organizados se formam desde que as circunstâncias favoráveis de temperatura, umidade, repouso ou movimento, e uma espécie de fermentação permitam que as moléculas da matéria, vivificadas pelo fluido vital, se reúnam. É o que se vê em todos os germes em que a vitalidade pode ficar latente durante anos e séculos, e se manifestar num dado momento, quando as circunstâncias são propícias.

Os seres não procriados formam, pois, o primeiro escalão dos seres orgânicos e, provavelmente, serão contados um dia na classificação científica. Quanto às espécies que se propagam pela procriação, uma opinião que não é nova, mas que hoje se generaliza sob a égide da Ciência, é que os primeiros tipos de cada espécie são o produto de uma modificação da espécie imediatamente inferior. Assim, estabeleceu-se uma cadeia ininterrupta, desde o musgo e o líquen, até o carvalho, e depois o zoófito, o verme da terra e o ácaro até o homem. Sem dúvida, entre o verme da terra e o homem, se se considerarem apenas os dois pontos extremos, há uma diferença que parece um abismo; mas quando se aproximam todos os elos intermediários, encontra-se uma filiação sem solução de continuidade.

Os partidários desta teoria que, repetimos, tende a prevalecer, e à qual nos ligamos sem reserva, estão longe de ser todos espiritualistas, e ainda menos espíritas. Não considerando senão a matéria, fazem abstração do princípio espiritual ou inteligente. Essa questão, pois, nada prejulga sobre a filiação desse princípio da animalidade na humanidade; é uma tese que não vamos tratar hoje, mas que já se debate em certas escolas filosóficas não materialistas. Não se trata, portanto, senão do invólucro carnal, distinto do Espírito, como a casa o é de seu habitante. Então o corpo do homem pode ser perfeitamente uma modificação do corpo do macaco, sem que se conclua que o seu espírito seja o mesmo que o do macaco. ( A Gênese, cap. XI, no 15.)

A questão que se liga à formação desse invólucro não deixa de ser muito importante, primeiro porque resolve um grave problema científico e destrói preconceitos de longa data arraigados pela ignorância, e depois porque os que o estudam exclusivamente esbarrarão com dificuldades insuperáveis, quando quiserem se dar conta de todos os efeitos, absolutamente como se quisessem explicar os efeitos da telegrafia sem a eletricidade. Não encontrarão a solução dessas dificuldades senão na ação do princípio espiritual que, afinal de contas, deverão admitir, para sair do impasse em que estarão empenhados, sob pena de deixar incompleta a sua teoria.

Deixemos, pois, o materialismo estudar as propriedades da matéria; esse estudo é indispensável, e será feito: o espiritualismo terá apenas que completar o trabalho naquilo que lhe concerne. Aceitemos suas descobertas e não nos inquietemos com suas conclusões absolutas, porquanto, estando demonstrada a sua insuficiência para tudo resolver, as necessidades de uma lógica rigorosa conduzirão forçosamente à espiritualidade; e sendo a própria espiritualidade geral incapaz de resolver os inúmeros problemas da vida presente e da vida futura, será encontrada a única chave possível nos princípios mais positivos do Espiritismo. Já vemos uma porção de homens chegarem por si mesmos às consequências do Espiritismo, sem o conhecer, uns começando pela reencarnação, outros pelo perispírito. Fazem como Pascal, que descobria os elementos da Geometria sem estudo prévio, e sem suspeitar que aquilo que imaginava ter descoberto era uma obra realizada. Dia virá em que pensadores sérios, estudando esta doutrina com a atenção que ela comporta, ficarão muito surpreendidos de aí encontrar o que procuravam, e proclamarão todo feito um trabalho cuja existência não suspeitavam.

É assim que tudo se encadeia no mundo; da matéria bruta saíram os seres orgânicos, cada vez mais aperfeiçoados; do materialismo sairão, pela força das coisas e por dedução lógica, o espiritualismo geral, depois o Espiritismo, que não é outra coisa senão o espiritualismo particularizado, apoiado nos fatos.

O que se passou na origem do mundo para a formação dos primeiros seres orgânicos, passa-se em nossos dias, por meio do que se chama a geração espontânea? Eis a questão. Por nossa conta, não hesitamos em nos pronunciar pela afirmativa.

Os partidários e os adversários se opõem reciprocamente experiências que deram resultados contrários; mas estes últimos esquecem que o fenômeno não pode produzir-se senão em condições adequadas de temperatura e aeração; buscando obtê-las fora dessas condições, devem necessariamente fracassar.

Sabe-se, por exemplo, que para a eclosão artificial dos ovos, há necessidade de uma determinada temperatura regular, e certas precauções minuciosas especiais. Quem negasse tal eclosão porque não a tivesse obtido com alguns graus a mais ou a menos, e sem as precauções necessárias, estaria no mesmo caso daquele que não obtém a geração espontânea num meio impróprio. Parece-nos, pois, que se essa geração se produziu forçosamente nas primeiras idades do globo, não há razão para que não se produza em nossa época, se as condições forem as mesmas, como não há razão para que não se formem calcários, óxidos, ácidos e sais, como no primeiro período.

Hoje é reconhecido que as rugosidades do mofo constituem uma vegetação que nasce sobre a matéria orgânica chegada a certo grau de fermentação. O mofo nos parece ser o primeiro, ou um dos primeiros tipos da vegetação espontânea, e essa vegetação primitiva que se prolonga, revestindo formas diversas conforme o meio e as circunstâncias, nos dá os liquens, os musgos, etc. Querem um exemplo mais direto? Que são os cabelos, a barba e os pelos do corpo dos animais, senão uma vegetação espontânea?

A matéria orgânica animalizada, isto é, contendo certa proporção de azoto, dá origem a vermes que têm todos os caracteres de uma geração espontânea. Quando o homem ou um animal qualquer está vivo, a atividade da circulação do sangue e o funcionamento incessante dos órgãos mantêm uma temperatura e um movimento molecular que impedem os elementos constitutivos dessa geração de se formarem e se reunirem. Quando o animal está morto, a parada da circulação e do movimento, e o abaixamento da temperatura num certo limite, produzem a fermentação pútrida e, em consequência, a formação de novos compostos químicos. É então que se veem todos os tecidos subitamente invadidos por miríades de vermes que neles se repastam, sem dúvida para apressar a sua destruição. Como seriam procriados, visto que antes não havia seus traços?

Objetarão, sem dúvida, que são os ovos das moscas na carne morta. Mas isto nada provaria, porque os ovos das moscas são depositados na superfície, e não no interior dos tecidos, e porque a carne, posta ao abrigo das moscas, ao cabo de certo tempo não está menos apodrecida e cheia de vermes; muitas vezes, até, são vistos invadindo o corpo antes da morte, quando há um começo parcial de decomposição pútrida, notadamente nas feridas gangrenosas.

Certas espécies de vermes se formam durante a vida, mesmo num estado de saúde aparente, sobretudo nos indivíduos linfáticos, cujo sangue é pobre e não têm a superabundância de vida, que se nota em outros; são as lombrigas ou vermes intestinais; as tênias ou vermes solitários, que por vezes atingem sessenta metros de comprimento e se reproduzem por fragmentos, como os pólipos e certas plantas; certos “vermes”, peculiares à raça negra e a certos climas, de um comprimento de trinta a trinta e cinco centímetros, delgados como um fio, e que saem através da pele pelas pústulas; os ascarídeos, os tricocéfalos, etc. Muitas vezes formam massas tão consideráveis que obstruem o canal digestivo, sobem ao estômago e até à boca; atravessam os tecidos, alojam-se nas cavidades ou em torno das vísceras, enovelam-se como ninhos de lagarta e causam graves desordens na economia. Sua formação bem podia ser devida a uma geração espontânea, tendo sua fonte num estado patológico especial, na alteração dos tecidos, no enfraquecimento dos princípios vitais e nas secreções mórbidas. Poderia dar-se o mesmo com os vermes do queijo, com o ácaro da sarna e com uma porção de animálculos que podem nascer no ar, na água e nos corpos orgânicos.

Poder-se-ia supor, é verdade, que os germes dos vermes intestinais fossem introduzidos na economia com o ar que se respira e com os alimentos e que aí eclodissem. Mas, então, surge outra dificuldade: perguntar-se-ia por que a mesma causa não produz o mesmo efeito em todos; por que nem todo mundo tem solitária, nem mesmo lombrigas, quando a alimentação e a respiração produzem efeitos fisiológicos idênticos em todos. Esta explicação, aliás, não seria aplicável aos vermes da decomposição pútrida que surgem depois da morte, nem aos do queijo e tantos outros. Até prova em contrário, somos levados a considerá-los como sendo, ao menos em parte, um produto da geração espontânea, assim como os zoófitos e certos pólipos.

A diferença de sexos que se reconheceu, ou que se julgou reconhecer em certos vermes intestinais, notadamente no tricocéfalo, não seria uma objeção concludente, levando-se em conta que não deixam de pertencer à ordem dos animais inferiores e, por isso mesmo, primitivos. Ora, como a diferença dos sexos deve ter tido um começo, nada se oporia a que nascessem espontaneamente macho ou fêmea.

Aliás, aí não estão senão hipóteses, mas que parecem vir em apoio do princípio. Até onde se estende a sua aplicação? é o que não se poderia dizer. O que se pode afirmar é que ela deve ser circunscrita aos vegetais e aos animais de organização mais simples, e não nos parece duvidoso que assistamos a uma criação incessante.


 

O Partido Espírita

Bem que os espíritas se consideravam uma escola filosófica, mas nunca lhes tinha vindo à mente se julgar um partido. Ora, eis que um belo dia o Moniteur  lhes dá esta notícia, que os surpreendeu um pouco. E quem foi que lhes deu esta qualificação? Foi um desses jornalistas inescrupulosos, que lançam epítetos ao acaso, sem lhes compreender o alcance? Não; é um relatório oficial, feito ao primeiro corpo do Estado, ao Senado. Assim, não é provável que, num documento dessa natureza, essa palavra tenha sido pronunciada levianamente. Sem dúvida não foi a benevolência que a ditou, mas foi dita e faz sucesso, porque os jornais não a deixaram cair. Alguns, crendo aí encontrar um agravo a mais contra o Espiritismo, nada tiveram de mais urgente do que estampar em suas colunas o título de: O Partido Espírita.

Assim, esta pobre escolinha, tão ridicularizada, tão humilhada, que caridosamente pretendiam enviar em massa ao hospício; sobre a qual diziam que bastava soprar para que ela desaparecesse; que vinte vezes a declararam morta e para sempre enterrada; à qual não há mais fino escritor hostil que não se tenha gabado de lhe haver dado o golpe de misericórdia, mas concordando, com estupefação, que ela invadia o mundo e todas as classes da sociedade; da qual quiseram, a todo custo, fazer uma religião, gratificando-a com templos e sacerdotes, grandes e pequenos, que ela jamais viu, ei-la de repente transformada em partido. Por esta qualificação, o Sr. Genteur, o relator do Senado, não lhe deu o seu verdadeiro caráter, mas a exaltou; deu-lhe uma posição, um lugar, pondo-a em evidência. Porque a ideia de partido implica a de uma certa força, de uma opinião bastante importante, bastante ativa e bastante espalhada para representar um papel, e com a qual é preciso contar.

Por sua natureza e por seus princípios, o Espiritismo é essencialmente pacífico; é uma ideia que se infiltra sem ruído, e se encontra numerosos aderentes, é que agrada; jamais fez propaganda nem exibições quaisquer; forte pelas leis naturais, nas quais se apoia, vendo-se crescer sem esforços nem abalos, não vai ao encontro de ninguém, não violenta nenhuma consciência; diz o que é e espera que a ele venham. Todo o ruído que se fez a sua volta é obra de seus adversários; atacaram-no, ele teve que se defender, mas sempre o fez com calma, moderação e só pelo raciocínio; jamais se afastou da dignidade que é própria de toda causa que tem consciência de sua força moral; jamais usou de represálias, pagando injúria por injúria, maus procedimentos por maus procedimentos. Hão de convir que não é este o caráter ordinário dos partidos, turbulentos por natureza, fomentando a agitação e a quem tudo é bom para chegar aos fins. Mas, já que lhe dão este nome, ele o aceita, certo de que não o desonrará por qualquer excesso, pois repudiaria quem quer que dele se prevalecesse para suscitar a menor perturbação.

O Espiritismo seguia sua rota sem provocar qualquer manifestação pública, mas aproveitando a publicidade que lhe faziam os seus adversários; quanto mais a sua crítica era zombeteira, acerba e virulenta, tanto mais excitava a curiosidade dos que não o conheciam e que, para saberem como proceder diante dessa assim chamada nova excentricidade, iam simplesmente informar-se na fonte, isto é, nas obras especiais; estudavam-no e encontravam outra coisa do que tinham ouvido dizer. É um fato notório que as declamações furibundas, os anátemas e as perseguições ajudaram poderosamente a sua propagação, porque, em vez de lhe desviar a atenção, provocaram o seu exame, ainda que fosse pela atração do fruto proibido. As massas têm sua lógica; elas se dizem que se uma coisa nada fosse, dela não falariam, e medem a sua importância precisamente pela violência dos ataques de que é objeto e pelo pavor que causa aos seus antagonistas.

Instruídos pela experiência, certos órgãos de publicidade se abstinham de falar dele, bem ou mal, evitando mesmo pronunciar o seu nome, para não lhe dar repercussão, limitando-se, de vez em quando, a lhe lançar alguns ataques violentos às escondidas, quando uma circunstância o punha forçosamente em evidência. Alguns também guardaram silêncio, porque a ideia tinha penetrado em suas fileiras e, com ela, se não talvez a convicção, pelo menos a hesitação.

Então a imprensa em geral se calava sobre o Espiritismo, quando uma circunstância, que não poderia ser obra do acaso, a obrigou a falar dele. E quem provocou o incidente? Sempre os adversários da ideia que, ainda dessa vez, se equivocaram, produzindo um efeito totalmente contrário ao que esperavam. Para dar mais repercussão ao seu ataque, conduzem-no com pouca habilidade, não no terreno de uma folha sem caráter oficial e cujo número de leitores é limitado, mas por via de petições à própria tribuna do Senado, onde ela é objeto de discussão e de onde saiu a expressão de partido espírita. Ora, graças aos jornais de todas as colorações, obrigados a notificar o debate, a existência desse pequeno partido foi revelada instantaneamente a toda a Europa e além.

É verdade que um membro da ilustre assembleia disse que não havia senão patetas  que fossem espíritas, ao que o presidente respondeu que os tolos também podiam formar um partido. Ninguém ignora que hoje os espíritas se contam por milhões, e que altas notabilidades simpatizam com suas crenças; é, pois, de admirar que um epíteto tão pouco cortês e tão generalizado tenha saído daquele recinto, dirigido a notável parte da população, sem que o autor tenha refletido até onde ele atingia.

De resto, os próprios jornais se encarregaram de desmentir tal qualificação, certamente não por benevolência, mas, que importa! O jornal Liberté, entre outros, que aparentemente não quer que se seja livre  de ser espírita, como se o é de ser judeu, protestante, são-simonista ou livre-pensador, publicou, em seu número de 13 de junho, um artigo assinado por Liévin, do qual eis um extrato:

“O Sr. Genteur, comissário do governo, revelou ao Senado a existência de um partido que não conhecíamos, e que, como os outros, parece contribuir, no limite de suas forças, para abalar as instituições do império.” Sua influência já se fizera sentir o ano passado, e o partido espírita — nome que lhe deu o Sr. Genteur — tinha obtido do Senado, sem dúvida graças à sutileza dos meios de que dispõe, a remessa ao governo da famosa petição de Saint-Etienne, na qual eram denunciadas, como se lembram, não as tendências materialistas da Escola de Medicina, mas as tendências filosóficas da biblioteca da comuna. Até aqui tínhamos atribuído ao partido da intolerância a honra desse sucesso, e o considerávamos por si como uma consolação por seu último revés; mas parece que nos tínhamos enganado e que a petição de Saint-Etienne não passava de uma manobra desse partido espírita, cujo poder oculto parece querer exercer-se mais particularmente em detrimento das bibliotecas.

“Assim, segunda-feira o Senado ocupava-se de uma nova petição, na qual o partido espírita, levantando ainda a cabeça, denunciava as tendências da biblioteca de Oullins (Rhône). Mas desta vez a venerável assembléia, posta em guarda pelas revelações do Sr. Genteur, frustrou os cálculos dos espíritas, por uma unânime ordem do dia. Apenas o Sr. Nisard se deixou apanhar mais ou menos por esta astúcia de guerra, e de boa-fé estendeu a mão a esses pérfidos inimigos. Deu-lhes o apoio de um parecer em que, por sua vez, assinalava os perigos dos maus livros. Felizmente o equívoco do honrado senador não foi partilhado e os espíritas, arrependidos e confusos, foram reconduzidos como mereciam.”

Um outro jornal — Revue politique hebdomadaire — de 13 de junho, assim começa um artigo sobre o mesmo assunto:

“Ainda não conhecíamos todos os nossos perigos. Caso se acredite no Constitutionnel, não eram bastantes os partidos legitimista, orleanista, republicano, socialista, comunista e o partido vermelho, sem contar o partido liberal, que os resume todos? Era mesmo sob o Segundo Império, cuja pretensão é dissolver todos os partidos, que devia nascer um novo partido, crescer e ameaçar a sociedade francesa, o partido espírita? Sim, o partido espírita! Foi o Sr. Genteur, Conselheiro de Estado, quem o descobriu e que o denunciou em pleno Senado.”

Dificilmente se compreende que um partido que só se componha de tolos  possa fazer o Estado correr sérios perigos; apavorar-se com isto seria fazer crer que se tem medo dos bobos. Soltando esse grito de alarme à face do mundo, prova-se que o partido espírita é alguma coisa. Não tendo podido abafá-lo sob o ridículo, tentam apresentá-lo como um perigo para a tranquilidade pública. Ora, qual será o resultado inevitável desta nova tática? Um exame tanto mais sério e mais profundo mais terá exaltado o seu perigo; quererão conhecer as doutrinas deste partido, seus princípios, sua palavra de ordem, suas filiações. Se o ridículo lançado sobre o Espiritismo, como crença, despertou curiosidade, será bem outra coisa quando for apresentado como um partido temível; cada um está interessado em saber o que ele quer, para onde conduz: é tudo o que ele pede; agindo às claras, não tendo nenhuma instrução secreta, fora do que é publicado para uso de tudo o mundo, ele não teme nenhuma investigação, certo  que está, ao contrário, de ganhar por ser conhecido e que, quem quer que o perscrute com imparcialidade, verá em seu código moral uma poderosa garantia da ordem e da segurança. Um partido, pois é um partido, que inscreve em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação, indica suas tendências com bastante clareza, para que ninguém tenha razão para o temer. Aliás, a autoridade, cuja vigilância é conhecida, não pode ignorar os princípios de uma doutrina que não se esconde. Não falta gente para lhe dar conta do que se diz e se faz nas reuniões espíritas, e ela bem saberia chamar à ordem as que dela se afastassem.

É de admirar que homens que fazem profissão de liberalismo, que reclamam com insistência a liberdade, que a querem absoluta para as suas ideias, seus escritos, suas reuniões, que estigmatizam todos os atos de intolerância, queiram proscrevê-la para o Espiritismo.

Mas, vede a que inconsequências conduz a cegueira! O debate que ocorreu no Senado foi provocado por duas petições: uma, do ano passado, contra a biblioteca de Saint-Etienne; outra deste ano, contra a biblioteca de Oullins, assinadas por alguns habitantes daquelas cidades, e que reclamavam contra a introdução, naquelas bibliotecas, de certas obras, em cujo número figuravam as obras espíritas.

Pois bem! o autor do artigo do jornal Liberté, que sem dúvida examinou a questão um tanto levianamente, imagina que a reclamação emana do partido espírita e conclui que este recebeu uma pancada na cabeça pela ordem do dia pronunciada contra a petição de Ouillins. Eis, pois, esse partido tão perigoso, tão facilmente derrubado, e que peticiona para pedir a exclusão de suas próprias obras!  Então seria verdadeiramente o partido dos tolos. Aliás, este estranho equívoco nada tem de surpreendente, visto que o autor declara, de início, que não conhecia esse partido, o que não o impede de o declarar capaz de abalar as instituições do Império.

Longe de se inquietarem com esses incidentes, os espíritas devem regozijar-se; esta manifestação hostil não podia produzir-se em circunstâncias mais favoráveis, e por certo a Doutrina receberá um novo e salutar impulso, como tem acontecido em todos os levantes de que ela foi objeto. Quanto mais esses ataques repercutirem, mais proveitosos serão. Dia virá em que se transmutarão em aprovações abertas.

O jornal Siècle, de 18 de junho, também publicou seu artigo sobre o partido espírita. Todos aí notarão um espírito de moderação, que contrasta com os dois outros que mencionamos; nós o reproduzimos integralmente:

“Quem disse que não há nada de novo debaixo do sol? O céptico que assim falava não suspeitava que um dia a imaginação de um Conselheiro de Estado faria, em pleno Senado, a descoberta do partido espírita. Já contávamos alguns partidos na França, e Deus sabe se os ministros oradores cometem erro ao enumerar os perigos que podem causar esta divisão dos espíritos! Há o partido legitimista, o partido orleanista, o partido republicano, o partido socialista, o partido comunista, o partido clerical, etc., etc.

 “A lista não pareceu bastante longa ao Sr. Genteur. Ele acaba de denunciar à vigilância dos veneráveis pais da política, que têm assento no Palácio do Luxemburgo, a existência do partido espírita. A esta revelação inesperada, um frisson  percorreu a assembléia. Os defensores das duas morais, com o Sr. Nisard à frente, estremeceram.

“Quê! A despeito do zelo desses inumeráveis funcionários, o Império francês está ameaçado por um novo partido? — Na verdade, é para desesperar da ordem pública. Como este inimigo, invisível até agora ao próprio Sr. Genteur, pôde ocultar-se a todas as vistas? Há nisto um mistério, que o Sr. Conselheiro de Estado, se o penetrar, bem que nos poderá ajudar a compreender. Pessoas oficialmente informadas afirmam que o partido  espírita escondia o exército de seus representantes — os Espíritos batedores — atrás dos livros das bibliotecas de Saint-Etienne e de Oullins.

“Eis-nos, pois, de volta aos belos tempos das histórias da carochinha, das mesas girantes e das indiscretas mesinhas de pés-de-galo!

“Embora o Espiritismo e seu primeiro apóstolo, o Sr. Delage — o mais suave dos pregadores — não tenham ainda convencido muita gente, contudo chegaram a constituir um partido. Isto pelo menos se diz no Senado, e não seremos nós que alguma vez nos permitiremos suspeitar da exatidão do que se afirma num lugar tão importante.

“A influência oculta do partido recentemente assinalado se fez sentir até na última discussão do Senado, onde o Sr. Désiré Nisard, um dos maiorais, mostrou-se forte contra os reacionários. Um tal papel cabia de direito ao homem que foi, desde a sua saída da escola normal, um dos agentes mais ativos das ideias retrógradas.

“Depois disto, é para admirar ouvir o honrado senador invocar o arbítrio para justificar as medidas restritivas tomadas a propósito da escolha dos livros da biblioteca de Oullins? ‘Esse estabelecimentos populares, diz o Sr. Nisard, são fundados por associações; encontram-se, pois, sob o disposto do artigo 291 do Código Penal e, por consequência, à mercê do Ministro do Interior. Ele usou, usa e usará desta ditadura.’

“Deixamos ao partido espírita  e ao seu Cristóvão Colombo, o Sr. Genteur, Conselheiro de Estado, o cuidado de interrogar os Espíritos reveladores, a fim de que nos digam o que o Senado espera obter impedindo os cidadãos de organizarem livremente as bibliotecas populares, como se pratica na Inglaterra?”

Anatole de la Forge


 

O Espiritismo em Toda Parte

O Jornal Siècle — Paris Sonâmbula

Desde algum tempo o Siècle  publica, sob o título de Toda Paris, uma série de folhetins muito interessantes, escritos por diversos autores. Houve Paris artista, Paris gastronômica, Paris contestadora,  etc. Em seu folhetim dos dias 24 e 25 de abril de 1868, publicou Paris sonâmbula, pelo Sr. Eugène Bonnemère, autor do Romance do Futuro. É uma exposição ao mesmo tempo científica e verdadeira, das diferentes variedades de sonambulismo, na qual casualmente faz intervir o Espiritismo, sob seu próprio nome, embora com todas as precauções oratórias determinadas pelas exigências do jornal, cuja responsabilidade não queria comprometer. É o que explica certas reticências. Não nos permitindo a falta de espaço fazer citações tão numerosas quanto teríamos desejado, limitar-nos-emos às seguintes passagens:

“A forma mais elevada do sonambulismo é, sem contradita, o Espiritismo, que aspira a passar ao estado de ciência. Possui uma literatura já rica, e notadamente os livros do Sr. Allan Kardec, fonte autorizada sobre a matéria.”

“O Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com um outro, chamado médium, que goza de uma organização particular, que o torna apto a receber o pensamento dos que viveram, e que escreve, quer por um impulso mecânico inconsciente, imprimido à mão, quer por uma transmissão direta à inteligência dos médiuns.”

“Não, a morte não existe. É o instante de repouso após a jornada feita e a tarefa acabada; depois, é o despertar para uma nova obra, maior e mais útil do que a que acaba de realizar-se.”

“Partimos levando conosco a lembrança dos conhecimentos aqui adquiridos; o mundo para onde iremos nos dará os seus, e nós os gruparemos todos em feixe, para com eles formar o progresso.”

“É pela sucessão das gerações que a Humanidade avança, de cada vez dando mais um passo para a luz, porque chegam animadas por almas, sempre naturalmente puras, depois que voltaram a Deus, e ficam impregnadas dos progressos que atravessaram.”

“Em consequência das conquistas definitivamente asseguradas, a própria Terra que habitamos merecerá ascender na escala dos mundos. Acontecerá um novo cataclismo; certas essências vegetais, certas espécies animais, inferiores ou malfazejas desaparecerão, como outras desapareceram no passado, para dar lugar a criações mais perfeitas e, por nossa vez, nos tornaremos um mundo no qual os seres já experimentados virão buscar um maior desenvolvimento. Depende de nós apressar, pelos nossos esforços, o advento desse período mais ditoso. Nossos mortos bem-amados vêm ajudar-nos nessa difícil tarefa.”

“Sérias ou não, essas crenças não deixam de ter uma certa grandeza. O materialismo e o ateísmo, que o sentimento humano repele com todas as suas energias, não passam de uma inevitável reação  contra as ideias, dificilmente admissíveis pela razão, sobre Deus, a Natureza e o destino das almas. Alargando a questão, o Espiritismo reacende nos corações a fé prestes a se extinguir.”

Teatro — Cornélio — O Galo de Mycille

Neste inverno, no teatro das Fantasias Parisienses, foi encenada uma encantadora opereta intitulada O Elixir de Cornélio, na qual a reencarnação é o próprio cerne da intriga.

Eis o relato que dela nos deu o Siècle, em seu número de 11 de fevereiro de 1868:

“Esse Cornélio é um alquimista que se ocupa particularmente da transmigração das almas. Tudo quanto lhe contam a respeito ele escuta com ouvidos ávidos, como se a coisa tivesse acontecido. Ora, ele tem uma filha que não esperou sua permissão para arranjar um pretendente. Não; mas ele recusa o seu consentimento. Como fazer, então, para vencer a sua resistência? Uma ideia: o apaixonado lhe narra que sua filha, antes de ser sua filha, há muito tempo, era um lansquenê, dado a aventuras e frequentador de ruelas. Nessa mesma época ele, o apaixonado, era uma jovem encantadora, que foi enganada pelo aventureiro. Os papéis se inverteram e ele lhe pede para devolver a sua antiga honra. ‘Ah! vós me dizeis tanto!’ responde, convencido, o velho doutor. E eis como um casamento a mais se realiza diante do público, que tantas vezes se encarrega de substituir o Sr. prefeito.

“A música é alegre como o assunto que a inspirou. Notou-se mais particularmente a serenata, as quadras de Cornélio, o dueto cômico e o final, escritos simplesmente e facilmente.”

Como se vê, a trama repousa aqui, não apenas no princípio da reencarnação, mas, ainda, na mudança de sexo.

Os assuntos dramáticos se esgotam e muitas vezes os autores ficam embaraçados para sair dos lugares-comuns. A ideia da reencarnação vai oferecer-lhes, em profusão, situações novas para todos os gêneros; aberto o caminho, é provável que todos os teatros logo tenham sua peça sobre a reencarnação.

No fim de maio o Teatro Francês encenou uma peça na qual a alma representa o papel principal; é o Galo de Mycille, pelos Srs. Trianon e Eugène Nyon. Eis o enredo:

Mycille é um jovem sapateiro remendão de Atenas; em frente à sua tenda, mora um jovem magistrado, o arconte Eucrates, numa encantadora mansão de mármore. O pobre sapateiro inveja em Eucrates as suas riquezas, sua mulher, a bela Cloé, sua prima, seus numerosos escravos. O opulento arconte, envelhecido precocemente, tolhido pela gota, inveja em Mycille sua boa figura, sua saúde, o amor desinteressado que lhe dedica uma linda escrava, Doris. Mycille tem um galo que lhe deu a jovem Doris e que, por seu canto matinal, desperta o arconte. Este ordena aos escravos que batam no sapateiro, caso este não faça o galo calar-se; por sua vez o sapateiro quer bater no galo; mas nesse momento o animal se metamorfoseia em homem: é o filósofo Pitágoras, cuja alma viera animar o corpo do galo, segundo a sua doutrina da transmigração. Momentaneamente tomou sua forma humana para esclarecer Mycille sobre a tolice da inveja que ele tem da posição de Eucrates. Não podendo convencê-lo, lhe diz: “Dar-te-ei o meio de te esclareceres por tua própria experiência. Apanha esta pena que fizeste cair de meu corpo de galo; enfia-a na fechadura da porta de Eucrates: logo a porta se abrirá; tua alma passará para o corpo do arconte e, reciprocamente, a alma do arconte passará para o teu corpo. Contudo, antes de fazer qualquer coisa, aconselho-te a refletir bem. Então Pitágoras desapareceu. Mycille reflete, mas a sede do ouro o arrasta e, instigado por diversos incidentes, decide-se e a metamorfose se opera. Eis, pois, o sapateiro transformado no rico arconte, mas doente e gotoso, e o arconte feito sapateiro. Essa transformação leva a uma porção de complicações cômicas, em consequência das quais cada um, descontente com a sua nova posição, retoma a que tinha antes.

Como se vê, essa peça é uma nova edição da história do sapateiro e do financista, já explorada sob tantas formas. O que a caracteriza é que, em vez de ser o sapateiro em pessoa, corpo e alma, que toma o lugar do financista, são as duas almas que mudam de corpo. A ideia é nova, original, e os autores a exploram espirituosamente. Mas não é absolutamente tomada da ideia espírita, como se havia dito; é tirada de um diálogo de Luciano: O sonho e o galo. Não falamos deste senão para realçar o erro dos que confundem o princípio da reencarnação com a transmigração das almas, ou metempsicose.

A peça de Cornélio, ao contrário, é inteiramente espírita, embora a pretensa reencarnação do jovem e da moça não passem de uma invenção de sua parte para chegar aos seus fins, enquanto esta dela se afasta por completo. Em primeiro lugar, o Espiritismo jamais admitiu a ideia da alma humana retrogradando na animalidade, porque seria a negação da lei do progresso; em segundo lugar, a alma só deixa o corpo com a morte. Quando, depois de algum tempo passado na erraticidade, recomeça uma nova existência, passa pelas fases ordinárias da vida: nascimento, infância, etc., e não por efeito de uma metamorfose ou substituição instantânea, que só se vê nos contos de fadas, que não são o Evangelho do Espiritismo, digam o que disserem os críticos, que dele pouco sabem.

Todavia, embora os dados sejam falsos na sua aplicação, não deixam de ser baseados no princípio da individualidade e da independência da alma; é a alma distinta do corpo e a possibilidade de reviver num outro envoltório posto em ação, ideia com a qual sempre é útil familiarizar a opinião. A impressão que daí fica não é perdida para o futuro e é mais salutar que a das peças onde se encenam a pouca vergonha das paixões.

Alexandre Dumas — Monte-Cristo

“Escutai, Valentin. Jamais sentistes por alguém uma dessas simpatias irresistíveis, que fazem que, em vendo uma pessoa pela primeira vez, julgais conhecê-la há muito tempo, e vos perguntais onde e quando a vistes, embora não vos podendo recordar nem do lugar, nem do tempo, chegais a crer que foi num mundo anterior ao nosso, e que essa simpatia não passa do despertar de uma lembrança?” ( Monte-Cristo, 3a parte, cap. XVIII, O recinto da luzerna.)

“Jamais ousastes vos elevar, num voo, às esferas superiores que Deus povoou de seres invisíveis e excepcionais? — Admitis, senhores, que existam esferas superiores e que seres invisíveis se misturem conosco? — E por que não? Acaso vedes o ar que respirais, e sem o qual não poderíeis viver? — Então nós não vemos estes seres de que falais? — Sim; vós os vedes quando Deus permite que se materializem...” ( Monte-Cristo, 3a parte, cap. IX, Ideologia.)

“E eu, senhor (Villefort), eu vos digo que não é assim como pensais. Esta noite eu dormi um sono horrível, porque de certo modo me via dormir, como se minha alma já estivesse planando acima de meu corpo; meus olhos, que me esforçava por abrir, se fechavam mau grado meu; e, contudo... com os olhos fechados, eu vi, no mesmo lugar onde estais, entrar sem ruído uma forma branca.” ( Monte-Cristo, 4a parte, cap. XIII, senhora Mairan.)

“Uma hora antes de expirar, ele me disse: Meu pai, a fé de nenhum homem pode ser mais viva que a minha, porque vi e ouvi falar uma alma separada de seu corpo.” ( François Picaut, continuação do Monte-Cristo. )

Nestes pensamentos não há senão uma crítica muito pequena a fazer: é a qualificação de excepcionais  dada aos seres invisíveis que nos cercam. Tais seres nada têm de excepcional, já que são as almas dos homens, e que todos os homens, sem exceção, devem passar por esse estado. Afora isto, não se dirá que estas ideias são tiradas textualmente da doutrina?


 

Bibliografia

A ALMA, demonstração de sua realidade, deduzida do estudo dos efeitos do clorofórmio e do curare sobre a economia animal, pelo  Sr. RAMON DE LA SAGRA, membro correspondente do Instituto de França. (Academia de Ciências Morais e Políticas), da Academia Real de Ciências dos Países Baixos, etc. [1]

Dissemos num artigo acima que as pesquisas da Ciência, mesmo visando ao estudo exclusivo da matéria, conduziriam ao espiritualismo, pela impossibilidade de explicar certos efeitos apenas com o auxílio das leis da matéria; por outro lado, temos repetido muitas vezes que na catalepsia, na letargia, na anestesia pelo clorofórmio ou outras substâncias, no sonambulismo natural, no êxtase e em certos estados patológicos, a alma se revela por uma ação independente do organismo, e dá, por seu isolamento, a prova patente de sua existência. Não nos referimos ao magnetismo, nem ao sonambulismo artificial, nem à dupla vista, nem às manifestações espíritas, que a Ciência oficial ainda não reconheceu, mas aos fenômenos sobre os quais ela está em condições de fazer experiências todos os dias.

A Ciência procurou a alma com o escalpelo e o microscópio no cérebro e nos gânglios nervosos, e não a encontrou; a análise dessas substâncias não lhe deu senão oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, donde concluiu que a alma não era distinta da matéria. Se não a encontra, a razão é muito simples: ela faz da alma uma ideia fixa, preconcebida; imagina-a dotada das propriedades da matéria tangível; é sob essa forma que a procura e, naturalmente, não poderia reconhecê-la, ainda mesmo quando a tivesse sob os olhos. Uma vez que certos órgãos são os instrumentos das manifestações do pensamento, e que, destruindo esses órgãos, pára a manifestação, a Ciência conclui muito pouco filosoficamente que são os órgãos que pensam, absolutamente como se uma pessoa que tivesse cortado o fio telegráfico e interrompido a transmissão de um despacho, pretendesse ter destruído aquele que o enviava.

O aparelho telegráfico nos oferece, por comparação, uma imagem exata do funcionamento da alma no organismo. Suponhamos que um indivíduo receba um telegrama e que, ignorando a sua procedência, se entregue às seguintes pesquisas: Segue o fio transmissor até o seu ponto de partida; no caminho procura o seu expedidor ao longo do fio e não o encontra; o fio o conduz a Paris, à repartição do telégrafo, ao aparelho. Dize ele: “Daqui foi que o telegrama partiu, não tenho dúvida; é um fato materialmente demonstrado.” Explora o aparelho e o desmonta, para procurar o seu expedidor, e não encontrando senão madeira, cobre, uma roda, diz: “Já que o telegrama partiu daqui e aqui não encontro ninguém, foi esse mecanismo que concebeu o despacho; isto me é demonstrado não menos materialmente.” Nesse ínterim, um outro indivíduo, colocando-se ao lado do aparelho, põe-se a repetir o telegrama, palavra por palavra, e lhe diz: “Como podeis supor, vós, um homem inteligente, que este mecanismo, composto de matéria inerte, destrutível, tenha podido conceber o pensamento do telegrama que recebestes, e conhecer o fato que este despacho vos comunicou? Se a matéria tivesse a faculdade de pensar, por que o ferro, a pedra e a madeira não teriam ideias? Se essa faculdade depende da ordem e do arranjo das partes, por que o homem não construiria autômatos pensantes? Alguma vez já vos veio ao espírito crê que essas bonecas que dizem: papá, mamã, tenham consciência do que fazem? Ao contrário, não admirastes a inteligência do autor desse mecanismo engenhoso?”

Aqui, o novo interlocutor é a alma, que concebe o pensamento; o aparelho é o cérebro, onde ela se concentra e se formula; a eletricidade é o fluido diretamente impregnado do pensamento e encarregado de o levar longe, como o ar leva o som; os fios metálicos são os cordões nervosos destinados à transmissão do fluido; o primeiro indivíduo é o sábio à procura da alma, que segue os cordões nervosos, procura-a no cérebro e, não a encontrando, conclui que é o cérebro que pensa; não escuta a voz que lhe diz: “Tu te obstinas em me procurar dentro, quando estou fora; olha para o lado e me verás; os nervos, o cérebro e os fluidos não pensam mais que o fio metálico, o aparelho telegráfico e a eletricidade; não passam de instrumentos da manifestação do pensamento, engenhosamente combinados pelo inventor da máquina humana.”

Em todos os tempos fenômenos espontâneos muito frequentes, tais como a catalepsia, a letargia, o sonambulismo natural e o êxtase mostraram a alma agindo fora do organismo; mas a Ciência os desdenhou deste ponto de vista. Ora, eis que uma nova descoberta, a anestesia pelo clorofórmio, de incontestável utilidade nas operações cirúrgicas, e cujos efeitos, por isso mesmo, se é forçado a estudar, diariamente torna a Ciência testemunha desse fenômeno, pondo, por assim dizer, a nu a alma do paciente; é a voz que grita: “Olha para fora, e não para dentro, e então me verás.” Mas há criaturas que têm olhos e não veem, ouvidos e não escutam.

Entre os numerosos fatos desse gênero, produziu-se o seguinte na prática do Dr. Velpeau:

 “Uma mulher que não tinha manifestado nenhum sinal de dor enquanto eu a liberava de um volumoso tumor, despertou sorrindo e me disse: “Bem sei que terminou; deixai-me voltar completamente e vou explicar isto... Não senti absolutamente nada, logo acrescentou ela, mas eis como soube que estava operada. Em meu sono, fui fazer uma visita a uma senhora de meu conhecimento, para conversar sobre uma criança pobre que devíamos colocar numa instituição. Enquanto conversávamos, a senhora me disse: Credes estar neste momento em minha casa, não é? Pois bem! minha cara amiga, enganai-vos completamente, porque estais em vossa casa, em vosso leito, onde vos fazem uma operação agora mesmo. Longe de me alarmar com sua linguagem, respondi-lhe ingenuamente: Ah! se é assim, eu vos peço permissão para prolongar um pouco a minha visita, a fim de que tudo esteja acabado quando voltar para casa. E eis como, abrindo os olhos, antes mesmo de ser despertada de todo, pude anunciar-vos que estava operada.”

O clorofórmio oferece milhares de exemplos tão concludentes quanto este.

Comunicando este e outros fatos análogos à Academia de Ciências, em 4 de março de 1850, o Sr. Velpeau exclamou: “Que fonte fecunda para a Psicologia e a Fisiologia são esses atos que vão até a separar o espírito da matéria, ou a inteligência do corpo!”

Então o Sr. Velpeau viu a alma em ação fora do organismo; pôde constatar a sua existência por sua independência; ouviu a voz que lhe dizia: Estou fora, e não dentro. Por que, então, fez profissão de fé materialista? Disse depois, quando estava no mundo dos Espíritos: “Orgulho do sábio, que não queria desmentir-se.” Contudo, não temeu voltar atrás sobre certas opiniões científicas errôneas, que professara publicamente. Em seu Tratado de Medicina Operatória, publicado em 1839, tomo I, página 32, diz: “Evitar a dor nas operações é uma quimera que hoje não é permitido perseguir. Instrumento cortante e dor, em medicina operatória, são duas palavras que não se apresentam uma sem a outra ao espírito dos doentes, e cuja associação deve-se necessariamente admitir.” O clorofórmio veio dar-lhe um desmentido sobre este ponto, como sobre a questão da alma. Por que, então, aceitou um e não o outro? Mistério das fraquezas humanas!

Se, em suas lições, o Sr. Velpeau tivesse dito aos seus alunos: “Senhores, dizem-vos que não encontrareis a alma na ponta do vosso escalpelo, e têm razão, porque aí não está e em vão aí a procuraríeis, como eu mesmo o fiz; mas estudai as manifestações inteligentes nos fenômenos da anestesia e tereis a prova irrecusável de sua existência; foi aí que a encontrei e todo observador de boa-fé a encontrará. Em presença de semelhantes fatos, não é mais possível negá-la, pois que se pode constatar a sua ação independente do organismo e, a bem dizer, isolá-la à vontade.” Falando assim, ele não teria feito senão completar o pensamento que emitira diante da Academia de Ciências. Com tal linguagem, apoiado na autoridade de seu nome, teria feito uma revolução na arte médica. Foi uma glória que repudiou e que hoje lamenta amargamente, mas que outros herdarão.

Tal é a tese que acaba de ser desenvolvida com notável talento pelo Sr. Ramon de la Sagra, na obra que constitui o objeto deste artigo. O autor aí descreve com método e clareza, do ponto de vista da ciência pura, que lhe é familiar, todas as fases da anestesia pelo clorofórmio, pelo éter, pelo curare[2] e outros agentes, segundo suas próprias observações e as dos mais acreditados autores, tais como Velpeau, Gerdy, Bouisson, Flourens, Simonin, etc. A parte técnica e científica aí ocupa largo espaço, mas isto era necessário para uma demonstração rigorosa. Ademais, contém fatos numerosos, onde colhemos o que referimos acima. Dela tomamos igualmente as seguintes conclusões:

“Desde que é um fato perfeitamente constatado pelos fenômenos anestésicos que o éter extingue a vida dos nervos condutores das impressões dos sentidos, mas deixando livres as faculdades intelectuais, também se torna incontestável que essas faculdades não dependem essencialmente dos órgãos nervosos. Ora, como os órgãos dos sentidos, que produzem as impressões, não agem senão pelos nervos, é claro que estando estes paralisados, todo o organismo da vida animal, da vida de relação, fica aniquilado para essas faculdades intelectuais que, não obstante, funcionam. Forçoso é, pois, confessar que a sua existência, ou melhor, a sua realidade, não depende essencialmente do organismo e que, desde então, elas procedem de um princípio diverso dele, independente dele, podendo funcionar sem ele e fora dele.

“Eis, pois, a realidade da alma rigorosamente demonstrada, incontestavelmente estabelecida, sem que nenhuma observação fisiológica a possa prejudicar. Podemos ver sair desta conclusão, como que jactos de luz clareando horizontes longínquos, que, entretanto, não abordaremos, porque esse gênero de estudos escapa do quadro que nos traçamos.

“O ponto de vista psicológico, sob o qual acabamos de apresentar os efeitos das substâncias anestésicas sobre a economia animal, e as consequências que daí deduzimos em favor da realidade da existência da alma, devem sugerir a esperança de que um método semelhante, aplicado ao estudo de outros fenômenos análogos da vida, poderia conduzir ao mesmo resultado.

“Nenhuma dedução seria mais justa, porque os efeitos fisiológicos e psicológicos que se mostram durante a embriaguez alcoólica, o delírio patológico, o sono natural e magnético, o êxtase e mesmo a loucura, oferecem a maior semelhança, em muitos pontos, com os efeitos das substâncias anestésicas que acabamos de estudar nesta obra. Uma tal concordância de diversos fenômenos, procedendo de causas diferentes, em favor de uma conclusão idêntica, não nos deve surpreender. Ela não é senão a consequência do que temos provado: a realidade da existência de uma essência distinta da matéria  no organismo humano, e à qual são devolvidas as funções intelectuais que, sozinha, a matéria jamais poderia preencher.

“Seria aqui o lugar de examinar uma outra questão, de fazer uma incursão no domínio do magnetismo animal, que sustenta a permanência das faculdades sensoriais fora dos sentidos, isto é, da visão, da audição, do gosto, do olfato, durante a paralisia completa dos órgãos que, em estado normal, proporcionam essas impressões. Mas esta doutrina, cuja verdade não queremos contestar nem sustentar, não é admitida pela ciência fisiológica, o que é suficiente para que a eliminemos de nossas pesquisas atuais.”

Este último parágrafo prova que o autor fez, para a demonstração da alma, o que o Sr. Flammarion fez para a de Deus, isto é, que ele se colocou no próprio terreno da ciência experimental e que quis tirar só dos fatos oficialmente reconhecidos, a prova de sua tese. Ele nos promete outra obra, que não pode deixar de ter grande interesse, na qual serão estudados, do mesmo ponto de vista, os diversos fenômenos que apenas menciona, pois se limitou aos da anestesia pelo clorofórmio.

Certamente esta prova não é necessária para firmar a convicção dos espíritas, nem dos espiritualistas; mas, depois de Deus, sendo a existência da alma a base fundamental do Espiritismo, devemos considerar como eminentemente útil à Doutrina toda obra que tenda a lhe demonstrar os princípios fundamentais. Ora, a ação da alma, abstração feita do organismo, uma vez provada, é um ponto de partida que, como a pluralidade das existências e o perispírito, pouco a pouco e por dedução lógica, conduz a todas as consequências do Espiritismo.

Com efeito, o exemplo referido acima é do mais puro Espiritismo, do qual o Sr. Velpeau nem o suspeitava quando o publicou; e se tivéssemos podido citar todos, ver-se-ia que os fenômenos anestésicos não só provam a realidade da alma, mas a do Espiritismo.

É assim que tudo concorre, como foi anunciado, para abrir o caminho da doutrina nova; a ela se chega por uma porção de saídas, convergindo todas para um centro comum, e muita gente a ela traz a sua pedra, uns conscientemente, outros sem se darem conta.

A obra do Sr. Ramon de la Sagra é uma dessas cuja publicação temos o prazer de aplaudir, porque, não obstante nela se tenha feito abstração do Espiritismo, podemos considerá-las — como o Deus na Natureza, do Sr. Flammarion, e a Pluralidade das Existências, do Sr. Pezzani — como monografias dos princípios fundamentais da Doutrina, às quais eles dão a autoridade da Ciência.

Allan Kardec



[1] Um vol. in-12. Preço: 2 fr. 50; pelo Correio, 2 fr. 75. Germer-Baillière, livreiros, 17, rue de l’École-de-Médecine.

[2] O curare é uma substância eminentemente tóxica, que os selvagens do Orenoco retiram de certas plantas e com a qual umedecem a ponta de suas flechas, que produzem feridas mortais.

Agosto de 1868

O Materialismo e o Direito

Exibindo-se como não o tinha feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo regulador dos destinos morais da Humanidade, o materialismo teve por efeito apavorar as massas pelas consequências inevitáveis de suas doutrinas para a ordem social. Por isto mesmo provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma enérgica reação, que deve provar-lhe que está longe de ter simpatias tão gerais quanto supõe, e que se ilude singularmente se espera um dia impor suas leis ao mundo.

Seguramente as crenças espiritualistas dos tempos passados são insuficientes para este século; elas não estão no nível intelectual de nossa geração; sobre muitos pontos estão em contradição com os dados positivos da Ciência; deixam no espírito um vazio incompatível com a necessidade do positivo, que domina na sociedade moderna; além disso, cometem o erro imenso de se imporem pela fé cega e de proscreverem o livre-exame. Daí, sem a menor dúvida, o desenvolvimento da incredulidade no maior número; é muito evidente que se os homens não fossem alimentados, desde a infância, senão por ideias susceptíveis de serem confirmadas mais tarde pela razão, não haveria incrédulos. Quantas pessoas, reconduzidas à crença pelo Espiritismo, nos disseram: Se sempre nos tivessem apresentado Deus, a alma e a vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!

Pelo fato de um princípio receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que se deva rejeitá-lo? Isto acontece com coisas espirituais, como com a legislação de todas as instituições sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbir. Mas em vez de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o materialismo preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia mais cômodo àqueles a quem importuna a ideia de Deus e do futuro. Que pensariam de um médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante substancial para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente nada?

O que é de admirar é encontrar na maioria dos materialistas da escola moderna esse espírito de intolerância levado aos últimos limites, logo eles que reivindicam sem cessar o direito de liberdade de consciência. Seus próprios correligionários políticos acham-se sem graça diante deles, assim que fazem profissão de espiritualismo, como o Sr. Jules Favre, a propósito de seu discurso na Academia ( Figaro  de 8 de maio de 1868), e como o Sr. Camille Flammarion, afrontosamente ridicularizado e denegrido, num outro jornal, cujo nome esquecemos, porque ousou provar Deus pela Ciência. Segundo o autor dessa diatribe, não se pode ser sábio senão com a condição de não crer em Deus; Chateaubriand não passa de um mísero escritor e velho caduco. Se homens de tão incontestável mérito são tratados com tão pouco respeito, os espíritas não devem se lamentar por serem troçados a respeito de suas crenças.

Há neste momento, da parte de certo partido, uma oposição furibunda contra as ideias espiritualistas em geral, nas quais o Espiritismo se acha naturalmente englobado. O que ele busca não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos constrangedor, porque não tem que lhe dar contas. Ninguém contesta a esse partido o direito de ter a sua opinião, de discutir as opiniões contrárias, mas o que não se lhe poderia conceder é a pretensão, no mínimo singular para homens que se apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à sua maneira e de discutir as doutrinas que não partilham. Intolerância por intolerância, uma não vale mais que a outra.

Um dos melhores protestos que temos lido contra as tendências materialistas foi publicado no jornal Droit, sob o título de: O materialismo e o direito. A questão aí é tratada com notável profundeza e perfeita lógica, do duplo ponto de vista da ordem social e da jurisprudência. Sendo a causa do espiritualismo a do Espiritismo, aplaudimos a enérgica defesa da primeira, mesmo quando aí se faz abstração da segunda. Eis por que pensamos que os leitores da Revista verão com prazer a reprodução desse artigo.

(Extraído do jornal Droit, de 14 de maio de 1868)

A geração presente atravessa uma crise intelectual, com a qual não se deve inquietar além da medida, mas seria imprudência deixar o seu desenlace ao acaso. Desde que a Humanidade pensa, acredita-se na alma, princípio imaterial, distinto dos órgãos que o servem; faziam-na até imortal. Acreditava-se numa Providência, criadora e senhora dos seres e das coisas, no bem, no justo, na liberdade do arbítrio humano, numa vida futura que, para valer mais do que o mundo em que estamos, não precisa, como diz o poeta, senão existir. Modernos doutores, que começam a tornar-se barulhentos, mudaram tudo isto. O homem é por eles reconduzido à dignidade do animal, e este reduzido a um agregado material. A matéria e as propriedades da matéria, tais seriam os únicos objetos possíveis da ciência humana; o pensamento não seria senão um produto do órgão que é a sua sede, e o homem, quando as moléculas orgânicas que constituem a sua pessoa se desagregam e voltam aos elementos, pereceria inteiramente.

Se as doutrinas materialistas jamais devessem ter a sua hora de triunfo, os jurisconsultos filósofos — é preciso que se diga para sua honra — seriam os primeiros vencidos. Que teriam a fazer suas regras e suas leis num mundo no qual a lei da matéria fosse toda a lei? As ações humanas não podem ser senão fatos automáticos, se o homem for todo matéria. Mas, então, onde estará a liberdade? E se a liberdade não existir, onde está a moral? A que título uma autoridade qualquer poderia pretender dominar a expansão fatal de uma força toda física e necessariamente legítima, desde que é fatal? O materialismo arruína a lei moral e, com a lei moral, o direito, a ordem civil toda inteira, isto é, as condições da existência da Humanidade. Tais consequências imediatas, inevitáveis, certamente merecem que nelas se pense. Vejamos, pois, como se reproduz esta velha doutrina materialista, que não se viu despontar, até o presente, senão nos piores dias.

Quase sempre houve materialistas, teóricos ou práticos, quer por desvio do senso comum, quer para justificar baixos hábitos de viver. A primeira razão de ser do materialismo está na imperfeição da inteligência humana. Cícero disse em termos muito duros, que não há tolice que não tenha encontrado algum filósofo para defendê-la: Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum. A segunda razão de ser está nas más inclinações do coração humano. O materialismo prático, que se reduz a algumas máximas vergonhosas, sempre apareceu nas épocas de decomposição moral ou social, como as da Regência e do Diretório. Na maioria das vezes, quando houve pretensões mais elevadas, o materialismo filosófico foi uma reação contra as exigências exageradas das doutrinas ultra-espiritualistas ou religiosas. Mas em nossos dias ele se produz com um caráter novo; chama-se científico. A história natural seria toda a ciência do homem; nada existiria do que ela não tem por objeto e, como não tem por objeto o espírito, o espírito não existe.

Para quem queira pensar no caso, com efeito o materialismo é mesmo um perigo, não da ciência verdadeira, mas da ciência incompleta e presunçosa; é uma planta má que cresce em seu solo. De onde vêm as tendências materialistas, mais ou menos acentuadas, de tantos sábios? De sua constante ocupação em estudar e manipular a matéria? Talvez um pouco. Mas elas vêm sobretudo de seus hábitos de espírito, da prática exclusiva de seu mérito experimental. O método científico pode reduzir-se nestes termos: Não recolher senão fatos, deduzir muito prudentemente a lei desses fatos, banir absolutamente todas as pesquisas das causas. Não é de admirar, depois disto, que inteligências de visão curta, débeis nalgum sentido, deformadas, como nos tornamos todos, por um mesmo trabalho intelectual ou físico muito contínuo, desconheçam a existência dos fatos morais, aos quais não convém a aplicação de seu instrumento lógico e, por uma transmissão insensível, passam da ignorância metódica à negação.

Entretanto, se este método exclusivamente experimental pode achar-se em erro, é bem no estudo do homem, ser duplo, espírito e matéria, cujo organismo mesmo não pode ser senão o produto e o instrumento da força oculta, mas essencialmente una, que o anima. Não se quer ver no organismo humano mais que um agregado material! Por que cindir o homem e não querer, metodicamente, nele considerar senão um princípio, se há dois? É possível gabar-se, ao menos, de assim explicar todos os fenômenos da vida? O materialismo fisiológico, que prepara o materialismo filosófico, mas que a ele não conduz necessariamente, a cada passo é ferido de impotência. A vida, digam o que disserem, é um movimento, o movimento da alma informando o corpo; e a alma é, assim, a mola que move e transporta, por uma ação desconhecida e inconsciente, os elementos dos corpos vivos. Trazendo sistematicamente o estudo do homem físico às condições do estudo dos corpos organizados; não vendo nas forças vivas de cada parte do organismo senão propriedades da matéria; localizando essas forças em cada uma dessas partes; não considerando a vida senão como uma manifestação física, um resultado, quando ela talvez seja um princípio; afastando a unidade do princípio de vida como uma hipótese, quando pode ser uma realidade, cai-se, sem dúvida, no materialismo fisiológico, para depois escorregar rapidamente no materialismo filosófico; mas se conclui por uma enunciação e um exame incompleto dos fatos; acreditou-se marchar apenas apoiado na observação, e afastou-se o fato capital que domina e determina todos os fatos particulares.

O materialismo da nova escola não é, pois, um resultado demonstrado do estudo; é uma opinião preconcebida. O fisiologista não admite o espírito; mas que há de admirável? é uma causa, e ele se pôs no estudo com um método que lhe interdita precisamente a pesquisa das causas. Não queremos submeter a causa do espiritualismo a uma questão de fisiologia controvertida, e sobre a qual nos poderiam recusar em bom direito. O sentido íntimo me revela a existência da alma com uma autoridade bem diversa. Ainda que o materialismo fisiológico fosse tão verdadeiro quanto é discutível, nem por isso nossas convicções espiritualistas ficariam menos inteiras. Fortalecido pelo testemunho do senso íntimo, confirmado pelo assentimento de mil gerações que se sucederam na Terra, repetiríamos o velho adágio: “A verdade não destrói a verdade”, e esperaríamos que a conciliação se fizesse com o tempo. Mas, de que peso não nos sentimos aliviados quando vemos que, para negar a alma e dar esta declaração como um resultado da Ciência, o sábio, por confissão própria, partiu metodicamente dessa ideia de que a alma não existe!

Lemos muitos livros de fisiologia, em geral muito mal escritos; o que nos chamou a atenção foi o vício constante dos raciocínios do fisiologista organicista, quando sai do seu assunto para se fazer filósofo. Vê-se-o constantemente tomar um efeito por uma causa, uma faculdade por uma substância, um atributo por um ser, confundir as existências e as forças, etc., e raciocinar em consequência. Dir-se-ia uma aposta. Algumas vezes ele transpõe distâncias incríveis sem desconfiar do caminho que faz. Que espírito exato e claro, por exemplo, jamais pôde compreender esse pensamento tão conhecido de Cabanis e de Broussais, que “o cérebro produz, secreta  o pensamento?” Outras vezes, o homem positivo, o homem da ciência, o homem da observação e dos fatos, nos dirá seriamente que o cérebro “armazena as ideias.” Ainda um pouco, ele as desenhará. É metáfora ou mixórdia?

Jamais será pedido à ciência natural que tome partido pró ou contra a alma humana; mas por que ela não se resolve a ignorar o que não é objeto de suas investigações? Com que direito ousa jurar que não há nada depois dela, após ter decretado não querer vê-la? Por que não guarda um pouco dessa reserva, que nos convém tão bem a todos, sobretudo aos que têm a pretensão de não avançar senão com certeza? Com que autoridade o anatomista poderá declarar que a alma não existe, porque não a encontrou sob o seu escalpelo? Pelo menos começou ele a demonstrar rigorosamente, cientificamente, por experiências e por fatos, segundo o método que preconiza, que o seu escalpelo pode atingir tudo, até mesmo um princípio imaterial?

Seja como for com todas estas questões, o materialismo, dizendo-se científico, sem por isto valer mais, se espalha à luz do dia e nos deixa ver o que seria o direito materialista.

Ai! o estado social materialista nos ofereceria um bem triste e vergonhoso espetáculo. Antes de mais, uma coisa é certa: se o homem não existe senão por seu organismo, essa massa material e automática, em que doravante se tornará todo homem, provido de um encéfalo para secretar ideias, será irresponsável por todos os movimentos que produzir.[1] Com ela não será preciso que o encéfalo de uma outra massa material se decida a secretar ideias de justiça ou de injustiça; porque essas ideias de justiça ou de injustiça só são aplicáveis a uma força livre, existente por si mesma, capaz de querer e de se abster. Não se contesta a torrente ou a avalanche.

Então a liberdade, isto é, a vontade de agir ou não agir, não existirá aqui, nem tampouco o direito. Nesse estado, todas as forças terão um pleno e absoluto poder de expansão. Tudo será legítimo, lícito, permitido, mesmo ordenado, digamos; porque é claro que tudo faz que não seja o ato de uma vontade livre, que não se produz como um ato moralmente obrigatório ou moralmente proibido; é um fato obrigado, que bem pode vir chocar-se com um fato contrário do mesmo caráter, mas que cai como todos os fatos físicos, sob o império inelutável das leis naturais.

Basta expor tais ideias para lhes fazer justiça. É o sistema de Espinoza, que muito resolutamente estabeleceu o princípio do direito da força. Os fortes, diz Espinoza, são feitos para subjugar os fracos, como os peixes para nadar e os maiores para comer os menores. No sistema materialista, o que seria chamado direito não poderia ter um princípio diferente. Mas que homem dotado de senso ousaria confessar tal sistema que, por si só, bastaria para refutar o materialismo, pois que dele decorre necessariamente? Querem, entretanto, que esse princípio da força se ache, de fato, limitado por si mesmo? Nada será ganho, ou quase nada, com esse flagrante desmentido do princípio. Admitamos, se quiserem, que a substância pensante (continuamos a falar a língua dos materialistas) se combine nos indivíduos para regularizar essa expansão da força; a que chegará? No máximo a um conjunto de regras que terão por base o interesse e, ainda, como não há outras leis senão as leis da matéria, essa legislação não terá nenhum caráter obrigatório; cada um poderá infringi-la se sua matéria pensante lho aconselhar e se sua força lho permitir. Assim, nesta singular doutrina, não se teria nem mesmo um estado social construído sobre o plano da triste sociedade de Hobbes.

Não falamos ainda senão das condições primeiras de todo estado social. Mas, em toda sociedade civil, consagra-se a propriedade individual; contrata-se, vende-se, aluga-se, associa-se, etc. O casamento funda a família; daí nasce toda uma ordem nova de relações. Pela educação do lar e pela educação pública, perpetuam-se as tradições. Assim se forma o espírito nacional e se desenvolve a civilização. Nossa sociedade materialista terá o seu direito civil? Impossível supô-lo, porquanto o direito civil, em seu conjunto, tem por princípio a justiça, e a justiça não pode ser senão uma palavra, ou uma contradição, numa doutrina que só conhece a matéria e as propriedades da matéria. Chega-se assim, inevitavelmente, a concluir (a menos que delirando a propósito) que o estado civil da sociedade materialista é o estado de bestialidade.

Nada dizemos em demasia quando avançamos que o materialismo é destrutivo, não de tal moral, mas de toda moral; não de tal estado civil, mas de todo estado civil, de toda sociedade. É preciso recuar com ele além das regiões da barbárie, além da selvageria. Deve-se proscrevê-lo por isto? Que Deus não o permita. Reconhecido o seu caráter, não pediríamos, nada obstante, que o seu ensino fosse interditado; nós o defenderíamos, se necessário, contra toda restrição pela força, desde que o professor não falasse senão em seu próprio nome. A liberdade nos é tão cara (os leitores deste jornal o sabem); traz consigo tais benefícios; temos tal confiança no bom-senso público, que não conceberíamos nenhuma inquietação por ver toda cátedra, toda tribuna aberta a todas as ideias.

Mas a questão já não se apresentaria nos mesmos termos se acontecesse que o professor falasse numa cátedra do Estado, retribuída pelo orçamento. Com ou sem razão, o Estado ensina. Pode ensinar doutrinas cujas consequências mais imediatas sejam destrutivas do Estado? Ficará ao arbítrio do professor fazer o Estado endossar todas as doutrinas que puder conceber? A questão não é simples. Os professores do Estado são funcionários públicos; seu ensino não pode ser e não é senão um ensino oficial. O estado é responsável pelo que dizem; responde perante a juventude e as famílias. Se com as grandes palavras de independência do professorado recusássemos seu controle, far-nos-íamos opressores do Estado, pela mais hipócrita das opressões, porque levaríamos à sua conta doutrinas que ele desaprova.

Sem dúvida a autoridade superior deve aos seus professores, muitas vezes envelhecidos pelo estudo, cuidados, considerações e uma grande confiança, como deve aos seus generais, aos seus administradores e aos seus magistrados; mas ela não lhes deve o sacrifício do mandato, quando é de presumir-se que comande o país. O professor não é mais independente do Estado do que o general que pretendesse comandar uma insurreição.

H. Thiercelin


 

O Jornal Solidarité

O jornal Solidarité, do qual falamos na Revista de junho de 1868, continua a ocupar-se do Espiritismo, com o tom de discussão séria que caracteriza essa folha eminentemente filosófica.

Sob o título de Pesquisas psicológicas a propósito de Espiritismo, o número de 1º de julho contém um artigo, do qual extraímos as seguintes passagens:

“Há bem poucos jornais que se possam dizer independentes. Entendo como verdadeira independência a que permite tratar um assunto sem preocupação de partido, de Igreja, de escola, de faculdade, de academia; melhor que isto: sem preocupação do público, de seu próprio público de leitores e de assinantes, e não se inquietando senão em pesquisar a verdade e a proclamar. O Solidarité  tem essa vantagem muito rara de afrontar até a suspensão de assinaturas, pois não vive senão de sacrifícios, e de estar colocado muito altamente nas regiões do pensamento para temer as flechas do ridículo.

“Tratando do Espiritismo, sabíamos que não satisfaríamos a ninguém, nem aos crentes, nem aos incrédulos; ninguém, a não ser, talvez, as pessoas que não tomaram partido sobre a questão. Esses sabem que não sabem. São os sábios; são pouco numerosos.”

Em seguida o autor descreve o fenômeno material das mesas girantes, que ele explica pela eletricidade humana, declarando nada ver que acuse uma intervenção estranha. É o que temos dito desde o começo. Ele continua:

“Enquanto não se tem senão que explicar o movimento automático dos objetos, não se precisa ir além do que é obtido nas ciências físicas. Mas a dificuldade aumenta quando se chega aos fenômenos de natureza intelectual.

“A mesa, depois de ter-se limitado a dançar, pôs-se logo a responder a perguntas. Desde então, como duvidar que aí houvesse uma inteligência? A crença vaga nos Espíritos tinha suscitado o movimento dos objetos materiais, pois, a priori, é evidente que, sem este, jamais teriam pensado em fazer girar as mesas. Essa crença, achando-se confirmada pelas aparências, deveria levar a dar mais um passo. Considerando-se o Espírito como a causa do movimento das mesas, deveria vir o pensamento de o interrogar.

“As primeiras manifestações inteligentes, diz o Sr. Allan Kardec, se deram por meio de mesas que se erguiam e batiam com um pé determinado número de pancadas, respondendo por um sim  ou por um não, conforme a convenção, a uma pergunta feita. A seguir obtiveram-se respostas mais desenvolvidas pelas letras do alfabeto: batendo o objeto móvel um número de pancadas correspondente ao número de ordem de cada letra, chegou-se a formular palavras e frases, respondendo às perguntas feitas. A absoluta precisão das respostas e sua correlação excitaram a admiração. Interrogado sobre a sua natureza, o ser misterioso que assim respondia, declarou que era Espírito  ou Gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações por sua conta.”

“Esse meio de comunicação era longo e incômodo, como observa muito justamente o Sr. Allan Kardec. Não tardou a que fosse substituído pela corbelha, depois pela prancheta. De modo geral, hoje esses meios estão abandonados, e os crentes se reportam ao que maquinalmente escreve a mão do médium, sob o ditado do Espírito.

“É difícil saber qual a parte do médium nas produções mais ou menos inspiradas de sua pena; também não é fácil determinar o grau de automatismo de uma corbelha ou de uma prancheta, quando estes objetos são colocados sob mãos vivas. Mas se a correspondência pela mesa é lenta e pouco cômoda, permite constatar a passividade do instrumento. Para nós, a relação intelectual por meio da mesa está tão bem estabelecida quanto a da correspondência telegráfica. O fato é real. Trata-se apenas de saber se existe o correspondente de além-túmulo. Há um Espírito, um ser invisível com o qual se corresponde, ou os operadores são vítimas de uma ilusão e não estão em contato senão consigo mesmos? Tal é a questão.

“Atribuímos à eletricidade emitida pela máquina humana os movimentos mecânicos das mesas; não temos que procurar alhures senão na alma humana o agente que imprime a esses movimentos um caráter inteligente. Representando a eletricidade como um fluido elástico de extrema sutileza, que se interpõe entre as moléculas dos corpos e os cercam como que de uma atmosfera, pode-se muito bem compreender que a alma, graças a esse envoltório, faça sentir sua ação sobre todas as partes do corpo, sem nele ocupar um lugar determinado, e que a unidade do eu  esteja, ao mesmo tempo, por toda parte onde pode atingir a sua atmosfera. A ação por contato ultrapassa, então, a periferia do corpo, e as vibrações etéreas ou fluídicas, comunicando-se de uma atmosfera à outra, podem produzir entre os seres em relação, efeitos a distância. Há nisso todo um mundo a estudar. As forças aí se influenciam e se transformam segundo as leis dinâmicas que nos são conhecidas, mas seus efeitos variam com o ritmo dos movimentos moleculares e conforme esses movimentos se exerçam por vibração, ondulação ou oscilação. Mas, seja como for com essas teorias, que estão longe de haver atingido a positividade necessária para ter lugar reservado na Ciência, nada se opõe a que consideremos o eu  humano como estendendo à mesa a ação de sua espontaneidade, dela se servindo como de um apêndice ao seu sistema nervoso, para manifestar movimentos voluntários.

“O que o mais das vezes causa ilusão nestas espécies de correspondências telegráficas é que o eu  de cada um dos assistentes não pode mais se reconhecer na resultante da coletividade. A representação subjetiva que se faz no espírito do médium, pelo concurso desta espécie de fotografia, pode não se parecer a nenhum dos assistentes, embora, sem dúvida, a maioria tenha fornecido algum traço. Entretanto é raro, se se observar com cuidado, que não se encontre mais particularmente a imagem de um dos operadores, que foi o instrumento passivo da força coletiva. Não é um Espírito ultramundano que fala na sala, mas o espírito do médium, talvez duplicado pelo espírito de tal assistente, que o domina, muitas vezes à revelia de um e de outro, e exaltado por forças que lhe chegam, como de diversas correntes eletromagnéticas, do concurso dado pelos assistentes.[2]

“Vimos muitas vezes a personalidade do médium trair-se por erros de ortografia, por erros históricos ou geográficos, que cometia habitualmente e que não podiam ser atribuídos a um Espírito  verdadeiramente distinto de sua própria pessoa.

“Uma coisa das mais comuns nos fenômenos desta natureza é a revelação de segredos que o interrogador não julgava conhecido por ninguém; mas esquece que esses segredos são conhecidos por aquele que interroga, e que o médium pode ler em seu pensamento. Para isto é necessário uma certa relação mental; mas essa derivação se estabelece por uma derivação da corrente nervosa que envolve cada indivíduo, mais ou menos como se poderia desviar a centelha elétrica, interceptando a linha telegráfica e a substituindo por um novo fio condutor. Uma tal faculdade é muito menos rara do que se pensa. A comunicação do pensamento é um fato admitido por todas as pessoas que se ocuparam de magnetismo, e é fácil a cada um se convencer da frequência e da realidade do fenômeno.

“Somos obrigados a resvalar sobre essas explicações muito imperfeitas. Elas não bastam, bem o sabemos, para infirmar a crença nos Espíritos, naqueles que julgam ter provas sensíveis de sua intervenção.

“Não lhes podemos opor provas da mesma natureza. A crença em individualidades espirituais não só nada tem de irracional, mas a consideramos como muito natural. Como sabem, nossa convicção profunda é que o eu  humano persiste em sua identidade após a morte, e que se encontra, depois de sua separação do organismo terrestre, com todas as suas aquisições anteriores. Que a pessoa humana esteja, então, revestida de um organismo de natureza etérea, é o que não nos parece perfeitamente provado. Assim, o perispírito  desses senhores não nos repugna. Que é, então, que nos separa? Nada de fundamental. Nada, a não ser a insuficiência de suas provas. Nós não achamos que as relações espíritas entre os mortos e os vivos sejam constatadas pelos movimentos das mesas, pelas correspondências, pelos ditados. Acreditamos que os fenômenos físicos se explicam fisicamente, e que os fenômenos psíquicos são causados  por forças inerentes à alma dos operadores. Falamos do que vimos e estudamos com muito cuidado. Entre as inspirações dos médiuns, nada conhecemos até aqui que não pudesse ter sido produzido por um cérebro vivo, sem o concurso de nenhuma força celeste, e a maior parte de suas produções está abaixo do nível intelectual do meio em que vivemos.

“Num próximo artigo, examinaremos as doutrinas filosóficas e religiosas do Espiritismo, notadamente aquelas cuja síntese o Sr. Allan Kardec apresentou em seu último volume, intitulado, A Gênese segundo o Espiritismo.”

Sem dúvida haveria muita coisa a responder sobre este artigo. Contudo, não o refutaremos, porque seria repetir o que muitas vezes temos escrito sobre o mesmo assunto. Estamos contentes por reconhecer, com o autor, que a distância que ainda o separa de nós é pouca coisa: não é senão o fato material das relações diretas entre o mundo visível e o mundo invisível. Entretanto, essa pouca coisa é muito boa por suas consequências.

Aliás, é de notar que se ele não admite essas relações, também não as nega de maneira absoluta; nem mesmo repugna-lhe à razão conceber a sua possibilidade; com efeito, essa possibilidade decorre muito naturalmente do que ele admite. O que lhe falta, diz ele, são as provas do fato das comunicações. Pois bem! essas provas lhe chegarão, mais cedo ou mais tarde; ele as encontrará, quer na observação atenta das circunstâncias que acompanham certas comunicações mediúnicas, quer na inumerável variedade das manifestações espontâneas, que se produziam antes do Espiritismo, e ainda se produzem em pessoas que não o conhecem ou nele não acreditam, e nas quais, consequentemente, não se poderia admitir a influência de uma ideia preconcebida. Seria preciso ignorar os primeiros elementos do Espiritismo para crer que o fato das manifestações só se produza entre os adeptos.

Esperando, e ainda mesmo que aí devesse deter-se a sua convicção, seria desejável que todos os materialistas o fossem a esse ponto. Devemos, pois, felicitar-nos por o contar entre os homens de valor, pelo menos simpáticos à ideia geral, e por ver um jornal recomendável por seu caráter sério e sua independência, combater conosco a incredulidade absoluta em matéria de espiritualidade, tão bem quanto os abusos que fizeram do princípio espiritual. Marchamos para o mesmo fim por estradas diferentes, mas convergindo para um ponto comum e se aproximando cada vez mais pelas ideias; algumas dissidências sobre questões de detalhe não nos devem impedir de nos estendermos a mão.

Nesses tempos de efervescência e de aspiração para um melhor estado de coisas, cada um traz sua pedra para a edificação do mundo novo; cada um trabalha de seu lado, com os meios que lhe são próprios; o Espiritismo traz seu contingente, que ainda não está completo; mas como não é exclusivo, não rejeita nenhum concurso; aceita o bem, que pode servir à grande causa da Humanidade, venha de onde viver, ainda mesmo que dos seus adversários.

Como dissemos no começo, não empreenderemos a refutação da teoria exposta no Solidarité  sobre a fonte das manifestações inteligentes; sobre isto diremos apenas algumas palavras.

Como se vê, essa teoria não é outra senão um dos primeiros sistemas surgidos na origem do Espiritismo, quando a experiência ainda não havia elucidado a questão. Ora, é notório que tal opinião está hoje reduzida a algumas raras individualidades. Se verdadeira, por que não teria prevalecido? Como é que milhões de espíritas, que há quinze anos experimentam no mundo inteiro e em todas as línguas, que se recrutam, em sua maioria, na classe esclarecida, que contam em suas fileiras homens de saber e de incontestável valor intelectual, tais como médicos, engenheiros, magistrados, etc., tenham constatado a realidade das manifestações, se ela não existisse? Pode-se admitir razoavelmente que todos se tenham iludido? Que não se tenham encontrado entre eles homens dotados de bastante bom-senso e perspicácia para reconhecer a verdadeira causa? Como dissemos, essa teoria não é nova e não passou inapercebida entre os espíritas; ao contrário, tem sido seriamente meditada e explorada por eles, e é precisamente porque a viram desmentida pelos fatos, impotente para os explicar todos, que foi abandonada.

É grave erro crer que os espíritas tenham vindo com a ideia preconcebida da intervenção dos Espíritos nas manifestações; se foi assim com alguns, a verdade é que o maior número não chegou à crença senão depois de ter passado pela dúvida ou pela incredulidade.

É igualmente um erro crer que, sem o a priori  da crença nos Espíritos, jamais se tivessem decidido a fazer girar as mesas. O fenômeno das mesas girantes e falantes era conhecido no tempo de Tertuliano e, na China, desde tempos imemoriais. Na Tartária e na Sibéria conheciam as mesas volantes.[3] Em certas províncias da Espanha servem-se de peneiras, suspensas pelas pontas de tesouras. Os que interrogam julgam que são os Espíritos que respondem? Absolutamente; perguntai-lhes o que é e eles nada sabem: é a mesa, é a peneira, dotada de uma força desconhecida; interrogam esses movimentos como os da varinha de condão, sem ir além do fato material.

Os fenômenos espíritas modernos não começaram pelas mesas, mas por pancadas espontâneas, dadas nas paredes e nos móveis; esses ruídos causaram espanto, surpreenderam; seu modo de percussão tinha algo de insólito, um caráter intencional, uma persistência que parecia chamar a atenção para um determinado ponto, como quando alguém bate para advertir. Os primeiros movimentos de mesas ou outros objetos foram igualmente espontâneos, como ainda hoje o são em certos indivíduos que não têm qualquer conhecimento do Espiritismo. Dá-se aqui como na maior parte dos fenômenos naturais, que se produzem diariamente e, todavia, passam despercebidos, ou cuja causa fica ignorada, até o momento em que observadores sérios e mais esclarecidos lhes prestam atenção, estudam-nos e os exploram.

Assim, de duas teorias contrárias, nascidas na mesma época, uma cresce com o tempo, por força da experiência, e se generaliza, ao passo que a outra se extingue. Em favor de qual há presunção de verdade e de sobrevivência? Não damos isto como prova, mas como um fato que merece ser levado em consideração.

O Sr. Fauvety apoia-se em que nada encontrou nas comunicações mediúnicas que ultrapasse o alcance do cérebro. Eis ainda aí uma velha objeção cem vezes refutada pela própria Doutrina Espírita. Alguma vez o Espiritismo teria dito que os Espíritos fossem seres fora da Humanidade? Ao contrário, ele vem destruir o preconceito  que deles faz seres excepcionais, anjos ou demônios, intermediários entre o homem e a Divindade, espécies de semideuses.

Repousa sobre o princípio de que os Espíritos não são outros senão homens despojados de seu invólucro material; que o mundo visível transborda incessantemente, pela morte, no mundo invisível, e este no mundo carnal, pelos nascimentos.

Desde que os Espíritos pertencem à Humanidade, por que haveriam de querer que tivessem uma linguagem sobre-humana? Sabemos que alguns dentre eles não sabem mais, e por vezes muito menos que certos homens, pois que se instruem com esses últimos; os que eram incapazes de fazer obras-primas quando vivos, não as farão como Espíritos; o Espírito de um hotentote não falará como um acadêmico, e o Espírito de um acadêmico, que não passa de um ser humano, não falará como um deus.

Não é, pois, na excentricidade de suas ideias e de seus pensamentos, na superioridade excepcional de seu estilo que se deve buscar a prova da origem espiritual das comunicações, mas nas circunstâncias que atestam que, numa multidão de casos, o pensamento não pode vir de um encarnado, mesmo que fosse da última trivialidade.

Desses fatos ressalta a prova da existência do mundo invisível, no meio do qual vivemos, e por isto os Espíritos do mais baixo estágio o provam tão bem quanto os mais elevados. Ora, a existência do mundo invisível em meio de nós, parte integrante da Humanidade terrestre, desaguadouro das almas desencarnadas e fonte das almas encarnadas, é um fato capital, imenso; é toda uma revolução nas crenças; é a chave do passado e do futuro do homem, que em vão buscaram todos os filósofos, como os sábios buscaram em vão a chave dos mistérios astronômicos antes de conhecer a lei da gravitação. Que se acompanhe a fieira das consequências forçadas desse único fato: a existência do mundo invisível em torno de nós, e se chegará a uma transformação completa, inevitável, nas ideias, à destruição dos preconceitos e dos abusos delas decorrentes e, por consequência, a uma modificação das relações sociais.

Eis aonde leva o Espiritismo. Sua doutrina é o desenvolvimento, a dedução das consequências do fato principal, cuja existência acaba de revelar. Essas consequências são inumeráveis, porque, pouco a pouco, tocam em todos os ramos da ordem social, tanto no físico quanto no moral. É o que compreendem todos os que se deram ao trabalho de o estudar seriamente, e que compreenderão ainda melhor mais tarde, mas não os que, só lhe tendo visto a superfície, imaginam que ele esteja todo inteiro numa mesa que gira ou nas perguntas pueris sobre a identidade dos Espíritos.

Para maiores desenvolvimentos sobre certas questões tratadas neste artigo, remetemos ao primeiro capítulo de A Gênese: “Caráter da revelação espírita”.[4]


 

O Partido Espírita

Um dos nossos correspondentes de Sens nos transmitiu as observações seguintes, sobre a qualificação de partido, dada ao Espiritismo, a propósito de nosso artigo do mês de julho sobre o mesmo assunto.

“Num artigo do último número da Revista, intitulado: O partido espírita, dizeis que, uma vez que assim nomeiam o Espiritismo, ele o aceita. Mas deve aceitá-lo?

Isto talvez mereça um exame sério.

“Todas as religiões, assim como o Espiritismo, não ensinam que todos os homens são irmãos, que são todos filhos de um pai comum, que é Deus? Ora, deveria haver partidos entre os filhos de Deus? Não é uma ofensa ao Criador? porque é próprio dos partidos armar os homens uns contra os outros; e pode a imaginação conceber maior crime que armar os filhos de Deus uns contra os outros?

“Tais são, senhor, as reflexões que julguei dever submeter à vossa apreciação. Talvez fosse oportuno submetê-las, também, à dos benevolentes Espíritos que guiam os trabalhos do Espiritismo, a fim de conhecer a sua opinião. Essa questão talvez seja mais grave do que parece à primeira vista. De minha parte, repugnar-me-ia pertencer a um partido. Creio que o Espiritismo deve considerar os partidos como uma ofensa a Deus.”

Estamos perfeitamente de acordo com o nosso honrado correspondente, cuja intenção só podemos louvar. Contudo, cremos que seus escrúpulos são um pouco exagerados no caso de que se trata, sem dúvida por não ter examinado suficientemente a questão.

A palavra partido  implica, por sua etimologia, a ideia de divisão, de cisão e, por conseguinte, a de luta, de agressão, de violência, de intolerância, de ódio, de animosidade, de vingança, coisas todas contrárias ao espírito do Espiritismo. Não tendo o Espiritismo nenhum desses caracteres, pois que os repudia, por suas tendências mesmas, não é um partido na acepção vulgar da palavra, e nosso correspondente tem muitíssima razão para repelir a qualificação deste ponto de vista.

Mas ao nome de partido  se liga também a ideia de uma força, física ou moral, bastante forte para pesar na balança, bastante preponderante para que se possa contar com ela; aplicando-o ao Espiritismo, pouco ou nada conhecido, é dar-lhe um ato de notória existência, uma posição entre as opiniões, constatar a sua importância e, como consequência, provocar o seu exame, o que ele não cessa de pedir. Sob esse aspecto, devia repudiar tanto menos essa qualificação, embora fazendo reservas sobre o sentido a ligar a isto, quanto, partida do alto, ela dava um desmentido oficial aos que pretendem que o Espiritismo seja um mito sem consistência, que se gabavam de o haver enterrado vinte vezes. Foi possível julgar do alcance desta palavra pelo ardor desajeitado com o qual certos órgãos da imprensa dela se apoderam para transformá-la num espantalho.

É por esta consideração, e neste sentido, que dissemos que o Espiritismo aceita o título de partido, já que lho dão, porque era engrandecê-lo aos olhos do público; mas não tivemos em vista fazê-lo perder sua qualidade essencial, a de doutrina filosófica moralizadora, que faz sua glória e a sua força. Longe de nós, pois, o pensamento de transformar em partidários  os adeptos de uma doutrina de paz, de tolerância, de caridade e de fraternidade. A palavra partido, aliás, nem sempre implica a ideia de luta, de sentimentos hostis; não se diz: o partido da paz? o partido das pessoas honestas? O Espiritismo já provou, e provará sempre, que pertence a esta categoria.

Quanto ao mais, faça o que fizer, o Espiritismo não pode deixar de ser um partido. Com efeito, que é um partido, abstração feita da ideia de luta? é uma opinião que não é partilhada senão por uma parte  da população. Mas essa qualificação só é dada às opiniões que contam um número de aderentes bastante considerável para chamar a atenção e representar um papel. Ora, não sendo ainda de todos, a opinião espírita é, necessariamente, um partido em relação às opiniões contrárias, que o combatem, até que os tenha unido a todos. Em virtude de seus princípios, ele não é agressivo; não se impõe; não subjuga; não pede para si senão a liberdade de pensar à sua maneira, seja; mas, desde que é atacado, tratado como pária, deve defender-se e reivindicar para si o que é de direito comum; ele o deve, é seu dever, sob pena de ser acusado de renegar sua causa, que é a de todos os seus irmãos em crença, que não poderia abandonar sem cobardia. Entra, pois, forçosamente na luta, por maior repugnância que experimente; não é inimigo de ninguém, é verdade, mas tem inimigos que procuram esmagá-lo; é por sua firmeza, por sua perseverança e por sua coragem que se lhes imporá; suas armas são completamente diversas das dos adversários, também é verdade; mas não deixa de ser para eles, e apesar deles, um partido, pois não lhe teriam dado este título se não o tivessem julgado bastante forte para os contrabalançar.

Tais são os motivos pelos quais julgamos que o Espiritismo podia aceitar a qualificação de partido, que lhe era dado por seus antagonistas, sem que o tenha tomado por si mesmo, porque era aceitar o repto que lhe era lançado. Pensamos que o podia, sem repudiar os seus princípios.


 

Perseguições

Pelo fim de 1864 foi pregada uma perseguição contra o Espiritismo em várias cidades do Sul, e seguida de alguns efeitos. Eis um extrato de um desses sermões, que nos foi enviado na ocasião, com todas as indicações necessárias para lhe constatar a autenticidade. Apreciarão nossa reserva em não citar os lugares, nem as pessoas:

“Fugi, cristãos, fugi desses homens perdidos e dessas mulheres más, que se entregam a práticas que a Igreja condena! Não tenhais nenhuma relação com esses loucos e essas loucas; abandonai-os a um insulamento absoluto. Fugi deles como de criaturas perigosas. Não os suporteis ao vosso lado e expulsai-os do lugar santo, cujo acesso é interdito em razão de sua indignidade.

“Vede esses homens perdidos  e essas mulheres más, que se ocultam na sombra, e que se reúnem em segredo para propagarem suas ignóbeis doutrinas, segui-os comigo em seus covis; não se diriam conspiradores de baixa condição, deleitando-se nas trevas para aí formarem seus infames complôs? Conspiram claramente, com efeito, ajudados por Satã, contra a nossa santa mãe Igreja, que Jesus estabeleceu para reinar na Terra. Que fazem ainda esses homens ímpios e essas mulheres sem vergonha? Blasfemam Deus; negam as sublimes verdades que, durante séculos, inspiraram o mais profundo respeito aos seus antepassados; adornam-se com uma falsa caridade, que só conhecem de nome, e dela se servem como manto para ocultar sua ambição! Introduzem-se, como lobos rapaces, em vossas residências para seduzir vossas filhas e vossas mulheres e vos perder a todos para sempre;  mas vós os expulsareis de vossa presença como seres malfeitores!

“Compreendestes, cristãos, quais são os que assinalo à vossa reprovação? São os espíritas! E por que não os indicaria eu? É tempo de os repelir e de amaldiçoar as suas doutrinas infernais!”

Os sermões deste gênero estavam na ordem do dia naquela época. Se exumamos este documento dos nossos arquivos, após quatro anos, é para responder à qualificação de partido perigoso, dada nestes últimos tempos aos espíritas por certos órgãos da imprensa. Na circunstância precitada, de que lado estava a agressão, a provocação, numa palavra, o espírito de partido? Podia-se levar mais longe a excitação ao ódio dos cidadãos uns contra os outros, à divisão das famílias? Tais pregações não lembram as da época desastrosa em que essas mesmas regiões eram ensanguentadas pelas guerras de religião, em que o pai estava armado contra o filho e o filho contra o pai? Não os julgamos do ponto de vista da caridade evangélica, mas do da prudência. É de boa política excitar assim as paixões fanáticas numa região onde o passado ainda está tão vivaz? onde a autoridade muitas vezes tem dificuldade em prevenir os conflitos? É prudente aí exibir novamente os pomos da discórdia? Então queriam renovar aí a cruzada contra os albigenses e a guerra das Cevenas? Se semelhantes sermões tivessem sido pregados contra os protestantes, represálias sangrentas teriam sido inevitáveis. Hoje se agarram ao Espiritismo porque, não tendo ainda existência legal, julgam que tudo é permitido a seu respeito.

Pois bem! qual tem sido, em todos os tempos, a atitude dos espíritas, diante dos ataques de que foi objeto? A de calma e de moderação. Não se deveria bendizer uma doutrina cuja força é bastante grande para pôr um freio às paixões turbulentas e vingativas? Notai, no entanto, que em parte alguma os espíritas formam um corpo constituído; que não estão arregimentados em congregações obedientes a uma palavra de ordem; que entre eles não há qualquer filiação patente ou secreta; eles sofrem, muito simplesmente e individualmente, a influência de uma ideia filosófica, e esta ideia, livremente aceita pela razão, e não imposta, é suficiente para modificar suas tendências, porque têm consciência de estar certos. Veem esta ideia crescer sem cessar, infiltrar-se em toda parte, cada dia ganhar terreno; têm fé no seu futuro, porque ela é segundo os princípios da eterna justiça, responde às necessidades sociais e se identifica com o progresso, cuja marcha é irresistível. Eis por que são calmos diante dos ataques de que ela é objeto; acreditariam dar uma prova de desconfiança em sua força, se a sustentassem pela violência e por meios materiais. Riem-se desses ataques, pois não têm como resultado senão propagá-la mais rapidamente, atestando a sua importância.

Mas os ataques não se limitam à ideia. Embora a cruzada contra os espíritas já não seja pregada abertamente, como o era há alguns anos, seus adversários não se tornaram mais benevolentes, nem mais tolerantes; a perseguição não é menos exercida, na ocasião, astutamente contra os indivíduos que ela atinge, não só na sua liberdade de consciência, que é um direito sagrado, mas mesmo em seus interesses materiais. Em falta de razão, os adversários do Espiritismo ainda esperam derrubá-lo pela calúnia e pela repressão. Sem dúvida se equivocam, mas, enquanto esperam, fazem algumas vítimas. Ora, não é preciso dissimular que a luta não terminou; os adeptos devem, pois, armar-se de coragem para marchar com firmeza na via que lhes é traçada.

É não só em vista do presente, mas, sobretudo, na previsão do futuro, que julgamos por bem reproduzir a instrução que se segue, sobre a qual chamamos seriamente a atenção dos adeptos. Além disso, ela é um desmentido dado aos que buscam representar o Espiritismo como um partido perigoso para a ordem social. Praza a Deus que todos os partidos não obedeçam senão a semelhantes inspirações: a paz não tardaria a reinar na Terra.

(Paris, 10 de dezembro de 1864 — Médium: Sr. Delanne)

Meus filhos: Estas perseguições, como tantas outras, cairão e não podem ser prejudiciais à causa do Espiritismo. Os Espíritos bons velam pela execução das ordens do Senhor; nada tendes a temer. Contudo, é uma advertência para vos manterdes em guarda e agir com prudência. É uma tempestade que rebenta, porque deveis esperar e ver rebentar muitas outras, conforme vos temos anunciado, pois não deveis pensar que os vossos inimigos se deem facilmente por vencidos. Não; eles lutarão passo a passo, até se convencerem de sua impotência. Deixai, pois, que lancem o seu veneno, sem vos inquietardes com o que possam dizer, porque bem sabeis que nada podem contra a Doutrina que, a despeito de tudo, deve triunfar. Eles bem o sentem, e é isto que os exaspera e redobra o seu furor.

É preciso esperar que na luta eles façam algumas vítimas, mas aí estará a prova pela qual o Senhor reconhecerá a coragem e a perseverança de seus verdadeiros servidores. Que mérito teríeis em triunfar sem esforço? Como valentes soldados, os feridos serão os mais recompensados. E que glória para os que saírem da refrega mutilados e cobertos de honrosas cicatrizes! Se um povo inimigo viesse invadir o vosso país, não sacrificaríeis os vossos bens, a vossa vida por sua independência? Por que, então, vos lamentaríeis de alguns arranhões que recebeis numa luta cujo desfecho inevitável conheceis, e na qual estais certo da vitória? Agradecei, pois, a Deus por vos haver colocado na linha de frente, para que sejais dos primeiros a recolher as palmas gloriosas, que serão o prêmio de vosso devotamento à santa causa. Agradecei aos vossos perseguidores, que vos permitem mostrar a vossa coragem e adquirir mais mérito. Não vades ao encontro da perseguição, não a busqueis; mas se ela vier, aceitai-a como uma das provas da vida, porque é uma delas, e das mais proveitosas ao vosso avanço, conforme a maneira pela qual a suportardes. Dá-se nesta prova como em todas as outras: por vossa conduta podeis fazer que ela seja fecunda, ou sem frutos para vós.

Vergonha aos que tiverem recuado e preferido o repouso da Terra ao que lhe estava preparado, porque o Senhor fará a conta de seus sacrifícios. Ele lhes dirá: “Que pedis, vós que nada perdestes, nada sacrificastes? que não renunciastes nem a uma noite do vosso sono, nem a um pouco de vossa mesa, nem deixastes um pedaço de vossas roupas no campo de batalha? Que fizestes durante esse tempo, enquanto os vossos irmãos iam ao encontro do perigo? Mantivestes-vos afastados, para deixar passar a tempestade e vos mostrar depois do perigo, ao passo que os vossos irmãos enfrentavam todas as dificuldades.”

Pensai nos mártires cristãos! Eles não tinham, como vós, comunicações incessantes do mundo invisível para reanimar a sua fé e, contudo, não recuavam ante o sacrifício, nem de sua vida, nem de seus bens. Aliás, o tempo dessas provas cruéis já passou; os sacrifícios sangrentos, as torturas, as fogueiras não se repetirão mais; vossas provas são mais morais do que materiais; serão, por conseguinte, menos penosas, mas não serão menos meritórias, porque tudo está proporcionado ao tempo. Hoje é o espírito que domina; eis por que o espírito sofre mais que o corpo. A predominância das provas espirituais sobre as provas materiais é um indício do adiantamento do espírito. Aliás, sabeis que muitos dos que sofreram pelo Cristianismo vêm concorrer para o coroamento da obra, e são os que sustentam a luta com mais coragem; assim, vêm juntar mais uma palma às que já haviam conquistado.

O que vos digo, meus amigos, não é para vos decidir a entrar estouvadamente na peleja e com a cabeça baixa. Não; ao contrário, vos digo: Agi com prudência e circunspeção, no interesse mesmo da Doutrina, que teria de suportar um zelo irrefletido; mas se um sacrifício for necessário, fazei-o sem murmurar e pensai que uma perda temporal nada é ao lado da compensação que por isso recebereis.

Não vos inquieteis com o futuro da Doutrina. Entre os que a combatem hoje, mais de um será o seu defensor amanhã. Os adversários se agitam; em dado momento quererão reunir-se para desferir um grande golpe e derrubar o edifício começado, mas seus esforços serão vãos e far-se-á a divisão em suas fileiras. Aproximam-se os tempos em que os acontecimentos favorecerão a eclosão do que semeais. Considerai a obra na qual trabalhais, sem vos preocupardes com o que possam dizer ou fazer. Vossos inimigos fazem tudo o que podem para vos levar além dos limites da moderação, a fim de poder dar um pretexto às suas agressões; seus insultos não têm outro objetivo, mas a vossa indiferença e vossa longanimidade os confundem. À violência, continuai, pois, a opor a doçura e a caridade; fazei o bem aos que vos querem mal, a fim de que possam distinguir, mais tarde, o verdadeiro do falso. Tendes uma arma poderosa: a do raciocínio. Servi-vos dela, mas não a mancheis jamais pela injúria, o supremo argumento dos que não têm boas razões para dar; esforçai-vos, enfim, pela dignidade de vossa conduta, para fazer respeitar em vós o título de espírita.

São Luís


 

Espiritismo Retrospectivo

A Mediunidade no Copo d’Água em 1706

(Em casa do duque de Orléans)

Pode-se compreender, sob o título geral de Espiritismo retrospectivo, os pensamentos, as doutrinas, as crenças e todos os fatos espíritas anteriores ao Espiritismo moderno, isto é, até 1850, época na qual começaram as observações e os estudos sobre essas espécies de fenômenos. Não foi senão em 1857 que tais observações foram coordenados em corpo de doutrina metódica e filosófica. Esta divisão nos parece útil à história do Espiritismo.

O fato seguinte é relatado nas Memórias do duque de Saint-Simon: [5]

“Lembro-me também de uma coisa que ele (o duque de Orléans) me contou no salão de Marly, quando de sua saída para a Itália, cuja singularidade, verificada pelo acontecimento, leva-me a não a omitir. Ele era curioso por todas as sortes de artes e de ciências e, com muitíssimo espírito, tivera em toda a sua vida a fraqueza tão comum na corte dos filhos de Henrique II, que Catarina de Médicis tinha, entre outros males, trazido da Itália. Tanto quanto era possível, ele tinha procurado ver o diabo, sem o ter conseguido, conforme me disse muitas vezes, e ver coisas extraordinárias e saber o futuro. La Sery tinha em casa uma filha de oito ou nove anos, aí nascida e que daí nunca havia saído, e que tinha a ignorância e a simplicidade dessa idade e dessa educação. Entre outros velhacos de curiosidades ocultas, dos quais o Sr. duque de Orléans tinha visto muitos em sua vida, apresentaram-lhe um que pretendia fazer ver, num copo cheio d’água, tudo quanto se quisesse saber. Ele pediu a alguém jovem e inocente para aí olhar, e essa pequena foi julgada adequada. Então se divertiram em querer saber o que se passava naquele momento em dois lugares afastados, e a menina via e descrevia o que estava vendo. Aquele homem pronunciava baixinho alguma coisa sobre o copo d’água e logo aí olhavam com sucesso.

“Os embustes de que tantas vezes tinha sido vítima o duque de Orléans, levaram-no a uma prova que pudesse tranquilizá-lo. Ordenou baixinho, ao ouvido de um de seus servos, que fosse imediatamente à casa da Sra. Nancré, ali examinasse quem estava, o que fazia, a posição e o mobiliário do quarto, bem como a situação de tudo que ali se passava e, sem perder um instante, nem falar a ninguém, vir dizer-lhe ao ouvido. Num abrir e fechar de olhos a missão foi executada, sem que ninguém se apercebesse do que era, permanecendo a menina sempre no quarto. Desde que o Sr. duque de Orléans foi informado, pediu à menina que visse quem estava em casa da Sra. de Nancré e o que ali se passava. Logo ela lhe contou palavra por palavra tudo o que tinha visto o enviado do Sr. duque de Orléans. A descrição do rosto, das figuras, das roupas, das pessoas que ali estavam, sua situação no quarto, as pessoas que jogavam em duas mesas diferentes, as que olhavam ou conversavam, sentadas ou de pé, a disposição dos móveis, numa palavra, tudo. Num instante o Sr. duque de Orléans lá mandou Nancré, que relatou ter encontrado tudo como a menina havia dito e como o lacaio que lá tinha estado havia contado ao ouvido do Sr. duque de Orléans.

“Ele quase não me falava dessas coisas, porque eu tomava a liberdade de o envergonhar. Tomei a de o injuriar  neste caso e de lhe dizer que julgava poder desviá-lo de ter fé e se divertir com esses sortilégios, sobretudo numa ocasião em que ele devia ter o espírito ocupado com tantas coisas importantes. ‘Isto não é tudo, disse-me ele, e não vos contei isto senão para chegar ao resto.’ E, imediatamente, contou-me que, encorajado pela exatidão do que vira a menina no quarto da senhora de Nancré, ele quisera ver algo de mais importante, e o que se passaria à morte do rei, mas sem pesquisar a data, que não se podia ver no copo. Então perguntou de chofre à menina, que jamais ouvira falar de Versalhes, nem visto ninguém da corte, senão ele. Ela olhou e lhe explicou demoradamente tudo o que via. Fez com exatidão a descrição do quarto do rei em Versalhes e o mobiliário que, de fato, ali se achava por ocasião de sua morte. Ela o descreveu perfeitamente em seu leito, e que se achava no quarto, perto da cama, um menino comportado, seguro pela senhora de Ventadour, com o que gritou, porque a tinha visto na casa da senhorita de Sery. Ela lhes deu a conhecer madame de Maintenon, o rosto singular de Fayon, a Sra. duquesa de Orléans, a Sra. duquesa e a Sra. princesa de Conti; gritou ao Sr. duque de Orléans; numa palavra, deu-lhe a conhecer o que ali via de príncipes, de senhores, de domésticos, de lacaios. Quando acabou de dizer tudo, surpreso por que ela não lhe tinha referido ‘Monseigneur’, monsenhor o duque de Bourgogne, monsenhor o duque de Berry, perguntou-lhe se não via tais e tais figuras. Ela respondeu constantemente que não e repetiu as que via. Era o que o Sr. duque de Orléans não podia compreender e de que se admirou muito comigo, em vão procurando a razão.

“O acontecimento o explicou. Estava-se, então, em 1706. Os quatro estavam então cheios de vida e de saúde, e os quatro tinham morrido antes do rei. Foi a mesma coisa com o Sr. príncipe, com o Sr. duque e o Sr. príncipe de Conti, que ela não viu, enquanto viu os filhos dos dois últimos, o Sr. du Maine, os seus, e o Sr. conde de Toulouse. Mas até o acontecimento isto ficou na obscuridade. Terminada esta curiosidade, o Sr. duque de Orléans quis saber o que aconteceria consigo. Então não foi mais o copo d’água. O homem que lá estava ofereceu-lhe para lhe mostrar, como se pintado na parede da sala, desde que ela não tivesse medo de ver; e ao cabo de um quarto de hora de algumas afetações diante de todos, a figura do Sr. duque de Orléans, vestido como estava então e em tamanho natural, apareceu de repente na parede, como em pintura, com uma coroa na cabeça. Nem era da França, nem da Espanha, nem da Inglaterra, nem imperial; o Sr. duque de Orléans, que a considerou com os olhos arregalados, jamais pôde adivinhá-la e jamais tinha visto uma semelhante; tinha apenas quatro círculos e nada no topo. Essa coroa lhe cobria a cabeça.

“Da obscuridade precedente e desta, aproveitei a ocasião para lhe mostrar novamente a vaidade dessas espécies de curiosidades, as justas ilusões do diabo, que Deus permite para punir curiosidades, que proíbe, o nada e as trevas que daí resultam, em vez da luz e da satisfação que nelas se buscam. Seguramente ele estava bem longe de ser regente do reino e de o imaginar. Talvez fosse o que lhe anunciava essa coroa singular. Tudo isto se passara em Paris, em casa de sua amante, em presença de sua mais estreita intimidade, na véspera do dia em que mo contou, e eu o achei tão extraordinário que aqui lhe dei lugar, não para o aprovar, mas para o registrar.”

A veracidade do duque de Saint-Simon é tanto menos suspeita quanto ele se opunha a essas espécies de ideias; não se pode, pois, duvidar que tenha registrado fielmente o relato do duque de Orléans. Quanto ao fato em si mesmo, não é provável que o duque o tivesse inventado ou exagerado. Os fenômenos que se produzem em nossos dias, aliás, provam a sua possibilidade; o que, então, passava por algo de maravilhoso, é agora um fato muito natural. Certamente não se o pode levar à conta da imaginação da menina que, desconhecida do indivíduo, não lhe podia servir de comparsa. As palavras pronunciadas sobre o copo d’água não tinham, provavelmente, outro objetivo senão dar ao fenômeno uma aparência misteriosa e cabalística, segundo as crenças da época; mas podiam muito bem exercer uma ação magnética inconsciente, e isto com tanto mais razão quanto aquele homem parecia dotado de uma vontade enérgica. Quanto ao fato do quadro que ele fez aparecer na parede, até o momento não se lhe pode dar nenhuma explicação.

Aliás, a magnetização prévia da água não parece ser indispensável. Um dos nossos correspondentes da Espanha nos citava, há alguns dias, o seguinte fato, que se passara sob os seus olhos há cerca de quinze anos, numa época e numa região onde o Espiritismo era desconhecido e quando ele mesmo levava a incredulidade até os últimos limites. Em sua família tinham ouvido falar da faculdade que têm certas pessoas de ver numa garrafa cheia d’água, e a isso não ligavam mais importância do que às crendices populares. Não obstante, quiseram experimentar por curiosidade. Uma moça, após um instante de concentração, viu um parente dele, do qual fez o retrato exato; viu-o numa montanha, a algumas léguas dali, onde não podiam supor que estivesse, depois descer num barranco, subir de novo, fazer diversas idas e vindas. Quando o indivíduo regressou e lhe disseram de onde vinha e o que tinha feito, ficou muito surpreso, pois não havia comunicado a ninguém a sua intenção. Ainda aqui a imaginação está completamente fora de causa, porque o pensamento de nenhum dos assistentes podia agir sobre o espírito da moça.

Sendo a influência da imaginação a grande objeção que opõem a esse gênero de fenômenos, como a todos os da mediunidade em geral, não se poderiam colher com muito cuidado os casos em que é demonstrado que essa influência não se pode dar. O fato seguinte é um exemplo não menos concludente.

Outro assinante nosso de Palermo, na Sicília, esteve ultimamente em Paris; em sua ausência, a filha, que jamais veio a Paris, recebeu o número da Revista, onde se trata do copo d'água; quis experimentar, e seu desejo era ver o pai. Não o viu, mas viu várias ruas que, pela descrição que fez ao lhe escrever, ele reconheceu facilmente como sendo as ruas da Paz, Castiglione e Rivoli. Ora, essas ruas eram precisamente aquelas por onde ele havia passado no mesmo dia em que a experiência foi feita. Assim, aquela jovem senhora não vê o pai, que conhece, que deseja ver, sobre o qual concentra o pensamento, ao passo que vê o caminho que ele percorreu, e que ela não conhecia. Que razão dar a essa bizarrice? Os Espíritos nos disseram que as coisas se haviam passado dessa maneira para dar uma prova irrecusável de que a imaginação nada tinha a ver com o caso.

Pelas reflexões que seguem, completaremos o que temos dito sobre o mesmo assunto no número de junho.

O copo, com ou sem água, assim como a garrafa, evidentemente representam, neste fenômeno, o papel de agentes hipnóticos; a concentração da vista e do pensamento em um ponto provoca um maior ou menor desprendimento da alma e, em consequência, o desenvolvimento da visão psíquica. (Vide a Revista de janeiro de 1860: Detalhes sobre o hipnotismo. )

Esse gênero de mediunidade pode levar a modos especiais de manifestações, a percepções novas; é um meio a mais de constatar a existência e a independência da alma e, por isto mesmo, um assunto de estudo muito interessante; mas, como dissemos, seria erro pensar que aí esteja um meio melhor que outro de saber tudo quanto se deseja, porque há coisas que nos devem ficar ocultas, ou que não podem ser reveladas senão na ocasião certa. Quando é chegado o momento de as conhecer, fica-se sabendo por uma das mil maneiras de que dispõem os Espíritos, quer se seja ou não espírita; mas o copo d’água não é mais eficaz que um outro. Pelo fato de os Espíritos se haverem dele servido para dar conselhos salutares para a saúde, não se segue que seja um processo infalível para triunfar de todos os males, mesmo dos que não devem ser curados. Se uma cura for possível pelos Espíritos, estes últimos darão seus conselhos por um meio mediúnico qualquer e por qualquer médium apto para esse gênero de comunicação. A eficácia está na prescrição, e não na maneira por que é dada.

O copo d’água também não é uma garantia contra a intromissão dos Espíritos maus; a experiência já provou que os Espíritos mal-intencionados se servem desse meio como de outros para induzir em erro e abusar da credulidade. Em que seria possível opor-lhes um obstáculo mais poderoso? Temo-lo dito muitas vezes, e nunca o repetiremos em demasia: Não há mediunidade ao abrigo dos Espíritos maus, e não existe nenhum processo material para os afastar. O melhor, o único preservativo está em si próprio; é por sua própria depuração que se os afasta, como pela limpeza do corpo se preserva contra os insetos nocivos.

A Reencarnação no Japão

São Francisco Xavier e o bonzo japonês

O relato seguinte é extraído da história de São Francisco Xavier, pelo padre Bouhours. É uma discussão teológica entre um bonzo japonês, chamado Tucarondono, e São Francisco Xavier, então missionário no Japão.

“Não sei se me conheces ou, melhor dizendo, se me reconheces, disse Tucarondono a Francisco Xavier. — Não me lembro de vos ter visto alguma vez, respondeu-lhe este.

“Então o bonzo, rebentando de riso, e se voltando para outros bonzos, seus confrades, que trouxera consigo: Bem vejo, disse-lhes, que não teria dificuldade em vencer um homem que tratou comigo mais de cem vezes, e que dá mostras de jamais me ter visto. Em seguida, olhando Xavier com um sorriso de desprezo: Nada te resta das mercadorias que me vendestes no porto de Frénasoma?

“Em verdade, replicou Xavier com uma expressão sempre serena e modesta, em minha vida não fui negociante e jamais estive em Frénasoma. — Ah! que esquecimento e que tolice! replicou o bonzo, fazendo-se de admirado e continuando suas risadas: — Que! é possível que tenhas esquecido isto? — Avivai-me a lembrança, prosseguiu docemente o Pai, vós que tendes mais espírito e mais memória que eu. — Bem que o quero, disse o bonzo, todo orgulhoso do elogio que Xavier lhe havia feito. Há exatamente mil e quinhentos anos, tu e eu éramos mercadores, fazíamos o nosso comércio em Frénasoma, e te comprei cem peças de seda muito barato. Lembras-te agora?

“O santo avaliou até onde queria chegar o bonzo e lhe perguntou, honestamente, que idade tinha. — Tenho cinqüenta e dois anos, disse Tucarondono. — Como é possível, redargüiu Xavier, que fosses mercador há quinze séculos, se não estais no mundo senão há meio século, e que negociássemos naquele tempo, em Frénasoma, se vós e a maioria dos outros bonzos ensinais que o Japão não passava de um deserto há mil e quinhentos anos?

 “Escuta-me, disse o bonzo: tu ouvirás os oráculos e concordarás que temos mais conhecimento das coisas passadas, do que vós outros o tendes das coisas presentes.

“Deves, pois, saber, que o mundo jamais teve começo, e que as almas, a bem dizer, não morrem. A alma se desprende do corpo onde estava encerrada; busca outro, novo e vigoroso, onde renascemos, ora com o sexo mais nobre, ora com o sexo imperfeito, conforme as diversas constelações do céu e os diferentes aspectos da Lua.

Essas mudanças de nascimento fazem que também mudem as nossas sortes. Ora, é a recompensa dos que viveram santamente ter a lembrança fresca de todas as vidas que se levou nos séculos passados e de se representar em si mesmo todo inteiro, tal qual se foi desde a eternidade, sob a forma de príncipe, de mercador, de homem de letras, de guerreiro e sob outras figuras.

Ao contrário, quem quer que, como tu, saiba tão pouco seus próprios negócios, ignore o que foi e o que fez durante uma infinidade de séculos, mostra que seus crimes o tornaram digno da morte tantas vezes, que perdeu a lembrança das vidas que mudou.”

Observação — Não se pode supor que Francisco Xavier tenha inventado esta história, que não lhe era favorável, nem suspeitar da boa-fé de seu historiador, o padre Bouhours. Por outro lado, não é menos certo que era uma armadilha estendida ao missionário pelo bonzo, pois sabemos que a lembrança das existências anteriores é um caso excepcional e que, em todo o caso, jamais comporta detalhes tão precisos. Mas o que ressalta do fato é que a doutrina da reencarnação existia no Japão naquela época, em condições idênticas, salvo a intervenção das constelações e da Lua, às que hoje são ensinadas pelos Espíritos. Uma outra similitude não menos notável, é a ideia de que a precisão da lembrança é um sinal de superioridade; com efeito, os Espíritos nos dizem que nos mundos superiores à Terra, onde o corpo é menos material e a alma encontra-se num estado normal de desprendimento, a lembrança do passado é uma faculdade comum a todos; aí a gente se lembra das existências anteriores, como nos lembramos dos primeiros anos da nossa infância. É bem evidente que os japoneses não chegaram a este grau de desmaterialização, que não existe na Terra, mas o fato prova que dele têm a intuição.


 

Carta do Sr. Monico — Ao Jornal Mahouna, de Guelma, Argélia

O jornal Mahouna  de 26 de junho de 1868 publicou a carta seguinte, que reproduzimos com prazer, dirigindo ao autor nossas mais sinceras felicitações.

“Senhor diretor,

“Acabo de ler um artigo no Indépendant, de Constantina, de 20 do corrente, apreciando o papel pouco delicado que teria representado um certo Sr. Home, segundo esse jornal (na Inglaterra), começando por estas linhas: ‘Os espíritas, sucessores dos feiticeiros da Idade Média, não se limitam mais a indicar aos imbecis, seus adeptos, tesouros ocultos: arranjam-se para os descobrir em seu proveito.’ Segue a apreciação, etc.

“Permiti-me, senhor redator, servir-me do vosso honrado jornal para protestar energicamente contra o autor dessas linhas tão pouco literárias e tão ofensivas para os adeptos dessas novas ideias, ideias certamente muito desconhecidas, já que são tão falsamente apreciadas.

“O Espiritismo sucede aos feiticeiros, como a astronomia sucedeu aos astrólogos. Quer dizer que esta ciência, hoje tão espalhada, que esclareceu o homem, dando-lhe a conhecer as imensidades siderais, que as religiões primitivas tinham conformado ao seu ideal e para servir aos seus interesses, esposou todas as elucubrações fantásticas e grosseiras dos astrólogos de outrora? Por certo não o pensais.

“Do mesmo modo, o Espiritismo, tão caluniado pelos que não o conhecem, vem destruir os erros dos feiticeiros e revelar uma ciência nova à Humanidade. Vem explicar esses fenômenos até agora incompreendidos, que a ignorância popular atribuía ao milagre.

“Longe de esposar as superstições de uma outra época, que os feiticeiros, os mágicos, etc., toda uma multidão de párias rebeldes à civilização, empregando esses meios a fim de explorar a ignorância e especular com os vícios, ele vem, digo eu, destruí-los e, ao mesmo tempo, trazer ao serviço do homem uma força imensa, muito superior a todas as trazidas pelos filósofos antigos e modernos.

“Esta força é: conhecimento do passado e do futuro reservado ao homem, respondendo a estas perguntas: De onde venho? Para onde vou?

“Esta dúvida terrível, que pesava sobre a consciência humana, o Espiritismo vem explicar, não só teoricamente e por abstração, mas materialmente, isto é, por provas acessíveis aos nossos sentidos, e fora de todo aforismo e sentença teológica.

“As antigas opiniões, muitas vezes nascidas da ignorância e da fantasia, desaparecem pouco a pouco para dar lugar a convicções novas, fundadas na observação, e cuja realidade é das mais manifestas; o traço dos velhos preconceitos se apaga, e o homem mais refletido, estudando com mais atenção esses fenômenos reputados sobrenaturais, neles encontrou o produto de uma vontade, manifestando-se fora dele.

“Em razão dessa manifestação, o Universo aparece, para o espírita, como um mecanismo conduzido por um número infinito de inteligências, um imenso governo em que cada ser inteligente tem a sua parte de ação sob o olhar de Deus, quer no estado de homem, quer no de alma ou Espírito. Para ele a morte não é um espantalho, que faz tremer, nem o nada; não é senão o ponto extremo de uma fase do ser e o começo de uma outra, isto é, muito simplesmente uma transformação.

“Paro aqui, pois não tenho a pretensão de dar um curso de Espiritismo e, ainda menos, a de convencer o meu adversário. Mas não posso deixar ofenderem uma doutrina que proclama como princípio a liberdade de consciência e as máximas do mais depurado Cristianismo, sem protestar com toda a minha alma.

“O Espiritismo tem por inimigos os que não o estudaram, nem na sua parte filosófica, nem na sua parte experimental; é por isso que o primeiro que aparece, sem se dar ao trabalho de esclarecer-se, arroga-se o direito, a priori, de o tratar de absurdo.

“Mas, infelizmente para o homem, sempre foi assim, cada vez que surgiu uma nova ideia. Aí está a História para o provar.

“Estando o Espiritismo de acordo com as ciências de nossa época (Vide A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo), seus mais autorizados representantes e todos os escritos saídos de seu seio declararam que ele estava pronto para aceitar todas as ideias  baseadas nas verdades científicas e rejeitar todas as que fossem reconhecidas como eivadas de erro; numa palavra, ele quer marchar à frente do progresso humano.

“Os adeptos desta doutrina, em vez de se ocultarem na sombra e de se reunirem nas catacumbas, procedem de modo inteiramente diverso. É em plena luz e publicamente que emitem suas ideias e se exercitam na prática de seus princípios. Na França a opinião espírita está representada por cinco revistas ou jornais; na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e na Rússia, por quinze folhas hebdomadárias; nos Estados Unidos da América, esse país de liberdade e de progresso em todos os gêneros, por numerosos jornais ou revistas, e os adeptos do Espiritismo nesse país já se contam por milhões, adeptos que o autor do artigo do Indépendant, involuntariamente e sem reflexão, trata de imbecis.

“Nossa época, tão distanciada dos atos de intolerância religiosa, que se ri das disputas teológicas e dos raios do Vaticano, deveria inspirar melhor o respeito às opiniões contrárias.

“Aceitai, etc.”

Jules Monico

O mesmo jornal, de 17 de julho, contém outro artigo do Sr. Monico, que anuncia dever publicar uma série em resposta a alguns ataques dos antagonistas do Espiritismo. Aí vemos igualmente o anúncio, como estando no prelo, de uma brochura do mesmo autor, intitulada: Liberdade de consciência, e que deve aparecer na primeira quinzena do mês de agosto. Preço: 1 franco.


 

Bibliografia — O Espiritismo em Lyon

O Espiritismo em Lyon, jornal bimensal, que aparece em Lyon desde 15 de fevereiro, prossegue com perseverança e sucesso o curso de sua publicação. Como dissemos há tempos e como ele mesmo o diz, não é um jornal de pretensões literárias; seu objetivo, mais modesto, é popularizar, pela modicidade do preço, as sãs ideias sobre a Doutrina. É feito fora de qualquer pensamento de especulação, porque o excedente dos gastos materiais é lançado na caixa de socorro. É, pois, uma obra de devotamento da parte dos que empreenderam essa pesada tarefa. Pelo bom espírito em que é concebida a sua redação e o louvável objetivo a que se propõe, não pode deixar de granjear as simpatias e o estímulo de todos os espíritas sinceros. Lemos com vivo prazer, no topo dos últimos números, um aviso, pelo qual informa que o Sr. senador prefeito do Rhône autorizou sua venda na via pública. Fazemos votos por sua prosperidade, pois deve aproveitar à Doutrina e aos infelizes. A falta de espaço nos obriga a adiar para o próximo número as reflexões que nos sugeriram alguns de seus artigos, entre os quais notamos um (No de 15 de julho) sabiamente concebido, sobre o processo do Sr. Home.

Allan Kardec




[1] Como o fígado não é responsável pela bile que secreta.

[2] Para resposta a várias proposições contidas neste artigo, vide O Livro dos Médiuns, cap. IV, “Dos sistemas”. — Introdução de O Livro dos Espíritos. — O que é o Espiritismo, cap. I, “Pequena conferência”.

[3] Revista Espírita de outubro de 1859.

[4] Publicado em brochura separada. Preço: 15 c.; pelo correio: 20 c.

[5] Ver o número de junho de 1868.

Setembro de 1868

Aumento e Diminuição do Volume da Terra — A Propósito de A Gênese

Nosso correspondente de Sens, cuja observação sobre o partido espírita  publicamos em nosso número precedente, em sua carta juntou uma outra, sobre o aumento do volume da Terra, e que a abundância de matérias nos obrigou a adiar.

“Peço-vos ainda, senhor, permissão para vos submeter uma reflexão que me veio, lendo vossa última obra sobre A Gênese. Na página 161 há isto: ‘Na época em que o globo terrestre era uma massa incandescente, não continha um átomo a mais nem a menos do que hoje.’ Entretanto, os Espíritos disseram que não há duas leis diferentes para a formação dos corpos principais e dos corpos secundários; e, depois, li em algum lugar que as plantas restituem à terra mais do que dela recebem. Não sei se isto está bem constatado e cientificamente demonstrado, mas, segundo este e outros dados, sem falar dos aerólitos, que hoje são um fato inconteste, não poderia acontecer que um dia se descobrisse que o nosso globo adquire ainda maior volume, o que contradiria essa asserção?”

É bem verdade que as plantas restituem ao solo mais do que dele tiram; mas o globo não se compõe apenas da parte sólida; a atmosfera dele faz parte integrante. Ora, está provado que as plantas se nutrem tanto, e mesmo mais, dos fluidos aeriformes tirados da atmosfera, quanto dos elementos sólidos absorvidos pelas raízes. Tendo em vista a quantidade de plantas que viveram na Terra desde a sua origem, sem falar dos animais, os fluidos atmosféricos de longa data estariam esgotados, se não se alimentassem numa fonte permanente. Esta fonte está na decomposição das matérias sólidas, orgânicas e inorgânicas, que liberam para a atmosfera o oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o carbono e outros gases que dela haviam subtraído. Há, pois, uma troca constante, uma transformação perpétua, que se realizam na superfície do globo. Dá-se aqui exatamente como a água, que se eleva em vapores e recai em chuva, e cuja quantidade é sempre a mesma. O crescimento dos vegetais e dos animais, operando-se com o auxílio dos elementos constitutivos do globo, seus restos, por mais consideráveis que sejam, não acrescentam um átomo à massa. Se a parte sólida do globo aumentasse por essa causa, de maneira permanente, seria à custa da atmosfera, que diminuiria outro tanto, e acabaria sendo imprópria à vida.

Na origem da Terra, as primeiras camadas geológicas se formaram de matérias sólidas, momentaneamente volatilizadas pelo efeito da alta temperatura, e que, mais tarde, condensadas pelo resfriamento, se precipitaram. Incontestavelmente elas elevaram um pouco a superfície do solo, que, sem isto, se teria detido na camada granítica, mas sem nada acrescentar à massa total, visto que não passava de um deslocamento da matéria. Quando a atmosfera, purgada dos elementos estranhos que mantinha em suspensão, encontrou-se em seu estado normal, as coisas seguiam o curso regular, que tiveram desde então. Hoje, a menor modificação na constituição da atmosfera acarretaria forçosamente a destruição dos seres vivos atuais. Mas, então, provavelmente se formariam novas raças, em outras condições de vitalidade.

Considerada deste ponto de vista, a massa  do globo, isto é, a soma das moléculas que compõem o conjunto de suas partes sólidas, líquidas e gasosas, é incontestavelmente a mesma desde a sua origem. Se experimentasse uma dilatação ou uma condensação, seu volume  aumentaria ou diminuiria, sem que a massa  sofresse qualquer alteração. Se, pois, a Terra aumentasse de massa pela adjunção de novas moléculas, seria por efeito de uma causa estranha, já que não poderá tirar de si mesma os elementos necessários ao seu incremento.

Algumas pessoas pensam que a queda de aerólitos pode ser uma causa de aumento do volume da Terra; outras, sem se preocuparem com as vias e os meios, fundam-se no princípio de que, desde que os animais e as plantas nascem, crescem e morrem, os corpos planetários devem estar submetidos à mesma lei.

Antes de mais, a origem dos aerólitos ainda é problemática; durante muito tempo pensou-se mesmo que podiam formar-se nas regiões superiores da atmosfera terrestre, pela condensação das matérias gaseificadas provenientes da própria Terra; mas, supondo que tenham uma fonte estranha ao nosso globo, que provenham de restos de planetas detonados, ou que se formem espontaneamente pela condensação da matéria cósmica interplanetária, caso em que poderiam ser considerados como abortos de planetas, sua queda acidental não poderia levar a um acréscimo sensível e, ainda, menos, regular, do nosso globo.

Por outro lado, a assimilação que se pretende fazer entre as plantas e os planetas, carece de justeza, porque seria fazer destes últimos seres orgânicos, o que não é admissível.

Segundo outra opinião, o globo pode aumentar pelo afluxo da matéria cósmica interplanetária, que recolhe através de seu percurso no espaço, e que deposita incessantemente novas moléculas em sua superfície. Esta doutrina nada tem de irracional, porquanto, neste caso, o crescimento se daria por adjunção e superposição, como para todos os corpos orgânicos; mas, além de se poder perguntar onde pararia esse crescimento, ela é ainda muito hipotética para ser admitida como princípio. Não passa de um sistema combatido por sistemas contrários, porque, segundo outros, a Terra, em vez de adquirir, consome, por efeito de seu movimento, isto é, abandona no espaço uma parte de suas moléculas e, assim, em vez de aumentar, ela diminui. Entre estas duas teorias, a ciência positiva ainda não se pronunciou, e é provável que não o poderá tão cedo, por falta de meios materiais de observação. Nisto fica-se reduzido a formular raciocínios baseados nas leis conhecidas, o que pode dar probabilidades, mas ainda não dá certezas.

Eis, em resposta à questão proposta, a opinião motivada do eminente Espírito que ditou os sábios estudos uranográficos, referidos no capítulo VI de A Gênese.

(Sociedade de Paris, julho de 1868 — Médium: Sr. Desliens)

“Os mundos se esgotam envelhecendo e tendem a dissolver-se para servir de elementos de formação de outros universos. Restituem, pouco a pouco, ao fluido cósmico universal do espaço o que dele haviam tirado para se formar. Além disso, todos os corpos se desgastam pelo atrito; o movimento rápido e incessante do globo através do fluido cósmico tem por efeito diminuir constantemente a sua massa, embora numa quantidade inapreciável, num dado tempo.[1]

“Em minha opinião, a existência dos mundos pode dividir-se em três períodos:

Primeiro período — Condensação da matéria, durante a qual o volume do globo diminui consideravelmente, mas a massa continua a mesma. É o período da infância. — Segundo período — Contração, solidificação da crosta, eclosão dos germes, desenvolvimento da vida até o aparecimento do tipo mais perfectível: é a idade da virilidade; perde, mas muito pouco, seus elementos constitutivos. À medida que seus habitantes progridem espiritualmente, ele passa ao período de diminuição material; perde, não só por causa do atrito, mas também pela desagregação das moléculas, semelhante a uma pedra dura que, roída pelo tempo, acaba por se transformar em pó. Em seu duplo movimento de rotação e de translação, deixa no espaço parcelas fluidificadas de sua substância, até o momento em que a sua dissolução for completa.

“Mas, então, como a força atrativa está na razão da massa — eu não digo do volume — diminuindo a massa, suas condições de equilíbrio no espaço se modificam; dominado por globos mais poderosos, aos quais não pode constituir contrapeso, produzem-se desvios em seus movimentos, em sua posição em relação ao Sol; sofre novas influências e daí nascem mudanças nas condições de existência dos seus habitantes, à espera que ele desapareça do cenário do mundo.

“Assim, nascimento, vida e morte; infância, virilidade e decrepitude, tais são as três fases pelas quais passa toda aglomeração de matéria orgânica ou inorgânica. Só o Espírito, que não é matéria, é indestrutível.”

Galileu

Em que se tornam os habitantes de um mundo destruído? Fazem o que fazem os habitantes de uma casa em demolição: vão se estabelecer alhures, em melhores condições. Para eles os globos não passam de estações temporárias; mas é provável que quando um globo tiver chegado ao seu período de dissolução, há muito tempo tenha deixado de ser habitado, porque, então, já não pode fornecer os elementos necessários à manutenção da vida.

Tudo é problema insolúvel na Natureza, desde que se faça abstração do elemento espiritual; tudo se explica, ao contrário, claramente e logicamente, desde que se leve em conta este elemento.

É de notar que, conforme a ordem de ideias expressas na comunicação acima, o fim de um mundo coincidiria com a maior soma de progresso de seus habitantes, compatível com a natureza desse mundo, em vez de ser o sinal de uma reprovação que votaria a maior parte deles à danação eterna.


 

Alma da Terra

A questão precedente nos leva naturalmente à da alma da Terra, várias vezes debatida e diversamente interpretada.

A alma da Terra representa um papel principal na teoria da formação do nosso globo pela incrustação de quatro planetas, teoria cuja impossibilidade material demonstramos, conforme as observações geológicas e os dados da ciência experimental. (Vide A Gênese, cap. VII, nos 4 e seguintes.) No que concerne à alma, apoiar-nos-emos igualmente sobre os fatos.

Esta questão prejulga uma outra: A Terra é um ser vivo? Sabemos que certos filósofos, mais sistemáticos do que práticos, consideram a Terra e todos os planetas como seres animados, fundando-se no princípio de que tudo vive em a Natureza, desde o mineral até o homem. Antes de mais, cremos que há uma diferença capital entre o movimento molecular de atração e de repulsão, de agregação e de desagregação do mineral e o princípio vital da planta; há aí efeitos diferentes, que acusam causas diferentes ou, pelo menos, uma profunda modificação na causa primeira, se esta for única. ( A Gênese, cap. X, nos 16 a 19.)

Mas, admitindo, por um instante, que o princípio da vida tenha sua fonte no movimento molecular, não se poderá contestar que seja ainda mais rudimentar no mineral do que na planta; ora, daí a uma alma, cujo atributo essencial é a inteligência, a distância é grande. Cremos que ninguém pensou em dotar um calhau ou um pedaço de ferro com a faculdade de pensar, de querer e de compreender. Fazendo mesmo todas as concessões possíveis a este sistema, isto é, colocando-nos do ponto de vista dos que confundem o princípio vital com a alma propriamente dita, a alma do mineral nele não estaria senão em estado de germe latente, pois que nele não se revela por nenhuma manifestação.

Um fato não menos patente que o de que acabamos de falar é que o desenvolvimento orgânico está sempre em relação com o desenvolvimento do princípio inteligente. O organismo se completa à medida que se multiplicam as faculdades da alma. A escala orgânica segue constantemente, em todos os seres, a progressão da inteligência, desde o pólipo até o homem, e não poderia ser de outro modo, desde que à alma é necessário um instrumento apropriado à importância das funções que deve desempenhar. De que serviria à ostra ter a inteligência do macaco, sem os órgãos necessários à sua manifestação? Se, pois, a Terra fosse um ser animado, servindo de corpo a uma alma especial, essa alma deveria ser ainda mais rudimentar  que a do pólipo, pois que a Terra não tem a mesma vitalidade da planta, ao passo que, pelo papel que se atribui a essa alma, sobretudo na teoria da incrustação, dela fazem um ser dotado de razão e do mais completo livre-arbítrio, um Espírito superior, numa palavra, o que nem é racional, nem conforme à lei geral, porque jamais um Espírito teria sido mais aprisionado e pior dotado. A ideia da alma da Terra, entendida neste sentido, tanto quanto a que faz da Terra um animal, deve, pois, ser arrolada entre as concepções sistemáticas e quiméricas.

Aliás, o mais ínfimo animal tem a liberdade de seus movimentos; vai aonde quer e ainda quando lhe apraz, enquanto os astros, esses pretensos seres vivos e animados por inteligências superiores, estariam sujeitos a movimentos perpetuamente automáticos, sem jamais poderem afastar-se de sua rota; seriam, na verdade, bem menos favorecidos que o último pulgão. Se, conforme a teoria da incrustação, as almas dos quatro planetas que formaram a Terra, tiveram a liberdade de reunir os seus invólucros, teriam a de ir aonde quisessem, de mudar à vontade as leis da mecânica celeste. Por que não mais a têm?

Há ideias que se refutam por si mesmas e sistemas que caem desde que se perscrutem seriamente as suas consequências. O Espiritismo seria ridicularizado de forma justa por seus adversários, se se fizesse o editor responsável de utopias que não suportam o exame. Se o ridículo não o matou, é porque só mata o que é ridículo.

Por alma da Terra pode entender-se, mais racionalmente, a coletividade dos Espíritos incumbidos da elaboração e da direção de seus elementos constitutivos, o que já supõe certo grau de adiantamento e de desenvolvimento intelectual; ou, melhor ainda: o Espírito a quem está confiada a alta direção dos destinos morais e do progresso de seus habitantes, missão que somente pode ser atribuída a um ser eminentemente superior em saber e em sabedoria. Em tal caso, esse Espírito não é, propriamente falando, a alma da Terra, porquanto não se acha encarnado nela, nem subordinado ao seu estado material. É um chefe preposto à sua direção, como um general o é ao comando de um exército.

Um Espírito, incumbido de missão tão importante qual a do governo de um mundo, não poderia ter caprichos, ou, então, teríamos de reconhecer em Deus a imprevidência de confiar a execução de suas leis a seres capazes de lhes contravir, a seu bel-prazer. Ora, segundo a doutrina da incrustação, a má-vontade da alma da Lua é que houvera dado causa a que a Terra ficasse incompleta.

Numerosas comunicações, dadas em diversos lugares, vieram confirmar esta maneira de encarar a questão da alma da Terra. Citaremos apenas uma, que em poucas palavras as resume todas.

(Sociedade Espírita de Bordeaux, abril de 1862)

A Terra não tem alma, que lhe pertença propriamente, porque não é um ser organizado, como os que são dotados de vida; tem-nos aos milhões, que são os Espíritos encarregados de seu equilíbrio, de sua harmonia, de sua vegetação, de seu calor, de sua luz, das estações, da encarnação dos animais, que velam, assim como a dos homens. Isto não quer dizer que tais Espíritos sejam a causa desses fenômenos: eles os presidem, como os funcionários de um governo presidem cada uma das engrenagens da administração.

A Terra progrediu à medida que se formou; progride sempre, sem jamais se deter, até o momento em que tiver atingido o máximo de sua perfeição. Tudo o que nela é vida e matéria progride ao mesmo tempo, porquanto, à medida que se realiza o progresso, os Espíritos encarregados de velar por ela e seus produtos, progridem por seu lado, pelo trabalho que lhes incumbe, ou cedem o lugar a Espíritos mais adiantados. Nesse momento ela chega a uma transição do mal ao bem, do medíocre ao belo.

Deus, criador, é a alma do Universo, de todos os mundos que gravitam no infinito, e os Espíritos incumbidos, em cada mundo, da execução de suas leis, são os agentes de sua vontade, sob a direção de um delegado superior. Esse delegado pertence, necessariamente, à ordem dos Espíritos mais elevados, porquanto seria injusto com a sabedoria divina crer que ela abandonasse ao capricho de uma criatura imperfeita o cuidado de velar pela realização do destino de milhões de suas próprias criaturas.

P. — Os Espíritos incumbidos da direção e da elaboração dos elementos constitutivos do nosso globo podem encarnar?

Resp. — Certamente, porque, no estado de encarnação, tendo uma ação mais direta sobre a matéria, podem fazer o que lhes seria impossível como Espíritos, assim como certas funções, por sua natureza, competem mais especialmente ao estado espiritual. A cada estado são conferidas missões particulares.

Os habitantes da Terra não trabalham por sua melhoria material? Considerai, então, todos os Espíritos encarnados como fazendo parte dos que estão encarregados de fazê-la progredir, ao mesmo tempo que progridem. É a coletividade de todas essas inteligências, encarnadas e desencarnadas, inclusive o delegado superior, que constitui, a bem dizer, a alma da Terra, da qual cada um de vós faz parte. Encarnados e desencarnados são as abelhas que trabalham na edificação da colmeia, sob a direção do Espírito-chefe. Este é a cabeça, os outros são os braços.

P. — Esse Espírito-chefe também pode encarnar?

Resp. — Sem dúvida alguma, quando recebe a missão, o que ocorre quando sua presença entre os homens é julgada necessária ao progresso.

Um dos vossos guias espirituais


 

Proteção do Espírito dos Santos Patronos

A pergunta seguinte nos foi proposta ultimamente por um dos nossos assinantes:

Pondo de lado todo preconceito de seita e de ideia mística, a qualificação de santo denota uma certa superioridade espiritual, porque, para merecer esse título, é preciso ter-se distinguido por atos meritórios quaisquer. De acordo com isto, e sendo a coisa considerada do ponto de vista espírita, os santos, sob cuja invocação nos colocam ao nascermos, não se tornam nossos protetores naturais, e quando se celebra a festa patronímica de alguém, aquele do qual tomou o nome não é atraído por simpatia e a ela não se associa, ao menos por pensamento, quando não por sua presença?

Há nesta pergunta dois pontos a considerar, e que devem ser examinados separadamente.

Os espíritas sabem, melhor que ninguém, que o pensamento atrai o pensamento, e que a simpatia dos Espíritos, sejam ou não beatificados, é solicitada por nossos sentimentos a seu respeito. Ora, o que é que determina, em geral, a escolha dos nomes? Uma veneração particular pelo santo que o tinha? admiração por suas virtudes? confiança em seus méritos? o pensamento de o dar como modelo ao recém-nascido? Perguntai à maioria dos que o escolhem se sabem quem foi, o que fez, quando viveu, por que se distinguiu, se conheciam uma só de suas ações. Se se excetuarem alguns santos cuja história é popular, quase todos são totalmente desconhecidos e, sem o calendário, o público nem mesmo saberia se tinham existido. Assim, nada pode, pois, atrair o seu pensamento antes para um do que para outro. Admitamos que, para certas pessoas, o título de santo baste e que se pode tomar um nome de confiança, desde que esteja na lista dos bem-aventurados, preparada pela Igreja, sem que seja preciso saber mais: é uma questão de fé.

Mas, então, para essas mesmas pessoas, quais são os motivos determinantes? Há dois que predominam quase sempre. O primeiro é, muitas vezes, o desejo de agradar a algum parente ou amigo, cujo amor-próprio se quer adular, dando seu nome ao recém-nascido, sobretudo se daquele espera alguma coisa, porque se fosse um pobre diabo, sem crédito e sem consistência, não lhe fariam esta honra. Nisto visam muito mais a proteção do homem que a do santo.

O segundo motivo é ainda mais mundano. O que se busca quase sempre num nome é a forma graciosa, uma consonância agradável. Sobretudo num certo mundo, querem nomes bem sofisticados, que tenham um cunho de distinção. Há outros que são repelidos impiedosamente, porque não agradam ao ouvido, nem à vaidade, mesmo que fossem de santos ou de santas mais dignos de veneração. E, depois, muitas vezes o nome é uma questão de moda, como a forma de um penteado.

É preciso convir que essas santas personagens em geral devem ser pouco tocadas pelos motivos da preferência que lhes concedem; na realidade, não têm nenhuma razão especial para se interessarem, mais que por outros, por aqueles que têm o seu nome, perante os quais são como esses parentes afastados, dos quais só se lembram quando esperam uma herança.

Os espíritas, que compreendem o princípio das relações afetuosas entre o mundo corporal e o mundo espiritual, agiriam de outro modo em tal circunstância. Ao nascer uma criança, os pais escolheriam, entre os Espíritos, beatificados ou não, antigos ou modernos, amigos, parentes ou estranhos à família, um daqueles que, com seu conhecimento, deram provas irrecusáveis de sua superioridade, por sua vida exemplar, pelos atos meritórios que praticavam, pela prática das virtudes recomendadas pelo Cristo: a caridade, a humildade, a abnegação, o devotamento desinteressado à causa da Humanidade, numa palavra, por tudo quanto sabem ser uma causa de adiantamento no mundo dos Espíritos; invocá-lo-iam solenemente e com fervor, pedindo-lhe que se unisse ao anjo-da-guarda da criança para a proteger na vida que vai percorrer, guiá-la com seus conselhos e suas boas inspirações; e em sinal de aliança daria a essa criança o nome do Espírito. O Espírito veria nessa escolha uma prova de simpatia e aceitaria com prazer uma missão que seria um testemunho de estima e de confiança.

Depois, à medida que a criança crescesse, ensinar-lhe-iam a história de seu protetor; contar-lhe-iam suas boas ações; ele saberia por que tem esse nome e esse nome sempre lhe lembraria um belo modelo a seguir. É então que na festa de aniversário o protetor invisível não deixaria de associar-se, porque teria seu lugar no coração dos assistentes.


 

A Poltrona dos Antepassados

Contaram-nos que em casa de um escritor-poeta de grande renome, há um costume que parecerá bizarro a quem quer que não seja espírita. À mesa da família há sempre uma poltrona vazia; essa poltrona é fechada por um cadeado e ninguém nela se assenta: é o lugar dos antepassados, dos avós e dos amigos que deixaram este mundo; lá está como respeitoso testemunho de afeição, uma piedosa lembrança, um apelo à sua presença, e para lhes dizer que vivem sempre no espírito dos sobreviventes.

A pessoa que nos relatou o fato, como vindo de boa fonte, acrescentou: “Os espíritas repelem, e com razão, as coisas puramente formais; mas se há uma que possam adotar sem derrogar seus princípios, sem dúvida é esta.”

Seguramente, eis um pensamento que jamais brotaria no cérebro de um materialista; não só ele atesta a ideia espiritualista, mas é eminentemente espírita e não nos surpreende absolutamente da parte de um homem que, sem arvorar abertamente a bandeira do Espiritismo, muitas vezes afirmou sua crença nas verdades fundamentais que dele decorrem.

Há nesse uso algo de tocante, de patriarcal e que impõe respeito. Com efeito, quem ousaria ridicularizá-lo? Não é uma dessas fórmulas estéreis, que nada dizem à alma: é a expressão de um sentimento que parte do coração, o sinal sensível do laço que une os presentes aos ausentes. Essa cadeira, aparentemente vazia, mas que o pensamento ocupa, é toda uma profissão de fé, e mais, todo um ensinamento, tanto para os grandes, quanto para os pequenos. Para as crianças, é uma eloquente lição, embora muda, que não pode deixar de produzir salutares impressões. Os que forem educados nessas ideias jamais serão incrédulos, porque, mais tarde, a razão virá confirmar as crenças com que terão sido embaladas. A ideia da presença, em torno deles, de seus avós ou de pessoas veneradas, será para eles um freio mais poderoso que o medo do diabo.


 

Círculo da Moral Espírita em Toulouse

Temos o prazer de anunciar que uma sociedade acaba de ser oficialmente autorizada em Toulouse, sob o título de Círculo da moral espírita. Cumprimentamos os fundadores pela escolha do título, que mostra claramente o objetivo que se propuseram, ao mesmo tempo que resume perfeitamente o caráter essencial da doutrina. Se é verdade que a nobreza obriga, não o é menos dizer que o título obriga, a menos que se minta à sua bandeira. Estamos convencidos de que os membros dessa reunião saberão justificá-lo. Pela própria severidade de seu regulamento, do qual tivemos conhecimento, eles provam sua firme intenção de agir como verdadeiros espíritas.

Houve outrora em Paris uma sociedade, por muito tempo bem florescente, da moral cristã. Por que não haveria sociedades da moral espírita?  Seria o melhor meio de impor silêncio aos zombadores e fazer calar as prevenções que alimentam, contra o Espiritismo, aqueles que não o conhecem. A qualidade de membro de uma sociedade que se ocupa de moral teórica e prática, é um título à estima e à confiança, mesmo para os incrédulos, porque é o equivalente ao de membro de uma sociedade de pessoas honestas, e todo espírita sincero deve ter a honra de dela fazer parte. Os gracejadores de mau gosto ousarão dizer que são sociedades de tolos, de loucos ou de imbecis?

A palavra círculo, adotada pela sociedade de Toulouse, indica que não se limita a sessões ordinárias, mas que é, além disso, um local de reuniões, onde os membros podem vir entreter-se com o objetivo especial de seus estudos.


 

Memórias de um Marido

Pelo Sr. Fernand Duplessis

Encontrados em toda parte, os traços do Espiritismo são como as inscrições e as medalhas antigas, que atestam, através dos séculos, o movimento do espírito humano. As crenças populares, sem contradita, contêm os traços, ou melhor, os germes das ideias espíritas em todas as épocas e em todos os povos, mas misturadas a lendas supersticiosas, como o ouro das minas está misturado à ganga. Não é somente aí que se deve procurá-las, é na expressão dos sentimentos íntimos, porque é aí que muitas vezes se as encontram no estado de pureza. Se se pudesse sondar todos os arquivos do pensamento, ficar-se-ia surpreso de ver até que ponto elas estão arraigadas no coração humano, desde a vaga intuição até os princípios claramente formulados. Ora, quem, pois, os fez nascer antes do aparecimento do Espiritismo? Dir-se-á que é uma influência de camarilha? Elas aí nasceram espontaneamente, porque estão na Natureza; mas muitas vezes foram abafadas ou desnaturadas pela ignorância e pelo fanatismo. Hoje o Espiritismo, passado ao estado de filosofia, vem arrancar essas plantas parasitas e constituir um corpo de doutrina daquilo que não passava de vaga aspiração.

Um dos nossos correspondentes de Joinville-sur-Marne, o Sr. Petit-Jean, ao qual já devemos numerosos documentos sobre esse assunto, manda-nos um dos mais interessantes, que temos a satisfação de acrescentar aos que já publicamos.

“Joinville, 16 de julho de 1868.

“Eis ainda pensamentos espíritas! Estes têm tanto mais importância quanto não são, como tantos outros, o produto da imaginação, ou uma ideia explorada pelos romancistas. São a exposição de uma crença partilhada pela família de um convencional e expressa na mais grave circunstância da vida, na qual não se pensa em brincar com as palavras.

“Colhi-os numa obra literária, tendo como título: Memórias de um Marido, que não são senão o relato minucioso da vida do Sr. Fernand Duplessis. Essas memórias foram ditadas em 1849, por Eugène Sue, ao qual o Sr. Fernand Duplessis as enviou, com a missão de as entregar à publicidade, a título, segundo suas próprias expressões, de expiação para si e de ensinamento para os outros. Dou-vos a análise das passagens que têm mais relação com a nossa crença.”

“A Sra. Raymond, bem como seu filho, prisioneiros políticos, recebem a visita do Sr. Fernand Duplessis, seu amigo. Esta visita deu lugar a um diálogo, depois do qual a Sra. Raymond travou a seguinte conversa com o filho (página 121):

“Vejamos, meu filho — retomou a Sra. Raymond num tom de afetuosa censura — foi ontem que demos os primeiros passos nesta carreira onde devemos agradecer a Deus um dia sem angústias? Será que se continua, será que se atinge o objetivo para onde tendemos sem dor, sem perigos, e muitas vezes sem martírio? Será que não nos disseram cem vezes que nossa vida não nos pertence, mas é dessa santa causa da liberdade, pela qual teu pai morreu no cadafalso? Será que desde que tens a idade da razão não nos habituamos a esse pensamento, que um dia eu teria que fechar as tuas pálpebras, como podias fechar as minhas? Será que existe de que se entristecer previamente? Jamais me vês sombria, lacrimosa, porque vivo sempre com a lembrança querida e sagrada de teu pai, cuja fronte ensanguentada beijei, e que enterrei com minhas mãos? Não temos fé, como nossos pais os gauleses, no renascimento indefinido de nossos corpos e de nossas almas, que vão, sucessivamente, povoar a imensidade dos mundos? Para nós o que é a morte? o começo de uma outra vida, nada mais. Estamos do lado de cá da cortina, passamos para o outro, onde perspectivas imensas aguardam nosso olhar. Quanto a mim, não sei se é porque sou filha de Eva, acrescentou a Sra. Raymond com um leve sorriso, mas o fenômeno da morte jamais me inspirou senão uma excessiva curiosidade.”

Página 208 — “O pensamento da morte excitava, sobretudo em Jean, uma vivíssima curiosidade. Espiritualista por essência, ele partilhava com sua mãe, seu tio e Charpentier, a crença viril que foi a de nossos pais, os gauleses. Segundo o admirável dogma druídico, sendo o homem imortal, alma e corpo, espírito e matéria, ele ia assim, alma e corpo, renascer e viver incessantemente, de mundo em mundo, elevando-se a cada nova migração, para uma perfeição infinita como a do Criador.

“Só essa arrojada crença explicava, aos meus olhos, o soberbo desprendimento com o qual Jean e sua mãe encaravam esses terríveis problemas, que lançam tanta perturbação e tanta perplexidade nas almas fracas, habituadas a ver na morte o nada ou o fim da vida física, ao passo que a morte não passa de um renascimento completo, que uma outra vida espera com suas novidades misteriosas.

“Mas, ai! não me era dado partilhar dessa crença. Eu via, com doloroso pavor, aproximar-se o dia fatal em que Jean seria julgado pela Corte dos Pares. Chegado esse dia, a senhora Raymond pediu-me que a acompanhasse a essa temível sessão; em vão eu quis dissuadi-la desse propósito, temendo que Jean fosse condenado à morte; contudo, não ousei exprimir-lhe minhas apreensões; ela adivinhou o meu pensamento. Meu caro senhor Duplessis, disse-me ela, o pai de meu filho morreu no cadafalso pela liberdade; enterrei-o piedosamente com as próprias mãos... se meu filho também deve morrer pela mesma causa, saberei cumprir o meu dever com mão firme... Credes que possam condenar Jean à morte?... Creio que não o podem condenar senão à imortalidade. (Textual). Dai-me o vosso braço, senhor Duplessis... Dominai a vossa emoção e vamos à Câmara dos Pares.

“Jean foi condenado à morte e devia ser executado dois dias depois. Fui vê-lo na prisão e esperava apenas ter a força de resistir a essa última e fúnebre entrevista. Quando entrei ele fazia, vigiado por um guarda, a sua toalete matinal, com um cuidado tão minucioso como se estivesse em sua casa. Veio a mim, estendendo-me as mãos; em seguida, olhando-me na face, disse-me com ansiedade: — Meu Deus! meu bom Fernand, como estás pálido!... Que tens, então? — O que tenho! Exclamei, desfazendo-me em lágrimas e atirando-me ao seu pescoço, tu mo perguntas! — Pobre Fernand! respondeu-me ele, emocionado com a minha comoção, acalma-te... coragem! — E és tu que me encorajas neste momento supremo! disse-lhe eu; mas, então, és dotado, como tua mãe, de uma força sobre-humana?

 “— Sobre-humana!... não; tu nos honras muito, replicou sorrindo; mas minha mãe e eu sabemos o que é a morte... e ela não nos apavora... Nossa alma muda de corpo, como nossos corpos mudam de roupa; vamos reviver alhures e esperar ou nos reunir aos que amamos... Graças a esta crença, meu amigo, e à curiosidade de ver mundos novos, misteriosos; enfim, graças à consciência da realização próxima de nossas ideias e à certeza de deixar depois de si a memória de um homem honesto, tu o confessarás, a partida deste mundo nada oferece de tão pavoroso, ao contrário.”

“Jean Raymond não foi executado; sua pena foi comutada em prisão perpétua e ele foi transferido para a cidadela de Doullens.”


 

Bibliografia

O Regimento Fantástico

Por Victor Dazur[2]

Tomamos as passagens seguintes da apreciação crítica que o fez o Siècle  da obra acima, em seu folhetim de 22 de junho de 1868:

“É uma espécie de romance filosófico, no qual a maior parte das questões que atualmente apaixona os espíritos é tratada sob uma forma original e dramática; o espiritualismo e o materialismo, a imortalidade da alma e o nada, o livre-arbítrio e o fatalismo, a responsabilidade e a irresponsabilidade, as penas eternas e a expiação, depois a guerra, a paz universal, os exércitos permanentes, etc.

“Nem todas essas questões são discutidas com bastante método e profundeza, mas todas o são com uma certa erudição, com evidente boa-fé, quase sempre com graça, muitas vezes com espírito e por vezes com eloquência.

“Em suma, a obra é de um homem liberal, amigo do progresso, da perfectibilidade e do espiritualismo, amigo da paz, embora evidentemente militar.

“Aliás, eis como o autor fala de si mesmo:

“O autor, que neste livro tomou o nome de François Pamphile, tinha a insigne honra de ser cabo no exército francês, quando teve o estranho sonho que constitui o plano da obra que ides ler, se não tiverdes nada melhor para fazer. Mais tarde o nosso militar escreveu o seu sonho e depois se divertiu em o embelezar quando dispunha de tempo.”

“O Regimento Fantástico, de Victor Dazur, é, pois, um sonho, como o Paris na América, do Sr. Laboulaye, mas é um sonho que vos transporta a um mundo completamente imaginário.

“O cabo François Pamphile entra em sua caserna, depois de ter participado, com alguns camaradas, dos prazeres de uma festa pública em Paris. Saturado de barulho, de música, de espetáculos ao ar-livre, de iluminações, de fogos de artifício, o estômago bem cheio e a consciência tranqüila, não tendo querela com ninguém, nem ferindo com seu sabre a nenhum civil, cai em profundo sono. Ao cabo de um tempo que não pode avaliar, parece-lhe que seu leito é levantado, como se estivesse suspenso a um balão, à guisa de nacela.

“Abre os olhos e se vê no espaço; um panorama móvel se desdobra abaixo dele; vê desaparecer Paris, depois o campo, a Terra. Parece-lhe fazer um das viagens aerostáticas do nosso colaborador Flammarion, de quem se declara assíduo leitor, e do qual louva com entusiasmo o belo livro espiritualista que tem por título a Pluralidade dos Mundos Habitados.

“De repente, falta-lhe o ar; sufoca; mas entra numa outra atmosfera; retoma a respiração; percebe um outro globo, que seus estudos astronômicos o fazem reconhecer como o planeta Marte. Sente-se atraído para este planeta, cujo globo cresce rapidamente aos seus olhos. Treme, nele caindo por força das leis da gravidade, temeroso de ser esmagado. Receia um choque terrível; mas não! Ei-lo estendido sobre uma espessa relva, aos pés de árvores maravilhosas, cheias de pássaros não menos maravilhosos.

“Julga-se num mundo novo, passado do grau de cabo ao de primeiro homem. Chama uma Eva. É a canção do Rei Dagoberto  que lhe responde.

“A admiração do bom cabo redobra ao ver que o cantor é um grande folgazão, revestido com o uniforme de sargento-mor da infantaria de linha francesa.

“— Quem sois vós? perguntou o sargento, com o ar tão surpreso quanto ele.

“— Major, responde François Pamphile, sou o cabo; venho do planeta Terra, que deixei involuntariamente esta noite; e gostaria que me dissésseis o nome do planeta onde caí.

“— Por Deus! Este planeta é Soraï-Kanor.

“— Soraï-Kanor?... Eu supunha que fosse o planeta Marte. Parece que me enganei.

“— Não vos enganastes. Apenas nosso planeta, que os terrícolas chamam Marte, é chamado por nossos astrônomos de Soraï-Kanor.

 “O cabo admira-se de que o sargento saiba o nome dado pelos habitantes da Terra ao seu planeta. Mas o sargento lhe disse que só deixou a Terra depois de sua morte terrestre e que lá era rei da França.

“A esta resposta inesperada, o cabo se descobre, isto é, tira o boné de algodão que tem sobre a cabeça.

“O rei sargento-mor lhe diz que não lhe preste tantas honras, pois que não passa de um simples sub-oficial. Na Terra ele se chamava Francisco I; em Marte ele pertence ao regimento fantástico, um regimento composto da maioria dos soberanos que reinaram no globo terrestre. O coronel é Alexandre, o Grande; o tenente-coronel, Júlio César (que, a bem dizer, não reinou), e o major, Péricles (que reinou menos ainda). O regimento conta três batalhões, e cada batalhão oito companhias. O comandante do primeiro batalhão é Sesóstris, e o subcomandante Átila; O comandante do segundo batalhão, Carlos Magno, e o subcomandante, Carlos V; o comandante do terceiro batalhão, Aníbal, e o subcomandante, Mitrídates.

“Cada companhia é composta dos soberanos de uma mesma nação. A companhia francesa é a primeira do segundo batalhão e tem como capitão Luís XIV, o que prova, possivelmente, que o favor domina em Marte, como na Terra; porque Francisco I, que é apenas sargento-mor, seguramente era maior capitão que Luís XIV, e ainda tinha a ancianidade a seu favor.

“As cantineiras do regimento fantástico são Semíramis, Cleópatra, Elisabeth, Catarina II. Assim como todos os oficiais e soldados do regimento são antigos soberanos ou homens que exerceram a soberania, todas as cantineiras e as servas da cantina são antigas soberanas. Os músicos são antigos compositores: Beethoven, Mozart, Glück, Piccini, Haydn, Bellini. O regimento não adotou o uniforme francês senão depois do reinado de Napoleão I, cujas campanhas entusiasmaram Alexandre, o Grande. Depois, o regimento seguiu todas as variações de nosso costume militar, o que não diz pouco. Foi também a partir do reinado de Napoleão I que a língua francesa foi adotada como língua regulamentar do regimento. Contudo, não foi sob o Império que a língua francesa brilhou mais. Aliás o vencedor de Austerlitz não está no número dos militares do regimento fantástico. Não está em Marte; talvez esteja num mundo superior, talvez num mundo inferior: Francisco I o ignora.

“Outros soberanos jamais figuraram no regimento fantástico; outros o deixaram após milhares de séculos de serviços. O regimento nunca muda de guarnição e jamais faz guerra. É uma espécie de regimento penitenciário no qual os soberanos, homens e mulheres, são postos para expiar os crimes que cometeram em seus reinados.

“Ainda bem; mas os músicos Beethoven, Mozart e os outros, que crimes cometeram para serem retidos nesse regimento expiatório? É o que o autor esquece de explicar.

“O suplício habitual dos militares e das cantineiras do regimento é o suplício de Tântalo. Os guerreiros que, na Terra, se compraziam no sangue e na carnificina, guardaram seus instintos belicosos, que o som do clarim desperta sem cessar e que os exercícios e os simulacros de combate superexcitam, sem que jamais lhes seja possível satisfazer, porquanto o poder divino, que na Terra permite a guerra, o interdita em Marte.

“Os voluptuosos e as voluptuosas sofrem um suplício semelhante. Todos, homens e mulheres, conservam a beleza de que gozavam na época mais bela de sua vida, mas estão submetidos a uma condição fisiológica que os condena a uma castidade absoluta.

“Outro castigo, que os desola ainda mais, é o suplício das lembranças. Uma memória extraordinariamente lúcida lhes recorda os atos de sua vida terrestre. Só uma ocupação contínua os distrai; mas a disciplina é rigorosa; a cada instante são condenados à sala de polícia, à prisão ou à sala das lembranças. Na sala de polícia e na prisão ainda lhes permitem algumas distrações, mas na sala das lembranças não lhes permitem nenhuma. Lá se encontram encerrados no meio de todos os instrumentos de suplício e de tortura empregados em seus reinados; nas paredes são pintados a fresco todos os sofrimentos e todos os assassínios ordenados pelos reis.

“Quando Luís XI está encarcerado na sala das lembranças, é posto numa gaiola de ferro, em uso no seu reinado, e colocado em frente ao cadafalso de Nemours, do qual o sangue goteja sobre a cabeça de seus filhos. Felipe, o Belo, é estendido sobre uma fogueira, de onde vê os suplícios dos templários. Fernando, o Católico, é amarrado a um cavalete, com a cabeça voltada para um auto-de-fé.

“Nosso cabo ouve Nero se queixar nestes termos ao seu camarada Calígula:

“— Três quartos do tempo sou punido com detenção ou na sala de polícia. Se reclamo contra uma punição, esta me é aumentada. Quando não estou na sala de polícia, estou no pelotão de castigo, e quando não estou no pelotão de castigo, estou na faxina do quartel. Enfim, sou acabrunhado por vexames de toda espécie, sem contar meus outros sofrimentos. Isto já dura muitos séculos. Quando acabará?”

“— Mas este vosso regimento fantástico é um inferno, diz o bom Pamphile a Francisco I.

“— Não, responde-lhe este, porque as penas aqui não são eternas. O Grande Desconhecido, que é a justiça suprema, não profere condenações eternas, uma vez que faltas finitas, por maiores que fossem, não poderiam acarretar penas infinitas. Nosso planeta e alguns outros não são infernos, mas purgatórios, onde os homens, numa ou em várias existências sucessivas, pagam as dívidas morais que contraíram numa existência anterior.

“Conversando assim, ora com o sargento-mor Francisco I, ora com o simples soldado Carlos V, ora com seu colega, o cabo Carlos VII, o cabo Pamphile recebe instruções e revelações sobre o que interessa à Humanidade no mais alto grau. Enfim, numa audiência que lhe concede o coronel Alexandre, o Grande, no círculo dos oficiais, o antigo conquistador lhe expõe um projeto de congresso internacional universal, encarregando-o de o propor à Terra, a fim de estabelecer, para sempre, em nosso globo, a paz, a concórdia e a fraternidade.

“Meu coronel, exclama Pamphile entusiasmado, vosso projeto é tão lógico, parece-me de tal modo indispensável e a ideia em si é tão natural, que me parece que assim que for conhecido na Terra todos dirão: Como é possível que não se tenha pensado mais cedo em estabelecer um congresso universal?

“Em que pese a esperança do bom cabo, duvidamos que os diferentes governos do nosso planeta se apressem em acolher o projeto de Alexandre; mas o congresso da paz, que se reunirá em Berna em setembro próximo, não pode deixar de o levar em consideração. Nós o recomendamos especialmente ao relator encarregado de estudar qual poderia ser a constituição dos Estados Unidos da Europa.” [3]

E.-D. de Biéville

Se o Sr. Victor Dazu (por certo esse nome deve ser um pseudônimo) inspirou-se na Pluralidade dos Mundos Habitados, do Sr. Flammarion, do qual se declara leitor assíduo, também respigou largamente nas obras espíritas. Salvo o quadro de que se serviu, sua teoria filosófica das penas futuras, da pluralidade das existências, do estado dos Espíritos desprendidos do corpo, da responsabilidade moral, etc., evidentemente é colhida na Doutrina Espírita, da qual não só reproduz a ideia, mas, muitas vezes, até a forma.

As passagens seguintes não podem deixar dúvida sobre este ponto:

“Tu sonhas, meu amigo, pensei eu; tu sonhas! Todos esses soberanos da Terra, que recomeçam uma nova existência no planeta Marte, esse gênio diáfano e de asas azuis, tudo isto cheira a Espiritismo... E, contudo, quando estás desperto, não acreditas nessa invenção. Depois, dirigindo-me a Francisco I, eu lhe disse:

“— Major, vem-me ao espírito uma ideia singular; esta ideia me faz supor que tudo quanto vejo e tudo quanto ouço, desde que aqui cheguei, não passa do efeito de um sonho. Dizei, por favor, a vossa opinião. Pensais, como eu, que eu sonho?

“— Mas não! não sonhais, respondeu-me Francisco I com um ar tão indignado como se eu lhe tivesse feito uma pergunta muito estúpida. Não, não sonhais! Se sonhásseis, desfilariam diante do vosso espírito uma porção de quimeras sem pé nem cabeça. Os acontecimentos de que sereis testemunha não teriam entre si nenhuma relação razoável.

“— Mas não é tudo, major. O que ainda me faz crer que sonho, é que me apalpei e não encontrei o corpo... Apalpo-me ainda agora, e também não me encontro. Todavia, sinto-me viver e me vejo braços e pernas. Desnecessário dizer que sendo impalpáveis esses braços e pernas, não passam de aparências fantásticas. Eu bem poderia explicar essas aparências, mas para isto seria preciso, a mim que não creio no Espiritismo, admitir certa teoria espírita que, verdadeira ou falsa, é, em todo o caso, muito engenhosa.

“Essa teoria pretende que o Espírito de um corpo é rodeado de um perispírito, isto é, de um invólucro semimaterial, que pode tomar a forma desse corpo e tornar-se visível em certos casos. Uma vez admitido o perispírito, a mesma teoria pretende que um indivíduo pode ser visto algumas vezes e no mesmo instante em dois lugares, mesmo muito afastados um do outro, o corpo dormindo num lugar e a aparência do corpo, isto é, o perispírito, agindo em outra parte.

“Se esta asserção é verdadeira, eu estaria pondo em prática a teoria de que acabo de falar. Poder-se-ia ver neste momento meu corpo a dormir em Paris, enquanto vedes o meu perispírito como se fosse o meu corpo. Mas eu só acreditaria numa coisa tão extraordinária se ela fosse provada.

“Seria ainda adotar o Espiritismo, que admite como real essa reunião de potentados, realizada aqui, como pretendem, para expiar os erros que cometeram quando estavam na Terra.

“— Se quiserdes, disse-me Francisco I, não acrediteis no que tendes diante dos olhos. Suponde por um momento que, em vez de estar neste planeta, estejais no domínio ideal da razão, e dizei-me se acreditais que os homens que fazem o mal, seja qual for a sua posição na sociedade, podem estar isentos do purgatório depois de sua vida terrena? — Major, não sei que responder. — Mas eu sei o que pensais. Pensais que o purgatório existe, não importa onde, mas apenas para as pessoas que ocupam os graus mais elevados da escala social. E o que vos leva a pensar assim, é que as faltas das pessoas altamente colocadas no mundo são muito mais aparentes que as dos simples particulares. Mas ides modificar imediatamente esta ideia, pensando que, para o Ser Supremo, não há faltas ocultas. Com efeito, o Grande Desconhecido vê constantemente na Terra simples particulares que, relativamente, fazem tanto mal na sua pequena esfera de ação, quanto o fazem, em seus Estados, certos tiranos manchados pela História. Os simples particulares de que falo, em vez de exercerem sua tirania num reino, a exercem em sua família e em seu círculo, fazendo sofrer sem piedade mulher, filhos e subordinados. Esses tiranetes só têm uma preocupação: gozar a vida, escapando ao código penal do país em que habitam. Ora, eu vos pergunto, credes que esses malfeitores, que às vezes passam por criaturas virtuosas, aos olhos de quem quer que não lhes conheça a vida, digo eu, que esses malfazejos logo sejam transportados a uma morada de delícias? — Não, não creio. — Não admitis que, fazendo o mal, contraíram uma certa dívida moral? — Sim, major, eu o admito. — Pois bem! então não vos deveis admirar de que certos planetas sejam verdadeiros purgatórios, nos quais os homens, em uma ou em várias existências, paguem as dívidas contraídas numa existência anterior.

“— Mas, major, os sofrimentos que todo homem experimenta no curso de sua vida não pagam suficientemente o mal que pode fazer desde a idade da razão até a morte?

“Isto só se daria com pequeno número de indivíduos, porque, o mais das vezes, o mal que um homem faz recai sobre certo número de seus semelhantes, o multiplica tanto mais a soma do mal pessoal e torna quase sempre a dívida tão grande que esse homem não poderia pagá-la no decorrer de sua curta existência. Ora, quando não se pôde pagar suas dívidas numa vida, forçosamente se deve pagá-las em outra, porquanto, no caso de dívidas criminais, o Grande Desconhecido dispôs as coisas de maneira que não haja bancarrota possível.

“Admitido isto, admitireis também que é impossível que monstros como Nero, Calígula, Heliogábulo, Bórgia e tantos outros, cujos crimes não podem ser enumerados, tenham podido pagar semelhantes dívidas pelo pouco mal que sofreram em vida. Ora, de duas uma: Ou esses homens caíram no nada, ao morrerem, ou recomeçaram uma nova existência. Se se admitir que tivessem caído no nada, admite-se muito naturalmente que devem ter fracassado completamente. Convireis que a ideia de semelhante bancarrota revolta o espírito, ao passo que se se admitir que cada um recomeçou uma nova existência, o espírito se acha satisfeito ao pensar que essas novas vidas não poderão ser senão existências de expiação ou, melhor dizendo, de purificação.[4]

“— Major, não é mais simples admitir a danação eterna para os monstros de que falais? — Convenho que é mais simples, mas não mais lógico. A lógica, que deve ser a alma da justiça, recusa admitir a danação eterna, porque faltas finitas não poderiam merecer castigos infinitos.”

Segue uma dissertação das mais interessantes e das mais lógicas que lemos contra o inferno e as penas eternas, sobre a justiça da proporcionalidade das penas e sobre a doutrina do trabalho, mas a sua extensão não nos permite reproduzi-la.

“— Major, diz o cabo Pamphile, eu vos farei notar que a negação do inferno eterno, assim como a proporcionalidade das penas, é o fundo mesmo da doutrina dos espíritas. Ora, eu já vos disse que não creio no Espiritismo. — Então... acreditai no inferno eterno, se isto vos dá prazer.”

Entre os soberanos que o cabo Pamphile encontra no planeta Marte, há os que viviam no tempo do dilúvio, reis da Assíria, ao tempo da torre de Babel, faraós do tempo da passagem do mar Vermelho pelos hebreus, etc. E cada um dá sobre esses acontecimentos explicações que, em sua maioria, têm o mérito, se não da prova material, ao menos o da lógica.

Em suma, o quadro escolhido pelo autor para emitir suas ideias é feliz, até mesmo a sua negação do Espiritismo, que leva, em última análise, a uma afirmação indireta. Diremos, como o Siècle, que sob uma forma aparentemente leve, todas as questões aí são tratadas com certa erudição, com evidente boa-fé, quase sempre com graça, muitas vezes com espírito e por vezes com eloquência. Acrescentaremos que, não conhecendo o autor, se este número lhe cair nas mãos, desejamos que aqui encontre a expressão de nossas sinceras felicitações, porque fez um livro interessante e muito útil.

Conferências sobre a Alma

Pelo Sr. Alexandre Chaseray[5]

São inumeráveis as obras modernas nas quais o princípio da pluralidade das existências é afirmado casualmente. Mas a de que falamos nos parece uma destas em que ele é tratado da maneira mais completa. O autor se empenha, além disso, em demonstrar que a ideia cresce e se impõe cada dia mais aos espíritos esclarecidos.

Nos fragmentos que transcrevemos a seguir, as notas são do autor.

“A transmigração das almas, diz o Sr. Chaseray, é uma ideia filosófica ao mesmo tempo das mais antigas e das mais novas. A metempsicose constitui o fundo da religião dos hindus, religião muito anterior ao judaísmo, e Pitágoras pôde receber esta crença dos Brâmanes, a ser verdade que ele tenha estado na Índia; mas é mais provável que a tenha trazido do Egito, onde viveu muito tempo. A civilização reinava às margens do Nilo alguns milhares de anos antes do nascimento de Moisés e, no dizer de Heródoto, os sacerdotes egípcios foram os primeiros a anunciar que a alma é imortal e que passa sucessivamente por todas as espécies de animais, antes de entrar num corpo humano.

“Por seu lado, os gregos jamais abandonaram completamente a metempsicose. Os que entre eles não admitiam por inteiro a doutrina de Pitágoras, acreditavam vagamente com Platão que a alma imortal tinha existido em algum lugar, antes de se manifestar sob a forma humana, ou acreditavam no rio Letes e no renascimento do homem na Humanidade. Entre os primeiros cristãos, muitos neófitos entendiam conservar de seus antigos dogmas o que lhes parecia bom; os maniqueus, por exemplo, tinham conservado os dois princípios do bem e do mal e a migração das almas; é assim que, vindo os heresiarcas a se multiplicarem, os Pais e os Concílios tiveram muito a fazer para reconduzir os espíritos a uma fé uniforme. Definitivamente vitoriosa, a Igreja apostólica baniu de seu império a metempsicose, que foi substituída pelo dogma do julgamento irrevogável e da divisão dos homens em eleitos e danados. O purgatório foi introduzido mais tarde, como corretivo de uma decisão extremamente inflexível.

“Assim como não considerei muito como um progresso o espiritualismo de Santo Tomás, do qual não se vê nenhum traço nos livros santos, também ainda não julgo feliz, nem conforme a antiga doutrina do pecado original, que estabelece uma solidariedade tão estreita entre todas as gerações de homens, a afirmação dogmática que consiste em dizer que a existência de cada um de nós não tem raízes no passado e conduz a um paraíso ou a um inferno eternos. Em minha opinião, eis aí uma heresia filosófica, contra a qual o espírito moderno reage com força.

“Reaparece de todas as partes a transmigração das almas. Mas, em nossos dias, geralmente se concebe uma metempsicose mais larga do que aquela cuja crença atribuíam aos Antigos. O espírito de indução, tendo transposto os limites da Terra, e reconhecido nos sóis e nos planetas mundos habitados, não mais limitou os destinos do homem ao globo terrestre. Em lugar de ver a alma percorrendo incessantemente o círculo das plantas, dos animais e da espécie humana, ou renascendo constantemente na Humanidade, foi possível imaginá-la alçando seu voo para mundos infinitos.[6]

“Não tenho senão o embaraço da escolha no caso de citações, para mostrar que a fé tem uma série de existências, umas anteriores, outras posteriores à vida presente, crescendo e se impondo cada dia mais aos espíritos esclarecidos.

“Comecemos por Jean Reynaud. Esse filósofo insiste na ligação natural que apresentam as duas ideias de preexistência e de vida futura.

 “Se se examinasse, diz ele, todos os homens que passaram sobre a Terra, desde que a era das religiões cultas aí começou, ver-se-ia que a grande maioria viveu na consciência mais ou menos fixa de uma existência prolongada por vias invisíveis, aquém e além dos limites desta vida. Com efeito, aí há uma espécie de simetria tão lógica que deve ter seduzido as imaginações à primeira vista; o passado aí faz equilíbrio ao futuro, e o presente não é senão o pivô entre o que já não é e o que ainda não é. O platonismo despertou esta luz precedentemente agitada por Pitágoras e dela se serviu para esclarecer as mais belas almas que honraram os tempos antigos.[7]

“Esse julgamento de Jean Reynaud se acha plenamente confirmado pela nota seguinte de Lagrange, o elegante tradutor do poema de Lucrécia:

“De todos os filósofos que viveram antes do Cristianismo, nenhum sustentou a imortalidade da alma sem estabelecer previamente a sua preexistência; um desses dogmas era considerado como consequência natural do outro. Acreditava-se que a alma devia existir sempre, porque sempre tinha existido; e, ao contrário, estavam persuadidos de que, concordando que ela tinha sido gerada com o corpo, não se tinha mais o direito de negar que ela devesse morrer com ele. ‘— Nossa alma, diz Platão, existia em algum lugar antes de estar nesta forma de homens; eis por que não duvido que ela seja imortal.’

“O velho druidismo, prossegue o autor de Terra e Céu, fala ao meu coração. Esse mesmo solo que hoje habitamos comportou antes de nós um povo de heróis, que estavam todos habituados a se considerar como tendo experimentado o Universo de longa data, antes de sua encarnação atual, fundando assim a esperança de sua imortalidade na convicção de sua preexistência.”

“Um dos nossos melhores historiadores também faz rasgados elogios ao principal ensino dos druidas; Henri Martin é de opinião que os nossos pais, os gauleses, representavam no mundo antigo ‘a mais firme, a mais clara noção da imortalidade que jamais houve.’[8]

“Por sua vez, diz Eugène Sue sobre a fé druídica:

“Segundo esta crença sublime, o homem imortal, espírito e matéria, vindo de baixo e indo para o alto, transitava por esta Terra, aqui habitava passageiramente, como tinha habitado e devia habitar essas outras esferas que brilham, inumeráveis, no meio dos abismos do espaço.”[9]

“Já no século dezessete dizia Cyrano de Bergerac, a exemplo dos sacerdotes gauleses:

“Morremos mais de uma vez; e como não somos senão partes deste Universo, mudamos de forma para retomar a vida alhures, o que não é um mal, mas um caminho para aperfeiçoar o ser e para chegar a um número infinito de conhecimentos.”

“Vários de nossos contemporâneos, contudo, sem parecer inspirar-se nos druidas, também anunciam que o destino da alma é viajar de mundos a mundos.

“Lê-se, por exemplo, na Profissão de fé do século dezenove, de Eugène Pelletan:

“Pela irresistível lógica da ideia, creio poder afirmar que a vida mortal terá o espaço infinito como lugar de peregrinação... O homem irá, pois, sempre de sol a sol, subindo sempre, como na escada de Jacó, a hierarquia da existência, passando sempre, segundo seu mérito e o seu progresso, de homem a anjo, de anjo a arcanjo.”

“E na Renovação Religiosa, do Sr. Patrice Larroque, antigo reitor da Academia:

“Pode-se conjecturar que a maior parte dos outros globos que se movem no espaço, alberguem, como na Terra, seres organizados e animados, e que esses globos sejam os sucessivos teatros de nossas vidas futuras.”

“Lamennais exprime a ideia do renascimento de uma maneira absolutamente precisa, embora mais restrita: Diz ele: “Estando realizado o progresso possível ao indivíduo sob sua forma orgânica atual, ele devolve à massa elementar esse organismo gasto, revestindo um outro mais perfeito.”[10]

“Assinalemos, ainda, o traço seguinte do discurso pronunciado pelo Sr. Guéroult, do Opinion nationale, junto ao túmulo do pai Enfantin:

“Ninguém foi mais religioso que Enfantin; ninguém viveu tanto quanto ele em presença da vida eterna, da qual esta vida, que nos escapa a cada instante, não é senão uma das inumeráveis etapas.

“Um dos nossos mais célebres romancistas dá a pensar que acredita na passagem dos seres inferiores nas espécies superiores e, nomeadamente, dos animais à Humanidade:

“Explique quem quiser, diz George Sand, essas afinidades entre o homem e certos seres secundários da Criação. Elas são tão reais quanto as antipatias e os terrores insuperáveis que nos inspiram certos animais inofensivos... É talvez que todos os tipos, repartidos cada um especialmente em cada raça de animais, se encontrem no homem. Os fisionomistas têm constatado semelhanças físicas; quem pode negar as semelhanças morais? Não há entre nós raposas, lobos, leões, águias, besouros e moscas? A grosseria humana é muitas vezes baixa e feroz, como o apetite do porco...”

“George Sand se mostra mais explícita a respeito da migração das almas, nas seguintes linhas da mesma obra:[11]

“Se não devemos aspirar à beatitude dos Espíritos puros da região das quimeras, se devemos sempre entrever, além desta vida, um trabalho, um dever, provações e uma organização limitada em suas faculdades em frente ao infinito, pelo menos nos é permitido pela razão e nos é ordenado pelo coração, contar com uma série de existências progressivas, em razão dos nossos bons desejos... Podemos considerar esta Terra como um lugar de passagem e contar com um despertar mais suave no berço que nos espera alhures. De mundos em mundos, podemos, desprendendo-nos da animalidade que aqui neste mundo combate o nosso espiritualismo, tornar-nos próprios para revestir um corpo mais puro, mais adequado às necessidades da alma, menos combatido e menos entravado pelas enfermidades da vida humana, tal qual a suportamos na Terra.

“Citemos ainda um romancista, Balzac. Os romancistas desta ordem, assim como os poetas excepcionais, abordam as mais elevadas questões e sabem semear traços profundos em seus escritos de uma forma leve e agradável. É assim que em Os Miseráveis, Victor Hugo deixa cair de sua pena esta vaga interrogação: ‘De onde viemos? é bem certo que nada fizemos antes de termos nascido?’ É somente pensando nisto, e sem ideia preconcebida de sustentar uma tese filosófica, que o autor da Comédia Humana  fala das existências sucessivas. Por isso não posso senão captar este pensamento em vários de seus romances.

“Eis, por exemplo, algumas linhas de O lírio do vale:

“O homem é composto de matéria e de espírito; a animalidade vem terminar nele e nele começa o anjo. Daí essa luta que experimentamos todos entre um destino futuro, que pressentimos, e as lembranças de nossos instintos exteriores, dos quais não nos desligamos inteiramente: um amor carnal e um amor divino.”

“E encontro em Séraphita, esse romance místico, no qual Balzac expõe com um interesse e um encanto tão poderosos a doutrina religiosa do sueco Swedenborg:

“As qualidades adquiridas e que se desenvolvem lentamente em nós são laços invisíveis que ligam cada uma de nossas existências  uma à outra.

“Enfim, nos Comediantes sem o saber, a sibila, senhora Fontaine, pergunta a Gazonal:

“— Que flor amais?

“— A rosa.

“— De que cor gostais?

“— Do azul.

“— Que animal preferis?

 “— O cavalo. Por que estas perguntas? pergunta ele por sua vez.

“— O homem se liga a todas as formas por seus estados anteriores, diz ela sentenciosamente; daí vêm os seus instintos, e os seus instintos dominam o seu destino.”

“Michelet testemunha sua simpatia pelas mesmas ideias, quando chama o cão um candidato à Humanidade, e quando diz, falando dos pássaros:

“Que são eles? almas esboçadas, almas especializadas ainda em tais funções da existência, candidatos à vida mais geral e mais vastamente harmônica, a que chegou a alma humana.’[12]

“Pierre Leroux não crê que o homem tenha passado pelos tipos inferiores dos animais e das plantas. Segundo ele, os indivíduos se perpetuam no seio da espécie e o homem renasce indefinidamente na Humanidade. A solidariedade entre todos os membros da família humana então é evidente; o bem que um homem faz aos seus semelhantes redunda em seu proveito, desde que deles não se separa pela morte, senão para logo voltar a misturar-se a eles. Sustentando a perpetuidade do ser no seio da espécie, Pierre Leroux afasta-se dos autores que acabo de citar e não encontra muitos aprovadores.[13] Mas não deixa de ser um ardente defensor da ideia geral e de uma importância extrema, que liga a vida atual a uma série de existências.

Depois de ter dito que a criança, vindo ao mundo, não é, como pretendia a escola de Locke, uma tábua rasa, e que é injuriar a Divindade supor que ela tire do nada novas criaturas, que embeleza ao acaso com seus dons, ou fere ao acaso com a sua cólera, Pierre Leroux conclui por estas palavras:

“Assim, é preciso que se admita necessariamente o sistema indeterminado das metempsicoses, ou o sistema determinado do renascimento na Humanidade, que eu sustento.[14]

“Estou longe de repelir de maneira absoluta o sistema de renascimento na Humanidade; mas a Humanidade teve um começo, posterior mesmo ao da maioria das espécies animais e vegetais que cobrem o nosso globo; a Humanidade terá um fim; e, desde que a alma não perece, é preciso que o ser permanente, o eu, mergulhe suas raízes alhures que não na Humanidade, e encontre seu desenvolvimento futuro alhures que não na Humanidade, forma transitória.”

As numerosas citações que faz o autor, e que estão longe de ser completas, provam quanto é geral a ideia da pluralidade das existências e que em pouco terá passado ao estado de verdade incontestável. Sobre outros pontos, ele se afasta completamente da Doutrina Espírita; estamos longe de partilhar sua opinião sobre todas as questões que trata em seu livro, notadamente no que concerne à Divindade, à qual ele atribui um papel secundário, e a natureza íntima da alma, cuja espiritualidade contesta. Seu sistema é uma espécie de panteísmo, que ladeia o Espiritismo, e parece ser um termo médio para certas criaturas que não querem o ateísmo, nem o niilismo, nem o espiritualismo dogmático. Por mais incompleto que seja, não deixa de ser um progresso notável sobre as ideias materialistas, das quais está muito mais afastado do que das nossas. Salvo alguns pontos muito controvertidos, a obra contém vistas muito profundas e muito justas, às quais o Espiritismo não poderá senão associar-se.


 

Instruções dos Espíritos — Que Fizeram de Mim?

Extraímos a comunicação seguinte do jornal espírita Salut, que se publica em Nova Orléans, número de 1º de junho de 1868:

— Filhos, eu vos escrevi: “Quando vossa boa união me chamar, virei a vós.” E como vossa boa união me chamou eis-me aqui.

Eis-vos agora como meus apóstolos de outrora. Fazei como os bons e não façais como os maus; que ninguém renegue, que ninguém traia! Ides sentar-vos à mesma mesa que reunia os amigos da minha fé e de meu coração; que ninguém seja nem Pedro, nem Judas!

Ó meus bons filhos, olhai em torno de vós e vedes!

Minha cruz, o instrumento glorioso de meu vil suplício, domina os edifícios da tirania... e eu, eu não tinha vindo senão para pregar a liberdade e a felicidade. Com a minha cruz, afogaram os corpos no sangue e as consciências na mentira! Com a minha cruz, disseram aos homens: “Obedecei aos vossos mestres; curvai-vos diante dos opressores!” E eu dizia: “Sois todos filhos de um mesmo pai, sem distinção, a não ser a de vossos méritos, resultante da vossa liberdade.”

Eu tinha dito aos grandes: “Humilhai-vos!” e aos pequenos: “Levantai-vos!” e exaltaram os grandes e rebaixaram os pequenos.

Que fizeram de mim, de minha memória, de minha lembrança, de meu apostolado? Um sabre! — Sim, e há ainda os que se fizeram agentes desta infâmia!... Oh! se se pudesse sofrer na morada celeste, eu sofreria!... e vós, vós deveis sofrer... e deveis estar prontos a tudo para a redenção que comecei, ainda que não fosse senão para arvorar sobre a mesma montanha o mesmo sinal de união!... Será visto e compreendido, e deixarão tudo para o defender, para o abençoar, para o amar.

Filhos, ide para o céu com a fé, e a Humanidade inteira vos seguirá sem medo e com amor! Logo sabereis, na prática, o que é o mundo, se a teoria não vos tiver ensinado.

Tudo quanto vos foi dito para a prática do verdadeiro Cristianismo não é senão a sombra da verdade! O triunfo que vos espera está tão acima dos triunfos humanos e dos vossos pensamentos, quanto as estrelas do céu estão acima dos erros da Terra!

Oh! quando eles virem como Tomé! Quando tiverem tocado!... Vós vereis! vereis! As paixões vos criarão obstáculos, depois vos socorrerão, porque serão as boas paixões após as más paixões.

Pensai em mim, quando fordes partir o meu pão e beber o meu vinho, dizendo que arvorais, para a eternidade, a bandeira dos mundos... Oh! sim, dos mundos, porque ele unirá o passado, o presente e o futuro a Deus.

Jesus

O jornal publica esta comunicação sem informar quanto às circunstâncias em que foi obtida. Parece, contudo, que deve ter sido numa festa comemorativa da ceia, ou de alguma ágape fraterno entre os adeptos. Seja como for, ela traz, na forma e no fundo dos pensamentos, na simplicidade aliada à nobreza do estilo, um cunho de identidade que não se poderia desconhecer. Atesta, da parte dos assistentes, disposições capazes de lhes merecer esse favor, e não podemos senão felicitá-los. Pode-se ver que as instruções dadas na América sobre a caridade e a fraternidade não cedem em nada às que são dadas na Europa. É o laço que unirá os habitantes dos dois mundos.


 

Liga Internacional da Paz

Pedem que levemos ao conhecimento dos leitores da Revista Espírita que as adesões e subscrições à Liga Internacional da Paz  são recebidas pelos Srs. Dolfus, Mieg & Cia, tesoureiros da Liga, na rue Saint-Fiacre, no 9, e na secretaria, rue Roquépine, no 18, onde podem ser obtidas todas as informações e dirigidas todas as comunicações. Ao mesmo tempo recebemos uma brochura, contendo o relatório da primeira assembléia geral, os discursos dos oradores e diversos documentos úteis para dar conhecimento do objetivo dessa associação. Ela é encontrada na livraria Guillaumin, na rue Richelieu, 14, ao preço de 1 fr.

Aceitamos com tanto melhor vontade o convite que nos é feito, quanto todos os espíritas são, por princípio, amigos da paz, e porque simpatizam com todas as instituições ou projetos que têm como objetivo fazer desaparecer o flagelo da guerra. Sua doutrina, que conduz à fraternidade universal, fazendo desaparecer os antagonismos de raças, de povos e de cultos, é por si mesma um poderoso elemento para a paz geral.


 

No Prelo

(A aparecer no fim de setembro)

O ESPIRITISMO NA BÍBLIA, ensaio sobre as ideias psicológicas entre os antigos hebreus; por Henri Stecki, de São Petersburgo. Brochura de 150 a 200 páginas; formato de O que é o Espiritismo.

Allan Kardec


 



[1] Em seu movimento de translação em torno do Sol, a velocidade da Terra é de 400 léguas por minuto. Tendo a Terra 9.000 léguas de circunferência no equador, no movimento de rotação sobre o seu eixo, cada ponto do equador percorre, pois, 9.000 léguas em vinte e quatro horas, ou 6,3 léguas por minuto.

[2] Um grosso volume in-12. Preço: 3 fr. 50 c.; pelo correio: 4 fr. Esta obra foi impressa em Lyon e não traz nenhum nome do editor; diz apenas que se encontra em todos os livreiros de Paris. Nós a adquirimos na Livraria Internacional, 15, boulevard Montmartre.

[3] N. do T.: Notável previsão do surgimento da Comunidade Econômica Europeia, instituição criada pelo Tratado de Roma, em 1957, e que hoje agrupa boa parte dos países europeus. De fato, a circulação de mercadorias e de naturais desses países é livre, já circula uma moeda comum, o euro, e já se parte para a elaboração de uma constituição supra-nacional que contemple os interesses coletivos do povo europeu. Assim, muitos sonhos dos chamados “visionários” não passam da antecipação de fatos que se verificarão num futuro mais ou menos remoto, atestando a realidade da lei do progresso ou de evolução, um dos princípios fundamentais do Espiritismo

[4] Se o efeito da injustiça ou do mal que um homem comete em relação a um outro homem detém-se no indivíduo, a necessidade da reparação será individual; mas se, em consequência, esse mal prejudica pouco a pouco a centenas de indivíduos, sua dívida será centuplicada, porque serão centenas de reparações a realizar. Quanto mais vítimas tiver feito, direta ou indiretamente, maior o número dos que lhe pedirão contas de sua conduta. Como a responsabilidade e o número de reparações aumentam com a extensão da autoridade de que se é investido, somos responsáveis por indivíduos que jamais conhecemos, mas que, nem por isso, sofreram menos as consequências dos nossos atos.

[5] Pequeno volume in-12. Preço: 1 fr. 50; pelo correio, 1 fr. 75. Casa Germer-Baillière, 17, rue de l’École-de-médecine.

[6] Era tão natural aproveitar a oportunidade gloriosa aberta à alma pelas descobertas astronômicas, que não posso crer que a metempsicose de Pitágoras tenha sido realmente o que dela pensava o vulgo. Porque Pitágoras conhecia o verdadeiro sistema do mundo; o duplo movimento de rotação e de translação da Terra; a imobilidade relativa do Sol; a importância das estrelas fixas, cada uma das quais é um Sol e o centro de um grupo de planetas, muito provavelmente habitados; a marcha e a volta dos cometas: nada de tudo isto era ignorado por Pitágoras. Esse filósofo, instruído pelos sábios sacerdotes egípcios, que não revelavam seus segredos senão a um pequeno número de iniciados, julgou por bem dever, a exemplo deles, guardar segredo sobre esta parte de sua ciência. Um de seus discípulos, menos escrupuloso, a divulgou; mas como faltaram as provas e as verdades se achavam perdidas no meio de erros e de divagações místicas, a revelação passou despercebida. Não basta emitir uma ideia justa; é preciso saber fazer aceitá-la. Assim, Copérnico e Galileu, os vulgarizadores do verdadeiro sistema cosmológico, são considerados como os seus inventores, embora a noção primeira se perca na noite dos tempos.

[7] Terra e Céu.

[8] Histoire de France, 4a edição, tomo I.

[9] (Folhetim da Presse, de 19 de outubro de 1854). Nem todos os autores antigos desconheceram o lado belo da religião dos druidas, como testemunham esses versos de Lucain: Vobis auctoribus, umbrae Non tacitas Erebi sedes, Ditisque profundi Pallida regna petunt: regit idem spiritus artus Orbe alio: longae (canitis si cognita) vitae Mors media est. “Segundo vós, druidas, as sombras não descem às silenciosas regiões do Erebo, aos pálidos reinos do deus do abismo. O mesmo Espírito anima um novo corpo em outra esfera. A morte (se os vossos hinos contêm a verdade) é o meio de uma longa vida.”

[10] Da sociedade primitiva e de suas leis, livro III.

[11] História de minha vida.

[12] O Pássaro.

[13] Goethe parecia partilhar desta maneira de ver, quando exclamava em uma de suas cartas à encantadora senhora de Stein: “Por que o destino nos ligou tão estreitamente? Ah! em tempos passados, tu foste minha irmã ou minha esposa! Conheceste os meus menores traços, e espreitaste a mais pura vibração de minhas fibras, soubeste ler-me num olhar, a mim, que um olhar humano dificilmente penetra! ( Revue germanique, dezembro de 1865).

Victor Meunier não está longe de crer também no renascimento do homem na Terra: “A sorte dos que vierem depois de nós, diz ele, não me encontra indiferente, longe disto! Assim como não me está demonstrado que nós não nos sucederemos a nós mesmos.” ( A Ciência e os sábios  em 1865, 2º semestre.)

 

[14] Da Humanidade.

Outubro de 1868

Meditações

POR C. TSCHOKKE

(Artigo enviado de São Petersburgo)

Entre os livros de alta piedade, cujos autores, penetrados das verdadeiras ideias cristãs, tratam todas as questões religiosas e abstratas com um zelo esclarecido, isento de preconceitos e de fanatismo, um dos que gozam na Alemanha de maior estima, merecida em todos os aspectos, é, sem contradita, o que tem por título Horas de Piedade (Stunden der Andacht), por C. Tschokke, distinto escritor suíço, autor de muitas obras literárias, escritas em língua alemã e muito apreciadas na Alemanha. Este livro teve, desde 1815, mais de quarenta edições. Os supostos ortodoxos, mesmo protestantes, em geral acham que o livro é muito liberal em suas ideias, em matéria de religião, e que o autor não se apoia suficientemente nos dogmas e nas decisões dos Concílios; mas os crentes esclarecidos, os que procuram as consolações da religião e desejam adquirir as luzes necessárias para compreender as suas verdades, depois de o terem lido e meditado, farão plena justiça às luzes e à tocante piedade do autor.

Damos aqui a tradução de duas meditações contidas nesse livro notável, porque encerram ideias inteiramente espíritas, expostas com perfeita exatidão, há mais de cinqüenta anos. Numa e noutra se acham uma definição muito exata e admiravelmente elaborada do corpo espiritual  ou perispírito, ideias muito sãs e muito lúcidas sobre a ressurreição  e a pluralidade das existências, através das quais já se entrevê a grande luz da sublime doutrina da reencarnação, esta pedra angular do Espiritismo moderno.

W. Foelkner

141ª Meditação do Nascimento e da Morte

O nascimento e a morte são ambos cercados de trevas impenetráveis. Ninguém sabe de onde veio, quando Deus o chamou; ninguém sabe aonde irá, quando Deus o chamará. Quem poderia dizer-me se eu já não existi, antes de tomar o meu corpo atual? O que é esse corpo, que pertence tão pouco ao meu eu, que, durante uma existência de cinquenta anos, eu o teria mudado várias vezes como uma roupa? Eu não tenho mais a mesma carne e o mesmo sangue que tinha quando era amamentado, nos anos de minha juventude e na maturidade; as partes de meu corpo, que me pertenceram durante a primeira idade, já estão, desde muito tempo, dissolvidas e evaporadas. Só o Espírito permanece o mesmo durante todas as variações que sofre o seu invólucro terreno. Por que necessitaria eu, para a minha existência, do corpo que possuía quando era pequenino? Se existi antes dele, onde estava eu? E quando me desembaraçar de minha roupa atual, onde estarei? Ninguém me responde. Vim aqui como que por milagre e é por milagre que desaparecerei. O nascimento e a morte lembram ao homem esta verdade tantas vezes esquecida, a de que ele se encontra sob o poder de Deus.

Mas essa verdade é, ao mesmo tempo, uma consolação. O poder de Deus é o poder da sabedoria, o encanto do amor. Se o começo e o fim de minha vida são envoltos em trevas, devo pensar que deve ser um benefício para mim, como tudo o que vem de Deus é benefício e graça. Quando tudo ao meu redor proclama sua sabedoria suprema e sua bondade infinita, posso crer que as trevas que cercam o berço e o ataúde são as únicas exceções? É possível que eu já tenha existido uma vez, mesmo várias vezes? Quem conhece os mistérios da natureza dos Espíritos?[1] Minha presença não seria talvez uma fraca imagem da existência eterna? Já não vejo aqui a minha passagem da eternidade à eternidade, como num espelho opaco?

Eu ousaria embalar-me em estranhos pressentimentos? Esta vida seria realmente uma imagem em miniatura da existência eterna? Que seria se eu já tivesse tido várias existências, se cada uma delas fosse uma hora de vigília da infância de meu Espírito e cada mudança de seu envoltório, de suas relações ou o que se chama morte, uma letargia para um despertar com forças novas? É verdade que me é impossível saber quantas vezes e como existi, antes que Deus me tivesse chamado à existência atual; mas a criança de peito sabe mais do que eu de suas primeiras horas? Então perdeu tanto que não possa lembrar-se de seu primeiro sorriso e de suas primeiras lágrimas? Quando tiver mais idade não se recordará mais, muito certamente, mas saberá o que foi nos seus primeiros anos; saberá que sorriu, chorou, velou, dormiu, sonhou, absolutamente como os outros. Se aqui é possível, por que seria impossível que um dia, depois de uma viagem mais elevada de meu Espírito imortal, pudesse este lembrar-se e analisar a carreira percorrida, as diversas circunstâncias em que se encontrou durante sua viagem e os mundos em que habitou? Em que degrau de idade estou agora colocado? Assemelho-me ainda à criança que, uma hora depois, já esqueceu os acontecimentos da hora precedente e não está em condição de guardar a lembrança de um sonho que, tendo-a transportado à vida exterior, a separou da vigília precedente; mas me pareço com uma criança que, todavia, já sabe reconhecer os seus pais. Esquece os prazeres e os desgostos do momento decorrido; mas, a cada despertar, reconhece novamente suas feições queridas. Assim se dá comigo: também reconheço meu Pai, meu Deus no Todo-Eterno. Eu o teria procurado com os olhos, tê-lo-ia chamado, mesmo que ninguém me tivesse falado dEle; porque a lembrança do Pai celeste é, ao que se diz, inata em cada homem. Todos os povos guardam essa lembrança, mesmo os mais selvagens, cujas ilhas solitárias, banhadas pelo oceano, jamais foram abordadas por viajantes civilizados. Dizem inata; talvez se devesse dizer herdada, transportada de uma vida anterior, exatamente como a criancinha, de um sonho anterior a outro posterior, se refere à lembrança de sua mãe.

Mas eu caio nos sonhos! Quem está em condições de aprová-los ou rejeitá-los? Eles se assemelham às primeiras lembranças, muito vagas e muito fracas que uma criança tem de algo que lhe parece ter ocorrido em seus momentos de passadas vigílias. Nossas mais audaciosas suposições, mesmo quando as julgamos verdadeiras, não passam do reflexo fugidio e confuso de nossos sentimentos que datam de um passado esquecido. Aliás, eu não me censuro por isso. Mesmo supondo-as quiméricas, elas levantam o meu Espírito, porquanto, encarando a nossa vida terrena como uma hora de uma criança de peito, que vasta e incomensurável perspectiva da eternidade se desdobra à minha frente! Qual será, então, a juventude mais avançada, a plena maturidade de meu Espírito imortal, quando, ainda muitas vezes, eu tiver velado, dormido e subido um maior número de degraus da escada espiritual?

O dia da morte terrena tornar-se-á, então, meu novo dia de nascimento para uma vida mais elevada e mais perfeita, o começo de um sono que será seguido de um agradável despertar. A graça divina me sorrirá com um amor maior que a afeição com que uma mãe terrena sorri ao filhinho ao despertar, no momento em que este abre os olhos.

143ª Meditação da Transfiguração após a Morte

Se tenho o direito de burguesia nos dois mundos, se pertenço não só à vida terrena, mas também à vida espiritual, penso que seja muito perdoável ocupar-me algumas vezes do que me espera nesta última, para a qual um vago ardor me atrai incessantemente... Entretenho-me com muito boa vontade, em lembrança, com os que me foram caros e que a morte mos arrebatou, quanto com os que, neste mundo, me cumulam de alegria por sua presença, porque os primeiros não deixaram de existir, embora privados de um corpo material. A destruição do corpo não leva à destruição do Espírito. Continuo a vos querer, meus amigos ausentes, meus caros defuntos! Posso temer não ser mais o objeto de vossa afeição? Não, certamente; nenhum mortal tem o poder de separar Espíritos unidos por Deus, como nenhum túmulo tem esse poder.

Embora a sorte que me aguarda num outro mundo me seja oculta, penso que me seja permitido meditar algumas vezes sobre este assunto, e procurar adivinhar, pelo que aqui vejo, o que lá me poderia acontecer. Se na Terra nos é recusado ver, devemos procurar alimentar em nós a fé que tudo vivifica. — Jesus-Cristo falou muitas vezes, em alegorias elevadas, do estado da alma depois da morte do corpo, e seus discípulos também gostavam de entreter-se sobre este assunto com os seus confidentes, bem como com os que duvidavam da possibilidade da ressurreição dos mortos.

A doutrina da ressurreição dos corpos era uma das mais antigas da religião judaica. Os fariseus a ensinavam, mas de maneira grosseira e material, pretendendo que todos os corpos sepultados nos túmulos deveriam necessariamente tornar-se, um dia, o invólucro e o instrumento dos Espíritos que os tinham animado durante a vida terrena, — opinião que foi plenamente refutada por outro partido religioso judaico, os saduceus. Exortado um dia a pronunciar-se entre estas duas opiniões contrárias, o Cristo demonstrou que os dois partidos religiosos judeus haviam chegado, à força de aberrações, a erros completamente opostos; que a imortalidade da alma, isto é, a continuação de sua existência no outro mundo, ou a ressurreição dos mortos, poderia se dar e se daria infalivelmente, sem dever ser uma ressurreição grosseiramente material dos corpos, providos de todas as exigências e de todos os sentidos terrestres necessários à sua conservação e à sua reprodução. Os saduceus reconheceram a verdade de suas palavras: “Mestre, respondestes muito bem!” disseram. (Lucas, 20:27-39.)

O que Jesus não discutia em público senão muito raramente, em detalhe, tornava-se assunto de suas conversas íntimas com os discípulos. Estes tinham as mesmas ideias que ele sobre o estado da alma após a morte e sobre a doutrina judaica concernente à ressurreição. “Insensatos! — diz o apóstolo Paulo — não vedes que o que semeais não nasce, se antes  não morrer? E quando semeais, não semeais o corpo da planta que deve nascer, mas o simples grão, como de trigo ou de qualquer outra coisa. O corpo, como uma semente, agora é posto em terra cheio de corrupção e ressuscitará incorruptível. Semeia-se corpo animal, ressuscita-se corpo espiritual. Se há corpo animal, há também corpo espiritual. A carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus e a corrupção não possuirá esta herança incorruptível. (I Coríntios, 15:37 a 50.)

O corpo humano, composto de elementos terrestres, voltará à terra e entrará nos elementos que compõem os corpos das plantas, dos animais e dos homens. Esse corpo é incapaz de uma vida eterna; sendo corruptível, não pode herdar a incorruptibilidade. Um corpo espiritual  nascerá da morte, isto é, o eu espiritual  se elevará como transfigurado  acima das partes do corpo feridas pela morte, numa liberdade maior e provido de um invólucro espiritual.

Esta doutrina do Evangelho, tal como saiu das revelações de Jesus e de seus discípulos, corresponde admiravelmente ao que agora já sabemos da natureza do homem. É irrecusável que o Espírito ou alma, além de seu corpo terrestre, é, na realidade, revestido de um corpo espiritual, o qual, exatamente como a reprodução da flor de uma semente apodrecida, se liberta pela morte do corpo material.

Muitas vezes se diz, por alegoria, que o sono é irmão da morte; e o é na realidade. O sono não é senão a retirada do Espírito ou da alma, o abandono provisório feito por ela das partes exteriores e mais grosseiras do corpo. Dá-se o mesmo no momento da morte. Durante o sono, nessas partes de nosso corpo, abandonadas por algum tempo por nossa personalidade mais elevada, não reside senão a vida vegetativa. O homem fica num estado de insensibilidade, mas seu sangue circula nas veias, sua respiração continua; todas as funções da vida vegetativa estão em plena atividade, assemelhando-se às da vida inconsciente das plantas. Essa retirada passageira do elemento espiritual do homem parece necessária, de vez em quando, para o elemento material, porque este último acaba por se destruir, a bem dizer, a si mesmo, por um desgaste muito prolongado, e se enfraquece ao serviço do Espírito. A vida vegetativa, abandonada a si mesma, e deixada em repouso pela atividade do Espírito, pode então continuar a trabalhar sem entraves na sua restauração, conforme as leis de sua natureza. Eis por que, depois de um sono saudável, sentimos nosso corpo como repousado, com o que se alegra o nosso Espírito; mas, depois da morte, a vida vegetativa também abandona os elementos materiais do corpo, que lhe deviam sua ligação, e eles se desagregam.

O corpo abandonado pelo Espírito ou alma pode, em certos casos, nos parecer com vida, mesmo quando a morte verdadeira já está consumada, isto é, quando o elemento espiritual  já o deixou. O cadáver abandonado por seu Espírito continua a respirar, seu pulso a bater; diz-se: “Ele ainda vive.” Por outro lado, por vezes pode acontecer que a força vital, tendo positivamente abandonado algumas partes do corpo, estas estão verdadeiramente mortas, enquanto o Espírito e o corpo ficam unidos nas outras partes do corpo onde ainda reside a força vital.

O sono, um dos maiores segredos da existência humana, merece as nossas observações mais constantes e mais atentas; mas a dificuldade que apresentam essas observações tornam-se tanto maior quanto, para as fazer, o Espírito observador é forçado a submeter-se às leis da natureza material e de a deixar agir, para lhe dar a faculdade de se prestar mais facilmente ao seu uso e às suas experiências. Todo sono é o alimento da força vital. O Espírito aí em nada participa, porque o sono é também completamente independente do Espírito, como a digestão, a transformação dos alimentos em sangue, o crescimento dos cabelos, ou a separação do corpo dos líquidos inúteis. O estado de vigília é um consumo da força vital, sua expansão fora do corpo e sua ação exterior; o sono é uma assimilação, uma atração dessa mesma força de fora. Eis por que achamos o sono, não só nos homens e nos animais, mas também nas plantas que, à aproximação da noite, fecham as corolas de suas flores ou deixam pender suas folhas, depois de as haver plissado.

Qual é, pois, o estado de nosso elemento espiritual, durante a sua retirada de nossos sentidos exteriores? Ele não é mais apto a receber as impressões de fora, pelo uso dos olhos, dos ouvidos, pelo paladar, pelo olfato e pelo tato; mas, poder-se-ia dizer que durante esses momentos o nosso nós  se aniquilasse? Se assim fosse, nosso corpo receberia todas as manhãs um outro  Espírito, uma outra alma, em lugar daquela que estaria destruída. Tendo-se o Espírito retirado de seus sentidos, continua a viver e agir, embora não podendo manifestar-se senão imperfeitamente, tendo renunciado por algum tempo aos instrumentos de que tem o hábito de se servir ordinariamente.

Os sonhos são outras tantas provas da continuação da atividade do Espírito. O homem desperto lembra-se de ter sonhado, mas essas lembranças geralmente se tornam vagas ou obscuras pelas vivas impressões que se precipitam subitamente para o Espírito ao despertar, por intermédio dos sentidos. Se mesmo nesse momento ignora de que visões se havia ocupado durante o sono, conserva, não obstante, no momento de um despertar súbito, a consciência de que sua atenção se destacou de alguma coisa que o tinha preocupado, até então dentro de si mesmo.

O sono se compõe sempre de visões, de desejos e de sentimentos, mas que se formam de maneira independente dos objetos exteriores, já que os sentidos exteriores do homem ficam inativos; é por isso que raramente deixam uma impressão viva e durável na memória. Então o Espírito devia estar ocupado, embora não possamos, depois do sono, recordar dos resultados de sua atividade. Mas qual o homem que está em condição de se recordar dos milhares dessas rápidas visões que se apresentam ao seu Espírito, mesmo em estado de vigília, em tal ou qual hora do dia? Tem, por isso, o direito de pretender que seu Espírito não teve visões, justo no momento em que, antes de tudo, estava ativo e refletindo?

Durante o sono, o Espírito conserva o sentimento de sua existência, tão bem quanto em vigília. Mesmo durante o sono, sabe distinguir-se perfeitamente dos objetos de suas visões. Cada vez que nos lembramos de um sonho, achamos que era o nosso próprio eu  que, com um sentimento muito imperfeito de sua individualidade, flutuava entre as imagens de sua própria fantasia. Podemos esquecer os acessórios dos sonhos que não produzem entre nós senão uma fraca impressão, e durante os quais o nosso Espírito não reagiu fortemente por seus desejos e sentimentos. Por conseguinte, poderíamos também esquecer que então tínhamos o sentimento de nossa existência, mas isto não é uma razão para supor que este último tenha sido suspenso um só instante, pelo fato de dele não mais nos lembrarmos!

Há homens que, preocupados com graves reflexões, não sabem, mesmo em estado de vigília, o que se passa em torno deles. Seu Espírito, tendo-se retirado das partes exteriores do corpo e dos órgãos dos sentidos, concentra-se e não se ocupa senão consigo mesmo e, exteriormente, parecem sonhar ou dormir com os olhos abertos. Mas quem poderá negar que hajam guardado plenamente o sentimento de sua existência, durante esses momentos de profunda meditação, embora não vejam com os olhos e não escutem com os ouvidos? Uma outra prova da continuação incessante do sentimento de nossa existência e de nossa identidade, é o poder que possui o homem de despertar por si mesmo, numa hora por ele fixada previamente.

Consequentemente, não se pode dizer que um homem mergulhado num sono mais ou menos profundo tenha perdido a consciência de si mesmo, quando, ao contrário, traz em si o sentimento de sua existência, mas sem poder no-lo manifestar. É justamente o caso dos desfalecimentos, quando o elemento espiritual do homem se retira em si mesmo, por efeito de uma perturbação passageira e parcial de sua vida vegetativa, porque o Espírito foge a tudo o que é morto, e não se prende senão à força vital, àquilo que, por si mesmo, não passa de matéria inerte. O homem desmaiado não dá nenhum sinal exterior de vida, mas desta não está privado, como não o está durante o sono. Muitas pessoas desmaiadas, assim como os adormecidos, muitas vezes conservam a lembrança de algumas das visões que tiveram durante este estado, que tanto se avizinha do da morte; outras não as esquecem. Há desmaios durante os quis o corpo fica lívido, frio, privado de respiração e de movimento e parece inteiramente um cadáver, enquanto o Espírito, achando-se ainda em comunicação com alguns sentidos, compreende tudo o que se passa à sua volta, sem poder, como nos casos de catalepsia, dar qualquer sinal exterior de vida e de conhecimento. Quantas pessoas foram enterradas vivas desta maneira, com plena consciência de tudo quanto ordenavam para o seu enterro, por parentes ou amigos enganados por uma aparência fatal![2]

Um outro estado deveras notável do homem nos dá a prova da atividade ininterrupta do Espírito e do conhecimento de si mesmo, que jamais se perde, mesmo quando, depois, não mais se recorda. É o estado de sonambulismo. O homem adormece em seu sono ordinário. Não ouve, não vê e nada sente; mas, subitamente, tem o ar de despertar, não de seu sono, mas em si mesmo. Ouve, mas não com os ouvidos; vê, mas não com os olhos; sente, mas não pela epiderme. Anda, fala, faz muitas coisas e exerce várias funções, para o espanto geral dos assistentes, com a maior circunspeção e com mais perfeição do que em vigília. Nesse estado lembra-se, muito distintamente, dos acontecimentos passados quando em vigília, mesmo dos que esquece quando está acordado, ocasião em que está de posse de todos os sentidos. Depois de haver ficado nesse estado durante algum tempo, o sonâmbulo cai de novo no sono ordinário e quando é tirado deste, não se recorda absolutamente de nada do que se passou. Esqueceu tudo quanto disse e fez e muitas vezes se nega em acreditar o que dele contam os espectadores. Poder-se-ia, entretanto, negar a seu Espírito o conhecimento de si mesmo, assim como sua admirável atividade durante o sono sonambúlico? Quem o ousaria? O sonâmbulo, caindo novamente no sono que constitui seu despertar interior, lembra-se perfeitamente, nesse estado incompreensível para si próprio, de tudo o que fez e pensou antes num estado semelhante, e do qual havia perdido completamente a lembrança durante o estado de vigília de seus sentidos exteriores.

Como explicar este fenômeno? Como é que um homem que dorme não apenas pode ver e ouvir com os seus sentidos exteriores inativos, mas isto mais positivamente, mais perfeitamente do que em vigília? Porque sabemos que o corpo não é senão o vaso ou o envoltório exterior da alma; porque, sem esta, nada pode experimentar, e porque o olho de um cadáver vê tanto quanto o olho de uma estátua. É, pois, a alma e unicamente a alma que sente, vê e ouve o que se passa fora dela. O olho, o ouvido, etc., não passam de instrumentos e dispositivos favoráveis do envoltório exterior, para proporcionar à alma as impressões de fora. Mas há circunstâncias nas quais esse envoltório grosseiro, achando-se partido ou estragado, a alma, por assim dizer, o atravessa e continua sua ação, sem por isto necessitar de seus sentidos exteriores. Então ela reage com um acréscimo de vigor, mas completamente diverso de quando em seu estado ordinário ou de vigília, contra o que não está morto no homem.

É, pois, mesmo a alma que é o ser que sente, e não o corpo; consequentemente, é ela quem forma o verdadeiro corpo do Espírito, e o corpo material não é senão o seu arcabouço exterior, sua cobertura, seu envoltório. A experiência e inumeráveis exemplos nos provam suficientemente que o Espírito nunca perde a sua atividade e a consciência de seu eu, mesmo quando não pode lembrar-se minuciosamente de cada momento particular de sua existência. Sabendo que o Espírito, absorvido em profundas reflexões, perde de vista seu próprio corpo e tudo o que o cerca; que, em certas doenças, pode achar-se na absoluta impossibilidade de agir sobre as partes exteriores de seu corpo e, algumas vezes, delas prescindir completamente (como no estado de sonambulismo), para a execução de seus desígnios, devemos compreender claramente como o Espírito imortal, tendo deixado o seu invólucro material e perecível, conserva, depois de sua morte terrestre, a consciência e o sentimento de sua existência, embora se achando fora do estado de poder manifestá-lo aos vivos, por meio do cadáver, já que este não lhe pertence mais. Ao mesmo tempo, compreendemos o que é o corpo espiritual, de que fala o apóstolo Paulo; o que devemos entender por corpo imperecível, que deve renascer do corpo perecível (I Cor., 15:4); como a fraqueza se abate e é semeada no túmulo, e como a força se eleva e se lança para o céu, madura para uma vida melhor (I Cor., 15:43). Eis a verdadeira ressurreição da morte, a ressurreição espiritual. O que em nós é pó deve voltar ao pó e às cinzas; mas o Espírito, vestido num corpo transfigurado, leva daí em diante a imagem do céu, exatamente como até agora tinha levado a imagem da Terra (I Cor., 15:49). O corpo terrestre, apodrecendo no túmulo, nada mais sente, mas também jamais sentiu por si mesmo. Era, pois, o corpo espiritual, a alma, que percebia e sentia tudo. Assim ela continuará a fazê-lo, livre de seu vaso partido, mas apenas de uma maneira infinitamente mais delicada e mais pronta. Tendo o Espírito consciência de si mesmo em seu envoltório espiritual, poderia perfeitamente e infinitamente melhor ainda, admirar a glória de Deus em suas criações, e ao mesmo tempo possuir as faculdades de ver e amar os que lhes são caros; mas não mais experimentará necessidades materiais e sensuais, não terá mais lágrimas. Tornar-se-á a imagem do céu, que é a sua verdadeira pátria.

Que sentirei no momento em que me chamares a ti, meu Criador, meu Pai! no momento de minha transfiguração, quando, cercado de meus bem-amados, chorando em volta de mim e vendo meus bem-amados que me precederam aproximar-se de mim, eu os bendirei a todos com igual amor! E quando, santificado por Jesus-Cristo, participando de seu reino, eu me apresentar diante de ti, ó meu Deus! adorando-te com o mais vivo reconhecimento, com a mais profunda veneração, com a admiração sem limites! Que meu Espírito imortal esteja então bastante maduro  para gozar esta felicidade suprema! Amém.


 

Doutrina de Lao-Tseu — Filosofia Chinesa

Devemos a notícia seguinte à gentileza e ao zelo esclarecido de um dos nossos correspondentes de Saigon (Cochinchina).

No século VI antes de nossa era, portanto quase ao mesmo tempo que Pitágoras, e dois séculos antes de Sócrates e Platão, vivia na província de Lunan, na China, Lao-Tseu, um dos maiores filósofos que jamais existiram. Oriundo da mais ínfima origem, Lao-Tseu não teve outros meios de instruir-se senão a reflexão e numerosas viagens. Chegado à idade de cerca de cinqüenta anos, seja porque suas disposições filosóficas, desenvolvidas pelo estudo, tenham enfim produzido os seus frutos, seja porque, inconscientemente, ele tenha combinado esses frutos com uma revelação particular, escreveu seu livro A razão suprema e a virtude, obra considerada como autêntica, a despeito de sua antiguidade, pelos historiadores chineses de todas as seitas, e com tanto mais autoridade quanto, certamente, não foi incluída no incêndio de livros ordenado pelo imperador Loang-Ti, duzentos anos antes da era cristã.

Para maior clareza, digamos, antes de mais, o que Lao-Tseu designava pela palavra tao. Era uma denominação dada por ele ao primeiro ser; impotente que era para o chamar por seu nome eterno e imutável, qualificava-o por seus principais atributos: tao, razão suprema. À primeira vista parece que o termo chinês... (Aqui o nosso correspondente transcreve esta palavra em caracteres chineses, que o nosso impressor não pôde reproduzir), cuja pronúncia figurada é tas, tem alguma analogia, do ponto de vista fonético, com o Théos  dos gregos, ou o Deus  dos latinos, de onde veio o nosso vocábulo Deus. E, contudo, ninguém acredita que a língua chinesa e a língua grega jamais tenham tido pontos comuns. Aliás, a anterioridade reconhecida da nação e da civilização chinesa basta para provar que esta expressão é um idiotismo chinês.[3]

O tao, ou a razão suprema universal de Lao-Tseu, tem duas naturezas ou modos de ser: o modo espiritual ou imortal e o modo corporal ou material. A natureza espiritual é a natureza perfeita; dela é que emanou o homem; é a ela que ele deve voltar, desprendendo-se dos laços materiais do corpo; o aniquilamento de todas as paixões materiais, o afastamento dos prazeres mundanos, são meios eficazes de se tornar digno de a ela retornar. Mas escutemos falar o próprio Lao-Tseu. Servir-me-ei da tradução de Pauthier, sinólogo tão erudito quão consciencioso. Seus trabalhos sobre a filosofia chinesa e sua doutrina são tanto mais notáveis e isentos de suspeita quanto, morto há muito tempo, ignorava até o nome da Doutrina Espírita.

Na vigésima primeira seção da razão suprema, Lao-Tseu estabeleceu uma verdadeira cosmogonia:

“As formas materiais do grande poder criador não passam de emanações do tao; é o tao  que produziu os seres materiais existentes. (Antes) não havia senão uma confusão completa, um caos indefinível; era um caos! Uma confusão inacessível ao pensamento humano.

“Em meio a esse caos havia um princípio sutil, vivificante; esse princípio sutil, vivificante era a suprema verdade.

“Em meio a esse caos havia seres, mas seres em germes; seres imperceptíveis, indefinidos.

“Em meio a esse caos havia um princípio de fé. Desde a antiguidade até os nossos dias, seu nome não desapareceu. Examina com cuidado o bem de todos os seres. Mas nós, como conhecemos as virtudes da multidão? Por esse tao, essa razão suprema.

“Os seres de formas corporais são formados da matéria primeira, confusa.

“Antes da existência do Céu e da Terra havia um silêncio imenso, um vazio incomensurável e sem formas perceptíveis.

“Só ele existia, infinito, imutável. Circulava no espaço sem experimentar qualquer alteração.

“Pode-se considerá-lo como a mãe do Universo; eu ignoro o seu nome, mas o designo por seus atributos, e o digo Grande, Elevado.

 “Sendo (reconhecido) grande, elevado, eu o chamo: grande ao longe.

“Sendo (reconhecido) grande ao longe, eu o chamo: distante, infinito.

“Sendo (reconhecido) distante, infinito, eu o chamo: o que é oposto a mim.

“O homem tem a sua lei na Terra;

“A Terra tem a sua lei no Céu;

“O Céu tem a sua lei no Tao  ou a razão suprema universal;

“A razão suprema tem a sua lei em si mesma.”

Em outro lugar diz Lao-Tseu:

“É preciso esforçar-se para chegar ao último grau da incorporeidade, a fim de poder conservar a maior imutabilidade possível.

“Todos os seres aparecem na vida e realizam os seus destinos; contemplamos as suas renovações sucessivas. Esses seres materiais se mostram incessantemente com novas formas exteriores. Cada um deles retorna à sua origem.

“Retornar à sua origem significa tornar-se em repouso;

“Tornar-se em repouso significa cumprir o seu mandato;

“Cumprir o seu mandato significa tornar-se eterno;

“Saber que se torna eterno (ou imortal) significa ser esclarecido;

 “Não saber que se torna imortal é ser entregue ao erro e a todas as sortes de calamidades;

“Sabendo-se que se torna imortal contêm-se e se abraçam todos os seres;

“Abraçando todos os seres numa afeição comum, é-se justo, equitativo para com todos os seres;

“Sendo justo e equitativo para com todos os seres, possuem-se os atributos do soberano;

“Possuindo os atributos do soberano, tem-se a natureza divina;

“Tendo a natureza divina, chega-se a ser identificado com o tao;

“Estando identificado com a razão suprema universal, subsiste-se eternamente; mesmo sendo o corpo posto à morte, não se deve temer nenhum aniquilamento.”

Vejamos agora qual é a moral da filosofia chinesa.

“O santo homem não tem um coração inexorável; faz o seu coração segundo o coração de todos os homens.

“Devemos tratar o homem virtuoso como um homem virtuoso; também devemos tratar o homem vicioso como um homem virtuoso: Eis a sabedoria e a virtude.

“Devemos tratar o homem sincero e fiel como um homem sincero e fiel; também devemos tratar o homem não sincero e infiel como um homem virtuoso: Eis a sabedoria e a sinceridade.”

Essas máximas correspondem ao que chamamos indulgência  e caridade. O Espiritismo, demonstrando que o progresso é uma lei da Natureza, precisa melhor este pensamento, dizendo que é necessário tratar o homem vicioso como podendo e devendo um dia, em consequência de suas existências sucessivas, tornar-se virtuoso, para o que lhe devemos fornecer os meios, em vez de o relegar entre os párias da danação eterna e pensando que nós próprios talvez tivéssemos sido piores do que ele.

Toda a doutrina de Lao-Tseu transpira a mesma mansuetude, o mesmo amor pelos homens, junto a uma elevação extraordinária de sentimentos. Sua sabedoria se revela sobretudo na passagem seguinte, na qual ele reproduz o célebre axioma da sabedoria antiga: Conhece-te a ti mesmo, sem que tenha tido conhecimento da fórmula de Tales:

“Aquele que conhece os homens é instruído;

“Aquele que se conhece a si mesmo é verdadeiramente esclarecido.

“Aquele que subjuga os homens é poderoso;

“Aquele que se domina a si mesmo é verdadeiramente forte.

“Aquele que realiza obras difíceis e meritórias deixa uma lembrança durável na memória dos homens.

“Aquele que não dissipa a sua vida é imperecível;

“Aquele que morre e não é esquecido tem uma vida eterna.”

Como faz notar o eminente tradutor, é certo que não se encontraria na Grécia, antes de Aristóteles, uma série de sorites tão logicamente encadeadas. Quanto aos princípios mesmos, constituem, seguramente, uma doutrina, e se é certo que esta nada contém de incompatível com o que admite a razão, por que não seria tão boa quanto outras, que dificilmente suportam a discussão?

Já o disseram: “A verdadeira religião, necessária à salvação, deve ter começado com o gênero humano.” Ora, desde que ela é essencialmente una, como a verdade, como Deus, a religião primitiva já era o Cristianismo, assim como o Cristianismo, depois do Evangelho, é a religião primitiva consideravelmente desenvolvida.

Nesta série de ensinamentos não vemos retraçados os mesmos princípios que servem de base ao Espiritismo, à exceção de um único ponto, a leve tendência panteísta da não distinção, ou antes, da identificação da criatura santificada com o Criador? tendência que, se viciosa, pode ser devida à influência do meio em que vivia o filósofo Lao-Tseu, talvez a uma sequência muito longa, dada a essa notável cadeia de argumentos ou, enfim, à imperfeita interpretação que demos de seu próprio pensamento.

Se, pois, como está constatado, Lao-Tseu é posto, pelos séculos, no número dessas vozes potentes de sabedoria e de razão, que as leis providenciais e naturais das sociedades humanas fazem surgir em certas épocas, para protestar energicamente contra um estado de dissolução social e reconduzir os espíritos aos destinos eternos do gênero humano; se sua doutrina pode ser a base da verdadeira religião, a qual, como vimos, sendo necessária à salvação, deve ter existido de todos os tempos. Desde que os princípios filosóficos do Espiritismo não são, em substância, senão os de Lao-Tseu, não se pode considerar a verdade da Doutrina Espírita como estando provada, moralmente, fora dos ensinamentos do Cristo?

Observação — Como se vê, os chineses não são absolutamente tão bárbaros quanto geralmente se pensa; eles são, de longa data, nossos irmãos mais velhos em civilização, e alguns dentre eles serviriam de exemplo a mais de um dos nossos contemporâneos em matéria de filosofia. Como é, então, que um povo que teve sábios como Lao-Tseu, Confúcio e outros, ainda tenha costumes tão pouco em harmonia com tão belas doutrinas? Outro tanto se poderia dizer de Sócrates, Platão, Sólon, etc., em relação aos gregos; do Cristo, cujos preceitos estão longe de ser praticados por todos os cristãos.

Os trabalhos desses homens, que aparecem de longe a longe entre os povos, como meteoros da inteligência, jamais são estéreis; são sementes que ficam durante longos anos em estado latente, que não aproveitam senão a algumas individualidades, mas que as massas são incapazes de assimilar. Os povos são lentos em modificar-se, até o momento em que um abalo violento os venha tirar de seu torpor.

É de notar que a maior parte dos filósofos pouco se preocupou em pôr em prática as suas ideias. Inteiramente voltados ao trabalho da concepção e da elaboração, não tiveram o tempo e, por vezes, nem mesmo a aptidão necessária para a execução do que concebiam. Este cuidado incumbe a outros, que dele se penetram, e são muitas vezes esses mesmos trabalhos, habilmente postos em ação, que servem, ao cabo de vários séculos, para agitar os povos e os esclarecer.

Poucos chineses, à exceção de alguns letrados, sem dúvida, conhecem Lao-Tseu. Hoje que a China está aberta às nações ocidentais, nada haveria de impossível em que estas contribuíssem para vulgarizar os trabalhos do filósofo em seu próprio país. E quem sabe se os pontos de contato existentes entre a sua doutrina e o Espiritismo não será um dia um traço de união para a aliança fraterna das crenças? O que é perfeitamente certo é que quando todas as religiões reconhecerem que adoram o mesmo Deus sob diferentes nomes; que lhe concedem os mesmos atributos de soberana bondade e justiça; e que não diferem senão na forma de adoração, os antagonismos religiosos cairão. É a esse resultado que deve conduzir o Espiritismo.


 

Exéquias da Senhora Victor Hugo

Falecida em Bruxelas, a Sra. Victor Hugo foi trazida para a França, em 30 de agosto último, para ser inumada em Villequiers (Seine-Inférieure), junto de sua filha e de seu genro. O Sr. Victor Hugo a acompanhou até a fronteira. Sobre o túmulo, o Sr. Paul Meurice pronunciou as seguintes palavras:

“Eu queria apenas lhe dizer adeus por todos nós.

“Bem o sabeis, vós que a rodeais — pela última vez! — o que era — o que é  esta alma tão bela e tão doce, este adorável espírito, este grande coração.

“Ah! este grande coração, sobretudo! Como ela gostava de amar! como gostava de ser amada! como sabia sofrer com os que amava!

“Era a esposa do maior homem que existe e, pelo coração, ela se alçava a esse gênio. Quase o igualava, de tanto o compreender.

“E é preciso que nos deixe! é preciso que a deixemos!

“Ela já voltou a amar. Reencontrou seus dois filhos, aqui — e lá (mostrando o túmulo de sua filha e o Céu).

“Victor Hugo me disse na fronteira, ontem à noite: “Dizei à minha filha que, esperando, sempre lhe envio sua mãe.”  Está dito, e creio que está entendido.

“E agora, adeus, pois! adeus pelos presentes! adeus pelos ausentes! adeus nossa amiga! adeus nossa irmã!

“Adeus, mas até à vista!”

O Sr. Paul Foucher, irmão da Sra. Victor Hugo, numa carta que escreveu no France, para dar contas da cerimônia, termina por estas palavras: “Nós nos separamos consternados, mas calmos e persuadidos, mais do que nunca, de que o desaparecimento de um ser é um encontro marcado com ele numa hora indefinida.”

Nesta ocasião, julgamos dever lembrar a carta do Sr. Victor Hugo ao Sr. Lamartine, quando da morte da esposa deste último, em 23 de maio de 1863, e que a maioria dos jornais da época reproduziu.

“Caro Lamartine,

“Uma grande desgraça vos fere; preciso pôr o meu coração junto do vosso. Eu venerava aquela a quem amáveis. Vosso alto espírito vê além do horizonte; percebeis distintamente a vida futura.

“Não é a vós que é preciso dizer: esperai. Sois dos que sabem, e que esperam.

“Ela é sempre a vossa companheira, invisível, mas presente. Vós perdestes a mulher, mas não a alma. Caro amigo, vivamos nos mortos.

Tuus

Victor Hugo

As palavras pronunciadas pelo Sr. Victor Hugo, e o que escreveu em diversas circunstâncias provam que ele crê, não somente nessa vaga imortalidade, na qual, com pouquíssimas exceções, todo o gênero humano acredita, mas nesta imortalidade claramente definida, que tem um objetivo, satisfaz à razão e dissipa a incerteza sobre a sorte que nos espera; que nos representa as almas ou Espíritos dos que deixaram a Terra como seres concretos, individuais, povoando o espaço, vivendo em meio de nós, com a lembrança do que aqui fizeram, beneficiando-se do progresso intelectual e moral realizado, conservando suas afeições, testemunhas invisíveis de nossas ações e de nossos sentimentos, comungando pensamentos com os que lhes são caros; numa palavra, nesta imortalidade consoladora, que enche o vazio deixado pelos ausentes e pela qual se perpetua a solidariedade entre o mundo espiritual e o mundo corporal. Ora, aí está todo o Espiritismo. Que acrescenta ele a isto? a prova material daquilo que não era, até ele, senão uma teoria sedutora. Enquanto certas pessoas chegaram a esta crença pela intuição e pelo raciocínio, o Espiritismo partiu do fato e da observação.

Sabe-se em consequência de que dolorosa catástrofe o Sr. Victor Hugo perdeu sua filha e seu genro, o Sr. Charles Vacquerie, no dia 4 de setembro de 1843. Eles se dirigiam, em barco à vela, de Villequiers a Caudebec, em companhia de um tio do Sr. Vacquerie, antigo marinheiro, e de um menino de dez anos. Uma ventania fez soçobrar a embarcação e os quatro pereceram.

Que de mais significativo, marcado de mais profunda e mais justa ideia da imortalidade que estas palavras: Dizei à minha filha que, esperando, sempre lhe envio sua mãe!  Que calma, que serenidade, que confiança no futuro! Dir-se-ia que sua filha apenas partira para uma viagem, à qual manda dizer: “Envio-te tua mãe, esperando que eu vá vos encontrar.” Quanta consolação, quanta força, quanta esperança não se haure nesta maneira de compreender a imortalidade! Não é mais a alma perdida no infinito, que a própria certeza de sua sobrevivência não deixa nenhuma esperança de reencontrar; deixando para sempre a Terra e aqueles a quem amou, quer ela esteja nas delícias da beatitude contemplativa ou nos tormentos eternos do inferno, a separação é eterna. Compreende-se a amargura dos pesares com uma tal crença; mas, para aquele pai, sua filha está sempre lá; receberá sua mãe ao sair de seu exílio terrestre e escuta as palavras que ele lhe manda dizer!

Quem quer que tenha chegado a isto é espírita, porque, se quiser refletir seriamente, não pode escapar a todas as consequências lógicas do Espiritismo. Os que repelem essa qualificação são os que, não conhecendo do Espiritismo senão os quadros ridículos da crítica zombeteira, dele fazem uma ideia falsa. Ao contrário, se se dessem ao trabalho de o estudar, de o analisar e de lhe sondar o alcance, sentir-se-iam felizes por encontrar nas ideias que constituem a sua felicidade, uma sanção capaz de consolidar a sua fé. Não mais diriam apenas: “Creio, porque me parece justo”, mas “Creio porque compreendo.”

Façamos um paralelo entre os sentimentos que animaram o Sr. Victor Hugo nesta circunstância e em todas aquelas em que o seu coração recebeu semelhantes feridas, e a definição da imortalidade que dava o Figaro, de 3 de abril de 1868, sob a rubrica de: Dicionário do Figaro:

Imortalidade: Conto de enfermeiros, para tranquilizar seus clientes.


 

Efeito Moralizador da Reencarnação

O Figaro  de 5 de abril de 1868, o mesmo jornal que, dois dias antes, publicava esta definição de imortalidade: “Conto de enfermeiros, para tranqüilizar seus clientes” , e a carta referida no artigo precedente, continha o seguinte artigo:

“O compositor E... acredita firmemente na migração das almas. Ele conta, de boa vontade, que em séculos anteriores foi escravo grego, depois histrião e compositor italiano célebre, mas invejoso, impedindo os seus confrades de produzir...

“— Hoje sou punido por isto, acrescenta ele com filosofia; é a minha vez de ser sacrificado e me ver barrados os caminhos!

 “Esta maneira de consolar bem vale uma outra.”

Esta ideia é puro Espiritismo, porque não só é o princípio da pluralidade das existências, mas o da expiação do passado, pela pena de talião, nas existências sucessivas, segundo a máxima: “Sempre se é punido por onde se pecou.” Esse compositor assim explica as suas tribulações; consola-se pelo pensamento de que não tem senão o que merece; a consequência deste pensamento é que, para não o merecer novamente, é de seu próprio interesse buscar melhorar-se; isto não é melhor do que queimar o cérebro, o que logicamente o conduziria ao pensamento do nada?

Esta crença é, pois, uma causa poderosa e muito natural de moralização; é surpreendente pela atualidade e pelo fato material das misérias que se suporta e que, por não se poder explicá-las, são levadas à conta de fatalidade ou de injustiça de Deus. Ela é compreensível para todo o mundo, para a criança e para o homem mais iletrado, porque nem é abstrata, nem metafísica. Não há ninguém que não compreenda que já se possa ter vivido, e que se já viveu, pode viver ainda. Considerando-se que não é o corpo que pode reviver, é a sanção mais patente da existência da alma, de sua individualidade e de sua imortalidade.

É, pois, para a popularizar que devem tender os esforços de todos os que se ocupam seriamente do melhoramento das massas; é para eles uma poderosa alavanca, com a qual farão mais do que pela ideia dos diabos e do inferno, de que hoje se riem.

Como ela está na ordem do dia, germina de todos os lados e sua lógica o faz aceitar facilmente, muito naturalmente ela abre aos espíritas uma porta para a propagação da doutrina. Que se liguem, pois, a essa ideia, da qual ninguém ri, que é aceita pelos mais sérios pensadores e farão mais prosélitos por esta via do que pela das manifestações materiais. Desde que é hoje a corda sensível, é esta que se deve atacar; e quando tiver vibrado, o resto virá por si mesmo. Não faleis, pois, àqueles a quem apavora a simples palavra Espiritismo; falai da pluralidade das existências, dos numerosos escritores que preconizam esta ideia; falai também sobretudo aos aflitos, como o faz o Sr. Victor Hugo, da presença, em torno de nós, dos seres queridos que perdemos; eles vos compreenderão e, mais tarde, ficarão muito surpreendidos de ser espíritas sem o haver suspeitado.


 

Profissão de Fé Materialista

O Figaro  de 3 de abril de 1868 continha a carta seguinte, a propósito dos debates que se deram por esta época no Senado, relativamente a certas lições professadas na Escola de Medicina.

“Paris, 2 de abril de 1868.

“Senhor redator,

“Um erro que me concerne resvalou na última palestra do doutor Flavius. Eu não assisti à aula de abertura do Sr. Sée, o ano passado e, por conseguinte, não tenho direito a nenhum papel nessa história. Aliás, é um erro de forma, e não de fundo; mas, a cada um os seus atos. Há que substituir meu nome pelo de meu amigo Jaclard, que não acredita mais do que eu na alma imortal. E, a bem dizer, eu quase não vejo em todo o Senado senão o Sr. Sainte-Beuve, que ousou, na ocasião, confiar-nos os cuidados de seus molares ou a direção de seu tubo digestivo.

“E já que tenho a palavra, permiti-me mais uma. É preciso terminar com uma brincadeira que começa a tornar-se irritante, além de ter o ar de um retrocesso. A Escola de Medicina, diz o doutor Flavius, mais forte em partos do que em filosofia, nem é ateísta, nem materialista: é positivista.

“Mas, na verdade, o que é o positivismo, senão um ramo dessa grande escola materialista, que vai de Aristóteles e de Epicuro até Bacon, até Diderot, até Virchow, Moleschoff e Büchner, sem contar os contemporâneos e compatriotas que não cito — por isto mesmo.

“A filosofia de A. Comte teve a sua utilidade e a sua glória no tempo em que o ‘cousinismo’ reinava como senhor. Hoje que a bandeira do materialismo foi erguida na Alemanha por nomes ilustres, na França por gente moça, em cujo meio tenho orgulho e pretensão de me contar, é bom que o positivismo se recolha ao modesto papel que lhe convém. É bom, sobretudo, que não afete por mais tempo, a respeito do materialismo, seu mestre e seu antepassado, um desdém ou reticências que são, no mínimo, inoportunas.

“Recebei, senhor redator, a segurança de minha distinta consideração.”

A. Regnard,

Antigo interno dos hospitais

Como se vê, o materialismo também tem o seu fanatismo. Há alguns anos apenas ele não teria ousado exibir-se tão audaciosamente; hoje traz abertamente o desafio ao espiritualismo, e o positivismo já não é, aos seus olhos, suficientemente radical. Tem suas manifestações públicas, e é ensinado publicamente à juventude; tem a mais o que censura nos outros: a intolerância, que vai até a intimidação. Imagine-se o estado social de um povo imbuído de semelhantes doutrinas!

Esses excessos, no entanto, têm a sua utilidade, a sua razão de ser; amedrontam a sociedade, e o bem sempre sai do mal. É preciso o excesso do mal para fazer sentir a necessidade do melhor, sem o que o homem não sairia de sua inércia; ficaria impassível diante de um mal que se perpetuaria em favor de sua pouca importância, ao passo que um grande mal desperta sua atenção e lhe faz buscar os meios de o remediar. Sem os grandes desastres ocorridos no início das estradas de ferro, e que apavoravam, já que os pequenos acidentes isolados passavam quase despercebidos, ter-se-iam desprezado as medidas de segurança. No moral é como no físico: quanto mais excessivos os abusos, mais próximo está o termo.

A causa primordial do desenvolvimento da incredulidade está, como temos dito muitas vezes, na insuficiência das crenças religiosas, em geral, para satisfazer a razão, e no seu princípio de imobilidade, que lhes interdita toda concessão sobre os seus dogmas, mesmo diante da evidência. Se, em lugar de ficarem na retaguarda, elas tivessem seguido o movimento progressivo do espírito humano, mantendo-se sempre no nível da Ciência, por certo difeririam um pouco do que eram no princípio, como um adulto difere da criança de berço, mas a fé, em vez de se extinguir, teria crescido com a razão, porque é uma necessidade para a Humanidade, e elas não teriam aberto a porta à incredulidade que vem sapar o que delas resta; recolhem o que semearam.

O materialismo é uma consequência da época de transição em que estamos; não é um progresso, longe disso, mas um instrumento de progresso. Desaparecerá, provando a sua insuficiência para a manutenção da ordem social e para a satisfação dos espíritos sérios, que procuram o porquê de cada coisa; para isto era necessário que o vissem em ação. A Humanidade, que precisa crer no futuro, jamais se contentará com o vazio que ele deixa atrás de si, e procurará algo de melhor para o compensar.


 

Profissão de Fé Semi-Espírita

Em apoio às reflexões contidas no artigo precedente, reproduzimos com prazer a carta seguinte, publicada pelo Petite-Presse  de 20 de setembro de 1868.

“Les Charmettes, setembro de 1868.

 “Meu caro Barlatier,

“Sabeis a canção:

Quando se é basco e bom cristão...

“Sem ser basco, sou bom cristão, e o cura de minha aldeia, que ontem comia a minha sopa de couve, me permite que vos conte a nossa conversa.

“— Então ides retomar o Rei Henrique? — Com tanto melhor vontade, respondi, quanto eu vivi naquele tempo. — Meu digno cura teve um sobressalto.

“Então lhe comuniquei minha convicção de que já tínhamos vivido e que viveríamos ainda. Nova exclamação do bravo homem. Mas, enfim, reconheceu que as crenças cristãs não excluem esta opinião e deixou que eu seguisse o meu caminho.

“Ora, meu caro amigo, acreditai mesmo que eu não quis divertir-me com a candura do meu cura, e que esta convicção de que falo está fortemente arraigada em mim. Vivi ao tempo da Liga, sob Henrique III e Henrique IV. Quando eu era criança, meus avós me falavam de Henrique IV, e de um indivíduo que eu não conhecia absolutamente, um monarca grisalho, enfiado numa gola plissada, devoto ao excesso e jamais tendo ouvido falar da Belle Gabrielle. Era o do padre Péréfixe. O Henrique IV que conheci, batalhador, amável, fino, um pouco esquecido, é o verdadeiro. É aquele de quem já falei e vos falarei ainda.

“Não riais. Quando vim a Paris pela primeira vez, reconhecei-me por toda parte nos velhos bairros e tive uma vaga lembrança de me haver encontrado na rue de la Ferronnerie, no dia em que o povo perdeu o seu bom rei, aquele que tinha querido que cada francês tivesse aos domingos uma galinha na panela. Que era eu nesse tempo? Pouca coisa, sem dúvida um cadete da Provença ou da Gasconha. Mas se tivesse estado nas guardas de meu herói, isto não me surpreenderia.

“Em breve, pois, meu primeiro folhetim da Segunda Juventude do rei Henrique.

“E crede-me todo vosso.”

Ponson du Terrail

Quando o Sr. Ponson du Terrail lançava o ridículo sobre o Espiritismo, não imaginava, e talvez ainda hoje não imagine, que uma das bases fundamentais desta doutrina é precisamente a crença da qual faz uma profissão de fé tão explícita. A ideia da pluralidade das existências e da reencarnação evidentemente ganha a literatura e não nos surpreenderíamos que Méry, que se lembrava tão bem do que tinha sido, não tenha despertado em mais de um de seus confrades, lembranças retrospectivas e não seja, entre eles, o primeiro iniciador do Espiritismo, porque o leem, ao passo que não leem os livros espíritas. Eles aí encontram uma ideia racional, fecunda, e a aceitam.

O Petite-Presse  publica, neste momento, sob o título de Sr. Médard, um romance cujo enredo é todo espírita. É a revelação de um crime pela aparição da vítima em condições muito naturais.


 

Instruções dos Espíritos — Influência dos Planetas nas Perturbações do Globo Terrestre

Extraímos o que segue de uma carta que nos é dirigida de Santa-Fé de Bogotá (Nova Granada), por um dos nossos correspondentes, o Sr. doutor Ignácio Pereira, médico, cirurgião, membro fundador do Instituto Homeopático dos Estados Unidos da Colômbia:

“Há três anos que, pela mudança das estações em nossas regiões, a do verão tornou-se muito longa e apareceram em algumas plantas doenças inteiramente desconhecidas em nosso país; as batatas foram atacadas de gangrena seca e, pelas observações microscópicas, que fiz em plantas afetadas por esta doença, reconheci que é produzida por um parasito vegetal chamado perisporium solani. Há três anos nosso globo tem sido vítima de desastres de toda sorte: inundações, epidemias, epizootias, fome, furacões, comoções do mar, terremotos têm, sucessivamente, devastado diversas regiões.

“Sabendo que quando um cometa se aproxima da Terra as estações se tornam irregulares, pensei que esses astros pudessem igualmente produzir uma ação sobre os seres orgânicos, ocasionar perturbações climatéricas, causas de certas moléstias e, talvez, influir sobre o estado psíquico do globo pela produção de fenômenos diversos.

“O Espírito de meu irmão, que interroguei a respeito, limitou-se a me responder que não é um cometa que age, mas o planeta Júpiter que, de quarenta em quarenta anos, está no seu período mais próximo da Terra, recomendando-me não prosseguir este estudo por mim só.

“Preocupado com sua resposta, estudei a crônica de quarenta anos atrás, e então fiquei sabendo que as estações foram irregulares, como hoje, em nossas regiões; sobreveio ao trigo a doença conhecida pelo nome de anublo; também houve pestes nos homens e nos animais; terremotos que causaram grandes desastres.

“Esta questão me parece importante, razão por que, se julgardes conveniente submetê-la aos Espíritos instrutores da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, eu vos ficaria muito agradecido se me désseis a conhecer a sua opinião.”

RESPOSTA

(Paris, 18 de setembro de 1868)

Na Natureza não há um fenômeno, por pouco importante que seja, que não seja regulado pelo exercício das leis universais que regem a Criação. Dá-se o mesmo nos grandes cataclismos, e se males de toda sorte castigam a Terra em certas épocas, não só é porque são necessários, em razão de suas consequências morais, mas, também, porque a influência dos corpos celestes uns sobre os outros e as reações compostas de todos os agentes naturais devem fatalmente levar a tal resultado.

Estando tudo submetido a uma série de leis, eternas como aquele que as criou, pois que não se poderia remontar à sua origem, não há um fenômeno que não esteja submetido a uma lei de periodicidade, ou de série, que provoca o seu retorno em certas épocas, nas mesmas condições, ou seguindo, como intensidade, uma lei de progressão geométrica crescente ou decrescente, mas contínua. Nenhum cataclismo pode nascer espontaneamente, ou, se seus efeitos parecem tal, as causas que o provocam são postas em ação desde um tempo mais ou menos longo. Não, são, pois espontâneos senão em aparência, pois não há um só que não esteja preparado desde muito tempo, e que não obedeça a uma lei constante.

Partilho, pois, inteiramente da opinião expressa pelo Espírito Jenaro Pereira, quanto à periodicidade das irregularidades das estações; mas quanto à sua causa, é mais complexa do que ele supõe.

Cada corpo celeste, além das leis simples que presidem à divisão dos dias e das noites, das estações, etc., sofrem revoluções que demandam milhares de séculos para a sua perfeita realização, mas que, como as revoluções mais breves, passam por todos os períodos, desde o nascimento até o apogeu do efeito, depois do que há um decréscimo até o último limite, para recomeçar em seguida a percorrer as mesmas fases.

O homem não abarca senão as fases de duração relativamente curta, e cuja periodicidade pode constatar; mas há umas que compreendem longas gerações de seres e, mesmo, sucessões de raças, cujos efeitos, por conseguinte, têm para ele as aparências da novidade e da espontaneidade, ao passo que se o seu olhar pudesse abranger alguns milhares de séculos para trás, ele veria, entre esses mesmos efeitos e suas causas, uma correlação que nem sequer suspeita. Esses períodos, que confundem a imaginação dos humanos por sua relativa duração, não são, contudo, senão instantes na duração eterna.

Lembrai-vos do que disse Galileu, em seus estudos uranográficos, que tivestes a feliz ideia de intercalar no vosso A Gênese, sobre o tempo, o espaço e a sucessão indefinida dos mundos, e compreendereis que a vida de uma ou de várias gerações, em relação ao conjunto, é como uma gota d’água no oceano. Não vos admireis, pois, de não poder perceber a harmonia das leis gerais que regem o Universo; o que quer que façais, não podeis ver mais que um pequeno canto do quadro, razão por que tantas coisas vos parecem anomalias.

Num mesmo sistema planetário, todos os corpos que dele dependem reagem uns sobre os outros; todas as influências físicas aí são solidárias, e não há um só dos efeitos, que designais sob o nome de grandes perturbações, que não seja a consequência da componente das influências de todo esse sistema. Júpiter tem suas revoluções periódicas, como todos os outros planetas, e essas revoluções não deixam de ter influência sobre as modificações das condições físicas terrestres; mas seria erro considerá-las como a causa única ou preponderante dessas modificações. Elas intervêm por uma parte, como as de todos os planetas do sistema, como os próprios movimentos terrestres intervêm para contribuir para modificar as condições dos mundos circunvizinhos. Vou mais longe: digo que os sistemas reagem uns sobre os outros, em razão da aproximação ou do afastamento que resulta de seu movimento de translação através das miríades de sistemas que compõem nossa nebulosa. Vou mais longe ainda: digo que nossa nebulosa, que é como um arquipélago na imensidade, tendo também o seu movimento de translação através de miríades de nebulosas, sofre a influência daquelas de que se aproxima. Assim, as nebulosas reagem sobre as nebulosas, os sistemas reagem sobre os sistemas, como os planetas reagem sobre os planetas, como os elementos de cada planeta reagem uns sobre os outros, e assim gradualmente, até o átomo. Daí, em cada mundo, as revoluções locais ou gerais, que só parecem perturbações porque a brevidade da vida não permite ver senão os seus efeitos parciais.

A matéria orgânica não poderia escapar a essas influências; as perturbações que ela sofre podem, então, alterar o estado físico dos seres vivos e determinar algumas dessas doenças que atacam de maneira geral as plantas, os animais e os homens. Como todos os flagelos, essas doenças são para a inteligência humana um estimulante que a impele, por necessidade, à procura dos meios de as combater, e à descoberta das leis da Natureza.

Mas, por sua vez, a matéria orgânica reage sobre o espírito; este, por seu contato e sua ligação íntima com os elementos materiais, também sofre influências que modificam suas disposições, sem, contudo, lhe tirar o livre-arbítrio, superexcitam ou retardam a sua atividade e, por isto mesmo, contribuem para o seu desenvolvimento. A efervescência, que por vezes se manifesta em toda uma população, entre os homens de uma mesma raça, não é uma coisa fortuita, nem o resultado de um capricho; tem sua causa nas leis da Natureza. Essa efervescência, a princípio inconsciente, que não passa de um vago desejo, uma aspiração indefinida por algo de melhor, uma necessidade de mudança, traduz-se por uma agitação surda, depois por atos que levam às revoluções morais, as quais, crede-o bem, também têm sua periodicidade, como as revoluções físicas, porque tudo se encadeia. Se a visão espiritual não fosse circunscrita pelo véu material, veríeis essas correntes fluídicas que, semelhantes a milhares de fios condutores, ligam as coisas do mundo espiritual e do mundo material.

Quando se vos diz que a Humanidade chegou a um período de transformação, e que a Terra deve elevar-se na hierarquia dos mundos, não vejais nestas palavras nada de místico, mas, ao contrário, a realização de uma das grandes leis fatais do Universo, contra as quais se quebra toda a má vontade humana.

Direi, em particular, ao Sr. Ignácio Pereira: Estamos longe de vos aconselhar a renúncia dos estudos que fazem parte de vossa futura bagagem intelectual; mas compreendeis, sem dúvida, que esses conhecimentos devem ser, como todos os outros, o fruto de vossos trabalhos, e não o de nossas revelações. Podemos dizer-vos: Estais perdidos, mas vós mesmos podeis eleger o verdadeiro caminho, cabendo a vós a iniciativa de levantar os véus em que ainda estão envolvidas as manifestações naturais que, até aqui, escaparam às vossas investigações, e descobrir as leis pela observação dos fatos. Observai, analisai, classificai, comparai, e da correlação dos fatos fazei as vossas deduções, mas não vos apresseis em concluir de modo absoluto.

Terminarei dizendo-vos: Em todas as vossas pesquisas tomai exemplo nas leis naturais, pois elas são todas solidárias entre si; e é esta solidariedade de ações que produz a imponente harmonia de seus efeitos. Homens, sede solidários, e avançareis harmonicamente para o conhecimento da felicidade e da verdade.

F. Arago

Permiti-me acrescentar algumas palavras, como complemento, à comunicação que acaba de vos dar o eminente Espírito Arago.

Sim, por certo a Humanidade se transforma, como já se transformou em outras épocas, e cada transformação é marcada por uma crise que é, para o gênero humano, o que são as crises de crescimento para os indivíduos; crises muitas vezes penosas, dolorosas, que arrastam consigo as gerações e as instituições, mas sempre seguidas de uma fase de progresso material e moral.

A Humanidade terrena, chegada a um desses períodos de crescimento, está plenamente, desde cerca de um século, no trabalho da transformação. É por isto que ela se agita por todos os lados, presa de uma espécie de febre e como que movida por uma força invisível, até que retome o equilíbrio sobre novas bases. Quem a vir, então, a achará muito mudada em seus costumes, em seu caráter, em suas leis, em suas crenças, numa palavra, em todo o seu estamento social.

Uma coisa que vos parecerá estranha, mas que não deixa de ser uma rigorosa verdade, é que o mundo dos Espíritos, que vos rodeia, sofre o contragolpe de todas as comoções que agitam o mundo dos encarnados; digo mais: ele aí toma uma parte ativa. Isto nada tem de surpreendente para quem quer que saiba que os Espíritos são unos com a Humanidade; que dela saem e a ela devem voltar; é, pois, natural que se interessem pelos movimentos que se operam entre os homens. Ficai, pois, certos de que quando uma revolução social se realiza na Terra, ela agita igualmente o mundo invisível; todas as paixões boas e más aí são superexcitadas como entre vós; uma indizível efervescência reina entre os Espíritos que ainda fazem parte do vosso mundo e que esperam o momento de nele entrar.

A agitação dos encarnados e dos desencarnados se juntam, por vezes e mesmo na maioria das vezes, porque tudo sofre, na Natureza, as perturbações dos elementos físicos; é então, por um tempo, uma verdadeira confusão geral, mas que passa como um furacão, depois do que o céu se torna sereno, e a Humanidade, reconstituída sobre novas bases, imbuída de novas ideias, percorre uma nova etapa de progresso.

É no período que se abre que se verá florescer o Espiritismo, e que dará os seus frutos. É, pois, para o futuro, mais que para o presente, que trabalhais; mas era necessário que esses trabalhos fossem elaborados previamente, porque preparam as vias da regeneração pela unificação e pela racionalidade das crenças. Ditosos os que os aproveitam desde hoje; será para eles tanto de ganho e de penas poupadas.

Doutor Barry


 

Variedades

Belo Exemplo de Caridade Evangélica

Um lance de caridade realizado pelo Sr. Ginet, cantoneiro de Saint-Julien-sous-Montmelas, é contado pelo Écho de Fourvière:

No dia 1º de janeiro, ao cair da noite, achava-se agachada na praça de Saint-Julien uma mendiga profissional, coberta de chagas infectas, vestida de velhos trapos cheios de bichos e, não obstante isso, todos a temiam; não respondia ao bem que lhe faziam senão por socos e injúrias. Tomada de súbito enfraquecimento, teria sucumbido na calçada, não fosse a caridade do nosso cantoneiro que, dominando a repugnância, tomou-a nos braços e a levou para sua casa.

Esse pobre homem tem apenas um alojamento muito apertado, para si, a mulher doente e três filhos pequenos; não tem outro recurso senão o seu módico salário. Pôs a velha mendiga sobre um pouco de palha dada pelo vizinho e dela cuida toda a noite, procurando aquecê-la.

Ao romper do sol, essa mulher, enfraquecendo-se cada vez mais, lhe disse: “Tenho dinheiro comigo; eu vo-lo dou pelos vossos cuidados.” E acrescentou estas palavras: “o Sr. cura...” e expirou. Sem se preocupar com o dinheiro, o cantoneiro correu para procurar o cura; mas era tarde demais. A seguir apressou-se a avisar os parentes, que moram numa paróquia vizinha e que estão em posição folgada. Estes chegam e a primeira palavra é esta: “Minha irmã tinha dinheiro consigo; onde está? E o cantoneiro responde: Ela mo disse, mas não me inquietei.” Procuram e encontram, com efeito, mais de 400 francos num de seus bolsos.

Acabando a sua obra, o caridoso operário, auxiliado por uma vizinha, amortalha a pobre morta. Algumas pessoas eram de opinião que na noite seguinte ele colocasse o caixão num hangar vizinho, que estava fechado. “Não, disse ele; esta mulher não é um cão, mas uma cristã.” E a velou toda a noite em sua casa, com a candeia acesa.

Às pessoas que lhe exprimiam admiração e o aconselhavam a pedir uma recompensa, respondia: “Oh! não foi o interesse que me levou a agir. Que me deem o que quiserem, mas nada pedirei. Na posição em que estou, posso encontrar-me no mesmo caso e seria muito feliz se tivessem piedade de mim.”

— Que relação tem esse fato com o Espiritismo?  perguntaria um incrédulo. — É que a caridade evangélica, tal qual a recomendou o Cristo, sendo uma lei do Espiritismo, todo ato realmente caridoso é um ato espírita, e a ação desse homem é a aplicação da lei de caridade no que ela tem de mais puro e mais sublime, porque ele fez o bem, não só sem esperança de retribuição, sem pensar em seus encargos pessoais, mas quase com a certeza de ser pago com ingratidão, contentando-se em dizer que, em semelhante caso, quereria que tivessem feito o mesmo por ele. — Este homem é espírita? — Ignoramo-lo, mas não é provável. Em todo o caso, se não o era pela letra, era-o pelo espírito. — Se não era espírita, então não foi o Espiritismo que o levou a esta ação? — Seguramente. — Então por que o Espiritismo quer o mérito desta ação? — O Espiritismo não reivindica em seu proveito a ação desse homem, mas se vangloria de professar os princípios que o levaram a praticá-la, sem jamais ter tido a pretensão de possuir o privilégio de inspirar bons sentimentos. Ele honra o bem em qualquer parte onde se encontre; e quando seus próprios adversários o praticam, ele os oferece como exemplo aos seus adeptos.

É lamentável que os jornais sejam menos pressurosos em reproduzir as boas ações, em geral, do que os crimes e os escândalos. Se há um fato que testemunha a perversidade humana, pode-se estar certo de que será repetido linha por linha, como incentivo à curiosidade dos leitores. O exemplo é contagioso; por que não pôr antes sob os olhos das massas o exemplo do bem, em vez do mal? Há nisso uma grande questão de moralidade pública, que trataremos mais tarde, com todos os desenvolvimentos que comporta.

Um Castelo Mal-Assombrado

O relato do fato que segue nos foi enviado por um dos nossos correspondentes de São Petersburgo.

Um velho general húngaro, muito conhecido por sua coragem, recebeu uma grande herança, pediu demissão e escreveu ao seu intendente que lhe comprasse uma propriedade que estava à venda e que lhe designou.

O intendente responde imediatamente, aconselhando ao general que não comprasse a dita propriedade, pois era mal-assombrada pelos Espíritos.

O velho valente insiste, dizendo ser uma razão a mais para fazer a compra, e lhe ordenando que a faça imediatamente.

A propriedade é então comprada e o novo dono põe-se a caminho para aí se instalar. Chega às onze horas da noite à casa de seu intendente, não longe do castelo, para onde quer ir imediatamente. — Por favor, lhe diz o velho servidor, esperai até amanhã cedo e me dai a honra de passar a noite em minha casa. — Não, diz o amo, quero passá-la em meu castelo. Então o intendente é obrigado a acompanhá-lo com vários camponeses, levando tochas; mas não querem entrar e se retiram, deixando só o novo senhor.

Este tinha consigo um velho soldado, que jamais o havia deixado, e um enorme cão, capaz de estrangular um homem com um só golpe.

O velho general instala-se na biblioteca do castelo, mandar acender velas, põe um par de pistolas sobre a mesa, pega um livro e estende-se num canapé esperando os fantasmas, porque está seguro de que, se realmente os há no castelo, não são mortos, mas bem vivos. Era também por isto que havia carregado as pistolas e feito o seu cão deitar-se debaixo do canapé. Quanto ao velho soldado, já roncava num quarto contíguo à biblioteca.

Pouco tempo se passa; o general julga ouvir ruído no salão, escuta atentamente e o ruído redobra. Seguro de si, toma uma vela numa das mãos e a pistola na outra e entra no salão, onde não vê ninguém; rebusca em toda parte, até levantando as cortinas: não há nada, absolutamente nada. Então volta à biblioteca, retoma o livro e, mal havia lido algumas linhas o ruído se faz ouvir com muito mais força que da primeira vez. Retoma a vela e a pistola, entra de novo no salão e vê que abriram a gaveta de uma cômoda. Convencido desta vez de que se tratava de ladrões, mas não vendo ninguém, chama seu cachorro e lhe diz: Procure! O cachorro põe-se a tremer em todos os membros e volta para se esconder debaixo do canapé. O próprio general começa a tremer, entra na biblioteca, deita-se no canapé mas não consegue fechar os olhos a noite inteira. Contando-nos o fato, disse-nos o general: “Eu não tive medo senão duas vezes: no campo de batalha, há dezoito anos, quando uma bomba estourou aos meus pés; e, depois, quando vi o medo apoderar-se de meu cão.

Abster-nos-emos de qualquer comentário sobre o fato muito autêntico relatado acima, e nos contentaremos em perguntar aos adversários do Espiritismo como o sistema nervoso do cão foi abalado.

Perguntaremos, além disso, como a superexcitação nervosa de um médium, por mais forte que seja, pode produzir a escrita direta, isto é, pode forçar um lápis a escrever por si mesmo.

Outra questão: Cremos que o fluido nervoso retido e concentrado num recipiente poderia igualar e mesmo superar a força do vapor; mas, estando livre o dito fluido, poderia levantar e deslocar móveis pesados, como tantas vezes acontece?

Ch. Péreyra


 

Bibliografia

Correspondência inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia, sobre o futuro da alma. — O interesse que está ligado a estas cartas, que publicamos na Revista, sugeriu aos Srs. Lacroix & Cia, da Livraria Internacional, 15, Boulevard Montmartre a feliz ideia de lhes fazer uma publicação à parte. A propagação dessas cartas não poderá ter senão um efeito muito útil sobre as pessoas estranhas ao Espiritismo. — Brochura grande in-8. Preço: 50 centavos.

Allan Kardec




[1] É preciso lembrar que estas linhas foram escritas cinquenta anos antes das revelações dos Espíritos recolhidas pelo Espiritismo. (Nota do tradutor para o francês).

[2] O célebre fisiologista alemão Dr. Buchner, publicou em 1859, no no 349 do Disdascalia, jornal científico que aparecia em Darmstadt, um artigo sobre o uso do clorofórmio, no fim do qual acrescenta estas palavras muito notáveis na boca do autor de Força e Matéria: “A descoberta do clorofórmio e de seus efeitos extraordinários é não só de grande significação para a ciência médica, mas também para duas de nossas principais ciências: a fisiologia  e — não se espantem muito — a filosofia.” O que leva o doutor materialista a dizer que, mesmo sob o aspecto psicológico, o uso do clorofórmio tem algum peso, é que os pacientes, durante as operações sofridas, achando-se num estado de semi-atordoamento, produzido pelo efeito do clorofórmio, várias vezes declararam, depois de despertar, que durante a operação não haviam sentido dor, nem sentimento de angústia ou de medo, mas que sempre ouviam perfeitamente tudo o que se passava e se dizia em seu redor, sem, contudo, estar em condição de fazer qualquer movimento, nem mexer um só de seus membros.

Esse fato não vem provar positivamente a possibilidade da existência do Espírito fora da matéria, que morre desde que o Espírito que a vivificava a deixa definitivamente?

O magnetismo também não oferece provas, a bem dizer palpáveis, da existência da alma independente da matéria? E como é tratado pelos sábios e pelas academias? Em vez de lhe prestar toda a atenção e de se aplicar em estudá-lo seriamente, limitam-se a negá-lo, o que certamente é mais cômodo, mas não honra as nossas corporações científicas.

(Nota do tradutor para o francês)

[3] É quase supérfluo dizer que a palavra chinesa tao  não tem qualquer relação com o sentido da palavra francesa tas, que dela tem apenas a pronúncia figurada.

Novembro de 1868

Epidemia da Ilha Maurício

Na Revista de julho de 1867 descrevemos a terrível doença que vem devastando a ilha Maurício (antiga Ilha de França) nos últimos dois anos. O último correio nos traz cartas de dois dos nossos irmãos em crença daquele país. Numa se encontra a seguinte passagem:

“Peço que me desculpeis por ter ficado tanto tempo sem vos dar as minhas notícias. Certamente não era o desejo que me faltava, mas antes a possibilidade; como o meu tempo é dividido em duas partes — uma para o trabalho que me faz viver, e a outra para a doença que nos mata — tenho muito poucos instantes para o empregar segundo meus gostos. Contudo, estou um tanto mais tranquilo; há um mês que não tenho tido febre. É verdade que é nesta época que ela parece ceder um pouco, mas, ai! é recuar para subir mais, porque os próximos calores sem dúvida lhe vão restituir o vigor inicial. Assim, bem convencida da certeza dessa perspectiva, vivo como posso, desligando-me tanto quanto possível das vaidades humanas, a fim de facilitar minha passagem ao mundo dos Espíritos, onde, francamente, de modo algum eu lamentaria me encontrar, em boas condições, bem entendido.”

Certo dia um incrédulo dizia, a propósito de uma pessoa que exprimia um pensamento análogo, a respeito da morte: “É preciso ser espírita para ter semelhantes ideias!” Sem o querer, fazia o mais belo elogio do Espiritismo. Não é um grande benefício a calma com a qual ele faz considerar o termo fatal da vida, que tanta gente vê aproximar-se com pavor? Quantas angústias e tormentos são poupados aos que encaram a morte como uma transformação de seu ser, uma transição instantânea, sem interrupção da vida espiritual! Esperam a partida com serenidade, por que sabem para onde vão e o que serão; o que lhes aumenta a tranquilidade é a certeza não só de reencontrar os que lhes são caros, mas a de não ficarem separados dos que ficaram depois deles; de os ver e os ajudar mais facilmente e melhor do que quando vivos; não lamentam as alegrias deste mundo, porque sabem que terão outras maiores, mais suaves, sem mescla de tribulações. O que causa o temor da morte é o desconhecido. Ora, para os espíritas, a morte não tem mais mistérios.

A segunda carta contém o que segue:

“É com um sentimento de profunda gratidão que venho agradecer-vos os sólidos princípios que inculcastes em meu espírito e que, sozinhos, me deram a força e a coragem de aceitar com calma e resignação as rudes provas que venho sofrendo de um ano para cá, pelo fato da terrível epidemia que dizima a nossa população. Sessenta mil almas já partiram!

“Como deveis imaginar, a maior parte dos membros do nosso grupo de Port-Louis, que já começava a funcionar tão bem, teve, como eu, de sofrer nesse desastre geral. Por uma comunicação espontânea de 25 de julho de 1866, foi-nos anunciado que íamos ser obrigados a suspender os nossos trabalhos; três meses depois fomos forçados a descontinuá-los, em consequência da moléstia de vários de nós e a morte de nossos pais e amigos. Até este momento não pudemos recomeçar, embora todos os nossos médiuns estejam vivos, bem como os principais membros do nosso grupo. Várias vezes tentamos reunir-nos novamente, mas não o conseguimos. Eis por que cada um de nós foi obrigado a tomar conhecimento isoladamente de vossa carta, datada de 26 de outubro de 1867, à senhora G..., na qual se encontra a comunicação do doutor Demeure, que nos dá grandes e muito justos ensinamentos sobre tudo quanto sucede conosco. Cada um de nós pôde apreciar a sua justeza, pelo que lhe concerne, porque é de notar que a doença tomou tantas formas múltiplas, que os médicos jamais puderam chegar a um acordo. Cada um seguiu um método particular.

“Entretanto, o jovem doutor Labonté parece ser o que melhor definiu a doença. Quero crer que esteja certo do ponto de vista material, pois passou por todos os sofrimentos de que se faz narrador[1]. Em nosso ponto de vista espiritualista, poderíamos aí ver uma explicação do prefácio de O Evangelho segundo o Espiritismo, porque o período nefasto que atravessamos foi marcado, no começo, por uma chuva extraordinária de estrelas cadentes, caída em Maurício na noite de 13 para 14 de novembro de 1866. Embora esse fenômeno fosse conhecido, por ter sido muito frequente de setembro a novembro, em certas épocas periódicas, não é menos admirável que, desta vez, as estrelas cadentes foram tão numerosas que impressionaram e fizeram estremecer os que as observaram. Esse imponente espetáculo ficará gravado em nossa memória, porque foi precisamente depois desse acontecimento que a doença tomou um caráter lamentável. Desde esse momento, tornou-se geral e mortal, o que hoje nos pode autorizar a pensar, como diz o doutor Demeure, que chegamos ao período da transformação dos habitantes da Terra, por seu adiantamento moral.

“A propósito dos calmantes recomendados pelo doutor Demeure, falastes de castanhas-da-índia, cujo emprego seria mais vantajoso que o quinino, que afeta os órgãos cerebrais. Aqui não conhecemos esta planta; mas depois da leitura de vossa carta, onde se faz menção dela, o nome de uma outra planta me veio ao espírito por intuição: é o Croton tiglium, vulgarmente chamado em Maurício pinhão-da-índia. Empreguei-o como sudorífero, com muito sucesso, mas apenas as folhas, pois o grão é um veneno violento. Peço-vos por obséquio perguntar ao doutor Demeure o que ele pensa desta planta, e se aprova o emprego que dela fiz, como calmante, porque partilho completamente de sua opinião sobre o caráter desta doença bizarra, que me parece uma variante do ‘ramannenzaa’, ou febre de Madagáscar, salvo as manifestações exteriores.”

Se se pudesse duvidar, por um só instante, da vulgarização universal da Doutrina Espírita, a dúvida desapareceria vendo os que ela faz felizes, as consolações que proporciona, a força e a coragem que dá nos momentos mais penosos da vida, porque está na natureza do homem buscar o que possa garantir a sua felicidade e a sua tranquilidade. Aí está o mais poderoso elemento de propagação do Espiritismo, e que ninguém lho tirará, a menos que dê mais do que ele dá. Para nós é uma grande satisfação ver os benefícios que ele espalha; cada aflito consolado, cada coragem abatida levantada, cada progresso moral operado nos paga ao cêntuplo as nossas penas e as nossas fadigas; eis ainda uma satisfação que ninguém tem o poder de nos tirar.

Lidas na Sociedade de Paris, estas cartas provocaram as seguintes comunicações, que tratam da questão do duplo ponto de vista local e geral, material e moral.

(Sociedade de Paris, 16 de outubro de 1860)

Em todos os tempos fizeram preceder os grandes cataclismos fisiológicos de sinais manifestos da cólera dos deuses. Fenômenos particulares precediam a irrupção do mal, como uma advertência para se preparar para o perigo. Com efeito, essas manifestações ocorreram não como um presságio sobrenatural, mas como sintomas da iminência da perturbação.

Como se teve razão para vos dizer, nas crises em aparência as mais anormais que, sucessivamente, dizimam as diferentes regiões do globo, nada é deixado ao acaso; elas são a consequência das influências dos mundos e dos elementos uns sobre os outros (outubro de 1868); elas são preparadas de longa data e sua causa é, por conseguinte, perfeitamente normal.

A saúde é o resultado do equilíbrio das forças naturais. Se uma doença epidêmica causa estragos num lugar qualquer, não pode ser senão a consequência de uma ruptura desse equilíbrio; daí o estado particular da atmosfera e os fenômenos singulares que aí podem ser observados.

Os meteoros conhecidos pelo nome de estrelas cadentes são compostos de elementos materiais, como tudo o que cai sob os nossos sentidos; não aparecem senão graças à fosforescência desses elementos em combustão, e cuja natureza especial por vezes desenvolve, no ar respirável, influências deletérias e morbíficas. As estrelas cadentes eram, para Maurício, não o presságio, mas a causa secundária do flagelo. Por que sua ação se exerceu em particular sobre aquela região? Primeiro porque, como disse muito bem o vosso correspondente, ela é um dos meios destinados a regenerar a Humanidade e a Terra propriamente dita, provocando a partida de encarnados e a modificação dos elementos materiais; e, também, porque as causas que determinam essas espécies de epidemia em Madagáscar, no Senegal e por toda parte onde a febre palustre e a febre amarela exercem sua devastação, não existindo na Ilha Maurício, a violência e a persistência do mal deveriam determinar a pesquisa séria de sua fonte, e atrair a atenção sobre a parte que aí pudessem tomar as influências de ordem psicológica.

Os que sobreviveram, em contato forçado com os doentes e os moribundos, foram testemunhas de cenas que a princípio não se deram conta, mas cuja lembrança lhes voltará com a calma, e que não podem ser explicadas senão pela ciência espírita. Os casos de aparições, de comunicações com os mortos, de previsões seguidas de realização, aí têm sido muito comuns. Apaziguado o desastre, a memória de todos esses fatos surgirá e provocará reflexões que, pouco a pouco, levarão a aceitar as nossas crenças.

Maurício vai renascer! o ano novo verá extinguir-se o flagelo de que foi a vítima, não por efeito dos remédios, mas porque a causa terá produzido o seu efeito; outros climas, por sua vez, sofrerão a opressão de um mal da mesma natureza, ou de outra qualquer, determinando os mesmos desastres e conduzindo aos mesmos resultados.

Uma epidemia universal teria semeado o pânico na Humanidade inteira e por muito tempo detido a marcha de todo progresso; uma epidemia restrita, atacando sucessivamente e sob múltiplas formas, cada centro de civilização, produzirá os mesmos efeitos salutares e regeneradores, mas deixará intactos os meios de ação de que a Ciência pode dispor. Os que morrem são feridos de impotência; mas os que veem a morte à sua porta buscam novos meios de a combater. O perigo torna inventivo; e, quando todos os meios materiais estiverem esgotados, cada um será mesmo constrangido a pedir a salvação aos meios espirituais.

Sem dúvida é apavorante pensar em perigos dessa natureza, mas, já que são necessários e não terão senão salutares consequências, é preferível, em vez de os esperar tremendo, preparar-se para os afrontar sem medo, sejam quais forem os seus resultados. Para o materialista, é a morte horrível e o nada depois; para o espiritualista e, em particular, para o espírita, que importa o que acontecer! Se escapar ao perigo, a prova o encontrará sempre inabalável; se morrer, o que conhece da outra vida o fará encarar a passagem sem empalidecer.

Preparai-vos, pois, para tudo, e sejam quais forem a hora e a natureza do perigo, compenetrai-vos desta verdade: a morte não passa de uma palavra vã e não há nenhum sofrimento que as forças humanas não possam dominar. Aqueles a quem o mal for insuportável, serão os únicos que o terão recebido com o riso nos lábios e a indiferença no coração, isto é, que se julgarão fortes em sua incredulidade.

Clélie Duplantier

(Sociedade de Paris, 23 de outubro de 1868)

O croton tiglium  certamente pode ser empregado com sucesso, sobretudo em doses homeopáticas, para acalmar as cãibras e restabelecer a circulação normal do fluido nervoso; pode-se também usá-lo localmente, friccionando a pele com uma infusão leve, mas não seria prudente generalizar o seu uso. Não é aqui um medicamento aplicável a todos os doentes, nem a todas as fases da doença. Caso fosse de uso público, só deveria ser aplicado por indicação de pessoas que pudessem constatar a sua utilidade e lhe apreciar os efeitos; de outro modo, aquele que já tivesse experimentado a sua ação salutar, poderia, num dado caso, a ele ser completamente insensível, ou mesmo experimentar os seus inconvenientes. Não é um desses medicamentos neutros, que não fazem qualquer mal, quando não produzem o bem. Só deve ser empregado em casos especiais, e sob a direção de pessoas que possuam conhecimentos suficientes para dirigir a sua ação.

Aliás, espero que não seja necessário experimentar a sua eficácia, e que um período mais calmo se prepara para os infelizes habitantes de Maurício. Não é verdade que já estejam livres, mas, salvo exceção, em geral os ataques não são mortais, a menos que incidentes de outra natureza venham dar-lhes um caráter de gravidade particular. Em si mesma a doença toca o fim. A ilha entra no período de convalescença; pode haver algumas pequenas recrudescências, mas tenho razões para crer que a epidemia irá, de agora em diante, diminuindo até a completa extinção dos sintomas que a caracterizam.

Mas qual será a sua influência sobre os habitantes de Maurício que tiverem sobrevivido ao desastre? Que consequências deduzirão das manifestações de toda natureza, de que foram testemunhas involuntárias? As aparições, de que um grande número foi objeto, produzirão o efeito que delas se tem o direito de esperar? As resoluções tomadas sob o império do medo, do remorso e das censuras de uma consciência perturbada, não serão reduzidas a nada, quando voltar a tranquilidade?

Seria desejável que a lembrança dessas cenas lúgubres se gravasse de maneira indelével em seus espíritos, e os obrigasse a modificar a sua conduta, retificando suas crenças; porque devem estar bem persuadidos de que o equilíbrio não se restabelecerá de maneira completa senão quando os Espíritos estiverem tão despojados de sua iniquidade que a atmosfera seja purificada dos miasmas deletérios que provocaram o nascimento e o desenvolvimento do mal.

Entramos cada vez mais no período transitório, que deve levar à transformação orgânica da Terra e à regeneração de seus habitantes. Os flagelos são os instrumentos de que se serve o grande cirurgião do Universo para extirpar, do mundo, destinado a marchar para frente, os elementos gangrenados que nele provocam desordens incompatíveis como o seu novo estado. Cada órgão, ou melhor dizendo, cada região será, sucessivamente, dissecada por flagelos de diversas naturezas. Aqui, a epidemia sob todas as suas formas; ali, a guerra, a fome. Cada um deve, pois, preparar-se para suportar a prova nas melhores condições possíveis, melhorando-se e se instruindo, a fim de não ser surpreendido de improviso. Algumas regiões já foram provadas, mas seus habitantes se equivocariam redondamente se se fiassem na era de calma, que vai suceder à tempestade, para recaírem nos seus antigos erros. É uma pequena trégua que lhes é concedida, para entrarem num caminho melhor; se não o aproveitarem, o instrumento de morte os experimentará até os trazer ao arrependimento. Bem-aventurados aqueles a quem a prova feriu de começo, porque terão, para se instruírem, não só os males que sofreram, mas o espetáculo daqueles seus irmãos em humanidade, que por sua vez serão feridos. Esperamos que um tal exemplo lhes seja salutar, e que entrem, sem hesitar, na via nova, que lhes permitirá marchar de acordo com o progresso.

Seria desejável que os habitantes de Maurício não fossem os últimos a tirar proveito da severa lição que receberam.

Doutor Demeure


 

O Espiritismo em Toda Parte

A Amizade após a Morte

(Pela Sra. Rowe)

Nada é mais instrutivo e, ao mesmo tempo, mais concludente em favor do Espiritismo, do que ver as ideias sobre as quais ele se apoia, professadas por pessoas estranhas à Doutrina, e antes mesmo do seu aparecimento. Um dos nossos correspondentes de Antuérpia, que já nos transmitiu preciosos documentos a tal respeito, manda-nos o seguinte extrato de uma obra inglesa, cuja tradução, feita da 5a edição, foi publicada em Amsterdã, em 1753. Talvez jamais os princípios do Espiritismo tenham sido formulados com tanta precisão. É intitulado: A amizade após a morte, contendo as cartas dos mortos aos vivos. Pela senhora Rowe.

Página 7 — Os Espíritos bem-aventurados ainda se interessam pela felicidade dos mortais, e fazem frequentes visitas aos seus amigos. Poderiam até aparecer aos seus olhos, se as leis do mundo material não lhos impedissem. O esplendor de seus veículos [2] e o domínio que exercem sobre as forças que governam as coisas materiais e sobre os órgãos da visão poderiam facilmente lhes servir para se tornarem visíveis. Muitas vezes olhamos como uma espécie de milagre que não percebeis, porque não estamos afastados de vós em relação ao lugar que ocupamos, mas somente pela diferença de estado em que nos encontramos.

Página 12, carta III — De um filho único, morto aos dois anos, à sua mãe. — Desde o momento em que minha alma foi libertada de sua incômoda prisão, achei-me um ser ativo e racional. Admirado por vos ver chorar por uma pequena massa, apenas capaz de respirar, que eu acabava de deixar, e estava muito satisfeito por dela me ter desembaraçado, pareceu-me que estivésseis desgostosa pela minha feliz libertação. Encontrei uma tão justa proporção, tanta agilidade e uma luz tão brilhante no novo veículo que acompanhava o meu Espírito, que não podia admirar-me bastante que vos afligísseis com a feliz troca que eu fizera. Então eu conhecia tão pouco a diferença dos corpos materiais e imateriais, que me imaginava ser tão visível para vós quanto éreis para mim.

Página 37, carta VIII — Os gênios celestes que cuidam de vós nada negligenciam durante o vosso sono, para extirpar do vosso coração esse ímpio desígnio. Algumas vezes vos conduziram a lugares cobertos por uma sombra lúgubre; ali ouvistes as imprecações amargas dos Espíritos infortunados. Outras vezes, as recompensas da constância e da resignação descortinaram aos vossos olhos a glória que vos espera, se, fiel ao vosso dever, vos ligardes pacientemente à virtude.

Página 50, carta X — Como, minha cara Leonora, pudestes ter medo de mim? Quando eu era mortal, isto é, capaz de loucura e de erro, jamais vos fiz mal; muito menos vo-lo farei no estado de perfeição e de felicidade em que estou. Não resta a menor mancha de vício ou de malícia nos Espíritos virtuosos; quando estes rompem a sua prisão terrestre, tudo neles é amável e benfazejo; o interesse que tomam pela felicidade dos mortais é infinitamente mais terno e mais puro que antes.

O pavor que no mundo geralmente sentem por nós parece incrível, se não nos lembrássemos de nossas loucuras e de nossos preconceitos; mas não fazemos senão gracejar de vossos ridículos temores. Não teríeis mais razão de vos assustar e de fugir uns dos outros, do que nos temer, logo a nós que nem temos o poder nem a vontade de vos inquietar? Enquanto desconheceis os vossos benfeitores, nós trabalhamos para desviar mil perigos que vos ameaçam e em adiantar os vossos interesses com o mais generoso ardor. Se os vossos órgãos fossem aperfeiçoados e se vossas percepções tivessem adquirido o alto grau de delicadeza a que chegarão um dia, então saberíeis que os Espíritos etéreos, ornados com uma flor de divina beleza e uma vida imortal, não são feitos para produzir em vós o terror, mas o amor e os prazeres. Quisera vos curar de vossas injustas prevenções, reconciliando-vos com a sociedade dos Espíritos, a fim de estar em melhores condições de vos advertir dos perigos e dos riscos que ameaçam a vossa juventude.

Página 54, carta XI — Vosso restabelecimento surpreende os próprios anjos que, se ignoram os diversos limites que o soberano dispensador impôs à vida humana, muitas vezes não deixam de fazer justas conjecturas sobre o curso das causas secundárias e sobre o período da vida dos humanos.

Página 68, carta XIV — Desde que deixei o mundo, muitas vezes tive a felicidade de tomar o lugar do vosso anjo-da-guarda. Testemunha invisível das lágrimas que a minha morte vos fez derramar, enfim me foi permitido abrandar as vossas dores, informando-vos que sou feliz.

Página 73, carta XVI — Como os seres imateriais, sem ser percebidos, podem misturar-se em vossa companhia, na noite passada tive a curiosidade de descobrir vossos pensamentos sobre o que vos tinha acontecido na noite anterior. Para tanto, achei-me em meio àquela assembleia em que estáveis. Ali, ouvi que brincáveis com alguns de vossos amigos familiares sobre o poder da prevenção e a força de vossa imaginação. Entretanto, milorde, não sois tão visionário e tão extravagante quanto vos dizeis. Nada de mais real do que o que vistes e ouvistes, e deveis acreditar nos vossos sentidos, do contrário fareis degenerar em vício a vossa desconfiança e a vossa modéstia. Não tendes mais, meu caro irmão, senão algumas semanas de vida; vossos dias estão contados. Tive a permissão, o que acontece raramente, de vos dar algum aviso sobre o vosso destino, que se aproxima. Sei que vossa vida não foi manchada por nenhuma ação baixa ou injusta; entretanto, aparecem nos vossos costumes certas leviandades que reclamam de vossa parte uma pronta e sincera reforma. Faltas que a princípio parecem uma bagatela, degeneram em crimes enormes.

Epístola dedicatória, página 27 — A Terra que habitais seria uma morada deliciosa se todos os homens, cheios de estima pela virtude, praticassem fielmente as suas santas máximas. Julgai, pois, o excesso de nossa felicidade, pois que, ao mesmo tempo que aproveitamos todas as vantagens de uma virtude generosa e perfeita, sentimos prazeres tanto mais acima dos de que gozais, quanto o Céu o é da Terra, o tempo da eternidade e o finito do infinito. Os mundanos são incapazes de fruir dessas delícias. Que gosto encontraria, em nossas augustas assembleias, um voluptuoso? O vinho e a carne daí são banidos, o invejoso aí seria consumido pela dor ao contemplar a nossa felicidade; o avarento aí não encontraria riquezas; o jogador ocioso se aborreceria mortalmente por não mais encontrar o meio de matar o tempo. Como uma alma interessada poderia achar prazer na amizade terna e sincera, que se pode encarar como uma das principais vantagens que possuímos no Céu? é a verdadeira morada da amizade.

O tradutor diz, em seu prefácio, à pagina 7:

“Espero que a leitura de seu livro possa reconduzir à religião cristã uma certa ordem de criaturas, cujo número é muito grande neste reino, que, sem consideração aos princípios da religião natural e revelada, tratam a imortalidade da alma como pura quimera. É para estabelecer a certeza desta imortalidade que nosso autor se empenha principalmente.”

Página 9 — “Não era propriamente para os filósofos incrédulos que ela escrevia; era, como dissemos, para uma certa classe de criaturas, muito numerosas na alta sociedade, que, ocupadas inteiramente com os divertimentos frívolos do século, acharam a arte funesta de esquecer a imortalidade da alma, de se atordoar com as verdades da fé, e afastar de seu espírito ideias tão consoladoras. Bastava-lhe, pois, para realizar esse desígnio, inventar espécies de fábulas e de apólogos cheios de traços vivos, etc.”

Observação — Parece que o tradutor não acredita na comunicação dos Espíritos, já que pensa que os relatos da senhora Rowe são fábulas ou apólogos inventados pela autora, em apoio à sua tese. Entretanto, ele achou o livro tão útil que o julga capaz de reconduzir os incrédulos à fé na imortalidade da alma. Mas há aí uma singular contradição, porquanto, para provar que uma coisa existe, é preciso mostrar a sua realidade, e não a sua ficção. Ora, é precisamente o abuso das ficções que destruiu a fé nos incrédulos. Diz o simples bom-senso que não é com um romance da imortalidade, por mais engenhoso que seja, que se provará a imortalidade. Se, em nossos dias, as manifestações dos Espíritos combatem a incredulidade com tanto sucesso, é porque elas são uma realidade.

Segundo a perfeita concordância de forma e de fundo, que existe entre as ideias desenvolvidas no livro da senhora Rowe e o atual ensino dos Espíritos, não se pode duvidar que o que ela escreveu seja produto de comunicações reais.

Como é que um livro tão singular, susceptível de excitar a curiosidade no mais alto grau, bastante difundido, pois chegara à sua quinta edição e foi traduzido, tenha produzido tão pouca sensação, e que uma ideia tão consoladora, tão racional e tão fecunda em resultados tenha ficado no estado de letra morta, ao passo que, em nossos dias, bastaram alguns anos para que ela desse a volta ao mundo? Poder-se-ia dizer outro tanto de uma porção de invenções e de descobertas preciosas, que caem no esquecimento à sua aparição, e florescem alguns séculos mais tarde, quando a sua necessidade se faz sentir. É a confirmação deste princípio: as melhores ideias abortam, quando vêm prematuramente, antes que os espíritos estejam maduros para as aceitar.

Temos dito muitas vezes que se o Espiritismo tivesse vindo um século mais cedo, não teria tido nenhum sucesso; eis a prova evidente disto, porque esse livro é, seguramente, do mais puro e do mais profundo Espiritismo. Para que se pudesse compreendê-lo e apreciá-lo, seriam necessárias as crises morais, pelas quais passou o espírito humano neste último século, e que lhe ensinaram a discutir suas crenças; mas era preciso, também, que o niilismo, sob suas diferentes formas, como transição entre a fé cega e a fé raciocinada, provasse a sua impotência em satisfazer as necessidades sociais e as legítimas aspirações da Humanidade. A rápida propagação do Espiritismo em nossa época prova que ele veio em seu tempo.

Se ainda hoje se veem pessoas que têm sob os olhos todas as provas, materiais e morais, da realidade dos fatos espíritas, e que, a despeito disto, se recusam à evidência e ao raciocínio, com mais forte razão deviam ser muito mais encontradas há um século. É que seu espírito ainda é impróprio para assimilar esta ordem de ideias; elas veem, ouvem e não compreendem, o que não denota falta de inteligência, mas falta de aptidão especial; são como as pessoas a quem, embora muito inteligentes, falta o senso musical para compreender e sentir as belezas da música. É o que se deve entender quando se diz que sua hora ainda não chegou.

A Cabana do Pai Tomás

(Pela Sra. Beecher-Stowe)

Lê-se o seguinte no segundo volume dessa obra, que teve um sucesso popular nos dois mundos:

Página 10 — Meu pai era um aristocrata. Creio que, em alguma existência anterior, ele devia ter pertencido às classes da mais elevada ordem social, e que tinha trazido consigo, na atual, todo o orgulho de sua antiga casta; porque esse orgulho lhe era inerente, estava na medula de seus ossos, embora fosse de uma família pobre e plebeia.

Página 128 — Evidentemente as palavras que ele tinha cantado nessa tarde lhe atravessavam o espírito, palavras de súplica, dirigidas à infinita misericórdia. Seus lábios moviam-se fracamente e, em raros intervalos, escapava-se uma palavra. — Seu espírito divaga, diz o médico. — Não, ele volta a si, diz Saint-Claire com energia.

Esse esforço o esgotou. A palidez da morte espalhou-se em seu rosto, mas com ela uma admirável expressão de paz, como se algum Espírito misericordioso o tivesse abrigado sob suas asas. Parecia uma criança que adormece de fadiga.

Ficou assim alguns instantes; uma mão todo-poderosa repousava sobre ele. Mas, no momento em que o Espírito ia levantar seu vôo, abriu os olhos, iluminado por um clarão de alegria, como se reconhecesse um ser amado, e murmurou baixinho: “Minha mãe!”... sua alma se tinha evolado!

Página 200 — Oh! como ousa a alma perversa penetrar neste mundo tenebroso do sono, cujos limites incertos se avizinham tanto das cenas apavorantes e misteriosas da retribuição!

Observação — É impossível exprimir mais claramente a ideia da reencarnação, da origem de nossas inclinações e da expiação sofrida nas existências posteriores, pois é dito que aquele que foi rico e poderoso pode renascer na pobreza. É notável que esta obra tenha sido publicada nos Estados Unidos, onde o princípio da pluralidade das existências terrestres há muito tempo foi repelido. Ela apareceu em 1850, na época das primeiras manifestações espíritas, quando a doutrina da reencarnação ainda não havia sido proclamada na Europa. A Sra. Beecher-Stowe então a havia colhido em sua própria intuição; aí via a única razão plausível das aptidões e das propensões inatas.

O segundo fragmento citado é bem o retrato da alma que entrevê o mundo dos Espíritos no momento de sua libertação.


 

O Pecado Original Segundo o Judaísmo

Deve ser interessante, para os que o ignoram, conhecer a doutrina dos judeus relativa ao pecado original. Tiramos a explicação seguinte do jornal israelita La Famille de Jacob, que se publica em Avignon, sob a direção do grande rabino Benjamin Massé; número de julho de 1868.

“O dogma do pecado original está longe de se achar no número dos princípios do judaísmo. A lenda profunda que relata o Talmude (Nida XXX, 2) e que representa os anjos, fazendo a alma humana, no momento em que vai encarnar num corpo terrestre, prestar o juramento de se manter pura durante sua estada neste planeta, a fim de retornar pura ao Criador, é uma poética afirmação de nossa inocência nativa e de nossa independência moral da falta de nossos primeiros pais. Esta afirmação, contida em nossos livros tradicionais, é conforme ao verdadeiro espírito do judaísmo.

“Para definir o dogma do pecado original, bastar-nos-á dizer que se toma ao pé da letra o relato da Gênese, cujo caráter lendário se desconhece, e que, partindo desse ponto de vista falso, aceitam-se cegamente todas as consequências daí decorrentes, sem se preocupar com a sua incompatibilidade com a natureza humana e com os atributos necessários e eternos que a razão confere à natureza divina.

“Escravos da letra, afirmam que a primeira mulher foi seduzida pela serpente, que comeu um fruto proibido por Deus, que fez o seu esposo comê-lo, e que, por esse ato de revolta aberta contra a vontade divina, o primeiro homem e a primeira mulher incorreram na maldição do céu, não só para si, mas para os seus filhos, para a sua raça, para a Humanidade inteira, para a Humanidade cúmplice, seja qual for a distância no tempo em que se encontre dos culpados, cúmplice de seu crime, do qual é, por consequência, responsável em todos os seus membros presentes e futuros.

“Segundo essa doutrina, a queda e a condenação de nossos primeiros pais foram uma queda e uma condenação para a sua posteridade; daí, para o gênero humano, males inumeráveis, que teriam sido sem-fim, sem a mediação de um Redentor, tão incompreensível quanto o crime e a condenação para o qual foi convocado. Assim como o pecado de um só foi cometido por todos, a expiação de um só será a expiação de todos; perdida por um só, a Humanidade será salva por um só. A redenção é a consequência inevitável do pecado original.

“Compreende-se que não discutamos essas premissas com suas consequências, que para nós não são mais aceitáveis, do ponto de vista dogmático, do que do ponto de vista moral.

“Nossa razão e nossa consciência jamais se acomodarão com uma doutrina que apaga a personalidade humana e a justiça divina, e que, para explicar as suas pretensões, nos faz viver todos juntos na alma como no corpo do primeiro homem, ensinando-nos que, por mais numerosos que sejamos no curso das idades, fazemos parte de Adão em espírito e em matéria, que participamos de seu crime e que devemos ter nossa parte na sua condenação.

“O sentimento profundo de nossa liberdade moral se recusa a essa assimilação fatal, que tiraria a nossa iniciativa, que nos acorrentaria, mau grado nosso, num pecado distante, misterioso, do qual não temos consciência, e que nos faria sofrer um castigo ineficaz, pois que, aos nossos olhos, não seria merecido.

“A ideia indefectível e universal que temos da justiça do Criador, se recusa ainda mais energicamente a crer no comprometimento, pela falta de um só, dos seres livres criados sucessivamente por Deus na sucessão dos séculos.

“Se Adão e Eva pecaram, só a eles cabe a responsabilidade de seu erro; só a eles a degradação, a expiação, a redenção por meio de seus esforços pessoais para reconquistar a sua nobreza. Mas nós, que viemos após eles, que, como eles, fomos objeto de um ato idêntico da parte do poder criador, e que devemos, a esse título, ter um preço igual ao de nosso primeiro pai aos olhos do nosso Criador, nascemos com a nossa pureza e a nossa inocência, de que somos os únicos donos, os únicos depositários, e cuja perda ou conservação não dependem absolutamente senão de nossa vontade e das determinações do nosso livre-arbítrio.

“Tal é, sobre esse ponto, a doutrina do judaísmo, que nada poderia admitir que não fosse conforme à nossa consciência esclarecida pela razão.

B. M.


 

Os Lazeres de um Espírita no Deserto

Reproduzimos sem comentários as passagens seguintes, de uma carta que, em março último, nos escreveu um dos nossos correspondentes, capitão do exército na África.

“O Espiritismo se espalha no norte da África e ganhará o centro, se os franceses para ali se dirigirem. Ei-lo que penetra em Laghouat, nas bordas do Saara, a 33 graus de latitude. Emprestei os vossos livros; alguns de meus camaradas os leram; discutimos e a força e a razão ficaram com a doutrina.

“Desde alguns anos entrego-me ao estudo da Anatomia, da Fisiologia e da Psicologia comparadas. A mesma corrente de ideias arrastou-me para o estudo dos animais. Pude dar-me conta, pela observação, de que todos os órgãos, todos os aparelhos se simplificam, quando descem para as raças e espécies inferiores. Como a Natureza é bela para estudar! Como se sente o espírito espalhado por toda parte! Algumas vezes passo longas horas a seguir os hábitos e os movimentos da vida dos insetos e dos répteis desta região; assisto às suas lutas, aos seus esforços, às suas astúcias para assegurarem a sua existência; contemplo a batalha das espécies. O Saara, em cujas bordas estamos acampados há mais de um ano, tão deserto para os meus camaradas, parece-me, ao contrário, muito povoado; onde eles encontram o exílio, eu encontro a liberdade! É que sei que Deus está em toda parte e que cada um tem a felicidade em si mesmo. Quer eu esteja no pólo ou no equador, meus amigos do espaço me seguirão e sei que os caros invisíveis podem povoar as mais tristes solidões. Não que eu desdenhe a sociedade de meus semelhantes, nem que seja indiferente às afeições que conservei na França, oh não! porque me tarda rever e abraçar a minha família e todos os que me são caros; mas é somente para testemunhar que se pode ser feliz em qualquer ponto do globo em que se encontre, quando se toma Deus por guia. Para o espírita jamais há isolamento; ele sabe e se sente constantemente rodeado de seres benevolentes, com os quais está em comunhão de pensamentos.

“Vossa última obra A Gênese, que acabo de reler, e sobre diversos capítulos da qual me detive particularmente, desvenda-nos os mistérios da Criação e desfere um terrível golpe nos preconceitos. Essa leitura fez-me imenso bem e me abriu novos horizontes. Eu já compreendia a nossa origem e via em meu corpo material o último elo da animalidade na Terra; sabia que o espírito, durante sua gestação corporal, toma uma parte ativa na construção do seu ninho e apropria o seu invólucro às suas novas necessidades. Esta teoria da origem do homem poderá parecer, aos orgulhosos, atentatória à grandeza e à dignidade humanas, mas será aceita no futuro graças à sua simplicidade e à sua empolgante amplitude.

“Com efeito, a Geologia nos faz ler no grande livro da Natureza. Por ela, achamos que as espécies de hoje teriam por avós as espécies cujos restos se encontram nas camadas terrestres; não se pode mais negar que há uma progressão contínua no desenvolvimento das formas orgânicas, quando vemos aparecer primeiro os tipos mais simples. Esses tipos foram modificados pelos instintos dos próprios animais, providos de órgãos apropriados às suas novas necessidades e ao seu desenvolvimento. Aliás, a Natureza muda os tipos quando a necessidade se faz sentir; a vida multiplica gradualmente seus órgãos e os especializa. As espécies saem umas das outras, sem que seja necessária a intervenção miraculosa. Adão não saiu armado com todas as peças das mãos do Criador: muito certamente um chimpanzé o deu à luz.

As espécies não são absolutamente independentes umas das outras; elas se ligam por uma filiação secreta e pode-se mesmo considerá-las solidárias até a Humanidade. Como dissestes muito judiciosamente, desde o zoófito até o homem, há uma cadeia na qual todos os elos têm um ponto de contato com o elo precedente. E assim como o Espírito sobe e não pode ficar estacionário, assim também o instinto do animal progride, e cada encarnação faz que transponha um degrau na escala dos seres. As fases dessas metamorfoses se completam por milhares de elos, e as formas rudimentares, das quais algumas amostras se encontram nos terrenos silurianos, nos dizem por onde passou a animalidade.

“Não mais deve haver véu entre a Natureza e o homem, e nada deve ficar oculto. A Terra é o nosso domínio, cabendo a nós estudar as suas leis; a ignorância e a preguiça é que criaram os mistérios. Quanto Deus nos parece maior na harmonia e na unidade de suas leis!

“Lamento sinceramente as pessoas que se aborrecem, porque é uma prova de que não pensam em ninguém, e que seu espírito está vazio como o estômago do indivíduo que tem fome.”


 

Fenômeno de Linguística

“O Quarterly Journal of Psychological Medicine  publica um relatório muito curioso sobre uma menina que substituiu a língua falada em seu redor por uma série de nomes e verbos, formando todo um idioma, do qual se serve e que não se consegue desacostumá-la.

“A criança tem agora quase cinco anos. Até a idade de três anos ficou sem falar e não sabia pronunciar senão as palavras ‘papá’ e ‘mamã’. Quando se aproximou dos quatro anos, sua língua se desatou de repente, e hoje fala com toda a facilidade e a volubilidade de sua idade. Mas de tudo quanto diz, só as duas palavras ‘papá’ e ‘mamã’, que aprendeu primeiro, foram tiradas da língua inglesa. Todas as outras brotaram de seu pequeno cérebro e de seus lábios, e não têm mesmo nenhuma relação com esta corruptela de palavras de que se servem as crianças que com ela brincam habitualmente.

“Em seu dicionário, Gaan  significa God (Deus); migno-migno, water (água); odo, to send for, ou  take away (mandar, retirar), conforme é colocada; gar, horse (cavalo).

“Um dia, diz o Dr. Hum, começou a chover. Fizeram a menina entrar e lhe proibiram de sair enquanto a chuva não cessasse. Ela postou-se à janela e disse:

“— Gaan odo migno-migno, feu odo. (Deus, retire a chuva; traga o fogo do sol).

“A palavra feu  aplicada no mesmo sentido que na língua a que pertenço me chocou. Soube que a criança jamais tinha ouvido falar francês, coisa muito singular, e que seria interessante constatar bem, porque a criança havia tomado diversas palavras à língua francesa, tais como ‘tout’, ‘moi’ e a negação ‘ne... pas.’

 “A menina tem um irmão, cerca de dezoito meses mais velho que ela. Ela lhe ensinou a sua língua, sem tomar nenhuma das palavras de que ele se serve.

“Seus pais estão muito desolados com esse pequeno fenômeno; muitas vezes tentaram ensinar-lhe inglês, dar-lhe o nome inglês das coisas que ela designa de outro modo em seu idioma: a isso ela se recusa terminantemente. Tentaram afastá-la das crianças de sua idade e de só colocá-la em contato com pessoas idosas, falando inglês e nada conhecendo de seu pequeno jargão. Era de esperar que uma criança que se mostrava tão ávida por comunicar seus pensamentos quanto por inventar uma língua nova, procurasse aprender o inglês quando se achasse entre pessoas que só falavam essa língua. Mas não deu resultado.

“Tão logo se acha com pessoas que não tem o hábito de ver, põe-se a lhes ensinar a sua língua e, ao menos momentaneamente, os pais renunciaram a tirar-lhe esse hábito.”

Tendo sido o fato discutido na Sociedade Espírita de Paris, um Espírito deu a sua explicação na comunicação seguinte:

(Sociedade de Paris, 9 de outubro de 1868 — Médium: Sr. Nivard)

O fenômeno da pequena inglesa, falando uma língua desconhecida para os que a rodeiam, e se recusando a servir-se da deles, é o fato mais extraordinário que se produziu desde muitos séculos.

Fatos surpreendentes ocorreram em todos os tempos, em todas as épocas, que causaram admiração aos homens, mas tinham semelhantes ou similares. Certamente isto não os explica, mas eram vistos com menos surpresa. Este de que tratamos é, talvez, o único em seu gênero. A explicação que se lhe pode dar não é mais fácil nem mais difícil que as outras, mas sua singularidade é impressionante: eis o essencial.

Eu disse impressionante; não é bem a causa, mas a razão do fenômeno. Ele choca de espanto: é por isto que se produziu. Hoje que o progresso faz um certo caminho, não se contentarão em falar do fato, como se fala da chuva e do bom tempo; querem lhe procurar a causa. Os médicos nada têm a ver com isto; a fisiologia é estranha a essa singularidade; se a criança fosse muda, ou não pudesse articular algumas palavras senão com dificuldade, que não seriam compreendidas devido à insuficiência de seus órgãos vocais, os sábios diriam que isto decorre das más disposições fisiológicas, e que, fazendo desaparecerem essas más disposições, deixariam à criança o livre uso da palavra. Mas tal não é o caso aqui; a criança, ao contrário, é loquaz, tagarela, fala facilmente, chama as coisas à sua maneira, exprime-as do modo que lhe convém e vai mais longe: ensina sua língua às suas camaradas, quando está provado que não lhe podem ensinar sua língua materna e que não quer mesmo a isto se sujeitar.

A Psicologia é, pois, a única ciência na qual se deve buscar a explicação desse fato. A razão, o fim especial, eu acabo de dizer: era preciso impressionar os Espíritos e provocar suas pesquisas. Quanto à causa, tentarei vo-la dizer.

O Espírito encarnado no corpo dessa menina conheceu a língua, ou melhor, as línguas de que fala, pois faz uma mistura. Essa mistura, contudo, é feita conscientemente e constitui uma língua, cujas diversas expressões são tomadas das que esse Espírito conheceu em outras encarnações. Em sua última existência ele tivera a ideia de criar uma língua universal, a fim de permitir aos homens de todas as nações entender-se e assim aumentar a facilidade das relações e o progresso humano. Para tanto, ele tinha começado a compor esse língua, que se constituía de fragmentos de várias das que conhecia e mais gostava. A língua inglesa lhe era desconhecida; tinha ouvido ingleses falar, mas achava sua língua desagradável e a detestava. Uma vez na erraticidade, o objetivo que se tinha proposto em vida aí continuou; pôs-se à tarefa e compôs um vocabulário que lhe é particular. Encarnou-se entre os ingleses, com o desprezo que tinha por sua língua, e com a firme determinação de não a falar. Tomou posse de um corpo, cujo organismo flexível lhe permite manter a palavra. Os laços que o prendem a esse corpo são bastante elásticos para o manter num estado de semidesprendimento, que lhe deixa a lembrança bastante distinta de seu passado e o sustenta em sua resolução. Por outro lado, é ajudado por seu guia espiritual, que vela para que o fenômeno se produza com regularidade e perseverança, a fim de chamar a atenção dos homens. Aliás, o Espírito encarnado estava consentindo na produção do fato. Ao mesmo tempo que exibe o desprazer pela língua inglesa, cumpre a missão de provocar as pesquisas psicológicas.

L. Nivard, pai

Observação — Se esta explicação não pode ser demonstrada, pelo menos tem a seu favor a racionalidade e a probabilidade. Um inglês, que não admite o princípio da pluralidade das existências, e que não tinha conhecimento da comunicação acima, arrastado pela lógica irresistível, disse, falando desse caso, que ele não poderia explicar-se senão pela reencarnação, se fosse certo que a gente poderia reviver na Terra.

Eis, pois um fenômeno que, por sua própria estranheza, cativando a atenção, provoca a ideia da reencarnação, como a única razão plausível que se lhe possa dar. Antes que este princípio estivesse na ordem do dia, ter-se-ia simplesmente achado o fato bizarro e, sem dúvida, em tempos mais recuados, teriam olhado essa menina como enfeitiçada. Nós nem mesmo afirmaríamos que hoje não fosse esta a opinião de certas pessoas. O que não é menos digno de nota é que este fato se produz precisamente num país ainda refratário à ideia da reencarnação, mas à qual será arrastado pela força das coisas.


 

Música do Espaço

Trecho de uma carta de um jovem a um de seus amigos, guarda de Paris:

“Mulhouse, 27 de março de 1868.

“Há cerca de cinco anos — então eu não tinha mais que dezoito anos e ignorava até o nome do Espiritismo — fui testemunha e objeto de um estranho fenômeno, do qual só me dei conta há alguns meses, depois de ter lido O Livro dos Espíritos  e O Livro dos Médiuns. Esse fenômeno consistia numa música invisível, que se fazia ouvir no meio ambiente do quarto, e acompanhava o meu violino, no qual tomava lições naquela época. Não era uma sucessão de sons, como os que eu produzia no meu instrumento, mas acordes perfeitos, cuja harmonia era comovente; dir-se-ia uma harpa tocada com delicadeza e sentimento. Algumas vezes éramos umas doze pessoas reunidas, e todos a ouvíamos sem exceção; mas se alguém vinha escutar por mera curiosidade, tudo cessava, e desde que o curioso partia, o efeito se reproduzia imediatamente. Lembro-me de que o recolhimento contribuía muito para a intensidade dos sons. O que havia de singular é que isto só acontecia entre cinco e oito horas da noite. Entretanto, um domingo, um órgão da Barbária passava diante da casa, cerca de uma hora da tarde, e tocava uma ária que me deixou atento; logo a música invisível se fez ouvir no quarto, acompanhando aquela ária.

“Nesses momentos eu experimentava uma agitação nervosa, que fatigava sensivelmente e até me fazia sofrer; era como uma espécie de inquietude; ao mesmo tempo, todo o meu corpo irradiava um calor, que era sentido a cerca de dez centímetros.

“Depois que li O Livro dos Médiuns, tentei escrever; uma força quase irresistível levava minha mão da esquerda para a direita num movimento febril, acompanhado de grande agitação nervosa; mas ainda não tracei senão caracteres ininteligíveis.”

Tendo-nos sido comunicada esta carta, escrevemos ao rapaz para lhe pedir algumas explicações complementares. Eis as respostas às perguntas que lhe dirigimos, e que farão conjecturar facilmente as perguntas.

1º — O fato passou-se em Mulhouse, não em meu quarto, mas naquele onde eu me exercitava mais ordinariamente, situado numa casa vizinha, em companhia de dois amigos, um dos quais tocava flauta, e o outro violino; era este último que me dava lições. O fato não se produziu em nenhum outro endereço.

2º — Era necessário que eu tocasse; e se, por vezes, eu parava muito tempo, vários sons e algumas vezes diversos acordes eram ouvidos como para me convidar a continuar. Entretanto, no dia em que esta música se produziu, acompanhando um órgão da Barbária, eu não estava tocando;

3º — Essa música tinha um caráter bastante acentuado para poder ser notada; não tive a ideia de a tocar;

4º — Ela parecia vir de um ponto bem determinado, mas que mudava constantemente no quarto; fixava-se durante alguns instantes, de sorte que se podia apontar com o dedo o lugar de onde provinha; mas quando nesse lugar se procurava descobrir o segredo, logo ela mudava de lugar e se fixava alhures, ou se fazia ouvir em diferentes lugares;

5º — Esse efeito durou cerca de três meses, desde fevereiro de 1862. Eis como cessou:

Um dia, estávamos reunidos, meu patrão, um outro empregado e eu; falávamos de uma coisa e outra, quando meu patrão, sem rodeio, me fez esta pergunta: “Credes nos fantasmas?” — Não, respondi-lhe. Continuou a me interrogar e decidi contar-lhe o que se passava. Ele me escutava com muita admiração; quando terminei, ele bateu-me no ombro, dizendo: “Falarão de vós.” Falou disto a um médico, que dizem muito sábio em Física, e que lhe explicou o fato, dizendo que eu era um sensitivo, um magnetizado. Meu patrão, procurando dar-se conta da coisa, veio um dia encontrar-me em meu quarto e mandou-me tocar. Obedeci e a música invisível se fez ouvir durante alguns segundos, muito distintamente para mim, vagamente para o patrão e os assistentes. O patrão aí se pôs de todas as maneiras, sem nada obter a mais.

No domingo seguinte voltei ao quarto; era aquele em que a música se fizera ouvir, acompanhando o órgão da Barbária, sem que eu tocasse. Foi a última vez; desde então nada de semelhante se produziu.

Observação — Antes de atribuir um fato à intervenção dos Espíritos, é preciso estudar cuidadosamente todas as suas circunstâncias. Aquele de que se trata tem todas as características de uma manifestação; é provável que tenha sido produzido por algum Espírito simpático ao jovem, com o fim de o conduzir às ideias espíritas e de chamar a atenção de outras pessoas para estas espécies de fenômenos. Mas, então, perguntarão, por que esse efeito não se produziu de maneira mais retumbante? Por que, sobretudo, cessou bruscamente? Os Espíritos não têm que prestar conta de todos os motivos que os levam a agir; mas é possível que tivessem julgado o que se passou suficiente para a impressão que queriam produzir. Aliás, a cessação do fenômeno no momento mesmo em que se desejava a sua continuação, deveria ter como resultado provar que a vontade do rapaz aí não entrava por nada, e que não havia charlatanice. Sendo ouvida pelas pessoas presentes, essa música excluía qualquer efeito da imaginação, bem como de uma história para divertir; além disso, o jovem, não tendo nenhuma noção do Espiritismo, não se pode supor que sofresse a influência de ideias preconcebidas; só após vários anos é que foi capaz de explicar o fenômeno. Inúmeras pessoas estão no mesmo caso; o Espiritismo lhes traz à memória fatos perdidos de vista, que levavam à conta de alucinação e dos quais podem, doravante, dar-se conta. Os fenômenos espontâneos são o que se pode chamar de Espiritismo experimental natural.


 

O Espiritualismo e o Ideal na Arte e na Poesia dos Gregos

Por CHASSANG[3]

Nosso número do mês de agosto contém a reprodução de um artigo muito notável, tirado do jornal Droit, sobre as funestas consequências do materialismo, do ponto de vista da legislação e da ordem social; o Patrie  de 30 de julho de 1868 fazia a apreciação de uma obra sobre a influência do espiritualismo nas artes. Esses dois artigos são o corolário e complemento um do outro: no primeiro provam-se os perigos do materialismo para a sociedade, e no segundo demonstra-se a necessidade do espiritualismo, sem o qual as artes e a poesia ficam privadas de seu elemento vital.

Com efeito, o sublime da arte e da poesia é falar à alma, elevar o pensamento acima da matéria que nos oprime e da qual incessantemente aspiramos a sair; mas, para fazer vibrar as cordas da alma, é preciso ter uma alma que vibre em uníssono. Como aquele que não crê senão na matéria poderia inspirar-se e se tornar intérprete de pensamentos e sentimentos que estão fora da matéria? Seu ideal não sai do terra-a-terra, e é frio, porque nem fala ao coração nem ao espírito, mas somente aos sentidos materiais. O belo ideal não está no mundo material; deve-se, pois, buscá-lo no mundo espiritual, que é o da luz para os cegos; a impossibilidade de o atingir criou a escola realista, que não sai deste mundo, porque aí está todo o seu horizonte; estando o verdadeiro belo fora do alcance de certos artistas, declaram que o belo é feio. A fábula da raposa que tem o rabo cortado continua sempre uma verdade.

A época em que a fé religiosa era ardente e sincera é também aquela em que a arte religiosa produziu suas mais belas obras-primas; o artista se identifica com o seu assunto, porque o via com os olhos da alma e o compreendia; era o seu próprio pensamento que ele traduzia; mas à medida que a fé se foi, o gênio inspirador partiu com ela. Não é, pois, de admirar que se a arte religiosa está hoje em plena decadência, não é o talento que falta, mas o sentimento.

Dá-se o mesmo com o ideal em todas as coisas. As obras de arte não cativam senão quando fazem pensar. Pode-se admirar o talento plástico do artista, mas ele não pode suscitar um pensamento que não existe em si; pinta um mundo que não vê, não sente nem compreende; é por isso que às vezes cai no grotesco; sente-se que ele visa ao efeito e se esforçou por fazer algo novo torturando a forma: eis tudo.

Pode-se dizer outro tanto da música moderna; faz muito barulho, exige do executante uma grande agilidade dos dedos e da garganta, uma verdadeira deslocação; ela move as fibras do ouvido, mas não as do coração. Esta tendência da arte para a materialidade perverteu o gosto do público, cuja delicadeza do senso moral se acha embotada.[4]

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica do Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como dissemos, toda defesa do espiritualismo racional  rasga a via do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

O Sr. Chassang é o autor da história de Apolônio de Tiana, à qual nos referimos na Revista  de outubro de 1862.

“Esse livro, de um caráter todo especial, não foi feito por ocasião dos recentes debates sobre o materialismo e, sem sombra de dúvida, é independentemente da vontade do autor que as circunstâncias lhe vieram dar uma espécie de atualidade. Ao escrevê-lo o Sr. Chassang não pretendia fazer obra de metafísico, mas de simples literato. Todavia, como as grandes questões de metafísica estão eternamente na ordem do dia, e toda obra literária verdadeiramente digna desse nome supõe sempre um princípio filosófico, esse livro, de inspiração espiritualista muito marcante, se acha em correlação com as preocupações do momento.

“O Sr. Chassang deixa a outros a refutação do materialismo do ponto de vista filosófico puro. Sua tese é inteiramente estética. O que ele pretende provar é que a literatura e a arte não estão menos interessadas que a vida moral no triunfo das doutrinas espiritualistas. Assim como o materialismo despoetiza a vida e se dá ao cruel prazer de desencantar o homem, tirando-lhe toda esperança, toda consolação em meio dos males que o cercam, do mesmo modo subtrai impiedosamente da literatura e da arte o que chama as ilusões e as mentiras, e, sob pretexto de verdade, proclama o realismo, fazendo que os artistas e escritores não expressem senão o que é.

“As doutrinas espiritualistas, ao contrário, abrem em todos os sentidos a vida às nobres aspirações; entretêm o homem com o futuro e a imortalidade; dizem ao poeta e ao artista que há um belo ideal, do qual as mais belas criações humanas não passam de pálidos reflexos, e sobre o qual deve sempre fixar os olhos quem quer que queira seduzir os seus contemporâneos e viver para a posteridade.

 “Depois de ter, na sua introdução, desenvolvido este dado do ponto de vista geral, o Sr. Chassang procura a sua prova na mais bela das literaturas e na maior das artes que têm excitado a admiração dos homens: na literatura e na arte dos antigos gregos. Para semelhante demonstração, uma ordem rigorosa e didática é antes para fugir do que para rebuscar; assim, depois da introdução que expõe os princípios, vêm não capítulos estreitamente unidos e metodicamente relacionados, mas estudos isolados que, todos, se ligam ao mesmo assunto, inspiram-se no mesmo sentimento e convergem para o mesmo objetivo. Assim, o livro tem, ao mesmo tempo, unidade no conjunto e variedade nas partes.

“É, antes de tudo, um tratado sobre o que o autor chama com propriedade o espiritualismo popular  entre os Antigos, isto é, as crenças dos gregos e dos romanos sobre o destino das almas após a morte. Mostra que, se entre essas crenças há erros evidentes, não obstante esses erros repousam todos na esperança de uma outra vida. O culto dos mortos não contém, com efeito, implicitamente uma profissão de fé espiritualista? A última vitória do materialismo seria de o suprimir, e seus adeptos deveriam logicamente chegar a isso; do contrário, para que serviria levantar a pedra do túmulo? para que, sobretudo, cercar o túmulo de respeito, se nada há lá dentro? Assim fala o Sr. Chassang.”

Octave Sachot


 

Instruções dos Espíritos

Regeneração dos Povos do Oriente

Recebemos da Síria uma carta muito interessante sobre o estado moral dos povos do Oriente e os meios de cooperar em sua regeneração. A especialidade dessa carta não nos permite publicá-la em nossa Revista; diremos apenas que nosso honrado correspondente, iniciado nos conhecimentos dos povos da Europa, encara a questão como profundo filósofo, como homem desprendido de todo preconceito de seita, que conhece o terreno e não se ilude quanto às dificuldades apresentadas por semelhante assunto.

Ele vê no Espiritismo, que estudou seriamente, uma potente alavanca para combater os preconceitos que se opõem à emancipação moral e intelectual de seus compatriotas, em razão das próprias ideias que constituem o fundo de suas crenças e às quais seria preciso dar uma direção mais racional. Visando concorrer a essa obra ou, pelo menos, assentar suas primeiras bases, ele concebeu um projeto que houve por bem submeter-nos, pedindo que solicitássemos também a opinião dos Espíritos bons.

A comunicação que nos foi dada a esse respeito é instrutiva para todo o mundo, sobretudo nas circunstâncias atuais, razão por que julgamos dever publicá-la. Ela contém uma sábia apreciação das coisas e conselhos que outros poderão aproveitar na ocasião, e que, os especializando, também encontram a sua aplicação na maneira mais proveitosa de propagar o Espiritismo.

(Paris, 18 de setembro de 1868)

Não só é o Oriente, é a Europa, é o mundo inteiro que uma surda fermentação agita e que a menor casa pode transformar em conflagração universal, quando chegar o momento. Como diz com razão o Sr. X..., é sobre ruínas que edificaram coisas novas, e antes que a grande renovação seja um fato realizado, os trabalhos humanos e a intervenção dos elementos devem acabar de varrer do solo do pensamento os erros do passado. Tudo concorre para essa obra imensa; a hora da ação aproxima-se rapidamente e deve-se encorajar todas as inteligências que se preparam para a luta. A Humanidade deixa suas fraldas para cingir a veste viril; sacode o jugo secular; o momento não poderia ser mais propício. Mas não se pode dissimular que a tarefa é rude e que mais de um artífice será esmagado pela máquina que tiver posto em movimento, por não ter sabido descobrir o freio capaz de dominar o ímpeto da Humanidade muito bruscamente emancipada.

Ter a razão, a verdade por si, trabalhar visando ao bem geral, sacrificar seu bem-estar particular ao interesse de todos é bom, mas não é suficiente. Não se pode dar de um golpe todas as liberdades a um escravo modelado pelos séculos a um jugo severo. Só gradualmente e medindo a extensão dos limites aos progressos inteligentes e sobretudo morais da Humanidade, é que a regeneração poderá realizar-se. A tempestade que dissipa os miasmas deletérios de que uma região está infectada, é um cataclismo benéfico; mas aquela que rompe todos os diques e que, não obedecendo a nenhum freio, tudo põe em desordem à sua passagem, é deplorável e sem qualquer consequência útil. Aumenta as dificuldades, em vez de contribuir para o seu desaparecimento.

Todos os que desejam concorrer utilmente ao trabalho regenerador devem, pois, antes de tudo, preocupar-se com a natureza dos elementos sobre os quais lhes é possível agir, e combinar suas ações em razão do caráter, dos costumes, das crenças daqueles a quem querem transformar. Assim, no Oriente, para atingir o objetivo que perseguem na América e na Europa ocidental todos os espíritos de escol, é preciso seguir uma marcha idêntica quanto ao conjunto, mas essencialmente diferente nos detalhes, isto é, semeando a instrução, desenvolvendo a moralidade, combatendo os abusos consagrados pelo tempo, chegar-se-á a um mesmo resultado, em qualquer parte onde se atue, mas a escolha dos meios, sobretudo, deverá ser determinada pelo gênio particular daqueles a quem se dirigirem.

O espírito de reforma sopra em toda a Ásia; deixou na Síria, na Pérsia, em todos os países circunvizinhos destroços sangrentos; a ideia nova aí germinou, regada pelo sangue dos mártires; é preciso aproveitar o impulso dado às inteligências, mas evitar recair nos erros que provocaram essas perseguições. Não se instrui o homem batendo de frente os seus preconceitos, mas os trabalhando, modificando o mobiliário de seu espírito de maneira tão graduada que ele chegue, por si mesmo, a renunciar aos erros pelos quais pouco antes teria sacrificado a vida. Não se lhe deve dizer: “Isto é mau, aquilo é bom”, mas levá-lo, pelo ensino literário e pelo exemplo, a apreciar cada coisa em seu verdadeiro aspecto. Não se impõe a um povo ideias novas; para que ele as aceite sem perturbação lamentável, é preciso habituá-lo pouco a pouco, fazendo reconhecer suas vantagens e não as estabelecer como princípio senão quando se está certo de que terão em seu favor uma imponente maioria.

Há muito a fazer no Oriente, mas, sozinha, a ação do homem seria impotente para operar uma transformação radical. Os acontecimentos em que tocamos contribuirão por uma parte para essa transformação. Eles habituarão os orientais a um novo gênero de existência; saparão pela base os preconceitos que presidem à legislação da família. Somente depois disto é que o ensinamento lhes virá desferir o último golpe.

Aplaudimos com todas as nossas forças a obra do Sr. X..., o espírito no qual ela é concebida; nós lhe prometemos, além disso, nossa assistência, e o aconselhamos a recorrer a nós, todas as vezes que encontrar algumas dificuldades embaraçosas. Que se apresse em pôr-se à obra; os acontecimentos vão depressa e é difícil que o trabalho esteja terminado quando chegar o momento propício! Que não perca tempo e que conte com o nosso concurso, que lhe é concedido como a todos os que perseguem com desinteresse a realização dos desígnios providenciais.

Clélie Duplantier

A Melhor Propaganda

(Sociedade de Paris, 23 de outubro de 1868 — Médium: Sr. Nivard)

Se há poucos médiuns esta noite, não é que faltem Espíritos; ao contrário, eles são muito numerosos. Uns são habituais, que vêm instruir-vos ou instruir-se, outros, em grande número, são recém-vindos para vós. Vieram sem carta de entrada, é verdade, mas com o consentimento e o convite dos Espíritos habituais. Muitos desses Espíritos sentem-se felizes por assistir à sessão e o são sobretudo por ver aqui vários espíritas, que eles amam e dirigem, e que tiveram o pensamento de vir entre vós.

Há muitos espíritas no mundo, mas seu grau de instrução sobre a Doutrina está longe de ser suficiente para que se classifiquem entre os espíritas esclarecidos. Sem dúvida têm luzes, mas lhes falta a prática, ou, se praticam, necessitam ser assistidos, a fim de trazer, nos esforços que tentam, mais persuasão e menos entusiasmo. Quando falo de prática do Espiritismo, quero dizer a parte que concerne à propaganda. Pois bem! para essa parte, mais difícil do que se pensa, é preciso, para a exercer com eficácia, estar bem penetrado da filosofia do Espiritismo e também de sua parte moral. A parte moral é fácil de conhecer; para isto exige pouco esforço; em compensação, é a mais difícil de praticar, porque só o exemplo pode fazer bem compreendê-la. Fareis melhor compreender a virtude dando exemplo do que a definindo. Ser virtuoso é fazer compreender e amar a virtude. Nada há a responder àquele que faz o que aconselha os outros a fazer. Assim, para a parte moral do Espiritismo, nenhuma dificuldade na teoria, muita na prática.

A parte filosófica apresenta mais dificuldades para ser compreendida e, por conseguinte, requer mais esforços. Os adeptos que procuram ser militantes, devem pôr-se à obra para bem conhecê-la, pois é a arma com a qual combaterão com mais sucesso. É útil que não se extasiem com os fenômenos materiais e que deem a sua explicação sem muito desenvolvimento. Devem reservar esses desenvolvimentos para a análise dos fatos de ordem inteligente, sem, contudo, dizer muito, pois não se deve fatigar o espírito das pessoas noviças no Espiritismo. Explicações concisas, exemplos bem escolhidos, adaptando-se bem à questão que se discute, eis tudo o que é preciso. Mas, repito, para ser conciso, não se deve saber menos; para dar exemplos ou explicações bem apropriados ao assunto é necessário conhecer a fundo a filosofia do Espiritismo. Esta filosofia está resumida em O Livro dos Espíritos, e o lado prático em O Livro dos Médiuns. Se conhecerdes bem a substância dessas duas obras, que são obra dos Espíritos, certamente tereis a felicidade de trazer muitos dos vossos irmãos a essa crença tão consoladora, e muitos dos que creem serão postos no verdadeiro terreno: o do amor e da caridade.

Assim, pois, meus amigos, aqueles dentre vós que desejarem, e todos devem desejar, fazer seus irmãos partilharem de suas crenças, que os querem chamar ao banquete de consolação que o Espiritismo oferece a todos os seus filhos, devem moralmente praticar o Espiritismo praticando a sua moral, e intelectualmente espalhando em seu redor as luzes que colheram ou que colherão nas comunicações dos Espíritos.

Tudo isto é fácil, basta querer. Pois bem! meus caros amigos, em nome de vossa felicidade, de vossa tranquilidade, em nome da união e da caridade, eu vos exorto a querer.

Um Espírito

O Verdadeiro Recolhimento

(Sociedade de Paris, 16 de outubro de 1868 — Médium: Sr. Bertrand)

Se pudésseis ver o recolhimento dos Espíritos de todas as ordens que assistem às vossas sessões, durante a leitura de vossas preces, não só ficaríeis tocados, mas envergonhados de ver que o vosso recolhimento, que apenas qualifico de silêncio, está bem longe de aproximar-se do dos Espíritos, um bom número dos quais vos são inferiores. O que chamais vos recolherdes durante a leitura de vossas belas preces, é observar um silêncio que ninguém perturba; mas se os vossos lábios não se mexem, se o vosso corpo está imóvel, vosso Espírito vagueia e deixa de lado as sublimes palavras que deveríeis pronunciar do mais profundo do vosso coração, a elas vos assimilando pelo pensamento.

Vossa matéria observa o silêncio; certamente, dizer o contrário, seria vos injuriar; mas o vosso Espírito tagarela não o observa e perturba, neste instante, por vossos pensamentos diversos, o recolhimento dos Espíritos que vos rodeiam. Ah! se os vísseis prosternados diante do Eterno, pedindo a realização de cada uma das palavras que ledes, vossa alma ficaria comovida e, lamentando sua pouca atenção passada, faria um exame de consciência e pediria a Deus, de todo coração, a realização dessas mesmas palavras, que apenas pronunciava com os lábios. Pediríeis aos Espíritos que vos tornasse dóceis aos seus conselhos; e eu, Espírito que vos falo, após a leitura de vossas preces, e das palavras que acabo de repetir, poderia assinalar mais de um que daqui sairá muito pouco dócil aos conselhos que acabo de dar e com sentimentos muito pouco caridosos para com o próximo.

Talvez eu seja um pouco duro; mas creio não o ser senão para os que o merecem, e cujos mais secretos pensamentos não podem ser ocultos aos Espíritos. Assim, só me dirijo aos que aqui vêm pensando em qualquer outra coisa senão nas lições que aqui devem buscar e nos sentimentos que aqui devem trazer. Mas os que oram do fundo da alma orarão também, após a leitura de minha comunicação, por aqueles que vêm aqui e daqui partem sem terem orado.

Seja como for, peço aos que tiverem a bondade de me escutar, que continuem a pôr em prática os ensinamentos e os conselhos dos Espíritos; a isto vos convido no seu interesse, pois não sabem tudo o que podem perder não o fazendo.

De Courson


 

Bibliografia

O Espiritismo na Bíblia

(Ensaio sobre a psicologia dos antigos hebreus) Por Henri Stecki[5]

Sabe-se que a Bíblia contém uma porção de passagens em relação com os princípios do Espiritismo. Mas como as encontrar nesse labirinto? Seria preciso fazer desse livro uma leitura atenta, o que poucas pessoas têm tempo e paciência para o fazer. Em algumas, mesmo, sobretudo em razão da linguagem o mais das vezes figurada, a ideia espírita não aparece de maneira clara senão após reflexão.

O autor deste livro fez da Bíblia um estudo aprofundado, e só o conhecimento que tem do Espiritismo lhe deu a chave de coisas que antes lhe pareciam inexplicáveis ou ininteligíveis. Foi assim que pôde informar-se com certeza sobre as ideias psicológicas dos antigos hebreus, ponto sobre o qual os comentadores não estavam de acordo. Devemos, pois, ser-lhe grato por ter trazido essas passagens à luz, num resumo sucinto e por ter, assim, poupado o leitor de pesquisas longas e fastidiosas. Às citações ele acrescenta comentários necessários à compreensão do texto, e que nele revelam o espírita esclarecido, mas não fanático de suas ideias, vendo o Espiritismo em tudo.

O nome do autor indica que não é francês; diz no prefácio que é polonês e explica em que circunstâncias foi levado ao Espiritismo, e aos socorros morais que hauriu nessa doutrina. Embora estrangeiro, escreve o francês, como aliás a maioria dos povos do Norte, principalmente os poloneses e os russos, com perfeita pureza. Seu livro é escrito com clareza, o que é um grande mérito em matérias filosóficas, pois nada é menos apropriado à vulgarização das ideias que um autor quer propagar, do que esses livros cuja leitura fatiga a ponto de provocar dor de cabeça, e cujas proposições são uma série de enigmas indecifráveis para o comum dos leitores.

Em resumo, o Sr. Stecki fez um livro útil, razão por que todos os espíritas lhe serão agradecidos.

Agradecemos pessoalmente a graciosa epístola dedicatória que ele houve por bem colocar no frontispício de sua obra.

O Espiritismo em Lyon

Esse jornal, que aparece desde o dia 15 de fevereiro, e do qual falamos várias vezes, prossegue a sua rota com sucesso, graças ao zelo e à dedicação de seus diretores. Sua obra é tanto mais meritória quanto, noviços no que concerne à manutenção de um jornal, tiveram de lutar contra as dificuldades da inexperiência. Mas é forjando que se faz o ferreiro, e por isso seguimos com vivo interesse os progressos desse jornal, que ganhou consideravelmente, desde a sua origem, pela forma e pelo fundo. Nós o cumprimentamos pelo espírito de tolerância e de moderação, de que fez uma lei, pois se não é uma das qualidades sem as quais não se poderia dizer verdadeiramente espírita, é uma consequência da máxima que toma por divisa: Fora da caridade não há salvação. Assim, fazemos votos sinceros por sua prosperidade. O último número, o de 15 de outubro, contém vários artigos muito interessantes, sobre os quais chamamos a atenção dos nossos leitores.

Destinos da Alma

Com considerações proféticas para reconhecer o tempo presente e os sinais da aproximação dos últimos dias. Nova edição, precedida de um apelo aos católicos de boa-fé e ao futuro concílio. Por A. d’Orient.  [6]

Nesta obra, de importância capital, o autor se apoia na pluralidade das existências, como a teoria mais racional, sobre o progresso indefinido da alma pelo trabalho realizado nas existências sucessivas, a responsabilidade de cada um conforme as suas obras, a não-eternidade absoluta das penas, o corpo fluídico, etc., numa palavra, sobre os princípios que constituem a base do Espiritismo. E, contudo, foi publicada em 1845, nova prova do movimento que já se operava neste sentido, mesmo antes do aparecimento da Doutrina Espírita, que veio sancionar pelos fatos e coordenar essas ideias esparsas. O autor se lisonjeava de a isto ligar o clero, respeitando os dogmas católicos, mas os interpretando de maneira mais lógica; sua esperança não foi concretizada, porque o seu livro foi posto no Índex. Limitamo-nos a anunciá-lo, reservando-nos para lhe consagrar um artigo especial, quando tivermos tido tempo de o examinar a fundo.

Esperando, citaremos o parágrafo seguinte da introdução, que explica o objetivo a que se propôs o autor.

“Ressurreição dos corpos, presciência de Deus, vidas sucessivas ou purgatório das almas, tais são as três questões, onde tudo se liga no que respeita aos destinos de nossa alma, que nos propomos apresentar, sob novos aspectos, à meditação dos católicos e de todos os homens que gostam de refletir sobre si mesmos. O que temos a dizer não toca nas verdades essenciais, que a todo gênero humano importa conhecer e crer com inteira certeza: essas verdades, que são do domínio da fé, são tão completas e asseguradas quanto é necessário que o sejam, e não temos a pretensão de a elas nada ajuntar de nós mesmo. Não queremos senão propor humanamente, sobre essas matérias, teorias humanas, que é permitido ignorar ou não crer sem prejuízo para a sua alma. E todos os nossos esforços só têm por fim aclarar o facho da ciência dos fatos obscuros, onde faltam as luzes da revelação, e que a fé não definiu completamente.”


 

Aviso

Aos senhores assinantes que não quiserem sofrer atraso no recebimento da Revista, pedimos que renovem suas assinaturas antes de 31 de dezembro.

Allan Kardec


 



[1] O Sr. doutor Labonté descreveu a epidemia da ilha Saint-Maurice numa brochura que lemos com interesse, e na qual se revela observador sério e judicioso. É um homem devotado à sua arte, e tanto quanto se pode julgar de longe, por analogia, ele nos parece ter bem caracterizado essa singular doença, do ponto de vista fisiológico. Infelizmente, no que concerne à terapêutica, ela frustra todas as previsões da Ciência. Num caso excepcional, como esse, o insucesso nada prejulgaria contra o saber do médico. O Espiritismo abre à ciência médica, horizontes inteiramente novos, ao demonstrar o papel preponderante do elemento espiritual na economia e em grande número de afecções, nas quais a Medicina falha, porque se obstina em lhe buscar a causa somente na matéria tangível. O conhecimento da ação do perispírito sobre o organismo adicionará um novo ramo à patologia e modificará profundamente o modo de tratamento de certas doenças, cuja verdadeira causa não será mais um problema.

[2] Ver-se-á mais na frente que o autor entende por veículo  o corpo fluídico.

[3] 1 vol. in-12, 3 fr. 50 c. Didier & Cia, 35, quai des Augustins.

[4] Ver a Revista  de dezembro de 1860 e janeiro de 1861: A arte pagã, a arte cristã e a arte espírita

[5] Um pequeno volume in-12; preço: 1 fr.; pelo correio: 1 fr. 25 c. Srs. Lacroix & Cia, Livraria Internacional, 15, boulevard Montmartre, Paris; e nos escritórios da Revista Espírita.

[6] Um grosso vol., grande in-8. Preço: 7 fr. 50. Didier & Cia, 35, quai des Augustins, e Ad. Lainé, rue des Saints-Pères.

Dezembro de 1868

Sessão Anual Comemorativa do Dia dos Mortos

(Sociedade de Paris, 1º de novembro de 1868)[1]

Discurso de Abertura pelo Sr. Allan Kardec — O Espiritismo é uma Religião?

“Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, aí estarei com elas.” (S. Mateus, 18:20.)

Caros irmãos e irmãs espíritas,

Estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para darmos àqueles irmãos nossos que deixaram a Terra um testemunho particular de simpatia, para continuarmos as relações de afeição e de fraternidade que existiam entre eles e nós, quando eram vivos, e para invocarmos sobre eles a bondade do Todo-Poderoso. Mas, por que nos reunirmos? Não podemos fazer em particular o que cada um de nós propõe fazer em comum? Qual a utilidade de assim nos reunirmos num dia determinado?

Jesus no-lo indica pelas palavras que referimos acima. Esta utilidade está no resultado produzido pela comunhão de pensamentos que se estabelece entre pessoas reunidas com o mesmo objetivo.

Comunhão de pensamentos!  Compreendemos bem todo o alcance desta expressão? Seguramente, até este dia, poucas pessoas dela tinham feito uma ideia completa. O Espiritismo, que nos explica tantas coisas pelas leis que revela, ainda vem explicar a causa e a força dessa situação do espírito.

Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o pensamento é uma força; mas uma força puramente moral e abstrata? Não: do contrário não se explicariam certos efeitos do pensamento e, ainda menos, a comunhão de pensamento. Para compreendê-lo, é preciso conhecer as propriedades e a ação dos elementos que constituem nossa essência espiritual, e é o Espiritismo que no-las ensina.

O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria; sem o pensamento o espírito não seria espírito. A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz. É pela vontade que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos num determinado sentido. Mas, se tem a força de agir sobre os órgãos materiais, quanto maior não deve ser essa força sobre os elementos fluídicos que nos rodeiam! O pensamento atua sobre os fluidos ambientes, como o som age sobre o ar; esses fluidos nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Pode, pois, dizer-se com toda a verdade que há nesses fluidos ondas e raios de pensamentos que se cruzam sem se confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros.

Uma assembleia é um foco onde irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra, um coro de pensamentos, onde cada um produz a sua nota. Disto resulta uma imensidão de correntes e de eflúvios fluídicos, dos quais cada um recebe a impressão pelo sentido espiritual, como num coro musical cada um recebe a impressão dos sons pelo sentido da audição.

Mas, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes, também há pensamentos harmônicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico, a impressão é agradável; se discordante, a impressão será penosa. Ora, para isto, não é necessário que o pensamento seja formulado em palavras; a irradiação fluídica não deixa de existir, quer seja ou não expressa. Se todas forem benéficas, os assistentes experimentarão um verdadeiro bem-estar e se sentirão à vontade; mas se se misturarem alguns pensamentos maus, produzirão o efeito de uma corrente de ar gelado num meio tépido.

Tal é a causa do sentimento de satisfação que se experimenta numa reunião simpática; aí reina uma espécie de atmosfera moral salubre, onde se respira à vontade; daí se sai reconfortado, porque aí nos impregnamos de eflúvios fluídicos salutares. Assim também se explicam a ansiedade e o mal-estar indefinível que se sente num meio antipático, onde os pensamentos malévolos provocam, a bem dizer, correntes fluídicas malsãs.

A comunhão de pensamentos produz, pois, uma sorte de efeito físico que reage sobre o moral; só o Espiritismo poderia fazê-lo compreender. O homem o sente instintivamente, já que procura as reuniões onde sabe encontrar essa comunhão. Nessas reuniões homogêneas e simpáticas haure novas forças morais; poder-se-ia dizer que aí recupera as perdas fluídicas perdidas diariamente pela irradiação do pensamento, como recupera pelos alimentos as perdas do corpo material.

A esses efeitos da comunhão de pensamentos, junta-se um outro que é a sua consequência natural, e que importa não perder de vista: é o poder que adquire o pensamento ou a vontade, pelo conjunto dos pensamentos ou vontades reunidos. Sendo a vontade uma força ativa, esta força é multiplicada pelo número de vontades idênticas, como a força muscular é multiplicada pelo número dos braços.

Estabelecido este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem entre os homens e os Espíritos, haja, numa reunião onde reine perfeita comunhão de pensamentos, uma força atrativa ou repulsiva, que nem sempre possui o indivíduo isolado. Se, até o presente, as reuniões muito numerosas são menos favoráveis, é pela dificuldade de obter uma homogeneidade perfeita de pensamentos, que se deve à imperfeição da natureza humana na Terra. Quanto mais numerosas as reuniões, mais aí se mesclam elementos heterogêneos, que paralisam a ação dos bons elementos, e que são como grãos de areia numa engrenagem. Não sucede assim nos mundos mais adiantados, e tal estado de coisas mudará na Terra à medida que os homens se tornarem melhores.

Para os espíritas, a comunhão de pensamentos tem um resultado ainda mais especial. Temos visto o efeito desta comunhão de homem a homem; prova-nos o Espiritismo que ele não é menor dos homens aos Espíritos, e reciprocamente. Com efeito, se o pensamento coletivo adquire força pelo número, um conjunto de pensamentos idênticos, tendo o bem por objetivo, terá mais força para neutralizar a ação dos Espíritos maus; também vemos que a tática destes últimos é levar à divisão e ao isolamento. Sozinho, um homem pode sucumbir, ao passo que se sua vontade for corroborada por outras vontades poderá resistir, conforme o axioma: A união faz a força, axioma verdadeiro, tanto do ponto de vista moral, quanto do físico.

Por outro lado, se a ação dos Espíritos malévolos pode ser paralisada por um pensamento comum, é evidente que a dos Espíritos bons será secundada; seus eflúvios fluídicos, não sendo detidos por correntes contrárias, espalhar-se-ão sobre os assistentes, precisamente porque todos os terão atraído pelo pensamento, não cada um em proveito pessoal, mas em benefício de todos, conforme a lei de caridade. Descerão sobre eles como línguas de fogo, para nos servirmos de uma admirável imagem do Evangelho.

Assim, pela comunhão de pensamentos os homens se assistem entre si e, ao mesmo tempo, assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações entre os mundos visível e invisível não são mais individuais, mas coletivas e, por isto mesmo, mais poderosas em proveito das massas e dos indivíduos. Numa palavra, estabelecem a solidariedade, que é a base da fraternidade. Cada qual trabalha para todos, e não apenas para si; e trabalhando para todos, cada um aí encontra a sua parte. É o que o egoísmo não compreende.

Graças ao Espiritismo, compreendemos, então, o poder e os efeitos do pensamento coletivo; explicamo-nos melhor o sentimento de bem-estar que se experimenta num meio homogêneo e simpático; mas sabemos, igualmente, que se dá o mesmo com os Espíritos, porque eles também recebem os eflúvios de todos os pensamentos benevolentes que para eles se elevam, como uma nuvem de perfume. Os que são felizes experimentam maior alegria por esse concerto harmonioso; os que sofrem sentem maior alívio.

Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que pertençam, são fundadas na comunhão de pensamentos; com efeito, é aí que podem e devem exercer a sua força, porque o objetivo deve ser a libertação do pensamento das amarras da matéria. Infelizmente, a maioria se afasta deste princípio à medida que a religião se torna uma questão de forma. Disto resulta que cada um, fazendo seu dever consistir na realização da forma, se julga quites com Deus e com os homens, desde que praticou uma fórmula. Resulta ainda que cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal, por sua própria conta e, na maioria das vezes, sem nenhum sentimento de confraternidade em relação aos outros assistentes; fica isolado em meio à multidão e só pensa no céu para si mesmo.

Por certo não era assim que o entendia Jesus, ao dizer: “Quando duas ou mais pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí estarei entre elas.” Reunidos em meu nome, isto é, com um pensamento comum; mas não se pode estar reunido em nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, sua doutrina. Ora, qual é o princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos, palavras e ações. Mentem os egoístas e os orgulhosos, quando se dizem reunidos em nome de Jesus, porque Jesus não os conhece por seus discípulos.

Chocados por esses abusos e desvios, há pessoas que negam a utilidade das assembleias religiosas e, em consequência, a das edificações consagradas a tais assembleias. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor construir asilos do que templos, uma vez que o templo de Deus está em toda parte e em toda parte pode ser adorado; que cada um pode orar em casa e a qualquer hora, enquanto os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de lugar de refúgio.

Mas, porque cometeram abusos, porque se afastaram do reto caminho, devemos concluir que não existe o reto caminho e que tudo quanto se abusa seja mau? Não, certamente. Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de pensamentos, que deve ser a essência das assembleias religiosas; é ignorar as causas que a provocam. Concebe-se que os materialistas professem semelhantes ideias, já que em tudo fazem abstração da vida espiritual; mas da parte dos espiritualistas e, melhor ainda, dos espíritas, seria um contra-senso. O isolamento religioso, assim como o isolamento social, conduz ao egoísmo. Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, largamente dotados pelo coração, para que sua fé e caridade não necessitem ser revigoradas num foco comum, é possível; mas não é assim com as massas, por lhes faltar um estimulante, sem o qual poderiam se deixar levar pela indiferença. Além disso, qual o homem que poderá dizer-se bastante esclarecido para nada ter a aprender no tocante aos seus interesses futuros? bastante perfeito para abrir mão dos conselhos da vida presente? Será sempre capaz de instruir-se por si mesmo? Não; a maioria necessita de ensinamentos diretos em matéria de religião e de moral, como em matéria de ciência. Incontestavelmente, tais ensinos podem ser dados em toda parte, sob a abóbada do céu, como sob a de um templo; mas por que os homens não haveriam de ter lugares especiais para as questões celestes, como os têm para as terrenas? Por que não teriam assembleias religiosas, como têm assembleias políticas, científicas e industriais? Aqui está uma bolsa onde se ganha sempre. Isto não impede as edificações em proveito dos infelizes. Dizemos, ademais, que haverá menos gente nos asilos, quando os homens compreenderem melhor seus interesses do céu.

Se as assembleias religiosas — falo em geral, sem aludir a nenhum culto — muitas vezes se têm afastado de seu objetivo primitivo principal, que é a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino ali ministrado nem sempre tem acompanhado o movimento progressivo da Humanidade, é que os homens não progridem todos ao mesmo tempo. O que não fazem num período, fazem em outro; à proporção que se esclarecem, veem as lacunas existentes em suas instituições, e as preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em relação ao grau de civilização, torna-se insuficiente numa etapa mais avançada, e restabelecem o nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do progresso em todas as coisas; marca uma era de renovação. Saibamos, pois, esperar, não exigindo de uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é preciso que as ideias amadureçam, para que seus frutos sejam colhidos. Saibamos, além disso, fazer as necessárias concessões às épocas de transição, porque na Natureza nada se opera de maneira brusca e instantânea.

Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve ser a comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião  quer dizer laço. Uma religião, em sua acepção larga e verdadeira, é um laço que religa  os homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de crenças; consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. É nesse sentido que se diz: a religião política; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião  não é sinônima de opinião; implica uma ideia particular: a de fé conscienciosa; eis por que se diz também: a fé política. Ora, os homens podem filiar-se, por interesse, a um partido, sem ter fé nesse partido, e a prova é que o deixam sem escrúpulo, quando encontram seu interesse alhures, ao passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável; persiste à custa dos maiores sacrifícios, e é a abnegação dos interesses pessoais a verdadeira pedra-de-toque da fé sincera. Todavia, se a renúncia a uma opinião, motivada pelo interesse, é um ato de desprezível covardia, é, não obstante, respeitável, quando fruto do reconhecimento do erro em que se estava; é, então, um ato de abnegação e de razão. Há mais coragem e grandeza em reconhecer abertamente que se enganou, do que persistir, por amor-próprio, no que se sabe ser falso, e para não se dar um desmentido a si próprio, o que acusa mais obstinação do que firmeza, mais orgulho do que razão, e mais fraqueza do que força. É mais ainda: é hipocrisia, porque se quer parecer o que não se é; além disso é uma ação má, porque é encorajar o erro por seu próprio exemplo.

O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.

Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.

Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.

Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa; pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que, por isto, sejam tomadas por assembleias  religiosas. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão não provém senão da falta de uma palavra para cada ideia.

Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por nenhuma prática obrigatória. Qual o sentimento no qual se deve confundir todos os pensamentos? É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para com todos ou, em outras palavras: o amor do próximo, que compreende os vivos e os mortos, pois sabemos que os mortos sempre fazem parte da Humanidade.

A caridade é a alma do Espiritismo; ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes, razão por que se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade.

Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo, cujo inteiro alcance deve ser bem compreendido; e se os Espíritos não cessam de pregá-la e defini-la, é que, provavelmente, reconhecem que isto ainda é necessário.

O campo da caridade é muito vasto; compreende duas grandes divisões que, em falta de termos especiais, podem designar-se pelas expressões Caridade beneficente  e caridade benevolente. Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos recursos materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de todos, do mais pobre como do mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, nada além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência.

O que é preciso, então, para praticar a caridade benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo. Ora, se se amar ao próximo tanto quanto a si, amar-se-o-á muito; agir-se-á para com outrem como se quereria que os outros agissem para conosco; não se quererá nem se fará mal a ninguém, porque não quereríamos que no-lo fizessem.

Amar ao próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar aos inimigos e retribuir o mal com o bem; é ser indulgente para as imperfeições de seus semelhantes e não procurar o argueiro no olho do vizinho, quando não se vê a trave no seu; é esconder ou desculpar as faltas alheias, em vez de se comprazer em as pôr em relevo, por espírito de maledicência; é ainda não se fazer valer à custa dos outros; não procurar esmagar ninguém sob o peso de sua superioridade; não desprezar ninguém pelo orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro espírita, como do verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: Fora da caridade não há salvação, pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no outro mundo.

Quantas coisas haveria a dizer sobre este assunto! Que belas instruções não nos dão os Espíritos incessantemente! Não fosse o receio de alongar-me em demasia e de abusar de vossa paciência, senhores, seria fácil demonstrar que, em se colocando no ponto de vista do interesse pessoal, egoísta, se se quiser, porque nem todos os homens estão ainda maduros para uma completa abnegação, para fazer o bem unicamente por amor do bem, digo que seria fácil demonstrar que têm tudo a ganhar em agir deste modo, e tudo a perder agindo diversamente, mesmo em suas relações sociais; depois, o bem atrai o bem e a proteção dos Espíritos bons; o mal atrai o mal e abre a porta à malevolência dos maus. Mais cedo ou mais tarde o orgulhoso será castigado pela humilhação, o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas esperanças, o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado; aquele que abandona os Espíritos bons por estes é abandonado e, de queda em queda, finalmente se vê no fundo do abismo, ao passo que os Espíritos bons erguem e amparam aquele que, nas maiores provações, não deixa de se confiar à Providência e jamais se desvia do reto caminho; aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal. Assim, de um lado, ganho assegurado; do outro, perda certa; cada um, em virtude do seu livre-arbítrio, pode escolher a sorte que quer correr, mas não poderá queixar-se senão de si mesmo pelas consequências de sua escolha.

Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente; na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na felicidade crescente com a perfeição; na equitativa remuneração do bem e do mal, segundo o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação limitada à da imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo invisível; na solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterno; aceitar corajosamente as provações, em vista de um futuro mais invejável que o presente; praticar a caridade em pensamentos, em palavras e obras na mais larga acepção do termo; esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera, extirpando toda imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livre-exame e da razão, e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam, e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da Ciência, a revelação das leis da Natureza, que são as leis de Deus: eis o Credo, a religião do Espiritismo, religião que pode conciliar-se com todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.

Com a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em paz e se pouparão males inumeráveis, que nascem da discórdia, por sua vez filha do orgulho, do egoísmo, da ambição, da inveja e de todas as imperfeições da Humanidade.

O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a sua felicidade aqui na Terra, porque lhes ensina a se contentarem com o que têm. Que os espíritas sejam, pois, os primeiros a aproveitar os benefícios que ele traz, e que inaugurem entre si o reino da harmonia, que resplandecerá nas gerações futuras.

Os Espíritos que nos cercam aqui são inumeráveis, atraídos pelo objetivo que nos propusemos ao nos reunirmos, a fim de dar aos nossos pensamentos a força que nasce da união. Ofereçamos aos que nos são caros uma boa lembrança e o penhor de nossa afeição, encorajamentos e consolações aos que deles necessitem. Façamos de modo que cada um recolha a sua parte dos sentimentos de caridade benevolente, de que estivermos animados, e que esta reunião dê os frutos que todos têm o direito de esperar.

Allan Kardec

Depois deste discurso, procedeu-se à leitura de uma comunicação espontânea, ditada pelo Espírito H. Dozon sobre a solenidade do Dia de Todos os Santos, em 1º de novembro de 1865, e que é lida todos os anos na sessão comemorativa.

O Dia de Todos os Santos

A festa de Todos os Santos, meus bons amigos, é uma festa que, para a maior parte dos que não possuem a verdadeira fé, os entristece e faz que derramem lágrimas, em vez de se regozijarem. Vede, desde a humilde choupana até o palácio, quando o dobre a finados lembra o nome do esposo ou da esposa, de um pai, de uma mãe, de um filho, de uma filha, choram; parece que tudo acabou, que nada mais têm a esperar aqui na Terra e, contudo, oram! Que é, então, essa prece? É um pensamento dado ao ser amado, mas sem esperança. As lágrimas abafam a prece; por quê? Ah! é que eles duvidam; não têm essa fé viva, que traz a esperança, que vos sustenta nas maiores lutas. É que não compreenderam que a vida terrena não é senão uma partida, uma separação momentânea; numa palavra, é porque os que lhes ensinaram a orar também não tinham a fé verdadeira, a fé que se apoia na razão.

Mas é chegada a hora em que estas belas palavras do Cristo serão, enfim compreendidas: “Meu Pai deve ser adorado, não mais apenas nos templos, mas em toda parte, em Espírito e em verdade.” Tempo virá em que elas se realizarão. Belas e sublimes palavras. Sim, meu Deus, não sois adorado somente nos templos, mas o sois nos montes e em toda parte. Sim, aquele que molhou os lábios na taça bendita do Espiritismo, ora não só neste dia, mas todo dia; o viajor ora em seu caminho, o operário durante o seu trabalho; aquele que pode dispor de seu tempo o emprega no alívio de seus irmãos que sofrem.

Meus irmãos, alegrai-vos, porque em muito pouco tempo vereis grandes coisas! Quando eu estava na Terra, via a doutrina grande e bela, mas estava muito longe de poder compreendê-la em toda a sua grandeza e em seu verdadeiro objetivo. Por isso vos direi: Redobrai de zelo; consolai os que sofrem, porque há seres que foram de tal modo afligidos durante a sua vida, que necessitam ser amparados e ajudados na luta. Sabeis quanto a caridade é agradável a Deus: praticai-a, pois, sob todas as formas; praticai-a em nome dos Espíritos cuja memória festejais neste dia, e eles vos bendirão!

H. Dozon

Depois das preces habituais (ver a Revista Espírita  de novembro de 1865), trinta e duas comunicações foram obtidas pelos médiuns presentes, em número de dezoito. Considerando a impossibilidade de as publicar todas, a Sociedade escolheu as três seguintes, para serem anexadas ao discurso acima, cuja impressão ela pediu. As outras encontrarão lugar nas coletâneas especiais que serão publicadas ulteriormente.

I

Um grande Espírito, La Rochefoucauld, disse numa de suas obras, que se devia tremer diante da vida e diante da morte! Certamente, se se deve tremer, é por ver sua existência incerta, perturbada, completamente falha; é por ter realizado um trabalho estéril, inútil para si e para os outros; é por ter sido um falso amigo, um mau irmão, um conselheiro pernicioso; é por ser mau filho, pai irrefletido, cidadão injusto, desconhecedor de seus deveres, de seu país, das leis que vos regem, da sociedade e da solidariedade.

Quantos amigos eu vi, espíritos brilhantes, engenhosos, instruídos, faltarem muitas vezes ao objetivo profundo da vida! Construíam hipóteses mais ou menos absurdas: aqui a negação, ali a fé ardente; acolá se faziam neófitos de tal ou qual sistema de governo, de filosofia, e muitas vezes lançaram, ai! suas belas inteligências num fosso, de onde não podiam mais sair senão mortificadas e ofendidas para sempre.

A vida com suas asperezas, seus dissabores e suas incertezas, é, não obstante, uma coisa bela! Como! saís de um embrião, de um nada, e trazeis em torno de vós os beijos, os cuidados, o amor, o devotamento, o trabalho, e isto não seria nada senão a vida! Como é, então, que para vós, seres miseráveis, sem força, sem linguagem, gerações inteiras tenham criado os campos, incessantemente explorados, da economia humana? Economia de saber, de filosofia, de mecânica, de ciências diversas; milhares de cidadãos corajosos consumiram os seus corpos e dispuseram de suas vigílias para vos criar mil elementos diversos de vossa civilização. Desde as primeiras letras até uma definição sábia, encontra-se tudo o que pode guiar e formar o espírito; hoje se pode ver, porque tudo é luz. A sombra das idades sombrias desapareceu para sempre, e o adulto de dezesseis anos pode contemplar e admirar um nascer do Sol e analisar, pesar o ar e, com a ajuda da Química, da Física, da Mecânica e da Astronomia, se permitir mil gozos divinos. Com a pintura, reproduz uma paisagem; com a música, inscreve algumas dessas harmonias que Deus espalha em profusão nas harmonias infinitas!

Com a vida, pode-se amar, dar, espalhar muito; por vezes pode-se ser sol e iluminar o seu interior, sua família, a vizinhança, ser útil, cumprir sua missão. Oh! sim, a vida é uma bela coisa, palpitante, cheia de entusiasmo e de expansão, plena de fraternidade e desses deslumbramentos que atiram as nossas pequenas misérias para longe.

Ó vós todos, meus caros condiscípulos da rua Richelieu; vós, meus fiéis do 14; vós todos que, tantas vezes, interrogastes a existência vos perguntando a palavra final; a vós que baixáveis a cabeça, incertos perante a última hora, diante da palavra Morte, que significa para vós: vazio, separação, desagregação, a vós venho dizer: Levantai a cabeça e esperai; nada de fraqueza, nada de terror; porque, se os vossos estudos conscienciosos e as religiões de nossos pais não vos deixaram senão o desgosto da vida, a incerteza e a incredulidade, é que, estéril em tudo, a ciência humana malconduzida só atingia o nada. Vós todos, que amais a Humanidade e resumis a esperança futura pelo estudo das ciências sociais, por sua aplicação séria, eu vos digo: Esperai, crede e procurai. Como eu, deixastes passar a verdade; nós a abandonávamos e ela batia à nossa porta, que obstinadamente lhe havíamos fechado. Doravante, amareis a vida, amareis a morte, esta grande consoladora; porque querereis, por uma vida exemplar, evitar recomeçar; querereis esperar no limiar da erraticidade todos aqueles que amais, não somente a vossa família, mas a geração inteira que guiastes, para lhes desejar as boas-vindas e a emigração em mundos superiores.

Como vedes, eu vivo e todos nós vivemos. A reencarnação, que tanto nos fez rir, é o problema resolvido que tanto procurávamos. Aí está este problema em vossas mãos, cheio de atrativos, de promessas ardentes; vossos pais, vossas mulheres, vossos filhos, a multidão de amigos vos querem responder; estão todos reunidos, esses caros desaparecidos aos vossos olhos; falarão ao vosso espírito, à vossa razão; dar-vos-ão verdades, e a fé é uma lei bem-amada; mas, interrogai-os com perseverança.

Ah! a morte nos causava medo e tremores! E, contudo, eis que eu, Guillaumin, um incrédulo, um inconstante, fui reconduzido à verdade. Milhares de Espíritos se apressam, esperando a vossa decisão; eles gostam da lembrança e da peregrinação aos cemitérios! É um ponto de referência esse respeito aos mortos; mas esses mortos estão todos vivos; em vez de urnas funerárias e de epitáfios mais ou menos verdadeiros, eles vos pedem uma troca de ideias, de conselhos, um doce comércio de espírito, essa comunhão de ideias que engendra a coragem, a perseverança, a vontade, os atos de devotamento e esse fortificante e consolador pensamento de que a vida se retempera na morte e que se pode, doravante, malgrado La Rochefoucault e outros grandes gênios, nem tremer diante da vida, nem diante da morte.

Deus é a exuberância, é a vida em tudo e sempre. Cabe a nós compreender a sua sabedoria nas diversas fases pelas quais ele purifica a Humanidade.

Guillaumin (Médium: Sr. Leymarie)

II

Escolher mal o meu momento sempre foi uma das minhas contínuas inabilidades; e vir neste dia, em meio a esta numerosa reunião de Espíritos e de encarnados, é realmente um ato de audácia, de que só a minha timidez pode ser capaz. Mas vejo em vós tanta bondade, doçura e amenidade; sinto tão bem que em cada um de vós posso encontrar um coração amante, compassivo, e sendo a indulgência a menor das qualidades que animam os vossos corações, a despeito de minha audácia, não me perturbo e conservo toda a presença de espírito que por vezes me falta, em circunstâncias menos importantes.

Mas, perguntareis, que vem então fazer, com sua verbosidade insinuante, esse desconhecido que, em vez e lugar de instrutor, vem monopolizar um médium útil? Quanto ao presente tendes razão; por isso me apresso em dar a conhecer meu desígnio, para não me apropriar por muito tempo de um lugar que usurpo.

Numa passagem do discurso hoje pronunciado por vosso presidente, uma reflexão vibrou-me ao ouvido, como só uma verdade pode vibrar e, confundido na multidão de Espíritos atentos, de súbito pus-me a descoberto. Ainda fui severamente julgado por uma imensidade de Espíritos que, baseando-se em suas recordações e na reputação de uma apreciação tida em outros tempos, subitamente reconheceram em mim o misantropo selvagem, o urso da civilização, o austero crítico das instituições em desacordo com seu próprio raciocínio. Ai! como um erro faz sofrer e há quanto tempo dura o mal feito às massas pela tola pretensão de um orgulhoso da humildade, de um louco do sentimento!

Sim, tendes razão: o isolamento em matéria religiosa e social não pode engendrar senão o egoísmo e, sem que muitas vezes dele se dê conta, o homem torna-se misantropo, deixando que seu egoísmo o domine. O recolhimento, produzido pelo efeito do silêncio grandioso da Natureza falando à alma, é útil, mas a sua utilidade não pode produzir seus frutos senão quando o ser que ouve a Natureza falar à sua alma, relata aos homens a verdade de sua moral; mas, se aquele que sente, em face da criação, sua alma levantar voo para as regiões de uma era pura e virtuosa, não se serve de suas sensações, ao despertar, no meio das instituições de sua época, senão para censurar os abusos que a sua natureza sensitiva lhe exagera, porque ela sofre com isto, se ele não encontra, para corrigir os erros dos humanos, senão fel e ressentimento, sem lhes mostrar docemente o verdadeiro caminho, tal qual o descobriu na própria Natureza, oh! então, infeliz dele, se só se servir de sua inteligência para açoitar, em vez de pensar as feridas da sociedade!

Sim, tendes razão: viver só no meio da Natureza é ser egoísta e ladrão, porque o homem foi criado para a sociabilidade; e isto é tão verdadeiro que eu, o selvagem, o misantropo, o indomável eremita, venho aplaudir esta passagem do discurso aqui pronunciado: O isolamento social e religioso conduz ao egoísmo.

Uni-vos, pois, nos esforços e nos pensamentos; sobretudo amai. Sede bons, doces, humanos; dai à amizade o sentimento da fraternidade; pregai pelo exemplo dos vossos atos, os salutares efeitos de vossas crenças filosóficas; sede espíritas de fato, e não apenas de nome, e logo os loucos do meu gênero, os utopistas do bem não mais terão necessidade de queixar-se dos defeitos de uma legislação sob a qual devem viver, porque o Espiritismo, compreendido e sobretudo praticado, reformará tudo, em benefício dos homens.

J.-J. Rousseau (Médium: Sr. Morin)

III

O perfume que se exala de todos os bons sentimentos é uma prece constante que se eleva a Deus, e todas as boas ações são ações de graças ao Eterno.

Sra. Victor Hugo

A dedicação pelo reconhecimento é um impulso do coração; o devotamento pelo amor é um impulso da alma.

Sra. Dauban

O reconhecimento é um benefício que recompensa aquele que o merece. A gratidão é um ato do coração que dá, ao mesmo tempo, o prazer do bem àquele a quem se deve ser reconhecido e àquele que o é.

Vézy

A ingratidão é punida como ação má pelo abandono de que é objeto, como a gratidão é recompensada pela alegria que proporciona.

Leclerc

O dever da mulher é trazer ao homem todas as consolações e os encorajamentos necessários à sua vida de vicissitudes e penosos trabalhos. A mulher deve ser o seu sustentáculo, o seu guia, o facho que ilumina o seu caminho e deve impedi-lo de falir; se faltar à sua missão será punida; mas se, apesar do seu devotamento, o homem repele os impulsos de seu coração, ela é duplamente recompensada por ter persistido no cumprimento de seus deveres.

Delfina de Girardin

A dúvida é o veneno lento que a alma faz a matéria absorver e da qual recebe o primeiro castigo. A dúvida é o suicídio da alma, que leva imediatamente à morte do corpo. — Uma alma suicidar-se é difícil de compreender; mas não é morrer o viver na sombra, quando se sente a luz em volta de si? Afastai, pois, do vosso Espírito, o véu que vos oculta os esplendores da vida, e vede esses sóis radiantes que vos dão o dia: aí está a verdadeira luz; aí está o objetivo a que deveis chegar pela fé.

Jobard

O egoísmo é a paralisação de todos os bons sentimentos. O egoísmo é a deformidade da alma, que trespassa a matéria, fazendo-vos amar tudo o que a ela se dirige e repelir tudo o que se dirige aos outros. O egoísmo é a negação da sublime sentença do Cristo, sentença alterada ignominiosamente: “Fazei aos outros o que gostaríeis que vos fizessem.”

Plácido

A susceptibilidade, eis o defeito para uso de todos, e cada um — não digais o contrário — dele está um pouco carregado.

Irra! se soubésseis quanto é ridículo ser susceptível e quanto esse defeito se torna desagradável, eu vos asseguro que ninguém mais queria ser por ele atingido, porque se gosta de ser belo.

Gay

O orgulho é o guarda-chuva social de todos e que cada um rejeita sobre o gracioso amor-próprio; certo! é preciso ter amor-próprio e orgulho, é o que dá a ambição do bem (sem jogo de palavras), mas demasiado, isto estraga o Espírito e corrompe o coração.

Mangin

A ambição, ele acaba de dizer! mas sabeis qual a ambição que não impede a alma de elevar-se para os esplendores do infinito? Pois bem! é a que vos leva a fazer o bem. Todas as outras ambições vos levam ao orgulho e ao egoísmo, flagelos da Humanidade.

Bonnefon

Meus caros amigos, os Espíritos que acabam de vos falar, não só estavam felizes por manifestarem sua presença, mas têm a alegria de pensar que cada um de vós se esforçará para se corrigir e pôr em prática as sábias lições que vos deram e as que vos trazem em cada uma de vossas sessões. Crede, os Espíritos são para vós o que vossos pais foram ou deveriam ter sido. Eles vos admoestam, aconselhando e vos ajudando; e quando não os escutais, dizem que vos abandonam; revoltam-se contra vós; depois, tão logo vos falaram duramente, voltam a vós para vos encorajar, e se esforçam para impelir constantemente os vossos pensamentos para o bem. Sim, os Espíritos vos amam como o bom pai ama a seus filhos; compadecem-se de vós, cuidam de vossos dias e afastam de vós todo mal que vos pode acontecer, como a mãe cerca o filho de todos os cuidados mais delicados, de todas as atenções necessárias à sua fragilidade. Deus lhes deu uma missão; deu-lhes a coragem para a cumprir e nenhum desses Espíritos bons, seja qual for o seu grau na hierarquia espiritual, falhará na sua tarefa; compreendem, sentem, veem esses esplendores divinos que devem ser a sua recompensa; vão adiante e queriam vos levar em sua companhia, vos impelir à frente deles, se o pudessem. Eis por que vos admoestam, eis por que vos aconselham. Por vossa vez, orai por eles, a fim de que a vossa indocilidade não os impeça de continuar seus benefícios por vós, e que Deus continue a lhes dar a força de vos ajudar.

São Luís (Médium: Sr. Bertrand)


 

Constituição Transitória do Espiritismo[2]

I — Considerações Preliminares

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.[3]

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos Espíritos bons que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista  de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.

II — Extrato do Relatório da Caixa do Espiritismo, feito à Sociedade de Paris, em 5 de maio de 1865

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. ( Revista  de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários ( Revista  de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.[4]

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.[5]

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos Espíritos bons. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar. Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.

III — Cismas

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado  da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão-só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá.

Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros, não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade. Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.

IV — O Chefe do Espiritismo

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista  de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. ( Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. ( O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXI, no 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.

V — Comissão Central

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, para serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes. Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. ( A Gênese, cap. I, “Caráter da revelação espírita”, no 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central  ou conselho superior  permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.

Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º — Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem ao Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º — Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.[6]

3º — Um dispensário  destinado às consultas médicas gratuitas  e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º — Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º — Um asilo;

6º — Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.

VI — Obras Fundamentais da Doutrina

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista  foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista  se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.

VII — Atribuições da Comissão

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º — Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º — O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º — A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º — A correspondência;

5º — A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º — A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º — O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º — A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º — A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º — A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º — A administração dos negócios materiais;

12º — A direção das sessões da Sociedade;

13º — O ensino oral;

14º — As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º — A convocação dos congressos e assembleias gerais.

Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

— Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

— Um redator-chefe para Revista  e as outras publicações;

— Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações críticas das obras e artigos de jornais;

— Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

— Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

— Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

— Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.

VIII — Vias e Meios

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º — Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º — Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros. Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. ( Revista  de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.

IX — Conclusão

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.


 

Bibliografia — El Criterio Espiritista

REVISTA QUINCENAL DEL ESPIRITISMO

Esse jornal, que há um ano se publicava em Madri, sob o título de El criterio, revista quincenal científica, acaba de retomar o seu primeiro título, que lhe tinha sido interdito no precedente governo espanhol. O diretor o anuncia nos seguintes termos, num suplemento do no 17:

“Com a imensa alegria do triunfo, merecido não por nossas débeis forças, mas pela generosidade de nossa causa, hoje nos dirigimos aos nossos constantes protetores, aos amigos que, na desgraça, nos encorajaram e sustentaram.

 “A intolerância do governo anterior nos havia interditado o exercício da mais frutuosa das liberdades: a do estudo, quando um dia, triste pela decepção, feliz porque foi o primeiro da luta, quisemos publicar o Criterio espiritista. Vejam a resposta que nos foi dada pelo secretário ministerial:

“Madri, 17 de julho de 1867.

“Governo da província; seção de imprensa — Depois de haver examinado o primeiro número do jornal de que sois o editor e diretor, vi que, por seu caráter especial, suas tendências e a escola filosófica que procura desenvolver, deve ser compreendido como incurso no parágrafo segundo do artigo 52 da lei em vigor sobre a imprensa. Previno-vos que não me é possível autorizar o dito número, nem os seguintes se, previamente, não forem examinados e aprovados pela censura eclesiástica. Deus vos guarde, etc.”

“No dia 10 de agosto seguinte recebemos o telegrama, cuja cópia transcrevemos abaixo:

“Madri, 6 de agosto de 1867.

“Estes documentos não ficarão para a maior glória de seus autores, cujos nomes abstemo-nos de dar à publicidade, por uma questão de boa educação. Hoje podemos vir à luz, e o Criterio científico  é substituído pelo Criterio espiritista. A direção está instalada na Calle del Arco de Santa Maria, no 25, sala 2; é para aí que poderão dirigir-se os adeptos que quiserem participar da Sociedade Espírita Espanhola, fundada em 1865, e que teve que suspender suas sessões pelos mesmos motivos que haviam impedido a publicação do jornal.”

O regulamento da Sociedade, que temos aos nossos olhos, é concebido num excelente espírito, e não podemos senão aplaudir as disposições que encerra. Coloca-se sob a proteção do Espírito Sócrates, e seu objetivo é claramente definido nos dois primeiros artigos:

“1º — É constituído um círculo privado, sob a denominação de Sociedade Espírita Espanhola, cujo objetivo é o estudo do Espiritismo, principalmente no que concerne à moral e ao conhecimento do mundo invisível ou dos Espíritos;

“2º — A Sociedade não poderá, em caso algum, ocupar-se de questões políticas, nem de discussões ou controvérsias religiosas, que tendessem a lhe dar o caráter de uma seita.”

Estas disposições são de natureza a tranqüilizar os que imputassem à Sociedade tendências perturbadoras. No momento de uma revolução que acaba de romper os entraves postos à liberdade de pensar, de falar e de escrever, em que as massas emancipadas geralmente são tentadas a ultrapassar os limites da moderação, nem a Sociedade, nem o seu órgão, pensam em aproveitá-lo para afastar-se do objetivo exclusivamente moral e filosófico da Doutrina. Não só ela se interdita a política, mas até as controvérsias religiosas, por espírito de tolerância e de respeito pela consciência de cada um. O diretor do jornal abstém-se mesmo de estigmatizar, pela publicidade, os nomes dos signatários dos decretos que interditaram o seu jornal, para não os entregar à animosidade pública. É que o Espiritismo, bem compreendido, é por toda parte o mesmo: uma garantia de ordem e de moderação. Não vive de escândalo; tem bastante o sentimento de sua dignidade e vê as coisas de muito alto, para se rebaixar às personalidades que revelam sempre pequenez de espírito, e jamais se aliam à nobreza de coração.

O primeiro número do Criterio espiritista  contém os artigos seguintes:

Introdução, por Alverico Perón. — O dia dos mortos, comunicação assinada por Sócrates, obtida na Sociedade de Sevilha. — A faculdade mediúnica. — A Bíblia, comunicação assinada por Sócrates. — Sessão de magnetismo. — As metades eternas, comunicação de Sócrates. — Carta de um espírita. — Carta ao Sr. Alverico Perón, por Allan Kardec, e comunicação de São Luís sobre a nova situação do Espiritismo na Espanha. — Revista Espírita de Paris.

Exortamos com instância os nossos irmãos espíritas da Espanha a sustentarem com todas as suas forças este órgão de sua crença. Pela sabedoria e prudência de sua redação, ele não pode deixar de servir utilmente a nossa causa. Será um laço que estabelecerá relações entre os adeptos disseminados em diferentes pontos da Espanha. O diretor, Sr. Alverico Perón, não é um recém-chegado em nossas fileiras; seus esforços para a propagação da Doutrina datam do ano de 1858, e lembramos com prazer a Formula del Espiritismo, que houve por bem nos dedicar.


 

Aviso

A Revista Espírita  começará a 1º de janeiro próximo seu décimo segundo ano. Aos senhores assinantes que não quiserem sofrer atraso, rogamos que renovem sua assinatura antes de 31 de dezembro.

Como de costume, o número de janeiro será enviado a todos os antigos assinantes; os números seguintes só o serão à medida que forem feitas as renovações.

Propúnhamos publicar com o último número deste ano, um índice geral alfabético de todos os assuntos tratados, seja na Revista, seja em nossas outras obras, de maneira a facilitar as pesquisas. Mas esse trabalho, muito mais considerável do que supúnhamos, para ser completo, não pôde ser terminado em tempo hábil. Publicá-lo-emos com um dos nossos próximos números, e será enviado a todos os assinantes.

Também publicaremos brevemente um catálogo  de todas as obras que possam interessar à Doutrina: as que foram publicadas em vista do Espiritismo e as que, fora dele e em diferentes épocas, tenham afinidade de princípios com as crenças novas. Será um guia para a formação das bibliotecas espíritas. Quando sair, a indicação das obras será seguida de uma curta apreciação, para dar a conhecer o seu espírito, e um aviso será feito no número da Revista  em que tiver de ser publicado.

Allan Kardec

  


 

Nota Explicativa[7]

Hoje creem e sua fé é inabalável, porque assentada na evidência e na demonstração, e porque satisfaz à razão. [...] Tal é a fé dos espíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornarem melhores, domarem suas inclinações más e porem em prática as máximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, sem acepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seus inimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divino modelo. (KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1868. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 28, janeiro de 1868.)

A investigação rigorosamente racional e científica de fatos que revelavam a comunicação dos homens com os Espíritos, realizada por Allan Kardec, resultou na estruturação da Doutrina Espírita, sistematizada sob os aspectos científico, filosófico e religioso.

A partir de 1854 até seu falecimento, em 1869, seu trabalho foi constituído de cinco obras básicas: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865), A Gênese (1868), além da obra O Que é o Espiritismo (1859), de uma série de opúsculos e 136 edições da Revista Espírita (de janeiro de 1858 a abril de 1869). Após sua morte, foi editado o livro Obras Póstumas (1890).

O estudo meticuloso e isento dessas obras permite-nos extrair conclusões básicas: a) todos os seres humanos são Espíritos imortais criados por Deus em igualdade de condições, sujeitos às mesmas leis naturais de progresso que levam todos, gradativamente, à perfeição; b) o progresso ocorre através de sucessivas experiências, em inúmeras reencarnações, vivenciando necessariamente todos os segmentos sociais, única forma de o Espírito acumular o aprendizado necessário ao seu desenvolvimento; c) no período entre as reencarnações o Espírito permanece no Mundo Espiritual, podendo comunicar-se com os homens; d) o progresso obedece às leis morais ensinadas e vivenciadas por Jesus, nosso guia e modelo, referência para todos os homens que desejam desenvolver-se de forma consciente e voluntária.

Em diversos pontos de sua obra, o Codificador se refere aos Espíritos encarnados em tribos incultas e selvagens, então existentes em algumas regiões do Planeta, e que, em contato com outros pólos de civilização, vinham sofrendo inúmeras transformações, muitas com evidente benefício para os seus membros, decorrentes do progresso geral ao qual estão sujeitas todas as etnias, independentemente da coloração de sua pele.

Na época de Allan Kardec, as ideias frenológicas de Gall, e as da fisiognomonia de Lavater, eram aceitas por eminentes homens de Ciência, assim como provocou enorme agitação nos meios de comunicação e junto à intelectualidade e à população em geral, a publicação, em 1859 — dois anos depois do lançamento de O Livro dos Espíritos — do livro sobre a Evolução das Espécies, de Charles Darwin, com as naturais incorreções e incompreensões que toda ciência nova apresenta. Ademais, a crença de que os traços da fisionomia revelam o caráter da pessoa é muito antiga, pretendendo-se haver aparentes relações entre o físico e o aspecto moral.

O Codificador não concordava com diversos aspectos apresentados por essas assim chamadas ciências. Desse modo, procurou avaliar as conclusões desses eminentes pesquisadores à luz da revelação dos Espíritos, trazendo ao debate o elemento espiritual como fator decisivo no equacionamento das questões da diversidade e desigualdade humanas.

Allan Kardec encontrou, nos princípios da Doutrina Espírita, explicações que apontam para leis sábias e supremas, razão pela qual afirmou que o Espiritismo permite “resolver os milhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos, teológicos, psicológicos, morais, sociais, etc.” (Revista Espírita, 1862, p. 401). De fato, as leis universais do amor, da caridade, da imortalidade da alma, da reencarnação, da evolução constituem novos parâmetros para a compreensão do desenvolvimento dos grupos humanos, nas diversas regiões do Orbe.

Essa compreensão das Leis Divinas permite a Allan Kardec afirmar que:

O corpo deriva do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre os descendentes das raças apenas há consanguinidade. (O Livro dos Espíritos, item 207, p. 176.)

[...] o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na Criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz com que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor. (Revista Espírita, 1861, p. 432.) Os privilégios de raças têm sua origem na abstração que os homens geralmente fazem do princípio espiritual, para considerar apenas o ser material exterior. Da força ou da fraqueza constitucional de uns, de uma diferença de cor em outros, do nascimento na opulência ou na miséria, da filiação consanguínea nobre ou plebeia, concluíram por uma superioridade ou uma inferioridade natural. Foi sobre este dado que estabeleceram suas leis sociais e os privilégios de raças. Deste ponto de vista circunscrito, são consequentes consigo mesmos, porquanto, não considerando senão a vida material, certas classes parecem pertencer, e realmente pertencem, a raças diferentes. Mas se se tomar seu ponto de vista do ser espiritual, do ser essencial e progressivo, numa palavra, do Espírito, preexistente e sobrevivente a tudo cujo corpo não passa de um invólucro temporário, variando, como a roupa, de forma e de cor; se, além disso, do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do Espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o Espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o Espiritismo. Vós que negais a existência do Espírito para considerar apenas o homem corporal, a perpetuidade do ser inteligente para só encarar a vida presente, repudiais o único princípio sobre o qual é fundada, com razão, a igualdade de direitos que reclamais para vós mesmos e para os vossos semelhantes. (Revista Espírita, 1867, p. 231.)

Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade. (A Gênese, cap. I, item 36, p. 42-43. Vide também Revista Espírita, 1867, p. 373.)

Na época, Allan Kardec sabia apenas o que vários autores contavam a respeito dos selvagens africanos, sempre reduzidos ao embrutecimento quase total, quando não escravizados impiedosamente.

É baseado nesses informes “científicos” da época que o Codificador repete, com outras palavras, o que os pesquisadores europeus descreviam quando de volta das viagens que faziam à África negra. Todavia, é peremptório ao abordar a questão do preconceito racial:

Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada creem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de fraternidade e deveres sociais. (KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863 — 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. — janeiro de 1863.)

O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVII, item 3, p. 348.)

É importante compreender, também, que os textos publicados por Allan Kardec na Revista Espírita tinham por finalidade submeter à avaliação geral as comunicações recebidas dos Espíritos, bem como aferir a correspondência desses ensinos com teorias e sistemas de pensamento vigentes à época. Em Nota ao capítulo XI, item 43, do livro A Gênese, o Codificador explica essa metodologia:

Quando, na Revista Espírita de janeiro de 1862, publicamos um artigo sobre a “interpretação da doutrina dos anjos decaídos”, apresentamos essa teoria como simples hipótese, sem outra autoridade afora a de uma opinião pessoal controversível, porque nos faltavam então elementos bastantes para uma afirmação peremptória. Expusemo-la a título de ensaio, tendo em vista provocar o exame da questão, decidido, porém, a abandoná-la ou modificá-la, se fosse preciso. Presentemente, essa teoria já passou pela prova do controle universal. Não só foi bem aceita pela maioria dos espíritas, como a mais racional e a mais concorde com a soberana justiça de Deus, mas também foi confirmada pela generalidade das instruções que os Espíritos deram sobre o assunto. O mesmo se verificou com a que concerne à origem da raça adâmica. (A Gênese, cap. XI, item 43, Nota, p. 292.)

Por fim, urge reconhecer que o escopo principal da Doutrina Espírita reside no aperfeiçoamento moral do ser humano, motivo pelo qual as indagações e perquirições científicas e/ou filosóficas ocupam posição secundária, conquanto importantes, haja vista o seu caráter provisório decorrente do progresso e do aperfeiçoamento geral. Nesse sentido, é justa a advertência do Codificador:

É verdade que esta e outras questões se afastam do ponto de vista moral, que é a meta essencial do Espiritismo. Eis por que seria um equívoco fazê-las objeto de preocupações constantes. Sabemos, aliás, no que respeita ao princípio das coisas, que os Espíritos, por não saberem tudo, só dizem o que sabem ou que pensam saber. Mas como há pessoas que poderiam tirar da divergência desses sistemas uma indução contra a unidade do Espiritismo, precisamente porque são formulados pelos Espíritos, é útil poder comparar as razões pró e contra, no interesse da própria doutrina, e apoiar no assentimento da maioria o julgamento que se pode fazer do valor de certas comunicações. (Revista Espírita, 1862, p. 38.)

Feitas essas considerações, é lícito concluir que na Doutrina Espírita vigora o mais absoluto respeito à diversidade humana, cabendo ao espírita o dever de cooperar para o progresso da Humanidade, exercendo a caridade no seu sentido mais abrangente (“benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros e perdão das ofensas”), tal como a entendia Jesus, nosso Guia e Modelo, sem preconceitos de nenhuma espécie: de cor, etnia, sexo, crença ou condição econômica, social ou moral.

A EDITORA

 

 

 

 

 



[1] A primeira parte deste discurso é tirada de uma publicação anterior sobre a Comunhão de pensamentos, mas que era preciso relembrar, por causa de sua ligação com a ideia principal.

[2] N. do T.: Comportando maiores ou menores desenvolvimentos, este artigo está inserido em Obras Póstumas, segunda parte: “Constituição do Espiritismo — Exposição de motivos”.

[3] Tratamos especialmente a questão das instituições espíritas num artigo da Revista  de julho de 1866, ao qual remetemos o leitor para maiores desenvolvimentos.

[4] Essas somas se elevavam naquela época ao total de 14.100 francos, cujo emprego, a favor exclusivamente da Doutrina, se acha justificado pelas contas.

[5] Aos que perguntaram por que vendíamos nossos livros, em vez de os doar, respondemos que o faríamos, se tivéssemos encontrado impressor que no-los imprimisse a troco de nada, negociante que nos fornecesse papel grátis, livreiros que não exigissem nenhuma comissão para se encarregarem de distribuí-los, uma administração dos correios que os transportasse por filantropia, etc. Enquanto esperamos, e como não temos milhões para subvencionar esses encargos, somos obrigados a lhes dar um preço.

[6] O futuro museu já possui oito quadros de grande dimensão, que só esperam um local conveniente; verdadeiras obras-primas de arte, especialmente executadas em vista do Espiritismo, por um artista de renome, que generosamente os doou à Doutrina. É a inauguração da arte espírita, por um homem que alia à fé sincera o talento dos grandes mestres. Em tempo hábil faremos a sua descrição detalhada.

[7]  Nota da Editora: Esta “Nota Explicativa”, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na Doutrina Espírita.