Obras Póstumas


Obras Póstumas

Allan Kardec

Tradução de João Teixeira de Paula

Revisão de José Herculano Pires

Lake – livraria Allan Kardec Editora 

Notícia sobre o livro

Publicado vinte e dois anos após o lançamento da última obra de Kardec, A Gênese, com que ele encerrou a Codificação, Obras Póstumas apresenta vários trabalhos do mestre que nunca haviam aparecido em livro. Na verdade, a maioria já havia sido publicada na Revista Espírita, logo após o seu passamento, como os leitores poderão verificar consultando o volume da coleção correspondente ao Ano de 1869. O que se conservou inédito até 1890 foi o material constante da segunda parte deste volume, intitulado Transcrições in-extenso do Livro das Previsões Referentes ao Espiritismo, assim mesmo com exceção da Constituição do Espiritismo, também já divulgada, embora sem os comentários que Kardec reservara para mais tarde.

A importância deste volume é inegável e nenhuma objeção se pode fazer à legitimidade dos trabalhos que o constituem. A publicação anterior na Revista, com antecedência de cerca de vinte anos, neutralizou as críticas que geralmente ocorrem nesses casos. Apesar disso, há ainda pessoas que levantam suspeitas infundadas quanto à validade deste livro, o que por sinal em nada o afeta, principalmente para os que se dão ao trabalho de lê-lo e analisá-lo. Só lamentamos que não se tenham publicado mais alguns volumes póstumos de trabalhos do mestre, que forçosamente os deixou em maior número, tal era a sua capacidade de trabalho e o seu desejo de abordar todos os problemas relativos ao Espiritismo. A publicação tardia de “Obras Póstumas” revela, infelizmente, que houve descuido nesse sentido por parte dos seus sucessores. Não se trata de uma acusação, mas apenas de um registro necessário.

Logo de início, na pequena nota de abertura, deparamos com todo o drama de Kardec. É o aviso Aos assinantes da Revista, declarando que essa publicação e todas as obras doutrinárias do mestre foram essencialmente obra e criação sua. O desmentido vem na segunda parte do volume, quando vemos que todo o trabalho da Codificação (incluindo a Revista, como o disse o próprio Kardec) resultou de uma colaboração estreita e permanente entre ele, os médiuns que o serviam, os Espíritos que o orientavam e os grupos e centros de estudos com os quais se correspondia. Vê-se estampado nessas poucas linhas o drama de um homem que, tendo-se adiantado ao seu tempo, teve de enfrentar a incompreensão e o despeito dos que desejavam fazer doutrina acima dele.

A responsabilidade espiritual de Kardec era enorme e ele não podia partilhá-la a não ser com aqueles que traziam à Terra a missão de ajudá-lo. Muitas vezes quis servir-se de pessoas que julgava aproveitáveis, mas os Espíritos Superiores o advertiam em sentido contrário. Kardec se retraía e os seus companheiros atribuíam essa atitude às suas possíveis ambições de predomínio. O próprio Flammarion, à beira do túmulo, não o acusou de fazer obra um tanto pessoal? Essa acusação se repete de maneira mais violenta e incisiva na nota da Revista em junho de 1869, três meses após a desencarnação do mestre que serve de abertura para o texto geral de “Obras Póstumas”. Longe disso, porém, Kardec procurava colaboradores e sofria por não encontrá-los. A obra não era pessoal, mas a responsabilidade da sua atualização na Terra tornou-se quase pessoalíssima em virtude da falta de criaturas aptas a compreendê-la. E a prova maior disso está no que fizeram da Revista e da Sociedade após a sua passagem para a vida espiritual.

Este livro representa o testamento doutrinário de Allan Kardec. Reúne os seus derradeiros escritos e as anotações íntimas, destinadas a servir mais tarde para a elaboração da História do Espiritismo que ele não pode realizar. Vemos aqui a sua plena confirmação dos ensinos dados nas obras anteriores e a justificação de muitas de suas atitudes mal compreendidas pelos contemporâneos. Esta obra precisa ser lida com atenção e respeito. Ela nos desvenda os segredos de uma vida missionária. Quanto à grandeza dessa missão basta vermos o que os próprios Espíritos Superiores dizem em suas comunicações aqui reproduzidas. Na mensagem intitulada “Minha Missão”, de 12 de abril de 1860, vemos que os Espíritos sábios ficarão felizes de poder assisti-lo, e mais: quantos entre eles desejariam cumprir a sombra dessa missão!

No final deste volume encontramos o modelo de que se serviram os espíritas brasileiros para fundar o Movimento de Unificação. É ele a Constituição do Espiritismo, um dos últimos trabalhos de Kardec, com o qual o mestre pretendia orientar os que ficavam, de maneira a poderem manter ao mesmo tempo o serviço de divulgação e o desenvolvimento da Doutrina, sem prejuízo de seus postulados de liberdade e responsabilidade. Ressalta desse esboço, o espírito liberal de Kardec, a sua profunda convicção de que o homem é um ser livre, de cuja liberdade depende o seu desenvolvimento espiritual como personalidade responsável. A respeito deste problema, que tanto preocupa o nosso século, a posição do Espiritismo é inequívoca e os leitores poderão encontrar, neste volume, trabalhos esclarecedores de Kardec, como “As Expiações Coletivas” em que a antinomia (destino versus livre-arbítrio) é colocada em termos precisos, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (que oferece uma visão clara e objetiva da problemática social à luz da Doutrina) e “As Aristocracias” (que completa essa visão com um esquema histórico da evolução política da Humanidade). Esse trabalho abre também as perspectivas do futuro humano com a tese da aristocracia intelecto-moral.

J. Herculano Pires


 

Biografia de Allan Kardec

Ainda sob a dolorosa impressão do prematuro desencarne do venerável fundador da doutrina espírita, vamos empreender uma tarefa que seria fácil e simples para as sábias e experimentadas mãos dele, mas que seria impossível para nós se não contássemos com o eficaz concurso dos benévolos Espíritos e com a indulgência dos leitores.

Quem, entre nós, sem ser taxado de presunçoso, poderia possuir o espírito de método e organização com o qual se iluminam os trabalhos do mestre? Só aquela robusta inteligência poderia empregar tanto material, de natureza tão diversa, triturá-lo, transformá-lo, para esparzi-lo como saudável orvalho pelas almas sequiosas de conhecer e de amar.

Incisivo, conciso, profundo, sabia agradar e fazer-se compreender através de uma linguagem simples e elevada, tão afastada do estilo familiar como das obscuridades da metafísica.

Multiplicando-se incansavelmente, conseguiu ele sozinho bastar a tudo; como porém aumentasse, dia a dia, o trabalho pelo alargamento das relações e pelo incessante desenvolvimento do Espiritismo, preciso lhe foi valer-se de auxiliares inteligentes.

Nesse ponto, quando preparava simultaneamente a reorganização da doutrina e das suas obras, deixou-nos para ir a mundo melhor colher o prêmio da missão cumprida e reunir os elementos de nova empresa de devotamento e labores.

Ele só bastou a tudo! E nós, que nos podemos chamar legião, temos a convicção de que só nos manteremos à altura da situação se, não obstante a nossa fraqueza e inexperiência — nos firmarmos nos princípios estabelecidos por ele, numa evidência incontestável, para a execução dos projetos que desejava realizar para o futuro.

Enquanto seguirmos a senda por ele traçada e enquanto todas as boas vontades se unirem num esforço comum para o progresso e regeneração intelectual e moral da humanidade, o Espírito do grande filósofo estará conosco e nos auxiliará com a sua poderosa influência.

Possa ele suprir-nos a insuficiência tanto quanto possamos nós merecer dele adjutório, consagrando-nos à obra, senão com tanto devotamento e sinceridade, pelo menos com ciência e inteligência.

ALLAN KARDEC havia inscrito em sua bandeira o lema: trabalho, solidariedade, tolerância.

Sejamos como ele, infatigáveis e, como o desejava, tolerantes e solidários; sigamos-lhe o exemplo, lançando de contínuo à arena os princípios ainda pendentes de discussão.

Apelemos para o concurso e para as luzes de todos e procuremos caminhar com segurança, em vez de o fazermos com celeridade, certos de que assim os nossos esforços não serão infrutíferos, sobretudo se, como o esperamos, e seremos os primeiros a dar exemplo, nos esforçarmos cada um de nós por cumprir o dever, pondo de parte as questões pessoais para só cuidarmos do interesse comum.

Não podíamos entrar, com melhores auspícios, em a nova fase aberta ao Espiritismo, do que tornando conhecido dos nossos leitores, em rápido excurso, o que foi, em toda a sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio de escol, fecundo, cujo nome passará à posteridade cercado da auréola própria de benfeitores da humanidade.

Nascido em Lião, a 3 de outubro de 1804, de antiga família que se distinguiu na magistratura e no foro, ALLAN KARDEC (Léon Hippolyte-Denizart Rivail) não seguiu a carreira dos avoengos, sentindo-se, desde os verdes anos, atraído pelos estudos da ciência e da filosofia.

Matriculado na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suiça), tornou-se um dos mais aplicados discípulos daquele eminente professor e um dos mais zelosos propagadores do seu sistema de educação, que tão grande influência exerceu na reforma dos estudos da Alemanha e da França.

Dotado de notável inteligência e atraído para o ensino por vocação e especiais aptidões, desde os quatorze anos ensinava aos condiscípulos menos adiantados o que ia aprendendo.

Foi com essas lições que se lhe desenvolveram as ideias, que mais tarde deveriam colocá-lo entre os homens do progresso e do livre pensamento.

Nascido na religião católica, mas educado no protestantismo, serviram-lhe os atos de intolerância porque passou, de incentivo, em boa hora, ao pensamento de uma reforma religiosa, na qual trabalhou, em silêncio, por dilatados anos, procurando alcançar o meio de unificar as crenças, sem que pudesse descobrir, entretanto, o elemento indispensável para a solução do grande problema.

Foi o Espiritismo que, mais tarde, lhe facultou esse meio, imprimindo-lhe aos trabalhos particular orientação.

Concluídos os estudos, tornou à França; possuindo profundo conhecimento da língua alemã, traduziu para ela diferentes obras de educação e moral, entre as quais, o que é característico, as de Fénelon, que muito particularmente o seduziram.

Era membro de muitas sociedades científicas e entre elas a da Academia Real de Arras, que, no concurso de 1831, lhe coroou uma notável memória acerca da questão: Qual o sistema de estudos mais em harmonia com as necessidades da época?

De 1835 a 1840, fundou em sua casa, na Rua de Sèvres, cursos gratuitos de física, química, anatomia comparada, astronomia, etc. — empresa digna de encômios em qualquer tempo, mas principalmente numa época em que bem poucos eram os interessados que se aventuravam por aquela senda.

Sempre empenhado em tornar atraentes e interessantes os sistemas de educação, inventou, ao mesmo tempo, um método engenhoso para aprender a contar e um quadro mnemônico da História de França, cujo objetivo era fixar na memória as datas dos mais notáveis acontecimentos, bem como os descobrimentos que ilustram cada reinado.

Entre as numerosas obras de educação, podemos citar as seguintes: Plano para o melhoramento da instrução pública, 1828. — Curso prático e teórico de aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso de professores e de mães de família, 1829. — Gramática francesa clássica, 1831. — Manual para exames de capacidade. Soluções racionais de questões e problemas de aritmética e de geometria, 1846. —Catecismo gramatical da língua francesa, 1848. — Programa dos cursos ordinários de física, química, astronomia, fisiologia (que ele dava no Liceu Polimático). — Pontos para os exames da Câmara Municipal e da Sorbonne, acompanhados de Instruções especiais sobre as dificuldades ortográficas, 1849, obra muito estimada na ocasião da qual ainda recentemente se faziam novas edições.

Antes que o Espiritismo lhe viesse popularizar o pseudônimo de ALLAN KARDEC, havia ele, como se vê, sabido ilustrar-se com trabalhos de natureza muito diversa, os quais tinham por finalidade esclarecer a massa popular, prendendo-a ainda mais ao sentimento de família e ao amor de pátria.

Em 1855, quando se começou a tratar das manifestações de Espíritos, ALLAN KARDEC dedicou-se a perseverantes observações do fenômeno e cuidou principalmente de lhe deduzir as consequências filosóficas; entreviu de longe o princípio de novas leis naturais; aquelas que regem as relações entre o mundo visível e invisível. Reconheceu, nas manifestações deste, uma das forças da natureza, cujo conhecimento devia projetar luz a uma infinidade de problemas considerados insolúveis. Finalmente percebeu a relação de tudo aquilo com pontos de vista religiosos.

As suas principais obras acerca da nova matéria são: O Livro dos Espíritos, para a parte filosófica, cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857. O Livro dos Médiuns, para a parte experimental e científica, publicada em janeiro de 1861. O Evangelho segundo o Espiritismo, para a parte moral, publicada em abril de 1864. O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina segundo o Espiritismo, agosto de 1865. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, janeiro de 1868. A Revista Espírita, órgão de estudos psicológicos, publicação mensal começada em 1o de janeiro de 1858.

Fundou em Paris, a 1o de abril de 1858, a primeira sociedade espírita regularmente constituída, com o nome de Societé parisienne des études spirites, cujo fim exclusivo era o estudo de tudo quanto pudesse contribuir para o progresso da nova ciência.

ALLAN KARDEC se defendeu admiravelmente da pecha de haver escrito sob a influência de ideias preconcebidas ou sistemáticas. Homem, de caráter frio e severo, observara os fatos e das observações deduziu as leis que os regem; foi o primeiro que, a propósito desses fatos, estabeleceu teoria e constituiu um corpo de doutrina, regular e metódico. Demonstrando que os fatos, falsamente chamados sobrenaturais, são sujeitos a leis, os subordinou à categoria dos fenômenos da natureza, e fez ruir, assim, o último reduto do maravilhoso, que é uma das causas da superstição.

Durante os primeiros anos de preocupação com os fenômenos espíritas, foram estes mais objeto de curiosidade que de meditações sérias.

O Livro dos Espíritos fez com que fossem encarados por outra face: desprezaram-se as mesas falantes, que tinham sido o prelúdio e se ligou o fenômeno a um corpo de doutrina, que compreendia questões concernentes à humanidade.

Da aparição do livro data a verdadeira fundação do Espiritismo, que até então só possuía elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance não tinha sido compreendido por todos. Também foi desde aquela época que a doutrina prendeu a atenção dos homens sérios e adquiriu rápido desenvolvimento.

Em poucos anos, as ideias espíritas contavam com numerosos aderentes nas classes sociais e em todos os países. O êxito, sem precedentes, é obra da simpatia que essas ideias encontram, mas também é devido, em grande parte, à clareza característica dos escritos de ALLAN KARDEC.

Abstendo-se das fórmulas abstratas da metafísica, o autor soube fazer-se ler sem fadiga, condição essencial para vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos de controvérsia, a sua argumentação, de uma lógica cerrada, oferece pouco material à contestação e predispõe o antagonista à convicção.

As provas materiais, que o Espiritismo fornece tanto da existência da alma como da vida futura, derrocam as ideias materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos da doutrina, o qual decorre do precedente, é o da pluralidade das existências, já entrevista por inúmeros filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por Jean Reynaud, Charles Fourier, Eugène Sue e outros; mas tinha ficado no estado de hipótese, ao passo que o Espiritismo demonstra a sua realidade e prova que é um dos atributos essenciais da humanidade. Desse princípio decorre a solução de todas as anomalias aparentes da vida humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais. O homem sabe assim donde vem, para onde vai, para que fim está na Terra e porque sofre aqui.

As ideias inatas explicam-se pelos conhecimentos adquiridos em vidas anteriores; o caminhar dos povos explica-se pelos homens do tempo passado, que voltam a esta vida, depois de terem progredido; as simpatias e as antipatias, pela natureza das relações anteriores, relações que ligam a grande família humana de todas as épocas aos altos princípios da fraternidade, da igualdade, da liberdade e da solidariedade universal e têm por base as mesmas leis da Natureza e não mais uma teoria.

Em vez do princípio: Fora da Igreja não há salvação, que mantém a divisão e a animosidade entre as diferentes seitas e que tanto sangue tem feito correr — o Espiritismo tem por máxima: Fora da caridade não há salvação, isto é, a igualdade dos homens perante Deus, a liberdade da consciência, a tolerância e a benevolência mútuas. Em vez da fé cega, que aniquila a liberdade de pensar, ensina: a fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade; para a fé é preciso uma base e esta é a inteligência perfeita do que se deve crer; para crer não basta ver, é preciso sobretudo compreender; a fé cega não é mais deste século; ora, é precisamente o dogma da fé cega que produz hoje o maior número de incrédulos, por querer impor-se, exigindo a alimentação das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. (O Evangelho segundo o Espiritismo).

Trabalhador infatigável, sempre o primeiro a iniciar o trabalho e o último a deixá-lo, ALLAN KARDEC sucumbiu a 31 de março de 1869, em meio dos preparativos para mudar de domicílio, como lhe exigia a extensão considerável das múltiplas ocupações.

Numerosas obras, que tinha em mão, ou que só esperavam oportunidade para vir a lume, provar-lhe-ão um dia a magnitude das concepções.

Morreu como viveu: trabalhando. Desde longos anos sofria do coração, que reclamava, como meio de cura, o repouso intelectual, com pequena atividade material. Ele, porém, inteiramente entregue às obras, negava-se a tudo o que lhe roubasse um instante das suas ocupações de predileção.

Nele, como em todas as almas de boa têmpera, a lima do trabalho gastou o aço do invólucro. O corpo, entorpecido, recusava-lhe os serviços; mas o espírito, cada vez mais vivaz, mais enérgico, mais fecundo, alargava-lhe o círculo da atividade. Na luta desigual a matéria nem sempre podia resistir. Um dia foi vencida: o aneurisma rompeu-se e ALLAN KARDEC caiu fulminado.

Um homem desapareceu da Terra, mas o seu grande nome tomou lugar entre as ilustrações do século e um culto espírito foi retemperar-se no infinito, onde aqueles, que ele próprio havia consolado e esclarecido, lhe esperavam a volta com impaciência.

"A morte — dizia mui recentemente —, a morte amiúda os golpes na falange dos homens ilustres!... A quem virá ela agora libertar?"

Foi ele, depois de tantos outros, retemperar-se no espaço e buscar outros elementos para renovar o organismo gasto por uma vida de labores incessantes. Partiu com aqueles que virão a ser os luminares da nova geração, a fim de voltar com eles para continuar e concluir a obra que deixou confiada a mãos dedicadas.

O homem deixou-nos, mas a sua alma será sempre conosco. É um protetor seguro, uma luz a mais, um labutador infatigável, que foi aumentar as forças das falanges do espaço.

Como na Terra, saberá moderar o zelo dos impetuosos, secundar as intenções dos sinceros e dos desinteressados, estimular os vagarosos — saberá enfim, sem ferir a ninguém, fazer com que todos lhe ouçam os mais convenientes conselhos.

Ele vê e reconhece agora o que ainda ontem apenas previa. Não mais está sujeito às incertezas e aos desfalecimentos e contribuirá para participarmos das suas convicções, fazendo-nos alcançar a meta, dirigindo-nos pelo bom caminho, tudo nessa linguagem clara, precisa, que constitui um característico nos anais literários.

O homem, nós o repetimos, deixou-nos, mas ALLAN KARDEC é imortal, e a sua memória, os trabalhos, o Espírito, estarão sempre com aqueles que sustentarem com firmeza e elevação a bandeira, que ele sempre soube fazer respeitar.

Uma individualidade pujante construiu o monumento. Esse monumento será, para nós na Terra a personificação daquela individualidade. Não se congregarão em torno de ALLAN KARDEC: congregar-se-ão em torno do Espiritismo, que é o monumento por ele erigido. Através dos conselhos dele, sob a sua influência, caminharemos com passo firme para essas fases venturosas prometidas à humanidade regenerada.

(Revue Spirit. Maio de 1869)

 


 

Discurso Pronunciado no Túmulo de Allan Kardec por Camille Flammarion

Senhores:

Anuindo com satisfação ao convite dos amigos do laborioso pensador, cujo corpo terrestre aqui jaz a nossos pés, eu me lembro de um dia triste de dezembro de 1865.

Pronunciara então naquele dia o supremo adeus ao pé do túmulo do fundador da livraria acadêmica, o honrado Didier, que foi, como editor, colaborador convicto de ALLAN KARDEC na publicação das obras fundamentais de uma doutrina, que lhe era cara; morreu também subitamente, como se o céu quisesse poupar aos dois íntegros Espíritos a dificuldade filosófica de saírem desta vida por modo diferente do geral.

A mesma reflexão tem cabimento a respeito do nosso antigo colega Jobard, de Bruxelas.

Hoje a minha tarefa é mais árdua, porque desejaria poder descrever aos que me ouvem, e a de milhões de pessoas, que em o Novo Mundo se têm preocupado com o problema, ainda misterioso, dos fenômenos chamados espíritas, desejaria, como vinha dizendo, poder descrever-lhes o interesse e o futuro filosófico do estudo do fenômeno, ao qual se têm dedicado, como ninguém o ignora, homens eminentes entre os nossos contemporâneos.

Muito folgaria como lhes fazer entrever que horizontes desconhecidos ao pensamento humano se desdobrarão diante dos olhos, à medida que se alargaram os conhecimentos positivos das forças naturais em ação ao pé e em torno de nós. Estimaria mostrar-lhes que esses conhecimentos são o mais eficaz antídoto da lepra do ateísmo, que parece infeccionar particularmente esta época de transição, e, finalmente, dar aqui público testemunho do relevante serviço que o autor de O Livro dos Espíritos prestou à filosofia, provocando a atenção e a discussão de fatos até então pertencentes ao domínio mórbido e funesto das superstições religiosas.

Seria, com efeito, de suma importância fazer sentir aqui diante deste grande túmulo, que o exame metódico dos fenômenos erradamente chamados sobrenaturais, em vez de levantar o espírito de superstição e de abater as energias da razão, dissipa, muito ao contrário, os erros e as ilusões da ignorância, e fomenta melhor o progresso do que a negação ilegítima daqueles que não querem dar-se ao trabalho de ver as coisas.

Não é porém aqui o lugar adequado para uma discussão irreverente. Deixemos somente baixar dos nossos pensamentos, sobre a face impassível do homem deitado ante nós, os testemunhos de afeto e sentimentos de saudade, que formem em torno dele e do seu túmulo uma atmosfera balsâmica de eflúvios do coração.

Já que sabemos que sua alma imortal sobrevive aos despojos mortais, assim, como preexistiu a eles; que laços indestrutíveis ligam o mundo visível ao mundo invisível; que esta alma existe hoje tão completa como há três dias e que não é impossível achar-se entre nós agora; digamos-lhe que não quisemos ver dissipar-se a sua imagem corpórea e encerrar-se no sepulcro sem lhe honrar unanimemente os trabalhos e a memória, sem pagar o tributo de reconhecimento à sua encarnação terrestre, tão útil e dignamente preenchida.

Em breves traços esboçarei as principais linhas da sua carreira literária.

Morto na idade de 65 anos, ALLAN KARDEC consagrou a primeira parte da sua vida a escrever obras clássicas, elementares, destinadas, principalmente, ao uso dos preceptores da mocidade. Quando, em 1855, as manifestações consideradas novas, das mesas falantes, das pancadas sem causa apreciável dos movimentos insólitos de objetos e de móveis, começaram a atrair a atenção pública e chegaram a produzir nas imaginações irrequietas uma espécie de febre, por causa da novidade das experiências, ALLAN KARDEC, estudando a um tempo o magnetismo e os seus singulares efeitos, acompanhou, com a maior paciência e a mais judiciosa perspicácia, as experiências e as tentativas, tão numerosas, levadas a efeito em Paris. Recolheu e coordenou os resultados obtidos por essa longa observação e, com eles, compôs um corpo de doutrina publicado em 1857 com a primeira edição de O Livro dos Espíritos.

Todos sabeis quão grande êxito alcançou essa obra em França e no estrangeiro. Havendo já alcançado a 15ª edição, tem espalhado por todas as classes a doutrina elementar, que não é nova, pois a escola de Pitágoras, na Grécia, e a dos drúidas, na nossa pobre Gália, ensinavam os seus princípios fundamentais conquanto revestisse uma forma de ocasião por sua correspondência com os fenômenos.

Depois dessa primeira obra, apareceram sucessivamente O Livro dos Médiuns, ou Espiritismo experimental, O Que é o Espiritismo ou resumo sob a forma de perguntas e respostas, O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese. A morte surpreendeu-o no instante em que, infatigavelmente ativo, trabalhava numa obra sobre a relação do magnetismo com o Espiritismo.

Pela Revue Spirite e pela Sociétè Spirite, de que era presidente, de Paris, tinha-se constituído, de certa maneira, o centro para onde tudo convergia, o traço de união de todos os experimentadores.

Há meses, percebendo que estava próximo o seu fim, preparou as condições de vitalidade para aqueles estudos, depois da sua morte, e fundou um Diretório Central, que o substituísse. Provocou rivalidades, fez escola de caráter um tanto pessoal e deixou uma como que divisão entre espiritualistas e espíritas.

Daqui para diante, senhores (tal é pelo menos o voto dos amigos da verdade), devemos ser todos unidos pelos laços da mais fraternal solidariedade, empregando os mesmos esforços na elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal da verdade e do bem.

Objetou-se ao digno amigo, a quem rendemos hoje as derradeiras homenagens, não ser ele o que chamamos um sábio; não ter sido físico, naturalista, astrônomo e ter preferido constituir um corpo de doutrina moral a ter aplicado a discussão científica à realidade e à natureza dos fenômenos.

Talvez, senhores, fosse melhor que as coisas tivessem assim começado. É preciso sempre não amesquinhar o valor do sentimento. Quantas consolações tem levado aos corações esta crença religiosa! Quantas lágrimas tem enxugado! Quantas consciências se têm aberto aos raios da beleza espiritual!

Ninguém é feliz na Terra, onde muitas afeições são despedaçadas, onde muitas almas têm sido envenenadas pelo ceticismo. Não é de grande valia ter trazido ao espiritualismo tantos seres, que flutuavam num mar de dúvidas e eram indiferentes à vida física e à intelectual?

Tivesse ALLAN KARDEC sido homem de ciência, sem dúvida não teria podido prestar esses benéficos serviços, nem levar tão longe o estímulo para os corações. Ele foi o que simplesmente chamarei "o bom senso encarnado". Razão firme e judiciosa, aplicava sem omissão, à sua obra permanente, as íntimas indicações do senso comum.

Não era essa uma qualidade somenos na ordem das coisas, que nos ocupam. Era seguramente a primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não se teria popularizado nem distendido pela Terra as suas grandes raízes.

A maior parte dos que se têm dedicado a esses estudos se lembram de haver, na mocidade ou em circunstâncias especiais, sido testemunhas de inexplicáveis manifestações. Bem poucas são as famílias que não as tenham observado. O essencial era aplicar-lhes a razão firmado no bom senso e examiná-las segundo os princípios do método positivo; como previra o fundador desse estudo lento e difícil, deve ele, em sua complexidade, entrar agora no período científico.

Os fenômenos físicos, que a princípio não provocavam exame sério, devem ser objeto da crítica experimental, a que devemos a glória dos modernos progressos e as maravilhas da eletricidade e do vapor. Esse método deve também abranger os fenômenos de ordem ainda maravilhosa, a que temos assistido, para dissecá-los, medi-los, defini-los.

Porque, senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o a, b, c. Já passou o tempo dos dogmas.

A natureza abarca o universo, e o próprio Deus, que outrora se considerava feito à imagem do homem, não pode ser agora considerado pela metafísica moderna senão como um Espírito na natureza. Não existe o sobrenatural.

As manifestações obtidas por médiuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural e devem ser rigorosamente submetidas ao cadinho da experiência. Não há milagres. Assistimos ao romper da aurora de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a que consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo dessa nova psicologia?

A ciência governa o mundo daqui para diante e, senhores, não será descabido neste discurso fúnebre acentuar a sua obra atual e as induções novas, que ela nos descobre, precisamente com referência às nossas pesquisas.

Nunca em época alguma da história a ciência deslumbrou a vista dos homens com tão grandiosos horizontes. Sabemos hoje que a Terra é um astro e que a nossa vida atual se completa no céu. Pela análise da luz, conhecemos os elementos de combustão, no sol e nas estrelas, a milhões e a trilhões de léguas do nosso observatório terrestre. Pelo cálculo, possuímos a história do céu e da Terra, tanto em seu passado mais remoto, como em seu futuro, os quais não existem para as leis imutáveis. Pela observação, determinamos o peso dos globos celestes, que gravitam no espaço. O globo que habitamos é um átomo estelar perdido nas profundezas infinitas do espaço e a nossa própria existência é uma fração infinitesimal da nossa vida eterna.

O que porém mais nos pode impressionar é o admirável resultado dos trabalhos físicos realizados nestes últimos anos: que vivemos no meio de um mundo invisível em constante agitação ao nosso derredor. Sim, meus senhores, isto é para nós uma extraordinária revelação.

Contemplai, por exemplo, a luz neste momento difundida na atmosfera por este brilhante sol; contemplai este azul tão suave da abóbada celeste; apreciai estes eflúvios de ar tépido que nos acariciam as faces; reparai nestes monumentos e nestes campos; e por mais que tenhamos os olhos abertos, nada vemos do que aqui se passa!

De cem raios de sol apenas um terço é acessível à nossa vista, diretamente ou refletidos por estes corpos; os dois terços existem e agem juntos de nós, mas de modo invisível, embora real. São quentes, conquanto não sejam luminosos para nós e são muito mais ativos do que aqueles que nos tocam e produzem as ações químicas.(*) São eles que elevam, sob forma também invisível, o vapor d'água na atmosfera, de que se formam as nuvens, exercendo assim, incessantemente, em torno de nós e de maneira oculta e silenciosa, um movimento colossal, comparável ao esforço de milhares de cavalos.

(*) É insensível a esses raios a nossa retina. São, porém, vistos por outras substâncias, como o iodo e os sais de prata. Fotografa-se o espectro solar químico, que os nossos olhos não veem. Ao ser retirada da câmara escura, a placa fotográfica nunca oferece uma imagem visível, embora a possua, como prova a operação química que a faz aparecer. (Nota do revisor francês)

Se os raios caloríficos e químicos, que agem constantemente na natureza, nos são imperceptíveis, é porque os primeiros ferem lentamente, e os segundos rapidamente a nossa retina. Os nossos olhos só percebem os objetos entre dois limites, aquém e além dos quais nada veem.

O nosso organismo terrestre pode ser comparado a uma harpa de duas cordas, que são o nervo ótico e o auditivo. Uma certa espécie de movimento põe em vibração o primeiro, e outra espécie diferente, o segundo. Vai nisso toda a sensação humana, mais fraca que a de certos seres vivos, de certos insetos, por exemplo, nos quais as cordas da vista e da audição são mais delicadas.

Ora, na natureza existem, na realidade, não duas, mas dez, cem, mil espécies de movimentos. A física ensina, pois, que vivemos no meio de um mundo invisível e que não é impossível que seres, igualmente invisíveis, vivam na Terra, com sensações absolutamente diferentes das nossas, sem que lhes possamos apreciar a presença, salvo quando se nos manifestam por fatos pertencentes à ordem das sensações.

Diante de tais verdades, que começam a bruxulear, quanto é absurda e sem valor a negação a priori!

Quando se compara o pouco que sabemos e a exiguidade da nossa esfera de percepção, à quantidade do que existe, não se pode deixar de concluir que nada sabemos, que tudo nos falta conhecer.

Com que direito, pois, pronunciaremos a palavra "impossível" diante dos fatos, que testemunhamos, sem podermos descobrir a causa única?

A ciência fornece-nos dados tão autorizados como os precedentes sobre os fenômenos da vida e da morte e sobre a força que nos anima. Basta-nos considerar a circulação das existências.

Tudo é metamorfose. Em seu eterno curso, os átomos constitutivos da matéria passam incessantemente de um a outro corpo, do animal ao vegetal, da planta à atmosfera, da atmosfera ao homem, e o nosso corpo, durante a vida, muda constantemente de substância constitutiva, como a chama, que não brilha senão pela constante renovação de elementos; e, quando a alma o dispa, esse corpo, tantas vezes transformado, entrega definitivamente à natureza todas as suas moléculas para não mais retornar.

O absurdo dogma da ressurreição da carne é substituído hoje pela alta doutrina da transmigração das almas.

Vede este sol de abril, que brilha nos céus e que nos inunda com os seus raios vivificadores. Acordam as campinas, desabrocham os primeiros rebentos das árvores, floresce a primavera, sorri o azul celeste e a ressurreição opera-se por toda a parte. Entretanto é da morte que surge toda esta vida; é das ruínas que lhe provém a animação!

De onde vem a seiva destas árvores, que reverdecem em campo de mortos? De onde vem a umidade que lhes alenta as raízes?

De onde todos os elementos que lhes fazem aparecer, nas carícias de maio, as flores silenciosas e os passarinhos cantadores?

Vêm da morte!... Meus senhores; vêm desses cadáveres sepultados na noite sinistra dos túmulos!

Por lei suprema da natureza, o corpo material é um agregado transitório de partículas, que lhe não pertencem e que a alma agrupa, segundo um determinado tipo, para formarem órgãos, que a ponham em relação com o mundo físico. Enquanto o nosso corpo se renova, peça por peça, pela perpétua substituição das partículas, enquanto tomba um dia, massa inerte, para o túmulo, de que não mais se ergue, o nosso Espírito, ser pessoal, guarda sempre a identidade indestrutível e reina como soberano sobre a matéria de que se revestiu, estabelecendo por esse fato, constante e universal, a sua personalidade independente, a sua essência espiritual não sujeita ao império do tempo e do espaço, a sua grandeza individual, a sua imortalidade.

Em que consiste o mistério da vida? Por que laços se prende a alma ao organismo? Que os desfaz para que ela se escape? Sob que forma e em que condições existe ela depois da morte? Que recordações, que afetos guarda?

São estes, meus senhores, outros tantos problemas que ainda estão longe de ser resolvidos e cujo conhecimento constituirá a ciência psicológica do futuro.

Podem alguns negar a existência da alma e de Deus, afirmar que não existe a verdade moral, que não há, na natureza, leis inteligentes e que nós, os espiritualistas, somos vítimas de pura ilusão.

Podem outros, ao contrário, declarar que conhecem, por particular privilégio, a essência da alma humana, a forma do Ser Supremo, o estado da vida futura, e qualificar-nos de ateus, porque a nossa razão não admite a sua fé. Uns e outros não poderão impedir que estejamos em face dos maiores problemas, que nos interessamos por estas coisas, que não nos são indiferentes e estranhas, e que tenhamos o direito de aplicar o método experimental da ciência contemporânea à pesquisa da verdade.

É pelo estudo positivo dos efeitos que se remonta ao conhecimento das causas. Na ordem dos estudos, genericamente denominados como de "Espiritismo", os fatos existem, embora não se conheça o modo da produção. Existem tão realmente como os fenômenos elétricos, luminosos, caloríficos, mas senhores não lhes conhecemos nem a biologia, nem a fisiologia.

Que é o corpo humano? Que é o cérebro? Qual a ação absoluta da alma? Ignoramo-lo. Também ignoramos a essência da eletricidade, a essência da luz. É pois de suma sabedoria observar todos esses fatos sem ideia preconcebida, e procurar descobrir as causas, que são porventura de espécies diversas e mais numerosas do que o temos suposto.

Que importa que joguem sobre este gênero de estudos o sarcasmo ou o anátema aqueles cuja vista é turvada pelo orgulho ou por preconceitos, que os impedem de compreender os ansiosos desejos do nosso pensamento ávido de conhecer; mais alto elevaremos as nossas contemplações!

Tu foste o primeiro, mestre e amigo! Foste o primeiro que, desde os meus primeiros passos na carreira astronômica, testemunhaste a mais viva simpatia por minhas deduções relativas à existência das humanidades celestes; pois que, do meu livro Pluralidade dos Mundos Habitados, fizeste a pedra angular do edifício doutrinário, que tinhas arquitetado em tua mente. Muitas vezes conversamos sobre essa vida celeste tão misteriosa, e agora, oh! alma, já sabes, por uma visão direta, em que consiste ela, a vida espiritual, para a qual voltaremos, embora dela nos esqueçamos enquanto aqui estamos.

Agora já pertences a esse outro mundo de onde viemos, e colhes o fruto dos teus estudos terrestres. O teu invólucro dorme a nossos pés, o teu cérebro está paralisado, os teus olhos fechados para nunca mais se abrirem, a tua palavra está extinta para não mais poder ser ouvida...

Bem sabemos que todos cairemos neste derradeiro sono, nesta inércia, neste pó. Não é pois neste invólucro que pomos a nossa glória e esperança. O corpo cai, mas a alma ergue-se e volta para o espaço.

Um dia estaremos em melhor mundo, lá no céu imenso, onde se exercerão as nossas poderosas faculdades; continuaremos os estudos que, aliás, tinham na Terra um teatro muito pequeno para que se desenvolvessem satisfatoriamente. Preferimos crer nesta verdade a julgar que estás todo inteiro neste cadáver, e que a tua alma tenha sido destruída pela cessação do movimento de um órgão.

A imortalidade é a luz da vida, como este brilhante sol é a luz da natureza.

Até logo, meu caro Allan Kardec, até logo.

 


 

Aos Assinantes da Revista

Até agora, a Revista Espírita tem sido especialmente criação e obra de Allan Kardec, como também as demais obras doutrinárias que ele publicou.

À época de sua morte, a multiplicidade de suas ocupações e o novo período em que entrava o Espiritismo faziam com que desejasse a companhia de alguns colaboradores convictos para a execução dos trabalhos sob sua direção, aos quais já não conseguia atender sozinho.([1])

Tentaremos não nos desviar da linha por ele traçada, mas pareceu-nos de nosso dever consagrar aos trabalhos do Mestre, sob o título de "Obras Póstumas", aquelas páginas que ele próprio manteria ocultas se permanecesse ainda entre nós.

A quantidade abundante de documentos acumulada em seu gabinete de trabalho nos permitirá publicar em cada número durante alguns anos, além das instruções que ele porventura nos dará em espírito, também aqueles interessantes artigos que ele sabia muito bem como tornar compreensíveis a todos.

Estamos, pois, convencidos que dessa maneira satisfaremos aos desejos de todos aqueles aos quais a Filosofia Espírita reuniu em suas fileiras e que souberam apreciar no autor de "O Livro dos Espíritos" o homem de bem, o incansável e devotado trabalhador, o espírito convicto, que se aplicava a por em prática na vida íntima os princípios que ensinava em suas obras.

Revista Espírita — 12° ano — Junho de 1869

 

Primeira Parte


 

Profissão de Fé Espirita Racional

I — Deus

1. Existe um Deus, inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

A prova da existência de Deus está no axioma: não há efeito sem causa. Vemos constantemente multidão de efeitos inumeráveis, cuja causa está fora da humanidade, não podendo esta pois produzi-los, nem sequer explicá-los.

A causa, que está acima da humanidade, é o que se chama: Deus, Jeová, Aláh, Brama, Fo-Hé, Grande Espírito, etc., segundo as linhas, os tempos e os lugares.

Aqueles efeitos não se produzem ao acaso, fortuitamente e sem ordem; desde a organização do mais pequeno inseto, do mais pequeno grão, até à lei que rege os mundos suspensos no espaço, tudo atesta um pensamento, uma combinação, uma providência, uma solicitude superiores a toda concepção humana.

A causa desses efeitos é por conseguinte soberanamente inteligente.

2. Deus é eterno, imutável, imaterial, uno, onipotente, soberanamente justo e bom.

Deus é eterno, porque se houvesse tido princípio, alguma coisa teria existido antes dele; teria saído do nada, ou seria criação de um ser anterior.

É por esta dedução que gradativamente nos elevamos ao infinito na eternidade.

Deus é imutável, porque, se assim não fora, se estivesse sujeito a modificações, as leis que regem o universo não poderiam ter estabilidade.

Deus é imaterial ou de natureza oposta ao que chamamos matéria; pois que se o não fora, se fosse da natureza da matéria, seria, como esta, sujeito às flutuações e transformações: não seria pois imutável.

Deus é uno, pois que se múltiplo fora, múltiplas seriam as vontades; e, conseguintemente, impossível seria a unidade de vista e de ação na criação e na manutenção da ordem universal.

Deus é onipotente, porque é uno. Se não possuísse o absoluto poder, haveria algum ser mais poderoso; não seria o criador de todas as coisas, e aquelas, que não tivesse criado, seriam obras de outro Deus.

Deus é soberanamente justo e bom, porque a sabedoria das suas leis, revelando-se nas menores como nas maiores coisas, não permite pôr-lhe em dúvida a justiça e a bondade.

3. Deus é infinito em todas as suas perfeições.

Se fosse possível admitir imperfeição em qualquer dos atributos divinos, se se lhe suprimisse a menor parcela de eternidade, de imutabilidade, de imaterialidade, de unidade, de onipotência, de justiça e de bondade, ficar-se-ia logicamente no direito de admitir um ser dotado de tudo quanto lhe faltasse. Então esse ser, mais perfeito que ele, seria o verdadeiro Deus.

II — A Alma

4. Há no homem um princípio inteligente que se chama ALMA ou ESPÍRITO, independente da matéria e que lhe dá o senso moral e a faculdade de pensar.

Se o pensamento fosse propriedade da matéria, a matéria bruta pensaria; mas a matéria inerte evidentemente não possui faculdades intelectuais e o corpo logo que morre cessa de manifestar pensamentos, portanto é de rigor concluir que a alma é independente da matéria e que os órgãos corpóreos não são senão instrumentos de que se serve o homem para transmitir os pensamentos.([2])

5. As doutrinas materialistas são incompatíveis com a moral e subversivas da ordem social.

Se, como julgam os materialistas, o pensamento fosse uma secreção do cérebro, como a bílis o é do fígado, resultaria que, morto o corpo, a inteligência e as qualidades morais do homem ficariam reduzidas a nada; os pais, os amigos e todos, a quem se amasse, ficariam para sempre perdidos; o mérito do talento nada valeria, porque só ao acaso deveriam as suas faculdades transcender pela organização que teve, e entre o imbecil e o sábio a diferença seria apenas de mais ou menos massa cerebral.

As consequências desses princípios seriam que o homem, nada esperando depois desta vida, nenhum interesse teria em fazer o bem; que o que é natural é procurar ele todo o gozo possível, mesmo à custa dos outros; que seria estúpido privar-se do que lhe apraz por causa de outrem; que o egoísmo seria o mais racional dos seus sentimentos; que o infeliz, perseguido pela adversidade, o que melhor pode fazer é matar-se, uma vez que, tendo fatalmente de reduzir-se a nada, teria a vantagem de abreviar o tempo de sofrimentos.

A doutrina materialista é pois a sanção do egoísmo, fonte de todos os vícios; a negação da caridade, origem de todas as virtudes, pedra angular da ordem social — bem assim como a justificação do suicídio.([3])

6. A independência da alma é provada pelo Espiritismo.

A existência da alma é provada pelos atos inteligentes do homem, os quais decorrem necessariamente de uma causa inteligente e jamais de uma causa inerte. A sua independência da matéria é demonstrada de modo patente pelos fenômenos espíritas, que a mostram agindo por si mesma; e o é principalmente, pela experiência do seu desprendimento, durante a vida, o que lhe permite manifestar-se, pensar e agir separado do corpo.

A química separa os elementos constitutivos da água, patenteando-lhe propriedades, bem como pode decompor e recompor o corpo composto.

Pois bem!, o Espiritismo pode, do mesmo modo, separar os dois elementos constitutivos do homem: o espírito e a matéria, a alma e o corpo; pode separá-los e reuni-los à vontade, donde decorre a prova de sua independência.([4])

7. A alma sobrevive ao corpo e conserva a individualidade depois da morte.

Se a alma não sobrevivesse ao corpo, a única perspectiva do homem seria o nada, do mesmo modo como se a faculdade de pensar fosse produto da matéria. Se ela não conservasse a individualidade, isto é, se se perdesse no seio do grande todo, como gotas d'água no oceano, valeria isto pelo nada do pensamento humano, e as consequências seriam absolutamente as mesmas como se o homem não tivesse alma.

A sobrevivência da alma prova-se de maneira irrecusável e por assim dizer palpável pelas comunicações espíritas. A sua individualidade demonstra-se pelo caráter e qualidades próprias a cada uma; essas qualidades, distintas umas das outras, constituem a personalidade; se se confundissem em um todo comum, as qualidades de todos seriam uniformes.

Além dessas provas, ainda temos a material das manifestações visuais ou aparições, que são tão frequentes e tão autênticas a ponto de não deixarem a menor dúvida.([5])

8. A alma é feliz ou infeliz depois da morte, segundo o bem ou o mal, que fez na vida.

Desde que se admite um Deus, soberanamente justo, é impossível crer-se que as almas tenham uma mesma sorte. Se o criminoso e o virtuoso tivessem a mesma posição depois da morte, inútil seria praticar o bem, e seria negar a justiça de Deus supor que ele não faz diferença entre os que praticam o bem e os que praticam o mal, o que seria a negação da sua justiça. Deus não seria justo se, não sendo o mal punido na Terra e o bem premiado, não o punisse ou galardoasse depois da vida terrestre.

As penas e recompensas futuras nós as conhecemos, materialmente, pelas comunicações com as almas dos que viveram entre nós, e nos vêm descrever as suas felicidades ou infelicidades, a natureza de uma e outras e o que as causa.([6])

9. Deus, a alma, a sobrevivência e a individualidade da alma depois da morte do corpo, as penas e as recompensas futuras — eis os princípios fundamentais de todas as religiões.

O Espiritismo vem acrescentar às provas morais desses princípios, as provas materiais através dos fatos e da experimentação, cortando assim pela raiz os sofismas do materialismo. Em presença dos fatos, não há razão para a incredulidade. E assim o Espiritismo restitui a fé aos que a perderam e dissipa as dúvidas aos que vacilam.

 III — Criação

10. Deus é o criador de todas as coisas.

Esta proposição decorre da prova da existência de Deus.

11. O princípio das coisas é segredo de Deus.

Tudo atesta que Deus é o autor de todas as coisas; mas quando e como as fez? A matéria existe de toda a eternidade, como Ele? É o que sabemos. Não podemos formular senão hipóteses, mais ou menos prováveis, sobre o que não julgou oportuno revelar-nos. Dos efeitos que vemos, podemos chegar a certas causas, mas há um limite, que nos é impossível transpor, e tentar fazê-lo seria perder tempo e arriscar-se a cair em erro.

12. O homem tem um farol para a procura do desconhecido: são os atributos de Deus.

No tentame de devassar, pelo raciocínio, os mistérios da criação, temos um critério infalível, um guia seguro: os atributos de Deus.

Uma vez admitido que Deus não pode deixar de ser eterno, imutável, imaterial, uno, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições, toda a doutrina ou teoria, científica ou religiosa, que deprimir, ainda infinitesimalmente, qualquer daqueles predicados, é necessariamente falsa, pois tende à negação do próprio Deus.([7])

13. Os mundos materiais tiveram princípio e hão de ter fim.

Em qualquer das hipóteses, ou de existir a matéria de toda a eternidade, como Deus, ou de ter sido criada em uma dada época, é evidente, à vista do que se passa constantemente a nossos olhos, que as transformações pelas quais ela passa são temporárias, resultando de tais transformações diferentes corpos que nascem e se destroem incessantemente.([8])

Sendo os diversos mundos produzidos pela aglomeração e transformação da matéria, devem, como todos os corpos materiais, ter princípio e fim, segundo leis que nos são desconhecidas.

A ciência pode, até certo ponto, determinar as leis da sua formação e chegar até o estado primitivo. Toda teoria filosófica, em contradição com os fatos demonstrados pela ciência, é necessariamente falsa, salvo se se provar que a ciência está em erro.

14. Deus criou, juntamente com os mundos materiais, seres inteligentes, que chamamos Espíritos.

15. Não conhecemos a origem e o modo de criação dos Espíritos; sabemos somente que são criados simples e ignorantes, isto é, sem sabedoria e sem o sentimento do bem e do mal, sendo porém dotados de perfectibilidade e igual aptidão para adquirir sabedoria e moralidade. No princípio são como crianças, sem vontade própria, nem consciência perfeita da sua existência.

16. À medida que o Espírito se afasta do ponto inicial, desenvolvem-se-lhe as ideias, como acontece às crianças, e com as ideias rompe o livre-arbítrio, isto é, a liberdade de ação consciente para escolher o caminho a seguir em sua marcha — o que constitui um dos atributos essenciais do Espírito.

17. O termo final da caminhada dos Espíritos, o destino de todos, é a conquista da perfeição, de que é suscetível a criatura, e o resultado ou consequência dessa conquista é o gozo da suprema felicidade, que se alcança lenta ou rapidamente, segundo o uso que se faz do livre-arbítrio.

18. Os Espíritos são os agentes do poder divino, constituem a força inteligente da natureza, concorrem para a realização das relações do Criador, no intuito de manter-se a harmonia geral do universo e das leis imutáveis da criação.

19. Para concorrerem, como agentes do poder divino, à obra dos mundos materiais, os Espíritos revestem temporariamente um corpo material. Os Espíritos encarnados constituem a humanidade. A alma do homem é um Espírito encarnado.([9])

20. A vida normal dos Espíritos é a espiritual, que é eterna; a corpórea é transitória e passageira, um verdadeiro instante na eternidade.

21. A encarnação dos Espíritos deriva de lei natural, é uma necessidade, tanto para o seu progresso, como para a realização dos planos de Deus.

Pelo trabalho, função necessária da vida corporal, aperfeiçoam a inteligência e adquirem, observando a lei de Deus, os méritos que lhes proporcionam a eterna felicidade. Resulta do exposto que os Espíritos, concorrendo para a obra geral da criação, trabalham ao mesmo tempo em seu próprio progresso.

22. O aperfeiçoamento do Espírito é fruto do seu trabalho, ele o alcança na razão da atividade e boa vontade que emprega para a aquisição das qualidades que lhe faltam.

23. Não podendo o Espírito adquirir em uma única existência corpórea todas as qualidades intelectuais e morais que devem conduzi-lo ao fim para que foi criado, precisa, para conseguir esse fim, de uma série de existências, em cada uma das quais adianta um passo nas vias do progresso e se limpa de algumas imperfeições.

24. Em cada uma dessas existências, o Espírito traz o cabedal adquirido nas anteriores, quer intelectual, quer moralmente; do mesmo modo como traz os germes das imperfeições de que não conseguiu expurgar-se.

25. O Espírito, que emprega mal uma existência, não adiantando uma linha no caminho do bem, nenhum proveito colhe e tem de recomeçar o trabalho em condições mais ou menos penosas, em consequência de sua negligência e má vontade.

26. Uma vez que o Espírito adquire alguma coisa de bom e se despoja de algo de mau em cada existência corpórea, segue-se que, ao fim de certo número de encarnações, se encontra depurado e chega ao estado de Espírito puro.

27. 0 número de existências corporais é indeterminado e depende da vontade do Espírito no trabalho ativo do aperfeiçoamento moral.

28. No intervalo das existências corporais, o Espírito fica errante e vive a vida espiritual. A erraticidade não tem duração determinada.([10])

29. Os Espíritos, que adquiriram o progresso compatível com o mundo, em que estiveram, deixam-no para se encarnarem em outro mais adiantado, onde adquirem novos conhecimentos, e assim vão fazendo a sua excursão, até chegarem ao ponto de não mais precisarem de um corpo material, vivendo exclusivamente a vida espiritual em que progridem ainda noutro sentido e por outros meios.

Desde que chegam ao ponto culminante do progresso, gozam da suprema felicidade. São admitidos aos conselhos do Onipotente, cujo pensamento recebem, e constituem-se seus diretos ministros e mensageiros para o governo dos mundos, tendo sob as ordens Espíritos de variados graus de adiantamento.([11]) 


 

Manifestações dos Espíritos — Caráter e Consequências Religiosas de Manifestações de Espíritos

1. As Almas ou Espíritos dos homens, que viveram na Terra, constituem o mundo invisível no espaço que nos cerca.

Resulta daí que, desde que há Espíritos e que, se estes têm o poder de se manifestar, deveriam tê-lo em todo tempo. É o que provam a história e as religiões de todos os povos.

Ultimamente porém as manifestações de Espíritos têm adquirido enorme desenvolvimento e maior autenticidade, sem dúvida por querer a Providência curar a chaga da incredulidade e do materialismo por evidentes provas, permitindo aos que deixaram a Terra virem comprovar a sua existência e revelar-nos as condições felizes ou penosas em que vivem.([12])

2. O mundo visível, sendo envolvido pelo invisível, com o qual vive em perpétuo contato, age incessantemente sobre ele e recebe dele a reação. Esta reciprocidade é origem de uma multidão de fenômenos, considerados sobrenaturais, por se lhes ignorar a causa.

A ação e a reação de um mundo sobre outro é uma das leis, uma das forças da natureza, necessárias à harmonia universal, como por exemplo a lei de atração. Se aquela força deixasse de obrar, perturbar-se-ia a ordem universal, como em um maquinismo, de que se tirasse uma roda. Não têm, portanto, o caráter de sobrenatural os fenômenos produzidos por semelhante força ou lei da natureza, julgados tais por não se lhes conhecer a causa, como acontece com certos efeitos da luz, da eletricidade, etc.([13])

3. Todas as religiões têm por base a existência de Deus e por objetivo o futuro do homem depois da morte.

Esse futuro, que é de interesse capital, está necessariamente ligado à existência do mundo invisível; e é por isso que em todos os tempos a humanidade tem feito do conhecimento desse mundo o principal objeto dos seus estudos e preocupações. A sua atenção era naturalmente arrastada para todo o fenômeno indicativo daquele mundo, e nenhum havia tão positivo como o das manifestações dos Espíritos, pelos quais os seus habitantes nos revelam a sua existência. É por isso que os fenômenos se tornaram a base da maior parte dos dogmas das religiões.

4. Havendo o homem tido em todos os tempos a intuição de um poder superior, foi induzido a atribuir à ação direta dessa potência os fenômenos cuja causa lhe era desconhecida, considerando-os prodígios e efeitos supernaturais. Essa tendência é pelos incrédulos considerada obra do amor do homem pelo maravilhoso, mas não lhe procuram os motivos. Se se dessem a esse trabalho, reconheceriam que o amor do maravilhoso procede da intuição mal definida de uma ordem de coisas extracorporais.

Com o progresso da ciência e o conhecimento das leis da natureza, aqueles fenômenos têm, pouco a pouco, passado do domínio do maravilhoso ao dos efeitos naturais; e por isso o que se supunha outrora sobrenatural não o é mais atualmente, nem mais o será de ora em diante.

Os fenômenos dependentes da manifestação dos Espíritos forneceram, pela sua própria natureza, um contingente aos fatos considerados maravilhosos; devia porém chegar o tempo em que fosse conhecida a lei que os rege, e eles entrassem como quaisquer outros na ordem dos fatos naturais. Esse tempo chegou e o Espiritismo, fazendo conhecer aquela lei, trouxe a chave da maior parte das passagens das Escrituras sagradas, que aludiam a ela e os fatos reputados miraculosos.

5. O caráter de um fato miraculoso é ser insólito e excepcional; é ser uma derrogação das leis da natureza.

Desde que um fenômeno se reproduza em identidade de condições, é porque obedece a uma lei e portanto não é miraculoso. Essa lei pode ser ignorada, mas nem por isso deixa de existir, competindo ao tempo torná-la conhecida.([14])

O movimento do Sol, ou antes da Terra, parado por ordem de Josué, seria um verídico milagre, por ser uma manifesta derrogação da lei, que rege o movimento dos astros; se porém o mesmo fato se reproduzisse, em dadas condições, é porque obedeceria a uma lei e deixaria de ser um milagre.

6. A Igreja não tem razão de perturbar-se por se ir estreitando o círculo dos fatos miraculosos. Deus afirma muito mais a sua grandeza e poder, com o admirável conjunto das suas leis, do que com a infração delas; tanto mais atribuindo ela ao demônio o poder de fazer prodígios, o que implica ser o demônio tão poderoso quanto Deus, uma vez que tem a faculdade de interromper o curso das leis divinas.

É blasfêmia e sacrilégio dizer que o Espírito do mal pode suspender a ação das leis de Deus!

A religião ganha, em vez de perder, autoridade com a classificação na ordem natural dos fatos reputados miraculosos e isto porque, se um deles é falsamente considerado milagre, nasce dali um erro e a religião, obstinando-se em mantê-lo, só tem que perder. Além disso, ainda é prejudicado porque muitas pessoas não admitem a possibilidade dos milagres; donde resulta negarem os fatos tidos como tais e a religião, que os sustenta. Pelo contrário, admitidos os fatos como efeitos de leis naturais, nenhuma razão há para se lhes recusar fé, tanto como à religião, que os proclama.

7. Os fatos, que a ciência demonstra peremptoriamente, não podem ser negados por nenhuma crença religiosa. A religião ganha autoridade, acompanhando a ciência em seus progressos; tanto quanto a perdeu, caprichando em ficar atrás, ou repelindo as verdades científicas em nome de dogmas, que jamais poderão prevalecer contra as leis naturais, nem principalmente anulá-las.

Um dogma fundado na negação de uma daquelas leis é necessariamente falso.([15])

O Espiritismo, firmado no conhecimento de leis ainda não compreendidas, não vem destruir os fatos religiosos, mas torná-los mais aceitáveis, dando-lhes explicação racional. O que ele vem destruir são as falsas deduções tiradas daquelas leis, por erro ou ignorância.

8. A ignorância das leis da natureza, induzindo o homem a procurar causas fantásticas para os fenômenos, que não compreende, é a origem das ideias supersticiosas, entre as quais algumas são devidas aos fenômenos espíritas mal compreendidos. O conhecimento das leis, que regem fenômenos, destrói essas ideias supersticiosas, dando às coisas o seu caráter real e demarcando os limites do possível e do impossível.

 

I — O Perispírito, Princípio das Manifestações

9. Os Espíritos, como já o dissemos, têm corpo fluídico, a que se dá o nome de perispírito. A sua substância é tomada do fluido universal, ou fluido cósmico, que o constitui e o alimenta, como o ar forma e alimenta o corpo material do homem.

O perispírito é mais ou menos etéreo, segundo os mundos e o grau de adiantamento dos Espíritos. Nos mundos e nos Espíritos inferiores, a sua natureza é mais grosseira e se aproxima mais da matéria bruta.

10. Durante a encarnação, o Espírito conserva o seu perispírito; o corpo não lhe é senão o segundo invólucro, mais grosseiro, mais resistente, apropriado às funções que lhe incumbem, e do qual o despoja a morte.

O perispírito é o intermediário do Espírito e do corpo; é o órgão transmissor de todas as sensações. Quando elas vem do exterior, o corpo recebe a impressão, o perispírito transmite-a, e o Espírito, sensível e inteligente, recebe-a; quando o ato é da iniciativa do Espírito, pode-se dizer que este o quer, o perispírito o transmite e o corpo o executa.([16])

11. O perispírito não é encerrado no corpo como em uma caixa. É expansível por sua natureza fluídica, irradia-se e forma em torno do corpo uma espécie de atmosfera, que o pensamento e a força de vontade podem ampliar mais ou menos. Segue-se daí que pessoas separadas por distâncias podem comunicar-se pelo perispírito e transmitir inconscientemente impressões e intuições.

12. 0 perispírito, como um dos elementos constitutivos do homem, desempenha importante papel em todos os fenômenos psicológicos e, até certo ponto, nos fisiológicos e patológicos. Quando as ciências médicas levarem em conta a influência do elemento espiritual na economia, grande passo terão dado e novos horizontes se lhes abrirão. Muitas causas de moléstias serão então descobertas, bem como poderosos meios de combatê-las.([17])

13. É por meio do perispírito que os Espíritos agem sobre a matéria inerte e produzem os diferentes fenômenos das manifestações. Não lhes é obstáculo a sua natureza etérea, porque se sabe que os mais poderosos motores são os fluidos mais rarefeitos e os imponderáveis. Não há pois que admirar ao vermos Espíritos, com o auxílio dessa alavanca, produzirem certos efeitos físicos, como sejam pancadas e ruídos de toda espécie, elevação de objetos pesados, transporte ou projeção deles no espaço. Para explicar esses fenômenos, não é preciso recorrer ao maravilhoso nem aos efeitos supernaturais.

14. Os Espíritos, agindo sobre a matéria, podem manifestar-se de muitos modos diferentes: por efeitos físicos, como a deslocação de objetos e rumores; por transmissão de pensamento, pela vista, ouvido, tato, escrita, desenho, música, etc.; em uma palavra, por todos os meios pelos quais podem entrar em relações com os homens.([18])

15. As manifestações dos Espíritos podem ser espontâneas ou provocadas.

As primeiras dão-se inopinadamente, de súbito, e produzem-se muitas vezes em pessoas alheias às ideias espíritas. Em certos casos e, sob o império de determinadas circunstâncias, as manifestações podem ser provocadas pela vontade sob a influência de pessoas para aquele fim dotadas de faculdades especiais.

As manifestações espontâneas dão-se em todas as épocas e em todos os países; o meio de provocá-las foi conhecido na antiguidade, mas era privilégio de algumas castas que não o revelavam senão a raros iniciados debaixo de condições rigorosas, ocultando-o ao vulgo a fim de dominá-lo pelo prestígio de um poder oculto. Ele, porém, perpetuou-se através das idades até aos nossos dias em alguns indivíduos, embora desvirtuado pela superstição ou de mistura com práticas ridículas de magia que contribuem para desacreditá-lo. Eram germes lançados cá e acolá.

A providência tinha reservado à nossa época o conhecimento completo e a vulgarização desses fenômenos a fim de separar-lhes a liga impura e fazê-los concorrer para o aperfeiçoamento da humanidade, apta para compreendê-los e para tirar-lhes as consequências.

II — Manifestações Visuais

16. Por sua natureza e no estado normal, o perispírito é invisível e por este lado se confunde com uma multidão de fluidos, que sabemos existir conquanto não possamos vê-los; entretanto pode, como certos fluidos, sofrer modificações que o tornem perceptível à vista quer seja por uma espécie de condensação, quer por uma alteração na composição molecular. Pode até adquirir as propriedades de um corpo sólido e tangível, sem deixar a propriedade de voltar instantaneamente ao seu primitivo estado etéreo e invisível. É comparável esse fenômeno ao do vapor, que passa de invisível, tornando-se líquido ou sólido, e vice-versa.

Esses diferentes estados do perispírito são dependentes da vontade do Espírito e não de causa física exterior, como acontece com o vapor. Quando um Espírito se mostra, é porque colocou o perispírito no estado necessário para tornar-se visível.

A vontade só nem sempre basta, e é preciso, para que o perispírito passe por aquela modificação, um concurso de circunstâncias independentes dele; é mister além disso, que o Espírito tenha a permissão de se tornar visível, o que nem sempre lhe é concedido, ou não o é senão em especiais circunstâncias, por motivos que não podemos apreciar. (O Livro dos Médiuns, item 132).

Outra propriedade do perispírito, que procede da sua natureza etérea é a penetrabilidade; a matéria não lhe opõe obstáculo e ele a atravessa, como a luz atravessa os corpos transparentes. É por isso que não há fechaduras para os Espíritos, que visitam os prisioneiros reclusos em um cárcere, com a mesma facilidade com que se aproximam de quem está no campo a céu aberto.([19])

17. As manifestações visuais mais comuns dão-se durante o sono, em sonhos; são as visões. As aparições propriamente ditas dão-se no estado de vigília, quando se está no pleno uso da liberdade e das faculdades. Realizam-se geralmente sob a forma vaporosa e diáfana, na maior parte das vezes vaga e indecisa, não passando de uma nuvem esbranquiçada, cujos contornos se desenham lentamente. Noutros casos, as formas são bem acentuadas, distinguindo-se os mínimos traços do rosto, de modo a se poder fazer, com a maior precisão, uma perfeita descrição. Os gestos e o aspecto são semelhantes aos do Espírito, quando encarnado.([20])

18. Podendo tomar todas as aparências, o Espírito apresenta-se sob a que melhor pode torná-lo conhecido se esse for o seu desejo; e tanto que, apesar do Espírito não conservar as enfermidades corpóreas, apresenta-se aleijado, coxo, ferido, com cicatrizes, se tanto for necessário para provar a sua identidade. O mesmo quanto ao traje; o daqueles, que já nada conservam das misérias da Terra, compõe-se, ordinariamente, de uma túnica de longas pregas flutuantes e cabeleira ondulante e graciosa.

Muitas vezes os Espíritos se apresentam com os predicados característicos da sua elevação com uma auréola e asas, que nos fazem considerá-los como anjos de aspecto luminoso e resplandecente; ao passo que outros se apresentam com os característicos das suas ocupações terrestres; assim o guerreiro poderá aparecer com a sua armadura, o sábio com os seus livros, o assassino com um punhal, etc.

Os Espíritos superiores apresentam figura bela, nobre e serena; os mais inferiores alguma coisa de feroz e bestial, e algumas vezes ainda apresentam os sinais dos crimes que cometeram e dos castigos que sofreram. Para eles é castigo o acreditar que aquela aparência é a realidade, isto é, que são o que mostram.

19. O Espírito, que quer ou pode aparecer, reveste algumas vezes forma ainda mais clara; toma as aparências de um corpo sólido, a ponto de produzir perfeita ilusão, fazendo crer que é um ser corpóreo.

Em alguns casos e em dadas circunstâncias, a tangibilidade pode tornar-se real, isto é, podemos tocar-lhes, apalpá-los, sentir a mesma resistência e o mesmo calor, como se fora um corpo vivo, o que não o priva de desfazer-se com a rapidez do relâmpago. Pode pois acontecer estarmos em presença de um Espírito, conversarmos com ele e ficarmos na ilusão de que estamos tratando com um homem.([21])

20. Qualquer que seja a forma, com que se apresenta um Espírito, ainda mesmo a tangível, ele pode por momentos tornar-se visível somente a algumas pessoas.

Em um grupo de homens, pode mostrar-se a muitos ou simplesmente a um; e entre duas pessoas, uma pode vê-lo e tocar-lhe sem que a outra o veja ou lhe perceba a presença. O fenômeno da aparição, a um só dentre muitos que se acham juntos, explica-se pela necessidade, para a sua produção, da combinação do fluido perispirituaI do Espírito com o da pessoa. É preciso, para isso, que haja certa afinidade entre os dois para favorecimento da combinação fluídica.

Se o Espírito não encontra aptidão orgânica necessária, o fenômeno da aparição não pode produzir-se; se houver a aptidão, é livre de aproveitá-la ou não; donde resulta que, se estão juntas duas pessoas dotadas de afinidade, o Espírito pode operar a combinação fluídica comum a uma delas somente, a quem deseja mostrar-se, não o fazendo com a outra, que portanto não o verá. É como se um indivíduo, achando-se diante de dois, que tenham os olhos vendados, só levantasse a venda de um; mas a quem fosse cego, seria inútil tirar-se-lhe a venda, porque nem por isso lhe seria dada a faculdade de ver.

21. As aparições tangíveis são raríssimas; as vaporosas, porém, são freqüentes, principalmente no momento da morte. O Espírito, logo que deixa o corpo, tem pressa de voar para junto dos parentes e amigos, para dar-lhes ciência de que já deixou a Terra e de que continua a viver não obstante. Recorram todos à memoria e reconhecerão inúmeros fatos autênticos desse gênero, que se têm verificado, sem que se pudessem explicar, não somente à noite como também de dia claro, em pleno estado de vigília.([22])

III — Transfiguração. Invisibilidade

22. O perispírito do homem tem as mesmas propriedades que o do Espírito. Como já dissemos, não fica encerrado no corpo; irradia-se e forma em torno dele uma atmosfera fluídica. Ora pode acontecer em outros casos e em circunstâncias especiais que ele sofresse uma transformação análoga à que foi descrita. Nesse caso, a forma material do corpo pode apagar-se sob aquela camada fluídica, se assim nos é permitido dizer, e revestir momentaneamente uma aparência muito diferente da real, a de uma outra pessoa, ou a do Espírito, que combina os seus fluidos com o indivíduo, ou mesmo dar a uma fisionomia feia um belo e radiante aspecto. Tal é o fenômeno designado pelo nome de transfiguração, fenômeno assaz frequente que se produz principalmente quando determinadas circunstâncias provocam uma expansão mais abundante de fluido.

A transfiguração pode processar-se em condições diversas, segundo o grau de pureza do perispírito, sempre correspondente ao da elevação moral do Espírito. Ela pode não passar de uma ligeira modificação da fisionomia, ou chegar ao ponto de dar ao perispírito uma aparência luminosa e esplendorosa.

A forma material pode, por conseguinte, desaparecer sob o fluido perispiritual sem que precise mudar de aspecto, podendo simplesmente envolver o corpo, inerte ou vivo, e torná-lo invisível a um ou a muitos, como se fosse uma camada de vapor. Não nos servimos destas comparações como se houvesse entre os dois termos uma analogia absoluta, antes nos apressamos em declarar que ela não existe.

23. A ignorância das propriedades do fluido perispiritual é o que pode fazer parecer extraordinários os fenômenos. Aquele fluido é para nós um corpo novo com propriedades também novas, que não se pode estudar pelos processos ordinários da ciência; nem por isso deixam de ser propriedades naturais, não tendo de maravilhoso senão a novidade.([23])

IV — Emancipação da Alma

24. Durante o sono, só o corpo repousa; o Espírito não dorme e até se vale do repouso do corpo, e dos momentos em que a sua presença é desnecessária, para agir separadamente e ir onde quiser, no gozo da sua liberdade e na plenitude das faculdades. Entretanto, e durante toda a vida, nunca se separa completamente do corpo e, embora ele se distancia, fica sempre preso por um laço fluídico, que o adverte quando a sua presença é necessária, laço que só se rompe com a morte.

“O sono liberta, em parte, a alma do corpo. Quando se dorme, entra-se por momentos no estado que é permanente depois da morte. Os Espíritos que, por ocasião da morte, se libertam logo da matéria, tiveram durante a vida sonos inteligentes; quando dormem, vão procurar a companhia de outros seres que lhes são superiores, com os quais viajam, conversam e se instruem; trabalham mesmo em obras, que ao morrer já encontram terminadas. Isto deve ensinar-vos uma vez mais que não deveis temer a morte, pois que vós morreis diariamente, como já o disse um santo varão.

Isto pelo que respeita aos Espíritos elevados pois a grande maioria dos Espíritos encarnados, aqueles que, na ocasião da morte, ficam longas horas na perturbação e na incerteza, de que eles próprios vos falam às vezes, esses vão, durante o sono, aos mundos inferiores à Terra, onde os chamam antigas afeições, ou em busca de prazeres ainda mais baixos do que aqueles que encontram por aqui; vão haurir doutrinas ainda mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que aquelas que professam entre vós.

A origem da simpatia entre os habitantes da Terra está justamente no fato de, ao despertarem, sentirem-se presos pelo coração àqueles com quem acabam de passar oito ou nove horas de felicidade e prazer. O que explica também essas simpatias invencíveis entre eles é o saberem intimamente que as pessoas, por quem as sentem, possuem consciência diversa da sua, e as conhecem mesmo sem nunca as terem visto com os olhos do corpo. É ainda o que explica a indiferença de outros, que não buscam fazer novos amigos por saberem que existem criaturas de quem possuem o amor e a dedicação. Em resumo, o sono tem sobre a vida uma influência maior do que a que supondes.

O sono faculta aos Espíritos encarnados o meio de estarem sempre em comunicação com o mundo espiritual, e é o que leva os Espíritos superiores a consentir sem grande repulsa em se encarnarem entre vós. Deus quis que, durante o seu contato com o vício, pudessem ir retemperar-se na fonte do bem, a fim de que aqueles, que vêm instruir os outros, não sucumbam também. O sono é a porta que Deus lhes abriu para se comunicarem com os amigos do céu, é o recreio depois do trabalho enquanto esperam a grande libertação final, que deve restituí-los ao seu verdadeiro ambiente.

O sonho é a recordação do que o vosso Espírito viu durante o sono, mas notai que nem sempre vos lembrais do que vistes, ou de quanto vistes. Essa recordação não está na vossa alma em todo o seu desenvolvimento; muitas vezes é apenas a lembrança da perturbação que experimenta à partida ou à volta, à qual se junta a lembrança do que haveis feito ou do que vos preocupa no estado de vigília; a não ser assim, como explicaria os sonhos absurdos que todos têm, tanto os homens mais sábios, como os mais simples? Os maus Espíritos servem-se também dos sonhos para atormentarem as almas fracas e pusilânimes.

A incoerência de certos sonhos explica-se pela recordação imperfeita e incompleta dos fatos e cenas, que foram presentes em sonho, da mesma forma que seria incoerente uma narração em que se trocassem frases, visto não darem os fragmentos uma significação racional.

Demais a mais, dentro de pouco tempo vereis desenvolver-se outra espécie de sonhos, que é tão antiga como a que conheceis, e vos era desconhecida. O sonho de Joana d'Arc, o de Jacó, os profetas judeus e de alguns adivinhos indianos são lembrança do que a alma vê inteiramente desprendida do corpo, a lembrança dessa segunda vida de que vos temos falado". (O Livro dos Espíritos, Cap. VIII, item 402).

25. O desprendimento e a emancipação da alma manifestam-se sobretudo de maneira evidente, nos fenômenos do sonambulismo natural e magnético, na catalepsia e na letargia.

A lucidez sonambúlica não é senão a faculdade que a alma possui de ver e sentir sem o auxílio dos órgãos materiais. Essa faculdade é um dos seus atributos, existe em todo o seu ser e os órgãos do corpo são estreitos canais, por onde lhe advêm certas impressões. A vista à distância, que possuem esses sonâmbulos, provém do desprendimento da alma, que vê o que se passa nos lugares para onde se transporta.

Em suas peregrinações, ela nunca se despe do perispírito, agente das suas sensações, o qual, como o dissemos, não se desprende inteiramente do corpo. O desprendimento da alma produz a inércia do corpo, que às vezes parece privado da vida.

26. O desprendimento pode produzir-se no estado de vigília e em diversos graus, não dispondo o corpo, de maneira completa, da sua atividade normal; há sempre uma absorvência, um desapego mais ou menos completo das coisas terrestres. Ele não dorme; anda, age; mas os olhos fitam sem ver os objetos. Percebe-se bem que a alma não está aí.

Como no sonambulismo, ela vê as coisas distantes, tem percepções e sensações, que nos são desconhecidas e, às vezes, tem a presciência de futuros acontecimentos pelas relações que os prendem às coisas presentes. Penetrando no mundo invisível, vê os Espíritos, entretém-se com eles, e pode transmitir-nos os seus pensamentos. O esquecimento, quando volta ao estado normal, é quase constante; mas às vezes tem uma lembrança mais ou menos vaga, como no sonho.([24])

27. O desprendimento da alma amortece, às vezes, as sensações físicas até produzir uma verdadeira insensibilidade, podendo então suportar, com indiferença, as mais vivas dores. Essa insensibilidade provém do desprendimento do perispírito, agente transmissor das sensações corpóreas. O Espírito ausente não sente os ferimentos do corpo.

28. A faculdade emancipadora da alma, na sua mais simples manifestação, produz o que se chama o sonho acordado. Dá também a certas pessoas a presciência, que constitui os pressentimentos. Em mais elevado grau, produz o fenômeno da chamada segunda vista, dupla vista, ou sonambulismo em estado de vigília.([25])

29. O êxtase é a emancipação da alma no grau máximo. "No sonho e no sonambulismo, a alma erra pelos mundos terrestres; no êxtase, penetra num mundo desconhecido, no mundo dos Espíritos etéreos, com os quais entra em comunicação, sem, todavia, poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem quebrar totalmente os laços que a prendem ao corpo. Cercam-na um brilho resplandecente e desusado fulgor, enlevam-na harmonias que na Terra se desconhecem, invade-a indefinível bem-estar; dado lhe é gozar antecipadamente da beatitude celeste e bem se pode dizer que põe um pé no limiar da eternidade. No êxtase, é quase completo o aniquilamento do corpo; já não resta, por assim dizer, senão a vida orgânica e percebe-se que a alma lhe está presa apenas por um fio, que mais um pequeno esforço faria partir-se." (O Livro dos Espíritos, n. 455.)

30. Como em nenhum dos outros graus de emancipação da alma, o êxtase não é isento de erros, pelo que as revelações dos extáticos longe estão de exprimir sempre a verdade absoluta. A razão disso reside na imperfeição do espírito humano; somente quando ele tem chegado ao cume da escala pode julgar das coisas lucidamente; antes não lhe é dado ver tudo, nem tudo compreender. Se, após o fenômeno da morte, quando o desprendimento é completo, ele nem sempre vê com justeza; se muitos há que se conservam imbuídos dos prejuízos da vida, que não compreendem as coisas do mundo visível, onde se encontram, com mais forte razão o mesmo há de suceder com o Espírito ainda retido na carne.

Há por vezes, nos extáticos, mais exaltação que verdadeira lucidez, ou melhor, a exaltação lhes prejudica a lucidez, razão por que suas revelações são com frequência uma mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e outras ridículas. Também Espíritos inferiores se aproveitam dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza quando não há quem saiba governá-la, para dominar o extático e, para conseguirem seus fins, assumem aos olhos deste aparências que o aferram às suas ideias e preconceitos, de modo que suas visões e revelações não vêm a ser mais do que reflexos de suas crenças. É um escolho a que só escapam os Espíritos de ordem elevada, escolho diante do qual o observador deve manter-se em guarda.([26])

31. Há pessoas de perispírito tão identificado com o corpo, nas quais o desprendimento, até no momento da morte, só se opera com extrema dificuldade. São em geral as que têm levado uma vida muito material. Para elas a morte é a mais penosa possível, a mais cheia de longas e dolorosas angústias. Outras, porém, cuja alma se prende ao corpo por tênues laços, se desprendem sem comoção nem dificuldade, e muitas vezes antes da morte do corpo. Na hora extrema, já divisam o mundo para onde têm de ir, e anseiam pelo momento da completa libertação.

V — Aparição de Pessoas Vivas. Bicorporeidade

32. A faculdade emancipadora da alma e seu desprendimento durante a vida, podem dar ensejo a fenômenos análogos aos que apresentam os Espíritos desencarnados. Enquanto o corpo dorme, o Espírito aparece fora dele, sob a forma vaporosa, quer em sonho, quer em vigília; pode mesmo apresentar-se sob a forma tangível, ou com perfeita aparência, que muita gente afirma verdadeiramente tê-lo visto ao mesmo tempo em dois pontos diversos. Assim é realmente; mas num daqueles pontos só está o corpo e no outro o Espírito somente. Foi esse fenômeno raríssimo que ensejou ocasião à crença nos homens duplos e a que se tem dado o nome de bicorporeidade. Por mais extraordinário que seja, não deixa de pertencer, como tudo, à ordem dos fenômenos naturais, pois que deriva das propriedades do perispírito e de uma lei natural.

VI — Dos Médiuns

33. Médium é a pessoa que sente a influência dos Espíritos e lhe transmite os pensamentos. Quem quer que sinta aquela influência em qualquer grau é, por isso mesmo, médium.

Essa faculdade é inerente ao homem, e por conseguinte não constitui privilégio exclusivo; também poucos são os que não a possuem, ainda que seja em rudimento.

Pode pois dizer-se que todos os homens são pouco mais ou menos médiuns; esta qualificação, porém, não se aplica usualmente senão àqueles, em quem a faculdade mediúnica se manifesta por efeitos ostensivos de certa intensidade.([27])

34. 0 agente de todos os fenômenos espíritas é o fluido perispiritual, e aqueles fenômenos não podem operar-se senão pela ação recíproca dos fluidos do médium e do Espírito. O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da assimilação deste mais ou menos fácil com o dos Espíritos. Depende, portanto, da organização do indivíduo a faculdade, que pode ser desenvolvida quando existe o princípio, mas não pode ser adquirida quando o princípio não existe.

A predisposição mediúnica não depende de sexos, idades, ou temperamentos; encontram-se médiuns em todas as categorias de indivíduos, desde a mais tenra idade até à mais avançada.([28])

35. As relações entre médiuns e Espíritos estabelecem-se por meio dos seus perispíritos. A facilidade dessas relações depende do grau de afinidade existente entre os dois fluidos. Há uns que facilmente se assimilam e outros que se repelem; daí se conclui que nem todo médium pode comunicar com todo Espírito. Há médiuns que não se comunicam senão com certos Espíritos, ou com certas categorias de Espíritos, ao passo que há outros que não o fazem senão por transmissão do pensamento, sem quaisquer manifestações exteriores.([29])

36. Pela assimilação dos fluidos perispirituais, o Espírito se identifica, por assim dizer, com a pessoa sobre a qual quer influir e não somente lhe transmite os pensamentos, como pode exercer sobre ela uma ação física: fazê-la proceder e falar como lhe aprouver, fazê-la dizer o que lhe parecer, servir-se, em uma palavra, dos órgãos dela como se próprios fossem; enfim, pode paralisar-lhe a ação espiritual e dominar-lhe o livre-arbítrio. Os bons Espíritos servem-se dessa influência para o bem, os maus para o mal.

37. Os Espíritos podem manifestar-se de maneiras infinitamente diversas, mas não o fazem senão com a condição de terem uma pessoa apta para receber e transmitir esse ou aquele gênero de impressões, segundo a aptidão. Como não há uma que possua todas as aptidões no mesmo grau, segue-se que umas recebem impressões impossíveis para outras. Desta diversidade de condições individuais procede a variedade de médiuns.

38. Nem sempre a vontade do médium é necessária. O Espírito que deseja manifestar-se procura um indivíduo apto para receber-lhe as impressões e serve-se dele muita vez sem que este o perceba. Outras pessoas, ao contrário, conscientes da sua faculdade, podem provocar manifestações. Daí duas categorias de médiuns: os inconscientes e os facultativos. Os primeiros agem por iniciativa dos Espíritos; os segundos por iniciativa própria.([30])

39. Os médiuns facultativos são sempre pessoas, que conhecem mais ou menos os meios de comunicações com os Espíritos, e por isso podem ter vontade de exercer a sua faculdade; os inconscientes, pelo contrário, existem no meio ignorante do Espiritismo e da ação dos Espíritos, mesmo entre incrédulos, servindo de instrumento sem o saberem e sem quererem. Todos os gêneros de fenômenos espíritas podem produzir-se por eles, como há exemplo em todos os tempos e em todos os povos. A ignorância e a incredulidade têm-lhes atribuído um poder sobrenatural, e segundo os tempos e lugares, têm eles sido considerados santos ou feiticeiros, loucos ou visionários. O Espiritismo descobre neles a simples manifestação de uma faculdade natural.

40. Das diversas categorias de médiuns distinguem-se principalmente: os médiuns de efeitos físicos, os sensitivos ou impressionáveis, os auditivos, falantes, videntes, intuitivos, sonâmbulos, curadores, escreventes ou psicográficos, etc. Só descreveremos aqui as mais essenciais, podendo recorrer a O Livro dos Médiuns quem quiser mais completo desenvolvimento.(*)

(*) Para detalhes completos ver O Livro dos Médiuns. (Nota de Kardec)

41. Médiuns de efeitos físicos. São mais particularmente aptos para a produção dos fenômenos materiais, como sejam: o movimento dos corpos inertes, os ruídos, o transporte, a elevação dos objetos, etc. Esses fenômenos podem ser espontâneos ou provocados; mas sempre requerem o concurso voluntário ou involuntário de médiuns dotados dessa faculdade especial. O agente espiritual dessas manifestações é, por via de regra, de ordem inferior. Os Espíritos elevados só se ocupam de manifestações inteligentes e instrutivas.

42. Médiuns sensitivos ou impressionáveis. Dá-se está denominação às pessoas susceptíveis de sentir a presença dos Espíritos por uma vaga impressão, espécie de tremor dos membros, que elas não sabem explicar. Esta faculdade pode adquirir tal sutileza que permita reconhecer, pela natureza da impressão, se o Espírito é bom ou mau, e até a sua individualidade, como o cego reconhece instintivamente a aproximação dessa ou daquela pessoa. Um bom Espírito produz impressão suave e agradável; a de um mau ao contrário é penosa, asfixiante e desagradável, produzindo a sensação de coisas imundas.

43. Médiuns auditivos. Estes ouvem a voz dos Espíritos, às vezes como um som íntimo, que percebem em seu interior; outras vezes como a voz de uma pessoa viva, voz clara, distinta, que vem do exterior. Os médiuns auditivos podem entreter conversa com os Espíritos. Quando estão habituados a comunicar-se com certos e determinados Espíritos, reconhecem-nos imediatamente pela voz.

Quem não é auditivo pode comunicar-se com um Espírito por intermédio de quem o é e lhe transmite as palavras do comunicante.

44. Médiuns falantes. Os médiuns auditivos, simples transmissores do que ouvem, não são propriamente médiuns falantes. Esses muitas vezes nada ouvem; os Espíritos atuam sobre os órgãos da palavra, como sobre a mão do médium escrevente. O Espírito, desejando comunicar-se, serve-se do órgão mais flexível: a um toma-lhe a mão, a outro a palavra, a um terceiro o ouvido.

O médium falante não tem geralmente consciência do que diz, e muitas vezes diz o que está fora do círculo das suas ideias, dos seus conhecimentos e até da sua capacidade intelectual. Têm-se visto pessoas incultas e de vulgar inteligência exprimirem-se com verdadeira eloquência e tratarem, com incontestável superioridade, questões acerca das quais seriam incapazes, quando em estado normal, de emitir opinião.

O médium falante, conquanto funcione perfeitamente desperto, raras vezes guarda memória do que disse. A sua passividade porém nem sempre é completa. Alguns têm a intuição do que dizem no mesmo momento em que falam. A palavra destes médiuns é o instrumento de que se serve o Espírito, com quem uma pessoa estranha quer entrar em comunicação, como faria por intermédio de um auditivo. Há, entre o médium auditivo e o falante, a seguinte diferença: o primeiro fala voluntariamente, repetindo o que ouve; o segundo fala involuntariamente.

45. Médiuns videntes. Dá-se este nome às pessoas que, no normal e perfeitamente acordadas, gozam a faculdade de ver Espíritos. A possibilidade de vê-los em sonho revela sem dúvida uma espécie de mediunidade, mas não caracteriza, propriamente falando, o médium vidente.

No capítulo das Visões e aparições de O Livro dos Médiuns, explicamos a teoria desses fenômenos. As aparições acidentais de pessoas amadas ou conhecidas são muito frequentes e, conquanto os que têm esse poder sejam considerados médiuns videntes, dá-se mais geralmente o nome àqueles que podem quase sempre ver qualquer Espírito. Nesta classe acham-se os que não veem os Espíritos evocados, dos quais podem fazer minuciosa descrição, narrando os gestos, a expressão da fisionomia, os traços do rosto, os vestidos e até os sentimentos, de que parecem estar animados. Há outros que possuem a faculdade em sentido mais geral e veem os Espíritos irem e virem e que pode dizer-se tratar de seus negócios. Os médiuns nunca estão sós; têm sempre consigo uma sociedade escolhida, segundo o seu gosto, porquanto podem, à vontade, afastar aqueles que não lhes convêm e atrair aqueles que lhes são simpáticos.

46. Médiuns sonâmbulos. O sonambulismo pode ser considerado uma variedade da faculdade mediúnica; ou, para melhor dizer, são duas espécies de fenômenos que estão sempre reunidos. O sonâmbulo age por influência do seu próprio Espírito; é a sua alma que, nos momentos de emancipação, vê, ouve e percebe, fora do círculo de ação dos sentidos; o que ele manifesta é colhido em si mesmo, as ideias são geralmente mais justas que no estado normal, os conhecimentos mais amplos, porque a alma está livre do invólucro material; numa palavra, tem antecipadamente a visão espiritual. O médium, pelo contrário, é instrumento de uma inteligência estranha; é passivo e aquilo que diz não vem de si.

Em resumo: o sonâmbulo exprime o próprio pensamento e o médium exprime o pensamento alheio. O Espírito porém, que se comunica por um médium ordinário, pode fazê-lo por um sonâmbulo, tornando-se muitas vezes mais fácil essa comunicação, em razão de se achar a alma desprendida.

Muitos sonâmbulos veem perfeitamente os Espíritos e descrevem-nos com tanta precisão, como os médiuns videntes; podem conversar com eles e transmitir-nos os pensamentos; o que dizem de superior a seus conhecimentos pessoais lhes é sugerido por Espíritos.

47. Médiuns inspirados. São aqueles que não dão exteriormente a perceber, por qualquer sinal, a mediunidade que possuem.

A ação dos Espíritos sobre eles é só intelectual e moral e revela-se nas mínimas circunstâncias como nas maiores concepções. É principalmente sob este aspecto que se pode dizer: toda gente é médium, pois que não há quem não tenha Espíritos protetores e familiares que sugerem quando podem, ideias salutares a seus protegidos. É bem difícil distinguir o pensamento próprio do sugerido; entretanto este último caracteriza-se pela espontaneidade.

A inspiração torna-se evidente nos grandes trabalhos da inteligência. Os homens de cultura em todos os gêneros, artistas, cientistas, literatos, oradores, são certamente Espíritos adiantados, capazes por si mesmos de conhecer e compreender grandes coisas e é precisamente porque são assim, que os Espíritos lhes sugerem ideias necessárias para complemento de determinados trabalhos que desejam ver realizados; dessa maneira é que eles são, com frequência médiuns sem o saberem. Entretanto, têm uma vaga intuição de auxílio alheio, porque faz evocação quem apela para a inspiração.([31]) Se não contassem senão consigo mesmos, não exclamariam tantas vezes: meu bom gênio, auxilia-me!

48. Médiuns de pressentimento. São aqueles que, em certas circunstâncias, têm a intuição de coisas futuras vulgares. Essa intuição pode provir de dupla vista, que permite entrever as consequências das coisas presentes e a filiação dos acontecimentos; quase sempre, porém, é obra de comunicações ocultas, que constituem uma variedade dos médiuns inspirados.

49. Médiuns proféticos. É em geral uma variedade dos médiuns inspirados que recebem, com permissão de Deus, e mais precisamente que os médiuns de pressentimento, revelação de coisas futuras, de interesse geral, tendo eles o encargo de manifestá-las aos homens para os instruir. O pressentimento é dado à maior parte dos homens, quase que para seu uso pessoal; o dom profético é especial e revela uma missão. Se há verdadeiros profetas, maior é o número dos falsos, que tomam os sonhos da sua imaginação por verdadeiras revelações, quando não são impostores, que se dão por inspirados por especulação.

"O verdadeiro profeta é um homem de bem, inspirado por Deus. Podeis reconhecê-lo pelas suas palavras e ações. Deus não se serve da boca do mentiroso para ensinar a verdade". (O Livro dos Espíritos, n.° 624).

50. Médiuns escreventes ou psicógrafos. Dá-se esta designação às pessoas que escrevem sob a influência de Espíritos. Assim como eles podem atuar no órgão da palavra de um médium para fazê-lo falar, também podem servir-se da mão para fazê-lo escrever.

A mediunidade psicográfica apresenta três variantes muito distintas: a mecânica, a intuitiva e a semimecânica. No médium mecânico o Espírito atua diretamente sobre a mão, que impulsiona. O que caracteriza este gênero de mediunidade é a inconsciência absoluta da pessoa que escreve. O movimento da mão é independente da vontade, move-se sem interrupção e espontaneamente enquanto o Espírito tem que dizer e pára desde que ele termina.

Nos médiuns intuitivos, a transmissão do pensamento opera-se por intermédio do espírito do médium. O Espírito estranho, neste caso, não atua sobre a mão para dirigi-la, mas sobre a alma, com a qual se identifica e à qual imprime a vontade e os seus pensamentos. A alma encarnada os recebe e transmite. Nestas condições, o médium escreve voluntariamente e tem a consciência do que escreve, embora os pensamentos não sejam seus. Às vezes é dificílimo distinguir o pensamento do médium daquele que lhe é sugerido, o que induz os médiuns desta espécie a duvidar da sua mediunidade. Pode porém, reconhecer-se o pensamento sugerido pela circunstância de não ser preconcebido, de surgir à medida que se escreve, de ser, muitas vezes, contrário ao do médium, e até alheio aos seus conhecimentos e aptidões.

Grande é a analogia existente entre a mediunidade intuitiva e a inspiração; divergem porém em que a primeira se restringe às mais das vezes a questões de atualidade e aplica-se à matéria que a capacidade intelectual do médium não pode alcançar. Este pode tratar, por intuição, de assuntos a que seja completamente estranho. A inspiração tem mais vasto campo e auxilia geralmente a inteligência e as preocupações do Espírito encarnado. Os sinais desta mediunidade são por via de regra imperceptíveis.

O médium semi-mecânico ou semi-intuitivo participa das qualidades dos dois primeiros. O mecânico move a mão independentemente da vontade, o intuitivo tem o movimento voluntário e facultativo. O semi-mecânico sente a impulsão dada à mão, porém tem consciência do que escreve na medida em que se formam as palavras. No mecânico o pensamento segue-se à escrita, no intuitivo, precede a escrita; no semi-mecânico ou semi-intuitivo acompanha-a.

51. Não sendo o médium mais que um instrumento para receber e transmitir o pensamento de um Espírito, segundo a impressão mecânica que lhe é dada, pode perfeitamente produzir o que está fora da órbita de seus conhecimentos, se for dotado da flexibilidade e aptidão mediúnica necessárias. É por essa lei que existem médiuns desenhistas, pintores, músicos, versejadores, sendo aliás completamente alheios às artes do desenho, da pintura, da música e da poesia. É ainda por essa mesma lei que escrevem os que não sabem ler nem escrever. São polígrafos os reprodutores de diferentes gêneros de escrita, e às vezes reprodutores exatíssimos do caráter da letra de um Espírito, quando encarnado, e poliglotas os que falam e escrevem várias línguas de que nunca tiveram conhecimento.

52. Médiuns curadores. Este gênero de mediunidade consiste na faculdade de algumas pessoas para curarem pelo simples contato, imposição das mãos, olhar ou mesmo gesticulação, sem o emprego de qualquer medicamento. Esta faculdade é incontestavelmente efeito da força magnética, de que, entretanto, se distingue pela energia e instantaneidade da ação, ao passo que as curas magnéticas exigem um tratamento metódico, mais ou menos longo.

Todo e qualquer magnetizador é mais ou menos apto a curar, se souber avir-se convenientemente; já tem a ciência adquirida. Os médiuns curadores possuem a faculdade espontânea e alguns deles até nunca ouviram falar de magnetismo.

A faculdade de curar pela imposição das mãos tem sem dúvida nenhuma princípio numa força excepcional de expansão, suscetível de ser aumentada por vários motivos, entre os quais predomina a pureza de sentimento, o desinteresse, a benevolência, o ardente desejo de aliviar, a prece e a confiança em Deus — todas as qualidades morais, numa palavra.

O poder magnético é puramente orgânico; pode, tal como a força muscular, ser dado a quem quer que seja, mesmo ao homem perverso; o homem bom porém só se vale dele para a prática do bem, sem ideia de interesse ou de orgulho e vaidade; com o fluido mais purificado, possui propriedades benéficas e reparadoras, que o homem vicioso ou interesseiro não pode ter.([32])

Todo efeito mediúnico, como já o dissemos, é o resultado de uma combinação dos fluidos emitidos pelo Espírito e pelo médium; por essa combinação os fluidos adquirem propriedades novas, as quais, se separadas, não possuiriam grau ou o teriam em menor escala.

A prece, que é uma verdadeira evocação, atrai os Espíritos benévolos, que se apressam em vir auxiliar os esforços da criatura bem intencionada, unindo, com maior facilidade, o próprio fluido benéfico ao dela, enquanto o do homem vicioso facilmente se combina com o dos maus Espíritos que o cercam.

O homem de bem, que não tem força fluídica, pouco pode fazer por si, mesmo que peça a assistência dos bons Espíritos.

Uma grande força fluídica, aliada à maior soma possível de qualidades morais, pode operar curas verdadeiramente prodigiosas.

53. A confiança do doente auxilia poderosamente a ação fluídica, e Deus, muitas vezes, recompensa essa fé pelo êxito.

54. Só a superstição pode dar virtude a determinadas palavras e só os Espíritos ignorantes ou mentirosos podem entreter semelhantes ideias, prescrevendo-lhes fórmulas determinadas; entretanto, para certas pessoas, pouco esclarecidas, e incapazes de compreender as coisas espirituais, o emprego de uma fórmula de prece, ou de qualquer prática, pode inspirar confiança. Então não é a fórmula que cura; mas a fé, que ela provoca.

55. Não se devem confundir os médiuns curadores com os médiuns receitistas. Estes são simples escreventes, cuja especialidade consiste em servir mais facilmente de intérpretes aos Espíritos nas prescrições médicas, não fazendo mais do que transmitir o pensamento do Espírito, sem que tenham influência própria.

VII — Da Obsessão e da Possessão

56. Obsessão é o domínio que os maus Espíritos exercem sobre algumas pessoas, no intuito de submetê-las à sua vontade, pelo simples prazer de fazer o mal. Quando um Espírito bom ou mau quer influir sobre um indivíduo, envolve-o, por assim dizer, com o seu perispírito, como se fosse um manto.

Os fluidos se interpenetram, os pensamentos e as vontades dos dois confundem-se e o Espírito pode então servir-se daquele corpo como se fora o próprio; pode fazê-lo agir como lhe parecer, falando, escrevendo, desenhando, tal como um médium.

Se o Espírito é bom, a sua ação é suave e benéfica, e não produz senão coisas boas; se é mau, obriga a fazer coisas ruins; só o perverso, o maligno, constrange, como se empregasse um laço, paralisa a vontade, o próprio juízo, sufocando-o no seu fluido, como se abafa o fogo numa camada d'água; fá-lo pensar, falar, agir por ele, obriga-o a atos extravagantes e ridículos, em uma palavra, magnetiza-o, leva-o a um estado moral de catalepsia e o indivíduo se torna instrumento cego da vontade alheia. Essa é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se mostram em graus de intensidade muito diversos.

É ao mais alto grau da subjugação que se chama vulgarmente possessão. É preciso saber que neste estado o indivíduo muitas vezes tem consciência de que é ridículo o que faz, mas é constrangido a fazê-lo como se alguém mais forte do que ele o obrigasse a mover os braços, as pernas, a língua.

57. Pois que os Espíritos sempre existiram, sempre têm representado eles também o mesmo papel, porque esse papel é da natureza, e a prova está no grande número de obsessões e de possessões, antes de se saber, como hoje, de Espíritos e de médiuns.

A ação dos Espíritos bons ou maus é espontânea; a dos maus produz perturbações na economia moral, e mesmo física, que por ignorância da verdadeira causa se atribuíam a falsa origem. Os maus Espíritos são inimigos invisíveis tanto mais perigosos, quanto não se suspeita da sua ação. O Espiritismo, revelando-lhe a existência, descobre uma causa nova de determinados males humanos, a qual, uma vez conhecida, induzirá o homem a abandonar os meios até agora empregados e a recorrer a outros, que possam ser mais eficazes.

Quem descobriu esta causa? A mediunidade. Foi pela mediunidade que inimigos ocultos traíram a sua presença; ela fez com eles o que o microscópio fez com os infinitamente pequenos; revelou um novo mundo.

O Espiritismo não atrai os maus Espíritos; descobriu-os e nos forneceu os meios de lhe combatermos a ação, e, por conseguinte, de os afastarmos. Não nos trouxe o mal, visto como este existia desde toda a eternidade; trouxe-nos sim o remédio ao mal, apontando-nos a causa dele. Uma vez conhecida a ação do mundo invisível, ter-se-á a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos; e a ciência, enriquecida com esta nova lei, descortinará novos horizontes. Quando chegará lá? Quando não mais professar o materialismo, que lhe tolhe o progresso, opondo-lhe uma barreira intransponível.([33])

58. Se há Espíritos maus, que obsedam, a despeito dos bons, que protegem, pergunta-se: são aqueles mais poderosos que estes? Não é o bom Espírito que é fraco; mas o médium, que não é bem forte para repelir o manto, com que o envolvem, desprender-se dos braços que o enlaçam, e nos quais, cumpre dizê-lo, muitas vezes se compraz em ver-se estreitado. Nessa circunstância, compreende-se que o bom Espírito não pode ter vantagens; porque tem preferência o mau.

Suponha-se, porém, que a vítima deseja livrar-se do invólucro fluídico, que a penetra, como a umidade penetra os vestidos; nem sempre a sua vontade basta para a satisfação do desejo. Trata-se, no caso, de lutar com um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, cabe naturalmente a vitória ao que tem maior força muscular; com um Espírito é preciso lutar, não corporalmente, mas espiritualmente e, nesse caso, é sempre ao mais forte que cabe a vitória; sendo que aqui a força está na autoridade sobre o Espírito, e esta na superioridade moral.

A supremacia moral é como o sol, que desfaz as névoas pela força dos raios. Esforça-se por ser bom; por tornar-se melhor, se já o é; por purificar-se das imperfeições; por elevar-se, enfim, moralmente o mais que for possível; esse é o meio de adquirir o poder de impor-se aos Espíritos inferiores para os afastar, porque de outro modo eles zombarão das vossas injunções (O Livro dos Médiuns, nos. 252 e 279).

Dir-se-á entretanto: por que os Espíritos protetores não os fazem retirar? Sem dúvida que podem fazê-lo e muitas vezes o fazem; mas onde está o mérito da vitória? Se eles deixam debater-se quem tem tais ou quais merecimentos, é para que dêem provas de perseverança e adquiram maior força no bem, o que lhes vale como uma espécie de ginástica moral.

Muitos prefeririam, com certeza, uma receita mais fácil para afastar os maus Espíritos: algumas palavras, alguns sinais, por exemplo, o que seria mais cômodo do que corrigir os defeitos. Pesa-nos bem, mas não conhecemos outro meio de vencer um inimigo, senão o de nos tornarmos mais fortes do que ele.

Quando estamos doentes, força é sujeitarmo-nos a tomar o remédio, por mais amargo que seja; mas, em compensação, que melhora e que força quando tivermos a coragem de o tomar! Cumpre-nos, portanto, convencermo-nos de que não podemos alcançar o afastamento dos maus Espíritos nem por palavras mentais, nem por fórmulas, nem por talismãs ou por quaisquer sinais materiais. Os maus Espíritos zombam destes meios, que muitas vezes são os primeiros a indicar, como infalíveis, para melhor captarem a confiança daqueles que desejam enganar; porque assim eles se lhes entregam confiantes e sem receio.

Antes de procurarmos dominar os maus Espíritos é preciso dominarmo-nos a nós mesmos. De todos os meios de conseguir a força para alcançar aquele desiderato, o mais eficaz é a vontade auxiliada pela prece, nascida do coração e não aquela que consiste em palavras, em que a boca toma mais parte do que o pensamento. É preciso evocar o anjo da guarda e os bons Espíritos para que prestem auxílio na luta; mas não é bastante pedir-lhes que afastem os maus Espíritos, é principalmente necessário que não tiremos do pensamento a máxima: ajuda-te, que o céu te ajudará.

Cumpre-nos sobretudo pedirmos-lhe a necessária força para vencer as más inclinações, muito piores do que os maus Espíritos, pois que são elas que os atraem como a carniça atrai os abutres. Orar também pelo Espírito obsessor é pagar-lhe mal por bem e mostrar-se melhor do que ele, revelando-se superioridade. Com perseverança, acaba-se quase sempre por trazer o mau Espírito a melhores sentimentos e por fazer do perseguidor um Espírito agradecido.

Em resumo: a súplica fervente e a seriedade dos esforços para melhorar são os únicos meios de afastar os maus Espíritos que reconhecem por mestres os que praticam o bem, ao passo que as fórmulas os fazem rir e provocam-lhes a cólera e a impaciência. É preciso cansá-los, mostrando-nos mais pacientes do que eles.

Algumas vezes acontece que a subjugação aumenta ao ponto de paralisar a vontade do obsedado e de se não poder esperar da parte deste nenhum concurso sério. É nestes casos, sobretudo, que se torna mais séria a intervenção de terceiros, tanto por meio da prece, como pela ação magnética; a força porém desta intervenção depende do ascendente moral, que possam exercer sobre os obsessores os que vierem em auxílio dos obsedados; porque se não valerem mais que aqueles, a sua ação será estéril.

A ação magnética, em casos dessa natureza, tem por fim mudar o fluido do obsedado por outro melhor e separar o do mau Espírito. O magnetizador deve ter o duplo fim de opor força moral, e produzir no paciente uma espécie de reação química, servindo-nos de uma comparação material, expelindo, por meio de um fluido, outro fluido. Assim, não somente ele consegue um deslocamento salutar, como ainda pode dar força aos órgãos enfraquecidos por uma longa e, muitas vezes, vigorosa compressão.

Compreende-se aliás que o poder da ação fluídica está na razão não só da energia da vontade, como principalmente na qualidade do fluido desenvolvido e, segundo temos dito, esta qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se conclui que um magnetizador comum, agindo maquinalmente, pura e simplesmente para magnetizar, pouco ou nenhum efeito produz. É indispensável um magnetizador espírita, que aja com conhecimento de causa e com intenção, não de produzir o sonambulismo ou a cura orgânica, mas de obter os efeitos, que acabamos de descrever.

É além disso evidente que uma ação magnética, dirigida neste sentido, só pode trazer vantagens no caso de uma obsessão ordinária, porque então, se o magnetizador é auxiliado pela vontade do obsedado, o Espírito conta dois, em vez de um só adversário.

É preciso notar que muitas vezes se atribuem aos Espíritos maléficos de que não são causa; uns estados mórbidos e outras aberrações, que se atribuem a motivos ocultos, são devidos simplesmente ao Espírito do próprio indivíduo. As contrariedades, que se concentram, os pesares causados por amor principalmente, dão ensejo a atos excêntricos; seria erro levá-los à conta de obsessões. Pode muitas vezes ser-se obsessor de si próprio.

Acrescentemos finalmente que certas obsessões contumazes, sobretudo de pessoas de merecimento, fazem parte, algumas vezes, das provas em que se acham na vida.

"Às vezes acontece que a obsessão, quando simples, é uma pena imposta ao obsedado, que deve trabalhar pelo melhoramento do obsessor, como um pai pelo do filho vicioso".

(Reportemo-nos, para maiores esclarecimentos, a O Livro dos Médiuns).

A prece é geralmente um meio poderoso para ajudar os obsedados; mas a prece de palavras pronunciadas com indiferença, como fórmula banal, não é aquela que pode valer para casos dessa natureza, mas sim a prece ardente, que seja ao mesmo tempo uma espécie de magnetização mental. Pelo pensamento pode levar-se ao paciente uma corrente fluídica salutar, cujo efeito está na razão da intenção. A prece, ao mesmo tempo que provoca auxílio estranho, exerce ação fluídica.

O que uma pessoa só não pode conseguir, muitas unidas em intenção podem alcançar mais facilmente por meio da prece coletiva e reiterada, sendo a ação aumentada pelo número.

59. A ineficácia do exorcismo, nos casos de possessão, está provada por experiência, sendo também provado que, no maior número dos casos, ele aumenta o mal em vez de diminui-lo. A razão disso é que a eficácia está sempre no ascendente moral exercido sobre o Espírito, e nunca em atos exteriores, na virtude de palavras ou de sinais.

O exorcismo consiste em cerimônias e fórmulas de que se riem os maus Espíritos, ao passo que cedem à superioridade moral. Veem eles que os querem dominar por meios impotentes, e capricham, por isso mesmo, em se mostrar mais fortes contra os vãos aparatos com que se procura intimidá-los. Assim pois redobram de força sobre o paciente, como o cavalo velhaco, que lança por terra o cavaleiro inexperto e submete-se quando montado por quem lhe conhece as manhas.

Ora o verdadeiro cavaleiro neste caso é o homem de mais puro coração, por ser melhor ouvido pelos bons Espíritos.([34])

60. O que faz um Espírito a um indivíduo muitos Espíritos o podem fazer a outros tantos, simultaneamente; aí está o caráter epidêmico das obsessões.

Uma nuvem de maus Espíritos pode baixar sobre uma localidade e ali manifestar-se por diversos modos. Foi uma epidemia desse gênero que apareceu na Judéia, no tempo do Cristo, que por sua imensa superioridade moral tinha sobre os demônios ou maus Espíritos tão grande autoridade, que bastava mandar que se retirassem, para que eles lhe obedecessem. Jesus não recorreu a sinais ou a fórmulas.

61. O Espiritismo é fundado na observação dos fatos resultantes das relações entre o mundo visível e o invisível. Esses fatos, sendo naturais, têm-se produzido em todas as épocas e abundam, principalmente, nos livros sagrados das religiões, porque eles serviram de fundamento para a maioria das crenças. Por não os terem compreendido, deram os intérpretes diversas explicações a passagens obscuras do Antigo e do Novo Testamento. O Espiritismo, conhecendo a causa dos fenômenos, vem dissipar essas obscuridades.([35])

Dos Homens Duplos e das Aparições de Pessoas Vivas

É fato provado e perfeitamente explicado que o Espírito, desprendendo-se do corpo vivo, pode mostrar-se fora dele, auxiliado pelo envoltório fluídico perispiritual. A teoria, de acordo com a experiência, ensina que esses fatos se produzem durante o sono ou a inatividade dos sentidos corporais; mas os fatos seguintes, se verdadeiros são, demonstram que eles podem produzir-se mesmo na vigília. Nós os extraímos da obra alemã: Os fenômenos místicos da vida humana, por Maximiliano Perty, professor da Universidade de Berna, publicada em 1861. (Leipzig e Heidelberg).

1. "Um proprietário de campo foi visto por seu cocheiro na estrebaria, com os olhos fitos nos animais, ao tempo em que estava comungando na igreja. Conhecedor do fato, referiu-o ao cura, que lhe perguntou no que pensava ele quando comungava.

"Para dizer a verdade, respondeu, eu pensava nos meus animais".

"Eis explicada a aparição, redarguiu o padre".

O padre estava com a razão, porque, sendo o pensamento atributo especial do Espírito, este deve achar-se onde estiver o seu pensamento. A questão é saber se, no estado de vigília, o desprendimento do perispírito pode ser de tal maneira que produza uma aparição, o que implicaria num desdobramento do Espírito, em parte animando o corpo fluídico e em parte animando o corpo material.

Isso não teria nada de impossível se considerarmos que quando o pensamento se concentra em um ponto remoto, o corpo só age maquinalmente, por uma espécie de impulsão mecânica, o que acontece sobretudo às pessoas distraídas. O corpo, em tais casos não é animado senão da vida material, pois a espiritual acompanha o Espírito. É, consequentemente, provável que o homem em apreço tenha tido, no momento, uma grande distração, preocupando-se mais com os seus animais do que com a comunhão.

Este novo fato pertence à mesma categoria, apresentando, entretanto, uma particularidade mais notável:

2. "O Juiz de comarca J... mandou um seu empregado a uma povoação vizinha. Passado algum tempo, viu-o entrar, tomar de um livro da estante e folheá-lo. Perguntou-lhe abruptamente porque já não tinha partido; a estas palavras, o empregado desaparece, o livro cai por terra, o juiz coloca-o numa mesa, aberto, como tinha caído. À noite, quando de volta o empregado, perguntou-lhe se lhe acontecera alguma coisa na viagem e se não havia voltado do caminho ao lugar onde se achava.

"Não, — respondeu-lhe o empregado. — Fiz a viagem em companhia de um dos meus amigos, e atravessando a floresta, tivemos uma pendenga acerca de uma planta que achamos, dizendo eu que, se estivesse em casa, lhe mostraria a página de Linneu, que provaria as minhas razões.

"Era aquele o livro, que se achava na mesa, sendo a página, em que estava aberto, precisamente a indicada".

Embora extraordinário seja o fato, não se pode reputá-lo materialmente impossível, pois que longe estamos de conhecer todos os fenômenos da vida espiritual: a sua confirmação porém é uma necessidade.

Seria imprescindível conhecer o estado do corpo, no momento da aparição. Até nova prova não podemos admitir um fato daqueles, achando-se o corpo em atividade inteligente.

Mais extraordinários ainda são os fatos seguintes, a cujo respeito confessamos ter dúvidas. Compreende-se que é fácil um terceiro ver a aparição, mas o próprio, e nas circunstâncias abaixo mencionadas, é difícil de aceitar!

3. "O secretário do governo Triptis, em Weimar, dirigindo-se à chancelaria para buscar uns papéis de que tinha grande necessidade, encontrou-se já sentado na sua cadeira, tendo nas mãos os papéis de que necessitava. Espantou-se do que viu, voltou à casa e mandou o criado buscar os papéis no lugar onde os guardara. O criado obedeceu e viu também o amo sentado na sua cadeira".

4. "Becker, professor de matemática em Rostock, estando à mesa com alguns amigos, provocou uma questão de teologia: correndo à biblioteca em procura de uma obra, que devia decidir da questão, viu a sua própria pessoa no lugar que costumava ocupar. Olhando por cima do ombro daquele outro, que era ele próprio, viu-o mostrar-lhe a seguinte passagem da Bíblia, que estava aberta: "Arranja os teus negócios, porque estás para morrer".

"Voltou-se para os amigos, que aliás, não conseguiram convencê-lo de que fosse aquilo uma loucura, e no dia seguinte expirou".

5. "Hoppack, autor da obra — Materiais para o estudo da psicologia, diz que o abade Steimetz, tendo visitas em casa, viu-se ao mesmo tempo no jardim, seu lugar favorito. Apontando para a aparição, esta disse-lhe: aqui está o Steimetz imortal, lá está o mortal".

6. "F..., da cidade de Z..., que depois foi juiz, achando-se, quando moço, no campo, passeando com a filha do dono da casa, teve, a pedido dela, de ir buscar o chapéu de sol, que ela esquecera no quarto. Dirigiu-se para casa e lá viu, sentada à sua mesa de trabalho, a jovem senhora, que estava mais pálida do que era e olhava para ele.

"F..., apesar de sentir medo, tomou o chapéu, que estava junto dela, e levou-o. Vendo-o desconcertado, disse-lhe ela: confesse que viu alguma coisa — que me viu; porém não se arreceie, pois não estou para morrer; eu sou dupla (do alemão doppelgaenger, literalmente, — pessoa que se desdobra); pensava eu no meu trabalho e muitas vezes tenho visto a minha imagem ao pé de mim. Com isto nenhum mal fazemos".

7. "O Conde D... e as sentinelas supuseram, uma noite, ter visto a imperatriz Isabel da Rússia, sentada no trono, na sala imperial, em vestimenta de grande gala, ao tempo em que ela se achava deitada, dormindo.

"A dama de honra, que estava de serviço, tendo visto o mesmo, correu a despertá-la. A imperatriz dirigiu-se à sala do trono e aí viu perfeitamente a sua imagem. Ordenou a uma sentinela que fizesse fogo e a imagem desapareceu. A imperatriz morreu três meses depois".

8. "Um estudante chamado Elger tornou-se melancólico por se ver muitas vezes com a roupa vermelha, que usava. Não via seu rosto, mas os contornos de uma forma vaporosa, que se lhe assemelhava. Isto dava-se sempre na hora do crepúsculo ou do despontar da Lua. A imagem aparecia-lhe onde ele houvesse estado por muito tempo estudando".

9. "Uma preceptora francesa, Émilie Sagée, perdeu 19 vezes o lugar, porque onde estivesse aparecia duplamente. As meninas de um internato, em Newelk, na Livônia, viam-na, frequentemente, no salão ou no jardim, ao tempo em que se achava em outro lugar. Outras vezes, viam diante da pedra, durante a lição, duas Sagée, uma ao lado da outra, perfeitamente iguais, fazendo os mesmos movimentos, com a única diferença de que só a verdadeira tinha na mão o giz".

A obra do Sr. Perty contém maior número de fatos desta ordem e é notável que em todos os exemplos citados o princípio inteligente é igualmente ativo em ambos os indivíduos e até mais ativo no material, quando deveria ser o contrário. O que parece absolutamente impossível é que possa existir antagonismo, divergência de ideias, de pensamentos entre os dois. Esta divergência manifesta-se evidentemente no caso n.° 4, onde um adverte o outro da sua morte próxima, e no de n.° 7, em que a imperatriz manda atirar sobre a própria imagem.

Admitindo a divisão do perispírito em uma força fluídica capaz de manter a atividade normal do corpo; supondo igualmente a divisão do princípio inteligente, ou uma irradiação dele capaz de animar os dois seres e de lhes dar uma espécie de ubiquidade, este princípio é único e deve ser idêntico; e portanto nunca poderia ter uma vontade oposta nos dois, salvo se se admitir a existência de Espíritos gêmeos, como há corpos gêmeos; isto é, que dois Espíritos se identifiquem para encarnar no mesmo corpo, o que não é crível. Em todas estas histórias fantásticas, se há que colher, há muito que desprezar e levar à conta de lenda.

O Espiritismo, em lugar de aceitá-las cegamente, ensina a distinguir o verdadeiro do falso, o possível do impossível, mediante as leis que ele nos revela com relação à constituição e à função do elemento espiritual.

Não sejamos, entretanto, muito apressados em rejeitar a priori tudo o que não podemos compreender, porque longe estamos de conhecer todas as leis e nem a natureza nos revelou ainda todos os segredos. O mundo invisível é um campo de observação ainda novo, cujas profundezas seria presunção supor exploradas, quando incessantemente se estão patenteando a nossos olhos novas maravilhas.

Todavia, fatos há de que a lógica e as leis conhecidas demonstram a impossibilidade material. Assim é, por exemplo o citado na Revue Spirite de fevereiro de 1859, pág 41, sob o título: o meu amigo Hermann.

Trata-se de um moço alemão da alta sociedade, afável, benevolente, de caráter respeitável, que todas as tardes, ao pôr do sol, caía num estado de morte aparente. Durante aquele tempo, o seu Espírito revelava-se numa região antípoda, Austrália, no corpo de um bandido, que acabava na forca.

O simples bom-senso nos demonstra que, admitindo a possibilidade dessa dualidade corpórea, o mesmo Espírito não pode ser alternativamente, durante o dia um homem de bem num corpo, e durante a noite um bandido em outro corpo.

Dizer que o Espiritismo acredita nessas teorias é provar que não o conhecem, pois que ele oferece os meios de se lhes reconhecer o absurdo. Entretanto, ao passo que demonstra a falsidade de uma crença, prova por outro lado que ela se assenta algumas vezes em princípios verdadeiros, posto que desnaturados ou exagerados pelas superstições. Dá-se a isso a denominação de despolpar o fruto.

Quantos contos ridículos não se inventaram sobre o raio, antes de ser conhecida a lei da eletricidade? As relações do mundo visível e do invisível são as mesmas, e o Espiritismo, tornando conhecidas as leis dessas relações, as reduz à sua realidade, que ainda é grande coisa para aqueles que não reconhecem nem almas, nem mundo invisível e para quem tudo o que não é do mundo visível e tangível é superstição. Estes tem razão de denegrir o Espiritismo.

Observação. A importantíssima questão de bicorporeidade e a dos agêneres tem sido até hoje deixada no segundo plano pela ciência espírita, na falta de provas suficientes para a sua elucidação. Estas manifestações, por mais singulares e incríveis que pareçam à primeira vista, sancionadas pelas narrações dos historiadores mais sérios da antiguidade e da idade média, e confirmadas por fatos recentes, anteriores do Espiritismo ou contemporâneos dele, não podem ser postas em dúvida. O Livro dos Médiuns, no artigo intitulado: Visitas espirituais entre os vivos, e a Revue Spirite, em numerosas passagens, confirmam-lhes a existência de maneira irrecusável.

Seriamos agradecidos aos nossos correspondentes que quisessem fazer deles um estudo especial, por si ou por intermédio dos Espíritos, e nos comunicassem o resultado das pesquisas, no interesse do conhecimento da verdade.

Percorrendo rapidamente os anos anteriores da Revue, e aproximando os fatos ali assinalados e as teorias emitidas para explicá-los, chegamos à conclusão de que seria talvez conveniente dividir os fenômenos em duas categorias distintas, o que nos permitira dar-lhes explicações diferentes e demonstrar que as razões, que se opõem à sua aceitação, são mais aparentes que reais. (Vide a respeito do assunto os artigos da Revue Spirite, de janeiro de 1859 — Le Follet de Bayonne; fevereiro de 1859 — Les Agénères, Mon ami Hermann; maio de 1859 — Le Lien entre l'Esprit et le corps; novembro de 1859 — L'ame errante; janeiro de 1860 — L'Esprit d'un côté et le corps de l'autrê; março de 1860 — Étude sur l'Esprit des personnes vivantes; Le Docteur V... et M lle. S...; abril de 1860 — Le Fabricant de Saint Petersbourg; Apparitions tangibles; novembro de 1860 — Histoire de Marie d'Agrécie; julho de 1861 — Une apparition providentielle, etc., etc.).

A faculdade de expansão dos fluidos perispirituais está hoje mais que demonstrada pelas mais dolorosas operações cirúrgicas praticadas em pessoas adormecidas pelo clorofórmio, pelo éter e pelo magnetismo animal. Não é raro, com efeito, ver um paciente entreter-se com os circunstantes sobre coisas agradáveis, ou transportar-se em Espírito, para lugar distante do anfiteatro, enquanto o corpo está sendo retalhado.

A máquina humana, total ou parcialmente imobilizada, rasga-se sob o gume do escalpelo brutal do cirurgião; os membros contraem-se: os nervos transmitem a sensação do aparelho cérebro-espinhal; a alma, porém, que no estado normal é a única a sentir a dor, que se manifesta exteriormente, agora, momentaneamente destacada do corpo, que está sob a impressão dolorosa, dominada por outros pensamentos, por outras ações, mal se adverte do que se passa em seu envoltório moral e fica insensível.

Quantas vezes não se tem visto soldados feridos gravemente, dominados pelo ardor do combate, bater-se ainda por muito tempo, sem se darem pelos ferimentos? Quando se está excessivamente preocupado, pode-se receber o mais violento choque, e só depois de cessar a abstração é que se terá a sensação dolorosa.

A quem não terá acontecido, em profunda contenção de espírito, atravessar uma multidão tumultuosa, sem nada ver e sem nada ouvir, conquanto o nervo ótico e o aparelho auditivo tivessem recebido as sensações e as houvessem fielmente transmitido à alma?

Diante dos exemplos que precedem, e de uma multidão de fatos que seria longo enumerar e que podem ser apreciados por quem quiser, não resta dúvida que, enquanto o corpo desempenha as suas funções orgânicas, o Espírito pode ser atraído, de longe, por preocupações de outra ordem. O perispírito, indefinidamente expansível, garantindo ao corpo a elasticidade e a atividade necessárias à sua existência, acompanha constantemente o Espírito em suas viagens pelos mundos ideais. Se, demais, nos lembrarmos da sua propriedade de condensação, que lhe permite tornar-se visível sob as aparências corpóreas aos médiuns videntes e, mais raras vezes, a quem quer que esteja onde se apresenta o Espírito, menos dúvida se terá a respeito da possibilidade dos fenômenos de ubiquidade.

Fica pois demonstrado que uma pessoa viva pode aparecer simultaneamente em dois pontos distantes; em um, com o corpo real, em outro, com o perispírito condensado momentaneamente, sob a aparência das formas materiais. No entanto, de acordo, nisto como em tudo, com Allan Kardec, não podemos admitir a ubiquidade senão nos casos de perfeita semelhança entre o ser aparente e o real, em todos os seus modos de manifestar-se, como são, por exemplo, os fatos citados nos números 1 e 2.

Quanto aos restantes, impossíveis para nós, se lhes aplicar a teoria de ubiqüidade, julgamo-los, se não indiscutíveis, pelo menos admissíveis, encarados por outra face.

Nenhum dos nossos leitores ignora que os Espíritos desencarnados possuem a faculdade de aparecer, debaixo da forma material, em certas circunstâncias, e especialmente aos médiuns videntes. Entretanto em um determinado número de casos, bem como nas aparições visíveis e tangíveis a um número de pessoas, é evidente que o percebimento da aparição não é devido à faculdade mediúnica dos assistentes, mas à realidade da forma corporal do Espírito, e neste como nos casos de ubiqüidade essa forma é devida à condensação do aparelho perispiritual.

Ora, se as mais das vezes os Espíritos, no intuito de se fazerem reconhecer, aparecem tais quais eram em vida, com as vestes que lhes eram mais habituais, não lhes é impossível apresentar-se diferentemente vestidos, ou com outra qualquer forma, como, por exemplo, o Follet de Bayonne, que aparecia, às vezes, com a forma pessoal, outras com as de seus irmãos, mortos também, e outras ainda com as de pessoas vivas e mesmo presentes. O Espírito tinha o cuidado de se fazer reconhecer, a despeito das formas variadas com que se apresentava; ainda que não tivesse feito assim, não é evidente que os assistentes ficariam convencidos de terem presenciado um caso de ubiquidade? Tomando este fato, que está longe de ser único, por norma de juízo, se procuramos explicar por aquele meio os de ns. 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, ser-nos-á talvez possível aceitá-los como reais; ao passo que admitindo a ubiquidade, a incompatibilidade dos pensamentos, o antagonismo dos sentimentos e a atividade do organismo de ambas as partes, não nos é permitido considerá-los possíveis.

No fato n.° 4, em vez de supor o professor Becker em presença do outro eu, que esteve na de um Espírito, que tomou a sua forma, e todo o antagonismo desaparecerá, e o fenômeno entrará no domínio do possível. O mesmo quanto ao de n.° 7.

Não se pode compreender Isabel da Rússia atirando sobre a própria imagem; compreender-se-á porém perfeitamente que ela mande atirar sobre um Espírito, que lhe tomou sua forma para mistificá-la.

Alguns Espíritos tomam, às vezes, nome suposto e adornam-se com o estilo e característicos de outro, para obterem a confiança dos médiuns e o acesso nos grupos. Que impossibilidade pode haver de um Espírito orgulhoso tomar a forma da imperatriz Isabel e sentar-se no trono, para satisfazer vaidades? E assim, outros casos.([36])

Não damos esta explicação senão pelo que ela vale, porquanto a nossos olhos não passa de uma suposição plausível, mas no de uma solução real dos fatos; porém tal qual é, nos pareceu de natureza a esclarecer a questão, chamando para ela as luzes da discussão e da refutação.

É a este título que a oferecemos ao leitor.

Possam as reflexões, que ela provocar e as meditações a que der motivo, cooperar para a elucidação de um problema, que nós mal podemos perlustrar, deixando a outros mais dignos o trabalho de dissiparem a obscuridade, que ainda os envolve. (Nota da Redação).

Controvérsia Sobre a Existência de Seres Intermediários entre o Homem e Deus

N..., 4 de fevereiro de 1867.

Meu caro Mestre.

Há muito não dou sinal de vida.

Não tendo tido um instante de descanso durante o tempo da minha demora em Lião, não pude, como desejava, dar-lhe conta minuciosa do estado atual da doutrina neste grande centro. Não assisti senão a uma reunião espírita; mas tive ensejo de verificar que, nestas paragens, a fé primitiva mantém-se, como é para desejar, nos corações verdadeiramente sinceros. Em outros centros do Sul, ouvi discutir esta opinião sustentada por magnetizadores: muitos fenômenos, chamados espíritas, são simples efeitos do sonambulismo, nada mais fazendo o Espiritismo do que fazer uso do magnetismo, ou valer-se do nome dele.

É, como vedes, um novo ataque contra a mediunidade. Segundo estes senhores, tudo o que escrevem os médiuns é puro resultado das faculdades da alma encarnada: é ela que, desprendendo-se momentaneamente, pode ler o pensamento das pessoas presentes; é ela que vê a distância e prevê os sucessos; é ela que, pelo fluido magnético-espiritual, agita, eleva, lança por terra as mesas, ouve os sons, etc., tudo, em uma palavra, repousa sobre a essência anímica, sem a interferência de seres espirituais.

Não é novidade o que vos refiro, dir-me-eis vós. Eu mesmo tenho visto, há muitos anos, alguns magnetizadores sustentarem essa tese; mas hoje procura-se implantar essas ideias, que me parecem contrárias à verdade.

É sempre um erro procurar os extremos e há tanta exageração em tudo atribuir ao sonambulismo, como o haveria da parte dos espíritas em negar as leis do magnetismo. Não se pode subtrair a matéria às leis magnéticas, como o Espírito às espirituais.

Até onde chega a influência da alma sobre o corpo? Qual é a parte da força inteligente nos fenômenos magnéticos? Qual a do organismo? Eis aí questões de alto interesse, questões graves, tanto para a filosofia, como para a medicina. Enquanto não resolvem estes problemas, vou citar-vos algumas passagens do Dr. Charpignon, de Orleans, que é partidário da transmissão do pensamento. Como vereis, ele confessa-se impotente para demonstrar que a causa da visão propriamente dita seja a extensão do simpático orgânico, como pretendem muitos autores.

Diz ele na pág. 289:

"Acadêmicos, duplicai o trabalho dos vossos candidatos; moralistas, promulgai leis para a sociedade. O mundo, este mundo que de tudo ri, que só quer o gozo sem se importar com as leis de Deus e os direitos do homem, zomba dos vossos esforços, porque tem ao seu serviço uma potência, de que mal suspeitais, e que deixastes crescer tanto, que não tendes mais força para contê-la."

Na pág. 323:

"Bem compreendemos nós o modo de transmissão do pensamento; mas somos impotentes para compreender, pelas leis da simpatia harmônica, o sistema pelo qual o homem forma em si mesmo tal ou qual pensamento, tal ou qual imagem, e esta solicitação de objetos exteriores. Isto decorre das propriedades do organismo, e a psicologia, descobrindo nesta faculdade rememorativa ou criadora, segundo o desejo do homem, alguma coisa de antagônico com as propriedades do organismo, fá-la depender de um ser substancial diferente da matéria.

"Começamos, pois, a descobrir no fenômeno do pensamento certas lacunas entre a capacidade das leis fisiológicas do organismo e o resultado obtido.

"O germe do fenômeno, se assim se pode dizer, é fisiológico; mas a sua extensão verdadeiramente prodigiosa não o é; e aqui urge admitir que o homem goza de uma faculdade estranha a qualquer dos dois elementos materiais de que, até o presente, o temos considerado composto. O observador de boa fé reconhecerá, portanto, no caso, uma terceira parte constitutiva do homem, parte que começa a revelar-se-lhe, sob o ponto de vista da psicologia magnética, por caracteres novos e semelhantes aos que os filósofos dão à alma. A existência desta, porém, acha-se mais bem demonstrada pelo estudo de outras faculdades do sonambulismo magnético. Assim pois a vista à distância, quando completa e claramente insulada da transmissão do pensamento, jamais poderá ser explicada pela extensão do simpático orgânico".

Depois na pág. 330:

"Temos, como se vê, sérios motivos para afirmar que o estudo dos fenômenos magnéticos tem estritas relações com a filosofia e a psicologia. Assinalamos o trabalho por fazer e para ele convidamos os especialistas".

Nas páginas seguintes trata-se dos seres imateriais e das suas relações com o homem carnal.

Na pág. 349:

"Nenhuma dúvida temos, precisamente por causa das leis psicológicas, que apontamos neste trabalho, de que a alma humana pode ser esclarecida diretamente por Deus, ou por outra inteligência. Acreditamos que esta comunicação possa realizar-se no estado normal e no extático, quer seja espontânea, quer artificial".

Na pág. 351:

"Repetiremos, pois, que a previsão humana, natural, é limitada e não poderia ser tão precisa, tão constante e tão largamente exposta, como o foram as previsões dos profetas sagrados e de outros homens, inspirados por inteligência superior à alma humana".

Na pág. 391:

"A ciência e a crença no mundo sobrenatural são dois termos antagônicos: mas, digamo-lo, é isto devido à exageração de ambas as partes.

"Parece-nos muito possível a aliança entre a ciência e a lei e, desde que ela se efetue, o espírito humano se achará no auge da sua perfectibilidade terrestre".

Na pág. 396:

"O Velho e o Novo Testamento, tanto como os anais da história dos povos, estão cheios de fatos que não podem ser explicados senão pela ação de seres superiores ao homem; além disso, os estudos de antropologia, de metafísica e de ontologia provam a realidade da existência de seres imateriais entre o homem e Deus, e a possibilidade da sua influência sobre a espécie humana".

Eis agora a opinião de uma das primeiras autoridades em magnetismo acerca da existência de seres fora da humanidade. É ela extraída da correspondência de Deleuze com o doutor Billot:

"Só há um fenômeno que parece confirmar a comunicação com os seres imateriais, o das aparições. Inúmeros são os exemplos e eu, que estou convencido da imortalidade da alma, nenhuma razão vejo para negar-se a possibilidade da aparição das pessoas que, tendo deixado esta vida, se ocupam com aqueles que lhes foram caros e se lhes venham apresentar para dar avisos salutares".

O doutor Ordinaire, de Macon, outra autoridade na matéria, assim se exprime:

"O fogo sagrado, a influência secreta (de Boileau), a inspiração, não provêm de tal ou tal contextura, como pretendem os frenalogistas, mas de uma alma poética em relação com um gênio ainda mais poético. O mesmo com a música, com a pintura, etc.

"Essas inteligências superiores não serão almas despegadas da matéria, que se elevam gradualmente à medida que se depuram, até à grande, à universal inteligência, que abrange todas, até Deus?

"As nossas almas, depois de diversas emigrações, não se reunirão aos seres imateriais?

"Concluamos, diz aquele autor, do que precede que o estudo da alma ainda está em esboço; que do pólipo até ao homem há uma série de inteligências e que nada se interrompe abruptamente em a natureza: é racional que exista do homem até Deus outra igual série de inteligências. O homem é o elo que nos une às inferiores, ligadas à matéria, às superiores imateriais. Do homem a Deus existe uma série igual àquela que existe do pólipo ao homem, isto é, uma série de seres etéreos, mais ou menos perfeitos, gozando de qualidades diversas, tendo empregos e funções variados.

"Essas inteligências superiores revelam-se tangivelmente ao sonambulismo artificial: têm relações íntimas com as almas dos homens; a elas devemos os remorsos, quando praticamos o mal, e a satisfação quando fazemos o bem, a elas devem os homens superiores as suas boas inspirações, e os extáticos devem a faculdade de prever o futuro; finalmente, para movê-las e torná-las propícias, a virtude e a prece têm grande poder".

Observações. — A opinião de tais homens — e não são os únicos — tem certamente um valor que ninguém poderá negar; seria porém uma opinião apenas, se a observação não viesse confirmá-la.

O Espiritismo está inteiramente nos pensamentos, que acabamos de citar; somente ele os completa por observações especiais, e coordena-os, dando-lhes a sanção da experiência. Aqueles que se obstinam em negar a existência do mundo espiritual, sem contudo poder negar os fatos, fatigar-se-ão em procurar-lhes a causa exclusiva no mundo corporal; mas uma teoria só é verdadeira quando pode dar a razão de todos os fatos, caindo por terra desde que um único a contrarie; porque as leis da natureza não admitem exceções.

Foi o que aconteceu à maior parte das leis que, a princípio, se imaginaram para explicar os fenômenos espíritas; quase todas caíram, sucessivamente, diante de fatos, que lhes escapavam. Quando esgotados todos os sistemas, não houve remédio senão recorrer às teorias espíritas, como as mais concludentes, porque, não tendo sido formuladas prematuramente e com observações precipitadas, elas abrangem todas as variedades, todas as modalidades dos fenômenos.

O que as tem feito aceitar tão rapidamente por grande número é o encontrar-se nelas a completa e satisfatória solução do que, em vão, se tinha procurado fora delas. Entretanto, ainda há muitos que as repelem. Têm elas este ponto de contato com todas as grandes ideias, que surgem em oposição aos costumes e às crenças, e que sempre têm encontrado, por mais ou menos tempo, contraditores intransigentes, até entre os homens mais esclarecidos. Dia porém chegará em que a verdade deve luzir e então os instrumentos de oposição ficarão envergonhados de havê-lo feito, tão natural lhes parecerá o que combateram.

Assim será com o Espiritismo e já é para surpreender que de todas as grandes ideias, que convulsionaram o mundo, nenhuma haja conquistado, em tão pouco tempo, tão grande número de partidários em todos os países, em todas as ordens sociais. Eis porque os espíritas, cuja fé não é cega, como pretendem seus adversários, mas fundada na observação, pouco se incomodam com os contraditores e com aqueles que não lhes compartilham das ideias; eles observam que a doutrina firmando-se nas leis da natureza, em vez de contrariá-las, não pode deixar de prevalecer, quando aquelas leis forem reconhecidas.

A ideia da existência de seres intermediários entre o homem e Deus não é nova, como se sabe; mas geralmente acreditava-se que tais seres formassem uma ordem especial da criação. As religiões os têm designado com os nomes de anjos e demônios; os pagãos chamavam-nos deuses. O Espiritismo, vindo provar que não são senão as almas dos homens, nos diferentes graus da escala espiritual, dá à criação a unidade grandiosa, que é a essência das leis divinas. Em vez de uma multidão de criações estacionárias, que acusariam o capricho ou a parcialidade da Divindade, revela uma única criação, essencialmente progressista, sem privilégio para qualquer criatura, elevando-se cada uma do embrião ao mais completo desenvolvimento, como a semente se transforma em grande árvore. O Espiritismo nos demonstra pois a unidade, a harmonia, a justiça existentes na criação.

Para ele os demônios são almas atrasadas, ainda sobrecarregadas dos vícios da humanidade; os anjos são essas mesmas almas depuradas e desmaterializadas e, entre esses extremos, a multidão das que cobrem os vários degraus da escada do progresso. Por este sistema, firma-se a solidariedade entre o mundo espiritual e o corporal.

Quanto à pergunta: qual é, nos fenômenos espíritas ou sonambúlicos, o limite onde chega a ação própria da alma humana e onde começa a dos Espíritos? Respondemos que esse limite não existe, ou antes que não é absoluto.

Desde que não são espécies distintas, sendo a alma um Espírito encarnado e o Espírito uma alma desprendida do corpo, desde que são o mesmo ser em meios diferentes, é claro que devem possuir as mesmas faculdades e aptidões.

O sonambulismo é um estado transitório entre a encarnação e a desencarnação, um desprendimento parcial, um grau antecipadamente alcançado no mundo espiritual.

A alma encarnada ou, se o quiserem, o Espírito do sonâmbulo ou do médium, pode fazer quase o mesmo que a alma desencarnada, e até mais que esta, se mais adiantado for; com a diferença, contudo, que, por seu desprendimento completo, a alma, sendo mais livre, tem percepções especiais inerentes ao próprio estado. A distinção entre o que é produto direto da alma do médium e o que provém de fonte estranha, é às vezes dificílima de fazer; porque geralmente as duas ações completam-se e confundem-se. É assim que, na cura por imposição das mãos, o Espírito do médium pode agir só ou com o auxílio de um Espírito desencarnado e a inspiração poética ou artística pode ter a dupla origem.

Pelo fato de ser difícil uma distinção, não se deve concluir que seja impossível. A dualidade é muitas vezes evidente e em todos os casos resultará quase sempre de uma observação atenta. 


 

Causa e Natureza da Clarividência Sonambúlica — Explicação do Fenômeno de Lucidez

Sendo as percepções, em estado sonambúlico, de caráter diferente das do estado de vigília, não podem proceder nos mesmos órgãos.

É fato que no sonambulismo os olhos não concorrem para a visão, tanto que se conservam quase sempre fechados e, para tirar toda a dúvida, podem ser completamente sequestrados aos raios luminosos. Ademais a vista à distância e através dos corpos opacos exclui a possibilidade da ação dos órgãos ordinários da visão. Forçosamente, pois, temos de admitir, no sonambulismo, a intervenção de um sentido novo, sede de faculdades e percepções novas, que nos são desconhecidas e cuja natureza não podemos apreciar senão pela analogia e pelo raciocínio. Até aí nada mais curial; mas qual é a sede desse sentido? Eis o que não é fácil determinar com exatidão. Os próprios sonâmbulos não dão a esse respeito indicações precisas. Há uns que, para melhor verem, põem os objetos sobre o epigastro, outros que os colocam na fronte e alguns sobre o ocipital. Parece pois que aquele sentido não está circunscrito a um único e determinado lugar.

É certo que a sua maior atividade está nos centros nervosos. Não há dúvida que o sonâmbulo vê; é fato positivo. Como e por onde vê? É o que ele não nos pode definir.

Notemos ainda que, no estado sonambúlico, os fenômenos da visão e as sensações que o acompanham são essencialmente diferentes do que se dá no estado ordinário; pelo que não empregamos a palavra ver senão por comparação na falta de um termo, que naturalmente não existe para uma coisa desconhecida. Um povo de cegos de nascença não teria palavra para exprimir a luz e atribuiria as sensações que ela produz a algumas das que lhe fossem conhecidas.

Alguém quis explicar a um cego a impressão viva e brilhante da luz sobre os olhos. Já sei, disse ele, é assim como o som de uma trombeta. Outro, a quem queriam fazer compreender a emissão dos raios em feixes ou cones luminosos, respondeu: Ah! sim; é como um pão de açúcar. Nestas condições estamos nós sobre a lucidez sonambúlica: somos verdadeiros cegos e, como estes, comparamos a visão sonambúlica ao que, para nós, tem mais analogia com a nossa faculdade visual. Se porém quisermos estabelecer uma analogia absoluta entre as duas faculdades e julgar uma pela outra, cairemos necessariamente no erro dos dois cegos, que acabamos de citar.

É esta a falta de todos os que procuram convencer-se por deficientes experiências. Eles sujeitam a clarividência sonambúlica às mesmas provas que a vista ordinária, sem refletirem que outras relações não há entre elas, além do nome, que lhes damos; e porque os resultados não correspondem à expectativa, julgam mais simples negar.

Se procedermos por analogia, diremos que o fluido magnético, espalhado por toda a natureza, parecendo que os corpos animados são os seus focos naturais, é o veículo da clarividência sonambúlica, assim como o fluido luminoso o é das imagens percebidas para a nossa faculdade visual. Ora do mesmo modo como este torna transparentes os corpos, que livremente atravessa, assim aquele, penetrando todos os corpos, sem exceção, faz com que não haja corpo opaco para os sonâmbulos. Esta é a mais simples explicação, e a mais material, da lucidez, falando de acordo com os nossos conhecimentos.

Consideramo-la justa, porque o fluido magnético representa, incontestavelmente, importante papel no fenômeno; ela não compreende, porém, todos os fatos. Há uma outra que os compreende a todos; mas reclama, para ser bem entendida, explicações preliminares.

Na vista à distância, o sonâmbulo não distingue os objetos, como o fazem por meio de óculos de aumento. Não são os objetos que se aproximam dele por uma ilusão ótica. É ELE QUE VAI TER COM OS OBJETOS. Os vê como se estivesse ao pé deles; vê-se a si próprio no ponto em que os observa; em uma palavra, ele transporta-se. O corpo nesse momento parece que some, a palavra é mais surda, o som da voz é alterado de modo estranho, a vida animal parece apenas existir nele, a espiritual está completa no lugar para onde se transportou o pensamento; só a matéria fica no ponto em que se vê o corpo.

Há pois uma parte do nosso ser, que se separa do corpo, para transportar-se, instantaneamente, através do espaço, levada pelo pensamento e pela vontade. Essa parte é, evidentemente imaterial; do contrário produziria algum efeito material e é a ela que nós chamamos — alma. Sim, é a alma que dá ao sonâmbulo as maravilhosas faculdades que este manifesta: é a alma que, em dadas circunstâncias, se apresenta em parte e momentaneamente, com o invólucro corpóreo.

Para quem quer que observe atentamente os fenômenos do sonambulismo, em sua maior pureza, é patente a existência da alma, e a ideia de tudo acabar em nós com a vida animal é um contrasenso demonstrado à evidência.

Pode também dizer-se com alguma razão que o magnetismo e o materialismo são incompatíveis. Se há magnetizadores que parecem fazer exceção a esta regra, por professarem doutrinas materialistas, é que não têm estudado profundamente os fenômenos físicos do magnetismo, nem seriamente procurado a solução do problema da vista a distância. Como quer que seja, ainda não vimos um sonâmbulo que não seja profundamente religioso, quaisquer que sejam as suas crenças no estado de vigília.

Volvamos à teoria da lucidez.

Sendo a alma a sede das faculdades do sonâmbulo, nela é que está a clarividência e não em qualquer parte do corpo. É esta a razão porque o sonâmbulo não pode designar o órgão dessa faculdade, como designa o olho para a vista exterior. Ele vê por meio de todo o seu ser moral; isto é, por meio da alma, de que a clarividência é um atributo geral. Onde quer que a alma possa penetrar, haverá clarividência, e daí a causa da lucidez dos sonâmbulos através dos corpos e a grandes distâncias.

Opor-se-á naturalmente a esse sistema uma objeção, que nos apressamos em rebater.

"Se as faculdades sonambúlicas são as da alma desprendida da matéria, por que razão não são elas constantes? Por que razão a lucidez é variável no mesmo indivíduo?

"Admite-se a imperfeição física de um órgão, mas a da alma, não".

A alma prende-se ao corpo por laços misteriosos, que não podíamos definir, antes de nos ensinar o Espiritismo o papel que representa, no caso, o perispírito. Esta questão, por ter sido tratada especialmente na Revue e nas obras fundamentais da doutrina, dispensa qualquer desenvolvimento. Limitar-nos-emos pois a dizer que é pelos órgãos materiais que a alma se manifesta no exterior. Em nosso estado normal, tais manifestações são naturalmente subordinadas às imperfeições do instrumento, do mesmo modo como o operário não pode fazer obra perfeita com instrumentos inadequados. Por mais admissível que seja a estrutura do nosso corpo, qualquer que tenha sido a previdência da natureza, com relação ao nosso organismo, a fim de poder satisfazer a funções vitais, muito superior a estes órgãos, sujeitos a todas as perturbações da matéria, está a sutileza da alma. Enquanto pois a alma estiver ligada ao corpo, sofrerá as complicações e vicissitudes, que este lhe impõe.

O fluido magnético não é a alma, é um laço, um intermediário entre a alma e o corpo; e é por sua maior ou menor ação sobre a matéria, que dá ele mais ou menos liberdade à alma. Daí a diversidade das faculdades sonambúlicas.

O sonâmbulo é um homem que não está desvencilhado senão de uma parte de seu invólucro e cujos movimentos ainda são tolhidos pela parte, de que não se desvencilhou. A alma só obterá independência e completa liberdade das faculdades, quando houver roto os últimos liames da matéria, como a borboleta saída da crisálida. Se um magnetizador tivesse bastante poder para dar à alma a liberdade absoluta, romper-se-iam os laços que a prendiam à terra e a morte seria a consequência imediata.(·)

O sonambulismo leva-nos a pôr um pé na vida futura e levanta uma ponta do véu, que cobre as verdades, que hoje podemos entrever graças ao Espiritismo. Não lhe conheceremos porém a essência, senão quando estivermos completamente desvencilhados do véu material, que no-la obscurece.

A Dupla Vista — Conhecimento do Futuro — Previsões

Se no estado sonambúlico as manifestações da alma se tornam em parte ostensivas, seria absurdo pensar que no estado normal ela fique completamente encarcerada em seu invólucro, como o caramujo na concha. Não é a influência magnética que a faz manifestar-se; essa influência torna-a patente, em virtude da ação que exerce sobre os nossos órgãos. Ora o estado sonambúlico nem sempre é condição indispensável para esta manifestação. As faculdades, que temos visto produzirem-se naquele estado, desenvolvem-se algumas vezes no estado normal em alguns indivíduos. Resulta daí, para esses, a faculdade de ver além dos limites dos sentidos. Percebem as coisas ausentes até onde se estende a ação da alma; vêm, se assim nos podemos expressar, através da vista ordinária, e os quadros, que descrevem, bem como os fatos que relatam, se lhes apresentam como por uma miragem. É o fenômeno designado pelo nome de dupla vista.

No sonambulismo, a clarividência é produzida pela mesma causa com a diferença única de ser insulada, independentemente da vista corporal, ao passo que naqueles que a possuem no estado de vigília, as duas vistas são simultâneas. A vista dupla quase nunca é permanente, produzindo-se espontaneamente, em momentos dados, independentemente da vontade e provocando uma espécie de crise, que, às vezes, modifica sensivelmente o estado físico. Os olhos têm uma expressão vaga, parecendo que olham sem ver. Toda a fisionomia revela uma espécie de exaltação.

É para notar que as pessoas dotadas desse poder não fazem dele cabedal. Julgam-no tão natural como o de ver pelos olhos. Consideram-no um simples atributo do ser. Acresce que o esquecimento se segue, muitas vezes, a esta lucidez passageira, cuja lembrança cada vez mais vaga, acaba por desaparecer, como a de um sonho.

Há muitos graus na intensidade da vista dupla, desde a sensação confusa, até a percepção tão clara e tão nítida do sonâmbulo. Falta-nos um termo para designar este estado especial e, sobretudo, os indivíduos, que são dele susceptíveis. Temo-nos servido da palavra vidente, que, até segunda ordem adotaremos, embora não exprima bem o pensamento.

Se, depois do que fica exposto, aproximarmos os fenômenos da clarividência sonambúlica dos da vista dupla, compreenderemos como o vidente pode ter a percepção das coisas ausentes, como pode ver à distância do mesmo modo que o sonâmbulo e como segue o curso dos acontecimentos, julga da direção que eles levam e pode, em alguns casos, prever o desfecho que terão. O dom da vista dupla é o que, no estado rudimentar, dá a uns tantos indivíduos o ato, a perspicácia, uma tal ou qual segurança em suas resoluções e o que pode ser chamado como justeza de vista moral; mais desenvolvido ainda, dá o conhecimento dos acontecimentos que estão iminentes e, levado ao máximo, finalmente, é o êxtase do homem acordado.

O fenômeno da vista dupla, como já o dissemos, é quase sempre natural e espontâneo; parece, porém, produzir-se mais frequentemente sob o influxo de determinadas circunstâncias os tempos de crises, calamidades, grandes comoções, todas as causas, enfim, de sobre-excitações morais, provocam-lhe o desenvolvimento. Parece que a Providência, na iminência dos grandes perigos, nos multiplica as faculdades de preveni-los.

Tem havido videntes em todos os tempos e em todas as nações, mas parece que certos povos possuem mais naturalmente esta disposição. Dizem que, na Escócia, é muito comum a vista dupla, que se encontra também muito frequentemente na gente do campo e nos habitantes das montanhas.

Os videntes têm sido considerados por modos diversos, segundo os tempos, os costumes e o grau de civilização; os céticos os tomam por homens de cérebro desequilibrado, por alucinados; as sei tas religiosas os consideram profetas, sibilas, oráculos; nos séculos de superstição e de ignorância eram tidos por feiticeiros e os arrastavam à fogueira. Para o homem sensato, que acredita no poder infinito da natureza e na inesgotável bondade do Criador, a dupla vista é uma faculdade inerente à especie humana, pela qual Deus nos revela a existência da nossa essência espiritual. Quem pode deixar de reconhecer um dom desta natureza em Joana D'Arc e em muitos outros personagens que a história qualifica de inspirados?

Muito se tem falado das cartomantes, que surpreendem pela verdade do que dizem. Não somos apologistas dos dizedores da buena-dicha, que exploram a credulidade dos espíritos fracos e cuja linguagem ambígua se presta a todas as combinações de uma imaginação excitada; mas não é impossível que possuam o dom da dupla vista, mesmo inconscientemente e, neste caso, as cartas não são em suas mãos senão um meio, um pretexto, um assunto para a conversação. Elas falam do que veem e não do que dizem as cartas, em que mal olham.

Há outros meios de adivinhação tais como as linhas das mãos, as manchas do café, a clara do ovo e outros símbolos místicos.

Os sinais das mãos têm talvez maior valor do que todos os outros meios, não por si mesmos, mas porque o pretendido adivinho, tomando e apalpando a mão do consultante, se for dotado da dupla vista, se põe em relação mais direta com eles como se dá nas consultas sonambúlicas.

Pode classificar-se o médium vidente entre as pessoas que gozam da vista dupla. Com efeito, os médiuns videntes, como aquelas, julgam ver pelos olhos, quando na realidade é a alma que vê, razão pela qual veem tão bem com os olhos abertos, como fechados. Resulta daí que um cego pode ser médium vidente tão perfeitamente como quem goza da plenitude da vista. Seria um estudo bem interessante saber se aquela faculdade é ou não mais frequente nos cegos.

Cremos piamente — o que pode ser provado pela experiência — que a privação de relações com o mundo exterior devido à falta de certos sentidos dá, em geral, maior poder à faculdade de abstração da alma e, por conseguinte, maior desenvolvimento ao senso íntimo, pelo qual ela se comunica com a esfera espiritual.

Os médiuns videntes podem, portanto, ser comparados às pessoas que têm a vista espiritual; mas seria talvez absurdo demais considerar estas como médiuns, porque, consistindo a mediunidade na intervenção dos Espíritos, não deve ser considerada ação mediúnica, o que é obra do próprio Espírito. Quem possui a vista espiritual vê pelo seu próprio espírito e nenhuma necessidade tem do concurso de um Espírito estranho.

Isto posto, examinemos até que ponto a faculdade da dupla vista permite descobrir as coisas ocultas e penetrar o futuro.

Em todos os tempos, têm os homens procurado conhecer o futuro, e seria preciso escrever volumes para descrever os meios inventados pela superstição no intuito de levantar o véu, que cobre o nosso destino. Sábia foi a natureza por no-lo ocultar.

Cada um de nós tem a sua missão providencial na grande colmeia humana e concorre para a obra comum com o seu contingente, na medida da sua atividade. Se conhecêssemos pois de antemão o fim confiado ao nosso esforço, a harmonia geral seria indubitavelmente perturbada. Quem contasse com o futuro feliz, ficaria inativo por não precisar trabalhar para conseguir o fim a que se propusera, o seu bem-estar; e então todas as forças físicas e morais seriam paralisadas e retardada a marcha progressiva da humanidade. Aquele que tivesse certeza de vir a ser desgraçado, seria levado às mesmas consequências pelo desânimo, tendo por inútil lutar contra os decretos do destino. O conhecimento absoluto do futuro seria pois um presente funesto, que nos levaria ao fanatismo, o mais perigoso dos dogmas, o mais antipático ao desenvolvimento das ideias.

A incerteza do fim, para que viemos à vida terrestre, é o que nos obriga a trabalhar enquanto nos bate o coração. O viajante de um veículo em disparada abandona-se à sorte e não tenta salvar-se por conhecer que não pode conter ou dirigir os cavalos. Assim seria o homem, se lhe fosse dado o conhecimento de seu destino irrevogável.

Se os videntes pudessem infringir a sábia lei da Providência, seriam iguais à divindade; tal porém não é a sua missão. No fenômeno da dupla vista a alma, em parte desligada do invólucro material, que lhe tolhe o amplo exercício das faculdades, não prende mais a duração e a distância; abrangendo o tempo e o espaço, tudo se reduz ao presente. Livre das dificuldades da matéria, julga os efeitos e as causas melhor do que podemos fazer; vê as consequências das coisas presentes e pode-nos fazer pressenti-las. É nesse sentido que deve entender-se o dom da presciência atribuído aos videntes. As suas previsões são o resultado de uma consciência mais nítida do que existe e não uma predileção de coisas fortuitas, sem ligação com o presente; há nelas a dedução lógica do conhecido para o desconhecido, que depende muitas vezes do nosso modo de agir.

Quando um perigo nos ameaça, se temos dele ciência, podemos empregar os meios de evitá-lo; temos, ao menos, liberdade de fazê-lo ou não. Em tais casos, os videntes descobrem-no, dão-nos aviso, indicam o seu curso. Suponhamos uma carruagem percorrendo um caminho, que vai dar a um abismo, desconhecido do condutor; é intuitivo que se ninguém a desviar, ela se precipitará nele; mas suponhamos um homem colocado em posição de descortinar todo o caminho, e que, vendo a perda inevitável do viajante, o adverte do perigo, que o espera; este será conjurado. Da sua posição dominando o espaço, ele vê o que o viajante, cuja vista é limitada pelos acidentes do terreno, não pode distinguir. Pode ver qualquer coisa fortuita que possa evitar a queda e, então, conhecendo antecipadamente o desenrolar do acontecimento, pode predizê-lo. Se esse mesmo homem, colocado no alto de uma montanha, vir ao longe uma força inimiga dirigindo-se para uma aldeia que vão incendiar, ser-lhe-á fácil, calculando o espaço e a velocidade, prever o momento da chegada. Se descendo à aldeia ele disser simplesmente: a tal hora será incendiada a aldeia, e se aquele fato se realizar, passará, aos olhos da multidão ignorante, por adivinho ou feiticeiro. Entretanto, a verdade é ter ele visto o que os outros não podiam ver e disto haver tirado as consequências.

Como este homem, o vidente descobre e segue o curso dos acontecimentos; não prevê o desfecho porque tenha o dom de adivinhar, mas simplesmente porque vê. Pode então dizer-vos se estais no bom caminho, pode indicar-vos o melhor, anunciaremos o que vos esperava no fim da viagem, ser enfim o fio de Ariadne, que vos permitirá sair do labirinto.

Grande é, como se vê, a distância que vai disto à predição propriamente dita, tal como a entendemos na acepção vulgar da palavra. Nada se tira ao livre-arbítrio, mediante o qual o homem pode agir ou não, embaraçar ou deixar franco o desenrolar dos acontecimentos, fazer ou não fazer uso dos meios indicados para evitar o perigo. Supor o homem submetido à inexorável fatalidade com relação aos mínimos acontecimentos da vida é despojá-lo do seu mais belo atributo — a inteligência é assemelhá-lo ao bruto.

O vidente não é portanto, um adivinho, mas um homem que percebe o que escapa aos outros ou, relativamente a nós, o cão do cego. Nada disto, conseguintemente, contraria as vistas da Providência sobre o segredo do nosso destino; é ela mesma que nos dá um guia. Esse é o modo como deve ser considerado o conhecimento do futuro pelas pessoas de dupla vista.

Se o futuro fosse coisa fortuita, se dependesse do chamado acaso, se não tivesse relações com o presente, não haveria clarividência que o penetrasse e toda a previsão seria susceptível de falhar.

O vidente verdadeiro e sério, — não o charlatão, que usa de simulação, ledor de buena dicha — prevê o desenlace do que vê e nada mais. E isto já é muito.

Quantos erros, quantas tentativas inúteis de falsos caminhos poderíamos evitar se tivéssemos sempre um guia seguro para nos esclarecer? Quanta gente se perde por não haver seguido o rumo que a natureza havia traçado às suas faculdades? Quanta falta por ter aceito os conselhos de uma obstinação irrefletida!

Um guia ter-lhe-ia dito:

"Não tenteis isso, porque as vossas faculdades intelectuais são impotentes para tanto, porque não convém nem ao vosso caráter, nem à constituição física; ou então, porque não sereis auxiliados eficazmente; ou ainda, porque vos iludis sobre o alcance do que pretendeis e encontrareis essa ou aquela dificuldade que não prevedes".

Em outras circunstâncias ter-lhe-ia também dito:

"Sereis bem sucedidos se vos comportardes desta ou daquela maneira, se evitardes fazer isto ou aquilo, que pode comprometer-vos".

Sondando as disposições e os caracteres, dir-lhe-ia então:

"Desconfia de tal laço, que vos armam" e acrescentaria: — "Estais prevenido, cumpri o meu dever, mostrando-vos o perigo; se sucumbirdes, não acuseis o destino, nem a fatalidade, nem a Providência, mas somente a vós mesmos. Que pode o médico, quando o doente não faz caso dos seus conselhos"?·

Introdução ao Estudo da Fotografia e da Telegrafia do Pensamento

A ação fisiológica de indivíduo a indivíduo, com contato ou sem ele, é um fato incontestável. Não se pode, evidentemente, exercê-la senão por intermédio de um agente, cujo reservatório é o nosso corpo, sendo os olhos e os dedos os principais órgãos de emissão e direção.

Esse agente invisível é necessariamente um fluido. Mas qual é a sua natureza? Qual a sua essência? Quais as suas propriedades íntimas? Será um fluido especial ou uma modificação da eletricidade ou de outro fluido conhecido? Será o que se designa pelo nome de fluido nervoso? Não será antes o que chamamos fluido cósmico, quando espalhado na atmosfera, o perispiritual, quando individualizado?

Esta questão é ademais secundária. O fluido perispiritual é imponderável, como a luz, a eletricidade e o calórico. Invisível para nós no estado normal, ele só se revela pelos efeitos; torna-se porém visível no estado de sonambulismo lúcido e até no de vigília, para as pessoas dotadas de dupla vista. No estado de emissão, apresenta-se sob a forma de feixes luminosos, muito semelhantes à luz elétrica difusa no espaço. É esta a sua única analogia com este fluido, pois que não produz, pelo menos ostensivamente, nenhum dos fenômenos físicos, que conhecemos. No estado ordinário, reflete cores diversas segundo os indivíduos; às vezes, o vermelho fraco, em outras, o azul escuro ou pardo, como uma ligeira bruma e na generalidade espalha sobre os corpos vizinhos um colorido amarelo mais ou menos pronunciado.

São idênticos os dizeres dos sonâmbulos e dos videntes acerca da questão, a que teremos de voltar quando tratarmos das qualidades, que dão ao fluido o móvel que lhe imprime o movimento e o adiantamento dos indivíduos, que o emitem.

Nenhum corpo lhe serve de obstáculo, pois que ele a todos atravessa e nenhum se conhece capaz de o isolar. Só a vontade pode dilatar-lhe ou limitar-lhe a ação. A vontade, com efeito, é a sua mais poderosa influência. Por ela dirigem através do espaço os seus eflúvios, acumulam-nos em um dado ponto, saturam certos objetos, ou os retiram dos pontos onde abundam.

Digamos de passagem que é sobre este princípio que se funda o poder magnético que parece ser o veículo da vista psíquica, como o fluido luminoso é o da vista ordinária.([37])

O fluido cósmico, posto que emanado de uma fonte universal individualiza-se, por assim dizer, em cada ser, e adquire propriedades características, que permitem distingui-lo entre todos. A própria morte não apaga aqueles caracteres de individualização, que persistem por longos anos, depois da cessação da vida, do que temos tido as provas.

Cada ser tem o fluido próprio, que o envolve e acompanha em todos os seus movimentos, como a atmosfera envolve e acompanha cada planeta. A irradiação dessas atmosferas individuais é variável, quanto à extensão; no estado de repouso completo do Espírito, pode ser de alguns passos; mas, agindo à vontade, pode estender-se indefinidamente. A vontade parece dilatar aquele fluido, como o calor dilata os gases.

As diferentes atmosferas individuais encontram-se, cruzam-se, misturam-se, sem contudo se confundir; absolutamente como as ondas sonoras, que são distintas, apesar da multidão de sons que abalam simultaneamente o ar. Pode-se dizer que cada indivíduo é o centro de uma onda fluídica, cuja irradiação está na razão direta da força volitiva, como cada ponto vibrante é o centro de uma onda sonora, cuja extensão é proporcional à força vibratória. A vontade é a força propulsora do fluido, como o choque é a causa vibratória do ar e propulsora das ondas sonoras.

Das qualidades particulares de cada fluido resulta, entre eles, uma espécie de harmonia ou de desacordo, uma tendência a unirem-se ou a evitarem-se, uma atração ou repulsão, em uma palavra, as simpatias ou antipatias, que se sentem, sem causas conhecidas.

Entrando-se na esfera da atividade de um indivíduo, sente-se uma impressão agradável ou desagradável, segundo os seus fluidos se casam ou se repelem. Se nos achamos no meio de pessoas, de cujos sentimentos não compartilhamos e cujos fluidos não se harmonizam com o nosso, sentimos uma reação penosa e ali representamos a nota dissonante em um concerto. Se, pelo contrário, muitos indivíduos reunidos participam das mesmas vistas e intenções, os sentimentos de cada um exaltam-se, na proporção das volições e dos pensamentos dominantes.

Quem não conhece a força de atração, que nasce das aglomerações, onde há homogeneidade de ideias e de vontades? Mal podemos calcular a quantas influências somos de tal modo submetidos, malgrado nosso. Essas influências ocultas não poderiam ser a causa provocadora de determinados pensamentos, de pensamentos que nos são comuns, instantaneamente, com os de certas pessoas, desses vagos pressentimentos, que nos levam a dizer que alguma coisa há no ar, pressagiando tal ou qual acontecimento? Enfim, não serão efeitos da reação do meio fluídico, em que nos achamos, dos eflúvios simpáticos ou antipáticos que recebemos, que nos envolvem, como as sensações indefiníveis de bem ou mal-estar, de alegria ou de tristeza?

Nada podemos dizer de modo absoluto sobre essas questões; mas é forçoso confessar que a teoria do fluido cósmico, individualizado em cada ser, com o nome do fluido perispiritual, abre um campo completamente novo à solução de uma multidão de problemas fora dela inexplicáveis. Cada um de nós, em seu movimento de translação, arrasta consigo a atmosfera fluídica, como o caramujo arrasta a concha; mas aquele fluido deixa vestígios da sua passagem, deixa como um rastro luminoso, inacessível aos nossos sentidos, no estado de vigília, permitindo entretanto, aos sonâmbulos, aos videntes e aos Espíritos desencarnados, reconstituir os acontecimentos e analisar-lhes as causas. Toda ação, física, ou moral, patente ou oculta, de um ser sobre si mesmo ou sobre terceiro, supõe, de um lado, uma força ativa, de outro uma sensibilidade passiva. Sempre que colidem duas forças iguais, neutralizam-se; mas quando são desiguais, a mais fraca cede à mais forte. Ora, não sendo todos os homens dotados da mesma energia fluídica, ou por outra, não tendo o fluido perispiritual a mesma força ativa em todos os homens, resulta daí que uns têm poder quase irresistível, enquanto outros lhes são refratários. Estas superioridades e inferioridades relativas dependem evidentemente da organização: mas seria erro acreditar que estão na razão da força ou da fraqueza física.

A experiência prova que homens robustíssimos sofrem algumas vezes a influência fluídica mais facilmente que outros de constituição delicada, e que muitas vezes se encontra nestes uma força, que ninguém poderia supor-lhes. Essa diversidade de ação pode ser explicada de muitas maneiras. A força fluídica, aplicada à ação recíproca dos homens uns sobre os outros, isto é, ao magnetismo, pode depender: 1.° — da soma do fluido que cada um possui; 2.° — da natureza intrínseca do fluido de cada um, com exceção feita da quantidade; 3.° — do grau de energia da força impulsora e talvez destas três causas reunidas.

Na 1ª hipótese, o que tem mais fluido cede ao que tem menos — mais do que ele recebe. Haverá neste caso analogia perfeita com a troca do calórico entre dois corpos para chegarem ao equilíbrio da temperatura.

Qualquer que seja a causa desta diferença, podemos apreciar-lhe os efeitos, supondo três pessoas, cuja força fluídica representaremos pelos três números, 10, 5 e 1. O número dez atuará no 5 e no 1, porém mais energicamente neste do que naquele. O número 5 atuará no 1, porém será impotente no 10. Enfim, o número 1 não atuará nem no 5, nem no 10. Tal é a razão por que certos indivíduos são sensíveis à ação de um magnetizador e insensíveis à de outros.

Até certo ponto, pode ainda explicar-se o fenômeno pelas precedentes considerações. Dissemos, com efeito, que os fluidos individuais são simpáticos ou antipáticos entre si. Ora, não poderá dar-se que a ação recíproca de dois indivíduos esteja em razão da simpatia dos fluidos, isto é, da sua tendência a confundirem-se por uma espécie de harmonia, como as ondas sonoras produzidas pelos corpos vibrantes? É indubitável que esta harmonia ou simpatia dos fluidos é uma condição, se não absolutamente indispensável, pelo menos muito preponderante, e que, quando se dá desacordo ou antipatia, a ação não pode ser senão fraca ou nula.

Este sistema explica-nos satisfatoriamente as condições predisponentes da ação; mas não explica de que lado está a força e, admitindo-se ele, somos forçados a recorrer à nossa primeira suposição. Em todo caso, não invalida a consequência o resultar o fenômeno de uma ou de outra causa. O fato existe; eis o essencial. Os fenômenos luminosos explicam-se igualmente pela teoria da emissão e pela das ondulações: os da eletricidade pelos fluidos positivos e negativos, vítreos e resinosos.

Em ulterior estudo, apoiando-nos nas precedentes considerações, procuraremos estabelecer o que entendemos por fotografia e telegrafia do pensamento.

Fotografia e Telegrafia do Pensamento

A fotografia e a telegrafia do pensamento são questões até hoje apenas afloradas. Como todas as que se não prendem às leis de caráter essencialmente universal, têm sido atiradas à margem, conquanto seja capital a sua importância, por encerrar os elementos de estudos necessários ao esclarecimento de grande número de problemas ainda insolúveis.

Quando um artista de talento se propõe a fazer um quadro magistral, a que consagra todo o gênio, dá, primeiramente, os traços gerais, de modo a compreender, pelo esboço, o resultado que espera obter. Só depois de ter minuciosamente elaborado o plano geral é que entra na execução das particularidades. E, posto que este trabalho precise ser executado com mais cuidado do que o esboço, impossível seria, entretanto, executá-lo, se este não tivesse precedido. É o que se dá com o Espiritismo.

As leis fundamentais, os princípios genéricos, cujas raízes existem no espírito de todo ser criado, foram elaborados desde a origem. As demais questões, quaisquer que sejam, dependem daquelas leis e daqueles princípios, daí a razão de ter sido, por algum tempo, desprezado ou negligenciado o estudo direto delas.

De fato, não se pode logicamente falar da fotografia e da telegrafia do pensamento sem ter, previamente, demonstrado a existência da alma, que põe em ação os elementos fluídicos e a existência dos fluidos, que permitem as relações de duas almas. Ainda hoje, sabe Deus quanto estamos mal aparelhados para dar a estes problemas solução definitiva. Não obstante, tentaremos alguns trabalhos que facilitem um estudo mais completo.

O homem, limitado em seus pensamentos e aspirações, tendo restritos horizontes, é obrigado a concretizar e a rotular os seus futuros estudos sobre os dados adquiridos. As suas primeiras noções vêm-lhe pelo sentido da vista; é a imagem de um objeto que lhe dá o conhecimento desse objeto e a certeza de que ele existe. Adquirindo o conhecimento de muitos objetos, tirando deduções das impressões diferentes que produzem sobre o seu íntimo ser, ele grava na inteligência, pelo fenômeno da memória, a quintessência de tais objetos e de tais deduções. A memória é uma espécie de álbum, mais ou menos volumoso, que se folheia, quando se precisa de alguma ideia apagada, da mente, ou de reavivar acontecimentos passados. Este álbum tem sinais gravados nos lugares mais notáveis, e por eles acordam-se imediatamente os fatos que indicam; ao passo que é preciso folheá-lo por muito tempo para recordar outros.

A memória é como um livro. Quando as páginas já estão muito manuseadas e lidas, caem com facilidade, sob os olhos: as folhas, que estão virgens ou que têm sido pouco compulsadas, precisam ser voltadas uma por uma, reproduzirem algum fato a que se tenha prestado pouca atenção. Quando o Espírito encarnado se recorda, a sua memória apresenta-lhe como a fotografia do fato, cuja lembrança procurou. Em geral, os encarnados, que o cercam, nada veem, porque o álbum está em lugar onde não penetra a sua vista; os Espíritos desencarnados porém veem e folheiam o livro conosco, e até, em certas circunstâncias, ajudam-nos na procura, ou embaraçam-nos.

O mesmo que se dá entre o encarnado e o Espírito livre se dá entre este e o médium vidente. Quando se invoca a lembrança de certos fatos da existência de um Espírito, a fotografia desses fatos apresenta-se, e o vidente, cuja situação espiritual é análoga à do Espírito livre, vê com ele e, em certas circunstâncias, vê o que o Espírito não pode ver, da mesma sorte que um desencarnado pode folhear na memória de um encarnado, sem que este tenha disso consciência, e recordar-lhe fatos, de que há muito se haja esquecido. Quanto aos pensamentos abstratos, por isto mesmo que existem, tomam uma forma para impressionar o cérebro, devem agir naturalmente sobre este, de algum modo gravar-se nele, e neste caso, como no primeiro, a semelhança, que existe entre os fatos da Terra e do espaço parece perfeita.

O fenômeno da fotografia do pensamento, tendo sido objeto de estudo na Revue, não requer mais que a reprodução de algumas passagens do artigo, em que foi analisado, acompanhadas de novas considerações.

Sendo os fluidos o veículo do pensamento, este age sobre eles, como o som age sobre o ar, e eles transmitem o pensamento como o ar transmite o som.

Pode-se dizer com inteira verdade que há nos fluidos ondas e raios de pensamentos, que se cruzam, sem se confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros. Ainda mais: o pensamento criando imagens fluídicas, reflete-se no invólucro perispiritual, como num espelho, ou como se refletem nos vapores do ar as imagens de objetos terrestres. Ali tomam um corpo e de certo modo se fotografam.

Suponhamos o caso de um homem ter a ideia de matar outro. Por mais impassível que fique o seu corpo material, o fluídico é agitado pelo pensamento criminoso, cujas modalidades e pormenores reproduz. Fluidicamente ele executa o gesto e o ato que teve a ideia de praticar. O pensamento cria a imagem da vítima, e toda a cena se pinta, como na tela, tal qual está no seu Espírito. É assim que repercutem no invólucro fluídico os mais secretos movimentos da alma, e que esta pode ler em outra, como num livro, vendo aí o que não é perceptível aos olhos do corpo. Estes veem as impressões internas, que se refletem na fisionomia: a cólera, a alegria, a tristeza; a alma vê porém pensamentos, que se não traduzem externamente.

Entretanto, se lhe é dado conhecer a intenção e prever-lhe as consequências, a alma não pode determinar o momento, em que tais consequências se darão, nem precisar minúcias ou mesmo afirmar que se darão, porque podem sobrevir circunstâncias que modifiquem o plano e a disposição. Ela não pode ver o que ainda não está no pensamento, mas somente as preocupações momentâneas ou habituais do indivíduo, os seus desejos, projetos e intenções boas ou más; assim se explica o erro nas previsões de alguns videntes.

Quando um acontecimento depende do livre-arbítrio de alguém, os videntes podem pressenti-lo, porque está no pensamento, que eles veem; mas não podem afirmar que ele se dê, de tal maneira e em tal momento. A maior ou menor exatidão nas previsões dependem também da extensão e da clareza da vista psíquica. Em alguns indivíduos, encarnados ou desencarnados, essa vista é limitada a um ponto, ou mais ou menos difusa; ao passo que em outros é clara e abrange inteiramente os pensamentos e vontade, que devem concorrer para a realização de um fato. Acima de tudo, porém, está a vontade superior, que pode, em sua sabedoria, permitir uma revelação, ou não permiti-la. Neste último caso, um véu espesso envolve a vista psíquica por mais perspicaz que seja. (Veja A Gênese — Cap. da Presciência).

A teoria das criações fluídicas e, portanto, da fotografia do pensamento, é uma conquista do Espiritismo moderno e pode ser considerada uma aquisição em princípio, ficando à observação determinar-lhe as aplicações aos casos particulares. Este fenômeno é incontestavelmente a origem das visões fantásticas e deve representar importante papel em alguns sonhos.

Quem há na Terra que conheça a maneira pela qual se produziram os primeiros meios de comunicação do pensamento? Como se inventaram ou descobriram?

Nada foi inventado; tudo existe em estado latente, competindo ao homem procurar os meios de aproveitar as forças, que lhe oferece a natureza.

Que sabe o tempo que foi preciso para se fazer completamente inteligível a palavra?

O primeiro homem que deu um grito inarticulado tinha certamente a consciência do que desejava exprimir, mas aqueles a quem ele se dirigia seguramente não puderam compreendê-lo; só no correr do tempo foi que vieram as palavras convencionais, depois as frases interjetivas, depois enfim as orações.

Quantos milhares de anos foi preciso para chegar ao ponto em que se acha hoje a humanidade! Cada passo no modo de comunicação entre os homens tem sido sempre determinado por um progresso no estado social. A medida que as relações de indivíduo a indivíduo se estreitam e se tornam mais regulares, sente-se a necessidade de uma linguagem mais rápida e capaz de pôr os homens em relações instantâneas e universais uns com os outros.

Por que motivo o que aconteceu, no mundo físico, com a telegrafia elétrica, não se poderia dar, no mundo moral, com a telegrafia humana, comunicando-se os encarnados? Por que as relações ocultas, que servem de modo mais ou menos consciente, os pensamentos dos homens e dos Espíritos, por meio da telegrafia espiritual, não poderiam generalizar-se, conscientemente, entre os homens?

Telegrafia humana! Eis um assunto para o riso dos que só admitem os sentidos comuns. Que importam, porém, as zombarias dos presunçosos? Todas as suas negações não podem impedir que as leis naturais sigam o seu curso e encontrem novas aplicações a medida que a inteligência humana lhe vá compreendendo os efeitos.

O homem tem ação direta sobre as coisas e as pessoas, que o cercam. Muitas vezes uma pessoa, de quem pouco caso se faz, exerce influência decisiva sobre outras de posição superior. É que na Terra se veem muito mais máscaras do que rostos, sendo os olhos obscurecidos pela vaidade, pelo interesse pessoal e por todas as más paixões. A experiência nos demonstra que, à nossa própria revelia, podemos influenciar-nos uns aos outros.

Um pensamento superior, bem pensado, se me é permitido servir-me desta expressão, pode, segundo a sua força e elevação, impressionar mais ou menos a homens que nenhuma consciência tenham de se achar sob a sua influência; e também, muitas vezes, aquele que o emite não tem consciência do efeito, que o seu pensamento vai produzir. É um jogo constante das inteligências humanas, resultante da ação recíproca de uma sobre as outras. Juntai a isto a ação dos desencarnados e calculai, se puderdes, a alta potência desta força composta de tantas forças reunidas.

Se fosse possível pôr em evidência o imenso mecanismo que o pensamento põe em atividade, e os efeitos que produz, de um para outro grupo e, enfim, a ação universal dos pensamentos dos homens, uns sobre os outros, o homem ficaria deslumbrado, sentir-se-ia amesquinhado diante desta infinidade de circunstâncias, diante dessa rede infinita; tudo ligado por uma poderosa vontade e agindo harmonicamente para um único fim: o progresso universal.

Pela telegrafia do pensamento pode apreciar-se, em todo o seu valor, a lei da solidariedade, considerando-se que não há um pensamento, criminoso ou virtuoso, que não tenha ação real sobre a massa dos pensamentos humanos e sobre cada um deles. Se o egoísta desconhece a influência de um mau pensamento seu sobre terceiro, procurará corrigir-se e então o próprio egoísmo o levará a refletir sobre o dano que pode causar-lhe o pensamento alheio, pensando melhor e concorrendo para o adiantamento geral.([38])

São efeitos da telegrafia do pensamento essas impressões misteriosas, às vezes violentas, que sentimos e que provêm dos sofrimentos e das alegrias de um ente querido, ausente, em lugar distante. É fenômeno do mesmo gênero o sentimento de simpatia ou de antipatia, que nos atrai ou afasta de determinados Espíritos.

Há nisto certamente um campo imenso aberto à observação, mas de que ainda não temos senão o esboço; o estudo dos pormenores será a consequência de um conhecimento mais completo das leis, que regem a ação dos fluidos entre uns e outros.

 

Estudo da Natureza do Cristo

I — Origem das Provas da Natureza de Cristo

A questão de saber qual a natureza de Cristo tem sido debatida desde os primeiros séculos do Cristianismo e ainda não foi resolvida, pois que ainda hoje é motivo de discussão. A divergência de opiniões sobre esse ponto foi que originou a maior parte das seitas, que têm dividido a Igreja, há dezoito séculos, e é para notar que os chefes dessas seitas foram bispos ou clérigos. Eram, portanto, homens esclarecidos, na maior parte escritores talentosos, conhecedores da ciência teológica, que não julgava concludentes as razões em favor do dogma da divindade de Cristo.

Entretanto, então como hoje, as opiniões têm-se formado mais sobre abstração do que sobre fatos. Procurou-se, principalmente, o que o dogma pode oferecer de plausível ou de irracional, desprezando-se o estudo dos fatos que dariam decisiva luz. E onde encontrar esses fatos senão nos atos e nas palavras de Jesus?

Jesus nada escreveu, e os seus únicos historiadores, os apóstolos, nada escreveram em vida; nenhum historiador profano, seu contemporâneo, falou dele, não existindo sobre a sua vida e a sua doutrina nenhum documento além dos Evangelhos. Os Evangelhos são, portanto, o único elemento para a solução do problema.

Todos os escritos posteriores, sem excetuar os de São Paulo, não podem passar de comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que não têm, em caso algum, a autoridade das narrações dos que receberam do Mestre instruções diretas.

Sobre essa questão, como sobre a dos dogmas em geral, o acordo dos padres da Igreja e dos escritores sagrados não pode ser invocado, como argumento preponderante, nem como irrecusável em favor da sua opinião, porquanto nenhum deles citou um fato, relativo a Jesus, fora dos Evangelhos; nenhum deles descobriu documentos novos, desconhecidos dos seus predecessores.

Os autores sagrados têm todos girado dentro do mesmo círculo, fazendo apreciações pessoais, tirando consequências a seu modo e bel-prazer, comentando, sob novas formas e com mais ou menos desenvolvimento, as opiniões contraditórias. Todos os do mesmo partido têm escrito no mesmo sentido, senão nos mesmos termos, sob pena de incorrerem na pecha dos hereges, como aconteceu a Orígenes e a tantos outros.

Naturalmente a Igreja não inclui no número dos seus padres senão os escritores ortodoxos ou sejam os que participam do seu modo de encarar a questão. Exaltou, santificou e pôs sob a sua guarda os que lhe tomaram a defesa. Rejeitou e, tanto quanto lhe foi possível, até destruiu os escritos dos que lhe foram contrários. O acordo portanto dos padres da Igreja não é concludente, porque representa uma unanimidade forçada pela exclusão de todo o elemento contrário.

Se se pusesse na balança tudo quanto tem sido escrito pró e contra, quem sabe para que lado penderia ela? Isto não afeta os méritos pessoais dos sustentadores da ortodoxia, nem o seu valor, como escritores e homens conscienciosos; são advogados de uma mesma causa, que defendem com grande talento e que forçosamente devem levar às mesmas consequências. Não queremos, pois, feri-los, mesmo de leve, mas simplesmente demonstrar que a sua concordância não prova a verdade das suas opiniões.([39])

No exame, que vamos fazer da questão da divindade de Cristo, pondo à margem as sutilezas da escolástica, que não tem servido senão para obscurecer, em lugar de esclarecer, apoiar-nos-emos exclusivamente em fatos tirados dos textos do Evangelho, os quais, examinados fria e conscientemente e sem preconceitos, fornecem amplamente os meios de convicção, que se podem desejar. Ora, entre aqueles fatos, nenhum mais preponderante, nem mais concludente, do que as palavras de Cristo, que não podem ser recusadas sem lesão da verdade apostólica.

Pode interpretar-se por diversos modos uma parábola, uma alegoria; nunca porém afirmações positivas, sem ambiguidade, cem vezes repetidas, poderiam apresentar-nos sentidos ambíguos. Ninguém pode ter a pretensão de saber melhor do que Jesus o que ele quis dizer, como ninguém pode pretender conhecer, melhor que ele, a sua própria natureza.

Quando comenta as próprias palavras e as explica, a fim de evitar qualquer engano, é forçoso pensar pelo que ele diz, a não se lhe querer negar a superioridade que se lhe atribui substituindo-se à sua inteligência. Se é obscuro a determinados respeitos, quando usa de uma linguagem figurada, tratando da sua pessoa não dá lugar a equívocos possíveis.

Antes de lhe examinarmos as palavras, vejamos as suas obras.([40])

II — A Divindade de Cristo fica Provada pelos Milagres?

Segundo a Igreja, a divindade de Cristo é principalmente firmada nos milagres, testemunho do seu poder sobrenatural. Semelhante consideração pode ter tido voga em épocas em que o maravilhoso era aceito sem exame: hoje porém, que a ciência levou as suas investigações até às leis da natureza, os milagres já não têm grande aceitação, havendo concorrido muito para o seu descrédito as imitações fraudulentas e as explorações que deles se têm feito.

A fé nos milagres gastou-se pelo uso, resultando daí que os do Evangelho já são por muitos considerados puramente lendários. A Igreja, ademais, é a primeira a tirar-lhes o valor, como prova da divindade de Cristo, declarando que o demônio pode fazer os mesmos prodígios. Se o demônio tem o poder de fazer milagres, fica evidente que estes não têm caráter exclusivamente divino. Se pode fazer coisas pasmosas, de modo a seduzir os próprios eleitos como poderão os simples mortais distinguir os milagres bons dos maus, e não é para recear que, vendo fatos similares, confundam Deus com Satanás? Dar a Jesus aquele rival é lastimável, mas numa época, em que os fiéis não podiam pensar por si próprios e menos discutir qualquer artigo de fé, que lhes era imposta, não se fazia mister evitar contradições e inconsequências. Não se contava com o progresso, não se pensava que acabaria, um dia, o reino da fé cega e simplória, reino cômodo como o dos prazeres.

O papel preponderante, que a Igreja se obstina em dar ao demônio, produziu consequências desastrosas para a fé, quando os homens foram conhecendo que podiam ver com os próprios olhos. O demônio, que se explorou com sucesso por algum tempo, se tornou o caruncho do velho edifício das crenças e uma das principais causas da incredulidade.

Pode-se dizer que a Igreja, fazendo-o seu auxiliar indispensável, aqueceu em seu seio o inimigo, que devia voltar-se contra ela para minar-lhe os fundamentos.

Outra consideração não menos grave é que não são um privilégio da religião cristã os fatos miraculosos. Não há religião, idólatra ou pagã, que não tenha os seus milagres, tão maravilhosos e tão autênticos para os seus adeptos, como os do Cristianismo. A Igreja não pode ter o direito de contestá-los, uma vez que atribui às potências infernais o poder de produzi-los.

O caráter essencial do milagre, no sentido teológico, é ser uma exceção às leis da natureza e, por conseguinte, inexplicável por estas leis. Desde que um fato possa ser explicado e decorra de uma causa conhecida, deixa de ser milagre. É assim que os descobrimentos da ciência têm feito entrar no domínio do natural certos efeitos considerados milagres, porque eram ignoradas as suas causas.

Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da ação dos fluidos sobre a economia do mundo invisível no meio do qual vivemos, das faculdades da alma, da existência e das propriedades do perispírito, trouxe a chave dos fenômenos de ordem psíquica e provou que eles não são derrogações das leis da natureza, mas o seu resultado direto.

Todos os efeitos do magnetismo, do sonambulismo, do êxtase, da dupla vista, do hipnotismo, da catalepsia, da letargia, da transmissão do pensamento, da presciência, das curas instantâneas, das possessões, das obsessões, das aparições e transfigurações, etc., que constituem a quase totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem a esta categoria de fenômenos. Sabe-se que estes efeitos são resultantes de aptidões e disposições fisiológicas especiais, que esses efeitos se têm produzido em todos os tempos, em todos os povos, e têm tido o cunho de milagres tanto como os que procediam de causas impenetráveis. Isto dá a razão porque todas as religiões têm os seus milagres, que não passam de fatos naturais, ampliados até ao absurdo pela credulidade, a ignorância e a superstição, estando hoje reduzidos ao seu justo valor pelo progresso dos conhecimentos humanos.

A possibilidade da maior parte dos fatos, que o Evangelho cita como praticados por Jesus, está completamente demonstrada, pelo magnetismo e pelo Espiritismo, que são puros fenômenos naturais. Pois que eles se produzem aos nossos olhos, espontaneamente ou provocados, porque não podia Jesus possuir faculdades idênticas às dos nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos, videntes, médiuns, etc.?

Desde que essas faculdades se manifestam, em graus diferentes, numa multidão de indivíduos, que nada têm de divinos, pois se manifestam até em hereges e idólatras —é claro que não reclamam uma natureza sobre-humana. Se Jesus qualificava os seus atos de milagres, é porque nisto, como em muitas outras relações, devia apropriar a linguagem aos conhecimentos dos seus contemporâneos. Como poderiam eles apanhar a acepção de uma palavra, que ainda hoje nem todos compreendem? Para o vulgo, as coisas extraordinárias, que ele fazia, e que pareciam sobrenaturais naquele tempo e até muito depois, eram milagres e não podia dar-lhes outro nome. Um fato digno de nota é que ele se serviu desses milagres para afirmar a missão que recebera de Deus, mas nunca para se atribuir o poder divino.(·) É preciso, pois, riscar os milagres da lista das provas da divindade de Cristo. Vejamos se as encontramos em suas palavras.([41])

III — A Divindade de Jesus é Provada pelas Suas Palavras?

Dirigindo-se aos discípulos, que disputavam por saber qual deles era o maior, disse-lhes Jesus, chamando a si uma criança:

"E todo o que receber a mim, recebe aquele que me enviou; porque quem dentre vós todos é o menor, esse é o maior. (S. LUCAS, IX, 48).

"Todo o que receber um destes meninos em meu nome a mim me recebe, e todo o que me receber não me recebe a mim, mas recebe aquele que me enviou" (S. MARCOS, IX, 46).

Jesus lhes disse ainda:

"Se Deus fosse vosso pai, vós certamente me amaríeis, porque eu saí de Deus, e vim; porque não vim de mim mesmo, mas foi ele quem me enviou". (S. JOÃO, VIII, 42).

Jesus lhes disse mais:

"Ainda por um pouco de tempo estou convosco; e depois vou para aquele que me enviou". (S. JOÃO. V. 33).

"O que a vós ouve, a mim ouve; e o que a vós despreza, a mim despreza; e quem a mim despreza, despreza aquele que me enviou". (S. LUCAS X, 16).

O dogma da divindade de Jesus funda-se na absoluta igualdade da sua pessoa com Deus, sendo ele mesmo Deus; é isto artigo de fé. Ora, estas palavras tantas vezes repetidas por Jesus — Aquele que me enviou, — revelam não somente a dualidade de Jesus e de Deus, mas ainda, como temos dito, excluem a igualdade absoluta entre eles, porque o que é enviado, necessariamente é subordinado ao que envia: obedecendo, pratica um ato de submissão.

Um embaixador, falando do seu soberano, dirá: meu senhor, o que me envia; mas, se é o soberano que vem em pessoa, falará em seu próprio nome e não dirá: aquele que me enviou, porque não se pode enviar a si mesmo.

Jesus o disse em termos categóricos: eu não vim de modo próprio, mas foi Ele que me enviou. Estas palavras: Aquele que me despreza, despreza o que me enviou, não implicam igualdade e muito menos identidade. Desde todos os tempos, o insulto feito a um embaixador foi considerado como feito ao próprio soberano. Os apóstolos tinham a palavra de Jesus, como Jesus tinha a de Deus; quando lhes disse: Aquele que vos escuta, me escuta, não queria certamente dar a entender que os seus apóstolos e ele não eram senão uma só e a mesma pessoa, iguais em tudo.([42])

A dualidade das pessoas, assim como o estado secundário e subordinado de Jesus, relativamente a Deus, ressaltam, sem equívoco, das seguintes palavras:

"Mas vós outros sois os que haveis permanecido comigo nas minhas tentações.

E por isso eu preparo o reino para vós outros, como meu Pai o tem preparado para mim, para que comais e bebais à minha mesa, e vos senteis sobre tronos para julgar as doze tribos de Israel". (S. LUCAS, XII, 28, 29 e 30).

"Eu não falo senão do que vi em meu Pai, e vós fazeis o que vistes em vosso pai". (S. JOÃO, VIII, 38).

"E formou-se uma nuvem, que lhe fez sombra, e saiu uma voz da nuvem, que dizia: Este é meu Filho diletíssimo: ouvi-o". (Transfiguração — S. MARCOS, IX, 6).

"Mas quando vier o Filho do homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então se assentará sobre o trono da sua majestade;

E serão todas as gentes congregadas diante dele; e separará uns dos outros, como o pastor aparta dos cabritos as ovelhas;

E assim porá as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda.

Então dirá o rei aos que hão de estar à sua direita: vinde, benditos de meu Pai; possuí o reino que vos está preparado desde o princípio do mundo". (S. MATEUS, XXV, 31 a 34).

"Todo aquele, pois que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus;

E o que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus". (S. MATEUS, X, 32 e 33).

"Ora, eu vos declaro que todo o que me confessar diante dos homens, também o Filho do homem o confessará ante os anjos de Deus;

O que, porém, me negar diante dos homens também será negado na presença dos anjos de Deus". (S. LUCAS, XII, 8 e 9).

"Porque se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na sua majestade, e na de seu Pai e santos anjos". (S. LUCAS, IX, 26).

Nestas duas últimas passagens, Jesus parece até colocar os santos anjos acima de si, compondo o tribunal celeste, perante o qual ele será o advogado dos bons e o acusador dos maus.

..."mas pelo que toca a terdes assento à minha mão direita ou à esquerda, não me pertence a mim o dar-vo-lo; mas isso é para aqueles para quem está preparado por meu Pai". (S. MATEUS, XX, 23).

"E estando juntos os fariseus, lhes fez esta pergunta:

Que vos parece a vós do Cristo? De quem é ele filho? Responderam-lhe: De Davi. Jesus lhes replicou: Pois como lhe chama Davi em espírito seu Senhor, dizendo:

Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha mão direita, até que eu reduza os teus inimigos a servirem de escabelo de teus pés? Se, pois, Davi o chama Senhor, como é ele seu filho? (S. MATEUS, XII, 41 a 45).

"E falando Jesus, dizia, ensinando no templo: Como dizem os escribas que o Cristo é filho de Davi?

Porque o mesmo Davi por boca do Espírito Santo diz: Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado de teus pés.

Pois se o mesmo Davi lhe chama Senhor, como é ele logo seu filho?..." (S. MARCOS, 35 a 37. Vide S. LUCAS, XX, 41 a 44).

Jesus consagra por estas palavras o princípio da diferença hierárquica que existe entre o Pai e o Filho. Podia ele ser filho de Davi por filiação corporal, como descendente da sua raça, e é por isso que pergunta: como o chama ele, em espírito, seu senhor? Se há uma diferença hierárquica entre o Pai e o Filho, Jesus, como filho de Deus, não pode ser igual a Deus. Ele confirma esta interpretação e reconhece a sua inferioridade relativamente a Deus, em termos que não admitem a menor contestação:

"Já tendes ouvido que eu vos disse: Eu vou, e venho a vós. Se vós me amais, certamente haveis de folgar que eu vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu". (S. JOÃO, XVI, 28).

"Eis que chegando-se a ele, um lhe disse: Bom mestre, que obras boas devo eu fazer para alcançar a vida eterna?

Jesus lhe respondeu: Porque me perguntas tu o que é bom? Bom só Deus o é. Porém, se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos". (S. MATEUS, XII, 16 e 17. Vide S. MARCOS, X, 17 e 18; S. LUCAS, XVIII, 18 e 19).

Não somente Jesus nunca se deu por igual a Deus: mas até afirma aqui o contrário muito positivamente, declarando-se inferior a ele em bondade. Ora, declarar que Deus é superior a ele em poder e em qualidades morais, é confessar que não é Deus.

As seguintes passagens, tão explícitas como aquelas, vêm corroborá-las:

"Porque eu não falo de mim mesmo; mas o Pai que me enviou é o mesmo que me prescreveu pelo seu mandamento o que eu devo dizer e o que devo falar;

E eu sei que o seu mandamento é a vida eterna. Assim que, o que eu digo, digo-o segundo me disse o Pai". (S. JOÃO, XII, 49 e 50).

"Respondeu-lhe Jesus, e disse: A minha doutrina não é minha, mas é d'Aquele que me enviou.

Se alguém quiser fazer a vontade de Deus, reconhecerá se a minha doutrina vem dele, ou se eu falo de mim mesmo.

O que fala de si mesmo busca a própria glória; mas aquele que busca a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e não há nele a injustiça". (S. JOÃO, VII, 16, 17 e 18).

"O que não me ama não guarda as minhas palavras. E a palavra que vós tendes ouvido não é minha, mas sim do Pai que me enviou". (S. JOÃO, XIV, 24).

"Não credes que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo de mim mesmo; mas o Pai, que está em mim, este é que faz as obras". (S. JOÃO, XIV, 10)

"Passará o céu e a terra, mas não passarão as minhas palavras."

A respeito, porém, deste dia ou desta hora, ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai". (S. MARCOS, XIII, 31 e 32. Vide S. MATEUS, XXV, 35 e 36).

"Disse-lhes, pois, Jesus: Quando vós tiverdes levantado o Filho do homem, conhecereis quem eu sou, e que nada faço de mim mesmo, mas que como o Pai me ensinou, assim falo;

E o que me enviou está comigo e não me deixou só, porque eu sempre faço o que é do seu agrado". (S. JOÃO, VIII, 28 e 29).

"Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade d'Aquele que me enviou". (S. João, VI, 38).

"Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Assim como ouço, julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade d'Aquele que me enviou". (S. JOÃO, V, 30).

"Mas eu tenho maior testemunho que o de João; porque as obras que meu Pai me deu que cumprisse, as mesmas obras que eu faço dão por mim testemunho de que meu Pai é quem me enviou". (S. JOÃO, V, 36).

"Mas vós atualmente procurais tirar-me a vida, a mim que sou um homem, que vos falei a verdade que ouvi de Deus; isto é o que Abraão nunca fez". (S. JOÃO, VIII, 40).

Desde que ele nada diz de si, que a doutrina por ele ensinada, não é dele, mas de Deus, que lhe ordenou viesse torná-la conhecida; que não fez senão o que Deus lhe deu o poder de fazer, que a verdade que ensinou lhe foi revelada por Deus, a cuja vontade se curvou; é claro que ele não é Deus, mas o seu enviado, o seu messias, o seu subordinado.

É impossível recusar mais positivamente toda a assimilação à pessoa de Deus e determinar-lhe o principal papel em termos mais precisos. Não são pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, que só a força de interpretações se possam descobrir; é o sentido próprio expresso sem ambiguidades.

Podem objetar que Deus não quis descobrir a sua individualidade em Jesus; mas perguntamos: em que se funda semelhante opinião e quem tem autoridade para sondar os pensamentos divinos e para dar às palavras do Senhor sentido diverso do que elas naturalmente encerram?

Além de que, ninguém, considerando Jesus um Deus durante a sua vida, mas um messias, não precisava ele, se queria ocultar a sua divindade, senão calar-se; entretanto, espontaneamente afirmou que não era Deus, falsidade desnecessária a seu incógnito.

E é notável que seja S. João, o evangelista, sobre cuja autoridade principalmente se apoiam os que sustentam a divindade de Cristo, quem ofereça, em oposição a semelhante dogma, argumentos mais numerosos e mais positivos. Provam-nos as seguintes passagens, que não inovam, mas reforçam as provas já expostas, patenteando a dualidade e desigualdade das pessoas de Deus e do Cristo.

"Por esta causa perseguiam os judeus a Jesus, por ele fazer estas coisas em dia de sábado.

Mas Jesus lhes respondeu: Meu Pai até agora não cessa de obrar, e eu obro também incessantemente". (S. JOÃO, V, 16 e 17).

"Porque o Pai a ninguém julga, mas todo o juízo deu ao Filho.

A fim de que todos honrem ao Filho, bem como honram ao Pai: o que não honra ao Filho não honra ao Pai, que o enviou.

Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê em Aquele que me enviou, tem a vida eterna, e não incorre na condenação; mas passou da morte para a vida.

Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão;

Porque assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim como também deu ele ao Filho ter vida em si mesmo;

E lhe deu o poder de exercitar o juízo, porque é Filho do homem". (S. JOÃO, V, 22 a 27).

"E meu Pai, que me enviou, a si mesmo deu testemunho de mim, Vós nunca ouvistes a sua voz, nem vistes quem o representasse.

E não tendes em vós permanente a sua palavra, porque não credes no que ele enviou". (S. JOÃO, V. 37 e 38).

"E se eu julgo alguém, o meu juízo é verdadeiro, porque eu não sou só, mas eu e o Pai que me enviou". (S. JOÃO, VIII, 16).

"Assim falou Jesus, e, levantando os olhos ao céu, disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que teu Filho te glorifique a ti.

Assim como tu lhe deste o poder sobre todos os homens, a fim de que ele dê a vida eterna a todos aqueles que tu lhe deste.

A vida eterna, porém, consiste em que eles conheçam por um só verdadeiro Deus, a ti, e a Jesus Cristo, que tu enviaste.

Eu glorifiquei-te sobre a terra: eu acabei a obra que tu me encarregaste que fizesse.

Tu, pois, agora Pai, glorifica-me a mim mesmo, com aquela glória que eu tive em ti antes que houvessse mundo...

E eu não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que eles sejam um, assim como também nós...

Eu dei-lhes a tua palavra, e o mundo os aborreceu, porque eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo...

Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade.

Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.

E eu me santifico a mim mesmo por eles, para que eles sejam santificados na verdade.

E eu não rogo somente por eles, mas rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio da sua palavra.

Para que eles sejam todos um, e como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti; para que também eles sejam um em nós, e creia o mundo que tu me enviaste...

Pai, a minha vontade é que onde eu estou estejam também comigo aqueles que tu me deste, para verem a minha glória, que tu me deste, porque me amaste antes da criação do mundo.

Pai justo, o mundo não te conheceu; mas eu conheci-te, e estes conheceram que tu me enviaste.

E eu lhes fiz conhecer o teu nome, lhe farei ainda conhecer, a fim de que o mesmo amor, com que tu me amaste, esteja neles, e eu neles". (S. JOÃO, XVII, 1 a 5, 11 a 14, 17 a 21, 24 a 26 — Prece de Jesus).

"Por isso meu Pai me ama, porque eu ponho a minha vida, para outra vez a assumir.

Ninguém a tira de mim; mas eu de mim mesmo a ponho, e tenho o poder de a pôr, e tenho o poder de a reassumir. Este mandamento recebi de meu Pai". (S. JOÃO, X, 17 e 18).

Tiraram, pois a pedra, e Jesus, levantando os olhos ao céu, disse: Pai, eu te dou graças porque me tens ouvido.

Eu, pois, bem sabia que tu sempre me ouves; mas falei por atender a este povo que está à roda de mim, para que eles creiam que tu me enviaste". (S. JOÃO, XI, 41 e 42 — Morte de Lázaro)

"Já não falarei muito convosco; porque vem o príncipe deste mundo, e ele não tem em mim coisa alguma.

Mas para que conheça que amo o Pai, e que faço como ele me ordenou...". (S. JOÃO, XIV, 30 e 31).

Se guardardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como também eu guardarei os preceitos de meu Pai, e permaneço no seu amor". (S. JOÃO, XV, 10).

"E Jesus, dando um grande brado, disse: Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito. E dizendo estas palavras, expirou". (S. LUCAS, XXIII, 46).

Se Jesus, ao expirar, deixa sua alma nas mãos de Deus, é que a tinha distinta de Deus, sujeita a Deus; logo não era Deus.

As seguintes palavras dão testemunho de uma tal ou qual fraqueza humana, de um certo receio da morte e dos sofrimentos, o que contrasta com a natureza divina que se atribui a Jesus. Elas igualmente testemunham essa submissão do inferior para o superior.

"Então foi Jesus com eles a uma granja chamada Getsêmani, e disse a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto eu vou acolá e faço oração".

E tendo tomado consigo a Pedro e aos dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e angustiar-se.

Disse-lhes então: A minha alma está numa tristeza mortal: demorai-vos aqui e vigiai comigo.

E adiantando-se uns poucos passos, se prostrou com o rosto em terra, fazendo oração e dizendo: Pai meu, se é possível, passe de mim este cálice; todavia não se faça nisto a minha vontade, mas, sim, a tua.

Depois veio ter com seus discípulos e os achou dormindo, e disse a Pedro: Visto isso, não pudestes uma hora vigiar comigo?

Vigiai e orai, para que não entreis em tentação.

O espírito na verdade está pronto, mas a carne é fraca.

De novo se retirou segunda vez e orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar sem que o beba, faça-se a tua vontade". (S. MATEUS, XXVI, 36 a 42).

"Então lhes disse: A minha alma se acha numa tristeza mortal: detende-vos aqui e vigiai.

E tendo-se adiantado alguns passos, prostrou-se em terra; e orava que, se era possível, passasse dele aquela hora.

E disse: Abba Pai, todas as coisas te são possíveis: transpassa de mim este cálice; porém não se faça o que eu quero, senão o que tu queres". (S. MARCOS, XIV, 34 a 36).

"E quando chegou àquele lugar, lhes disse: Orai para que não entreis em tentação.

E Jesus se arrancou deles obra de um tiro de pedra e, posto de joelhos, orava.

Dizendo: Pai, se é do teu agrado, transfere de mim este cálice: não se faça, contudo, a minha vontade, senão a tua.

Então lhe apareceu um anjo do céu, que o confortava. E posto em agonia, ora Jesus, com maior instância.

E veio-lhe um suor, como gotas de sangue, que corria sobre a terra". (S. LUCAS, XXII, 40 a 44).

E perto da hora nona deu Jesus um grande brado dizendo: Eli, Eli, lamma sabacthani? Isto é, Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?'' (S. MATEUS, XXVII, 46).

"E à hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Eli, Eli, lamma sabacthani? Que quer dizer: Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?'' (S. MARCOS, XX, 34).

As passagens que se seguem podem deixar dúvidas e dar lugar a crer numa identidade de Deus com a pessoa de Jesus; mas além de que não prevalecem sobre as precedentes, cujos termos são tão precisos, trazem em si mesmas a precisa retificação.

"Perguntaram-lhe, pois, eles: Quem és tu? Respondeu-lhes Jesus: Eu sou o príncipe, o mesmo que vos falo.

Muitas coisas são as que tenho de vos dizer e de que vos condenar; mas o que me enviou é verdadeiro; e eu o que digo no mundo é o que dele aprendi". (S. JOÃO, VII, 25 e 26).

O que meu Pai me deu é maior do que todas as coisas e ninguém as pode arrebatar da mão de meu Pai.

Eu e o Pai somos uma mesma coisa". (S. JOÃO, X, 29 e 30).

Isto quer dizer, que seu Pai e ele não são senão um pensamento, visto como ele exprime o pensamento de Deus, porque possui a palavra de Deus.

Então pegaram os judeus em pedras para lhe atirarem.

Disse-lhes Jesus: Eu tenho-vos mostrado, muitas obras boas, que fiz em virtude de meu Pai; por qual destas obras me quereis vós apedrejar?

Responderam-lhe os Judeus: Não é por causa de alguma boa obra que nós te apedrejamos, mas, sim, porque dizes blasfêmias e porque, sendo tudo homem, te fazes Deus a ti mesmo.

Replicou-lhes Jesus: Não é assim que está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois deuses?

Se ela chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus fôr dirigida, a Escritura não pode falhar.

A mim, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, por que dizeis vós: Tu blasfemas, por eu ter dito que sou filho de Deus?

Se eu não faço as obras de meu Pai, não me creais.

Porém, se as faço, e quando não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, para que conheçais e creais que o Pai está em mim, e eu no Pai". (S. JOÃO, X, 29 a 38).

Noutro capítulo, dirigindo-se aos discípulos, ele lhes diz:

"Naquele dia conhecereis vós que eu estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós". (S. JOÃO, XIV, 20).

Destas palavras não se vá concluir que Deus e Jesus não fazem senão um, pois neste caso também se deveria inferir delas que os apóstolos não fazem senão um com Deus.

IV — Palavras de Jesus Depois de Sua Morte

"Disse-lhe Jesus: Nem me toques, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos, e dize-lhes que vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus". (S. JOÃO, XX, 17. — Aparição a Maria Madalena).

"E chegando Jesus, lhes falou, dizendo: Tem-se-me dado todo o poder no céu e na terra". (S. MATEUS, XXVIII, 18. — Aparição aos Apóstolos).

"Ora, vós sois testemunhas destas coisas. E eu vou mandar sobre vós o dom, que vos está prometido por meu Pai". (S. LUCAS, XXIV, 48, 49. — Aparição aos Apóstolos).

As palavras de Jesus, durante a sua vida e depois da morte, acusam uma dualidade de pessoas perfeitamente distintas, ao mesmo tempo que o profundo sentimento da sua inferioridade e subordinação relativamente ao ser supremo. A sua insistência em afirmá-lo espontaneamente, sem que fosse constrangido ou provocado por quem quer que fosse, parece ter tido por fim protestar, antecipadamente, contra papel que, segundo previa, lhe haveriam de querer um dia emprestar. Se tivesse guardado silêncio sobre a sua personalidade, teria deixado a porta aberta a todas as suposições; a sua linguagem precisa e categórica dissipa, porém, toda a dúvida.

Que maior autoridade do que as próprias palavras de Jesus? Quando ele diz categoricamente: eu sou, ou eu não sou isso, quem tem o direito de desmenti-lo, ainda que sejam para colocá-lo mais alto? Quem pode, razoavelmente, pretender, melhor do que ele, conhecer-lhe a natureza? Que interpretações podem prevalecer contra afirmações tão formais e tão numerosas como estas:

"Eu não vim de moto próprio, mas foi Deus que me enviou. Da parte dele é que vim. Digo só o que vi em casa de meu Pai. Não sou eu quem vô-lo dou, mas meu Pai, que vô-lo preparou. — Eu vou a meu Pai, porque Ele é maior que eu. — Por que me chamais bom? Só Deus é bom — Eu não falo por mim, porém meu Pai, que me enviou, é quem me prescreve o que devo dizer. — A minha doutrina não é minha, mas d'Aquele que me enviou. — A palavra que tendes ouvido não é minha, mas de meu Pai, que me enviou. — Por mim nada faço, mas digo o que meu Pai me ensinou. — Não procuro fazer a minha vontade, mas a d'Aquele que me enviou. — Eu vos tenho dito a verdade que aprendi de Deus. — O meu sustento consiste em fazer a vontade d'Aquele que me enviou. — Vós, que sois o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo que enviastes. — Meu Pai, em vossas mãos deposito o meu Espírito. — Meu Pai, se é possível, afastai de mim este cálice. — Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? — Eu subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus".

Quando se leem semelhantes palavras, pergunta-se como pode vir ao pensamento de alguém dar-lhes sentido diametralmente oposto ao que elas exprimem e conceber uma identificação completa de natureza e de poder entre o Senhor e o que se declara seu servo?

Quais as peças(·) de convicção deste grande processo, que dura há quinze séculos? Os Evangelhos; outras não há que deem lugar a dúvidas a respeito do ponto em litígio.

Que se há de contrapor a documentos autênticos, que se não podem contestar, sem atacar a verdade dos Evangelistas e do próprio Jesus — documentos firmados em testemunhos oculares? Opõem uma doutrina teórica e puramente especulativa, nascida três séculos mais tarde de uma polêmica levantada sobre a natureza abstrata do verbo, rigorosamente combatida, por muitos séculos, e que não prevaleceu senão pela pressão de um poder civil absoluto.([43])

V — Dupla Natureza de Jesus

Pode se objetar que em razão da dupla natureza de Jesus, as suas palavras exprimiam sentimentos humanos, que não divinos; os do homem, que não os de Deus. Sem inquirir como se chegou à hipótese dessa dupla natureza, admitamo-la por um momento e vejamos se, em vez de vir ela elucidar a questão, não a torna mais complicada e insolúvel.

O que devia ser humano em Jesus era o corpo, a parte material e, neste ponto de vista, compreende-se que ele tenha sofrido, como homem. O que devia ser divino nele era a alma, o espírito, o pensamento, em uma palavra, a parte espiritual do ser. Se sentia e sofria como homem, devia falar e pensar como Deus. Falava como homem, ou como Deus? Eis uma questão importante para a autoridade excepcional dos seus ensinos. Se falava como homem, as suas palavras podem ser controvertidas; se falava como Deus, são indiscutíveis; não as aceitar é heresia; o mais ortodoxo é o que mais se aproximar delas.

Dar-se-á o caso de que, sob o invólucro corpóreo, não tivesse Jesus consciência da sua natureza divina? Mas, se assim fosse, também não teria pensado como Deus, sendo latente a sua natureza divina, e só patente a humana, presidindo à sua missão, aos atos morais como aos materiais. É portanto impossível abstrair da natureza divina, durante a sua vida, sem enfraquecer a sua autoridade.

Se porém falou como Deus, qual a razão do incessante protesto contra a sua natureza divina que, no caso, lhe não podia ser desconhecida? Ou viveu enganado — o que é pouco divino, ou, conscientemente, procurou enganar o mundo — o que muito menos divino seria. Parece-nos difícil escapar a este dilema.

Se admitirmos que ele falasse, ora como homem, ora como Deus, mais complicada ficará a questão, porque será impossível distinguir o que vinha do homem do que vinha de Deus. No caso de ter ele tido motivos para dissimular a sua verdadeira natureza, durante a missão, e o meio mais simples era nada dizer a respeito, ou exprimir-se como o fez noutras circunstâncias, de modo vago, parabólico, acerca de pontos cujo conhecimento estava reservado ao futuro. Ora o caso de sua natureza não é este, pois que dela falou em termos, que nada têm de ambíguos.

Por derradeiro, se a despeito de todas estas considerações, fosse ainda possível admitir que ele, durante a vida, ignorasse de ser, desde o fato da ressurreição, quando, em suas aparições aos discípulos, não é mais o homem que fala, mas o Espírito separado da matéria, que já deve ter recuperado a plenitude das faculdades espirituais, com a consciência do seu verdadeiro estado e, portanto, da sua identificação com a divindade.

E no entanto é nestas condições que diz: Eu vou subir a meu Pai e vosso Pai, a Meu Deus e vosso Deus!

A subordinação de Jesus ainda é indicada por sua qualidade de mediador, que implica uma pessoa distinta entre Deus e os homens. É ele que intercede junto ao Pai e que se oferece em sacrifício para resgatar os pecados da humanidade. Ora, se ele é Deus, igual a Deus em todas as coisas, que necessidade tem de interceder? Ninguém se intercede a si próprio.([44])

VI — Opinião dos Apóstolos

Até aqui nos temos apoiado exclusivamente nas próprias palavras de Cristo, como elemento essencial de convicção, porque fora daí só pode haver opiniões subjetivas; de todas essas opiniões, as de mais valor são, inquestionavelmente, as dos Apóstolos, por terem sido seus companheiros de missão e poderem deixar escapar qualquer indício de revelação secreta, que sobre a sua natureza Jesus lhes houvesse feito. Tendo vivido em sua intimidade, melhor que ninguém deviam tê-lo conhecido.

Vejamos pois como eles o consideram:

"Varões israelitas, ouvi estas palavras: A Jesus Nazareno, varão aprovado por Deus entre vós com virtudes, e prodígios, e sinais, que Deus obrou por ele no meio de vós, como também vós o sabeis;

A este, depois de vos ser entregue pelo decretado conselho e presciências de Deus, crucificando-o por mãos iníquas, lhe tirastes a mesma vida;

Ao qual Deus ressuscitou, soltas as dores do inferno, por quanto era impossível que por este fosse retido;

Porque Davi diz dele: Eu via sempre o Senhor diante de mim; porque ele está à minha direita, para que eu não seja comovido.

Por amor disto se alegrou o meu coração, e se regozijou a minha língua, além de que a minha carne repousará em esperança.

Porque não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o teu santo experimente corrupção.

Tu me fizeste conhecer os caminhos da vida, e me encherás de alegria, mostrando-me a tua face". (ATOS DOS APÓSTOLOS, II, 22 a 28. — Pregação de S. Pedro).

Assim que, exaltado pela dextra de Deus, e havendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou sobre nós a este, a quem vós vêdes e ouvis;

Porque Davi não subiu ao céu; mas ele mesmo disse: O Senhor disse ao meu Senhor: — Assenta-te à minha mão direita.

Até que eu ponha a teus inimigos por escabelo de teus pés.

Saiba logo toda a casa de Israel com a maior certeza que Deus o fez não só Senhor, mas também Cristo, a este Jesus a quemvós crucificastes". (ATOS DOS APÓSTOLOS, II, 33 a 86). — Pregação de S. Pedro).

Moisés, sem dúvida, disse: Porquanto o Senhor vosso Deus vos suscitará um profeta dentre vossos irmãos semelhante a mim; a este ouvireis em tudo que ele vos disser.

E isto acontecerá: toda a alma que não ouvir aquele profeta será exterminada do meio do povo...

Deus, ressuscitando a seu Filho, vô-lo enviou primeiramente a vós, para que vos abençoasse, a fim de que cada um se aparte da sua maldade". (ATOS DOS APÓSTOLOS, II, 23, 23 e 26 — Pregação de S. Pedro).

Seja notório a todos vós, e a todo o povo de Israel que em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo Nazareno, a quem Deus ressuscitou dos mortos; no tal nome que digo é que este se acha em pé diante de vós, já são". (ATOS DOS APÓSTOLOS, IV, 10. —Pregação de S. Pedro).

Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram em conselho contra o Senhor e contra o seu Cristo.

Porque verdadeiramente se ligaram nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e com os povos de Israel.

Para executarem o que o teu poder e o teu conselho determinaram que se fizesse". (ATOS DOS APÓSTOLOS, IV, 26, 27, 28. — Súplica dos Apóstolos).

"Mas dando Pedro a sua resposta, os Apóstolos disseram: importa obedecer mais a Deus do que aos homens.

O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem deste a morte, pendurando-o num madeiro.

A este elevou Deus com a sua destra, como príncipe e salvador, para dar o arrependimento a Israel e a remissão dos pecados". (ATOS DOS APÓSTOLOS, V, 29, 30, 31. — Resposta dos Apóstolos ao Sumo Sacerdote).

"Este é aquele Moisés que disse aos filhos de Israel: Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta como eu; a ele ouvireis...

Porém o Excelso não habita em leituras de mãos, como diz o profeta:

O céu é o meu trono, e a terra o estrado de meus pés. Que casa me edificareis vós, diz o Senhor? Ou qual é o lugar do meu repouso? (ATOS DOS APÓSTOLOS, VII, 37, 48, 49. — Discurso de Estevão).

"Mas como ele estava cheio do Espírito Santo, olhando para o céu, viu a glória de Deus, e a Jesus que estava em pé à destra de Deus; e disse: Eis estou vendo os céus abertos, e o Filho do homem que está de pé à direita de Deus.

Então eles, levantando uma grande gritaria, tamparam os seus ouvidos, e todos juntos arremeteram a ele com fúria.

E tendo-o lançado para fora da cidade, o apedrejavam; e as testemunhas depuseram os seus vestidos aos pés de um moço que se chamava Saulo.

E apedrejavam a Estevão, que invocava a Jesus, e dizia: Senhor Jesus, recebei o meu espírito". (ATOS DOS APÓSTOLOS, VII, 55 a 58 — Martírio de Estevão).

Estas citações testemunham claramente qual o caráter que os Apóstolos atribuíram a Jesus. A ideia essencial, que delas ressalta, é a da sua subordinação a Deus, da constante supremacia de Deus, sem que coisa alguma revele pensamento de semelhança entre os dois, quanto à natureza e poder. Para eles, Jesus era um homem profeta, escolhido e abençoado por Deus.

Não foi entre os Apóstolos que nasceu a crença na divindade de Jesus.([45]) São Paulo, que não o tinha conhecido, mas que, de ardente perseguidor, se tornou o mais zeloso e eloquente defensor da nova lei, cujos escritos prepararam os primeiros formulários da religião cristã, não é menos explícito a este respeito; exprime sempre o pensamento de dois seres distintos e a supremacia do Pai sobre o Filho.

"Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado Apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus.

E este Evangelho tinha ele antes prometido pelos seus profetas nas Escrituras.

Sobre seu Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso, que lhe foi feito na linhagem de Davi, segundo a carne;

Que foi predestinado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santificação, pela ressurreição dentre os mortos;

Pelo qual havemos recebido a graça e o apostolado, para que se obedeça à fé em todas as gentes, pelo seu nome;

Entre os quais vós sois chamados de Jesus Cristo; a todos que estão em Roma, queridos de Deus, chamados santos; graças vos seja dada e paz da parte de Deus, nosso Pai, e da de Jesus Cristo, nosso Senhor". (EPÍSTOLA AOS ROMANOS, I, 1 a 7).

"Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo...

A que fim, pois, quando nós ainda estávamos enfermos, morreu Cristo a seu tempo por uns ímpios...

Morreu Cristo por nós; pois muito mais agora que somos justificados pelo sangue, seremos salvos da ira por ele mesmo...

E não só fomos reconciliados, mas também nos glorificamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem agora temos recebido a reconciliação...

Mas não é assim o dom como o pecado; porque se pelo pecado de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem que é Jesus Cristo, abundou sobre muitos". (EPÍSTOLA AOS ROMANOS, V, 1, 6, 9, 11 e 15).

E se somos filhos, também herdeiros; herdeiros verdadeiramente de Deus, co-herdeiros de Cristo, se é que todavia nós padecemos com ele, para que sejamos também com ele glorificados". (EPÍSTOLA AOS ROMANOS, VIII, 17).

"Porque se confessares com a tua boca ao Senhor Jesus, creres em teu coração que Deus ressuscitou dentre os mortos, serás salvo". (EPÍSTOLA AOS ROMANOS, X, 9).

Depois será o fim, quando tiver entregado o reino a Deus e ao Pai, quando houver destruído todo o principado, e poder, e virtude.

Porque é necessário que ele reine até que ponha todos os seus inimigos debaixo de seus pés.

Ora, o último inimigo destruído será a morte! Porque todas as coisas sujeitou debaixo dos pés dele. E quando diz: tudo está sujeito a ele, excetua-se, sem dúvida, aquele que lhe sujeitou a ele todas as coisas.

E quando tudo lhe estiver sujeito, então ainda o mesmo Filho estará sujeito àqueles que sujeitou a ele todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos". (I —EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS, XV, 24 a 28).

"Mas aquele Jesus, que por um pouco foi feito menor que os anjos, nós o vemos pela paixão da morte coroado de glória e de honra, para que pela graça de Deus provasse a morte por todos.

Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas, e por quem todas existem, havendo de levar muitos filhos à glória, consumasse pela paixão ao autor da salvação deles.

Porque o que santifica e os que são santificados, todos vêm dum mesmo princípio. Por esta causa não tem rubor de lhes chamar irmãos, dizendo:

Anunciarei o teu nome a meus irmãos; louvar-te-ei no meio da Igreja.

E outra vez: Eu confiarei nele. E noutro lugar: Eis aqui estou eu, e os meus filhos que Deus me deu...

Por onde foi conveniente que ele se fizesse em tudo semelhante a seus irmãos, para vir a ser diante de Deus um pontífice compassivo e fiel no seu ministério, a fim de expiar os pecados do povo.

Porque à vista de tudo quanto ele padeceu, e em que foi tentado, é poderoso para ajudar também aqueles que são tentados". (EPÍSTOLA AOS HEBREUS, II, 9 a 13, 17 e 18).

Pelo que, santos irmãos, que sois participantes da vocação celestial, considerai ao apóstolo e ao pontífice da nossa confissão, Jesus.

O qual é fiel ao que o constituiu, assim como também Moisés o era em toda a sua casa.

Porque este é tido por digno de tanto maior glória que Moisés, quando o que edificou a casa tem maior honra que a mesma casa.

Porque toda a casa é edificada por alguém; mas o que criou todas as coisas é Deus". (EPÍSTOLA AOS HEBREUS, III, 1 a 4).

VII — Predileção dos Profetas sobre Jesus

Além das afirmações de Jesus e da opinião dos Apóstolos, há um testemunho, de que os mais ortodoxos dos crentes não podem negar o valor, pois que o exibem constantemente como artigo de fé; é o do próprio Deus, isto é, o dos profetas, seus inspirados, anunciando a vinda do Messias.

Eis as passagens da bíblia consideradas como predição desse grande acontecimento:

"Eu o verei, mas não agora; eu o contemplarei, mas não de perto. Nascerá uma estrela de Jacó, e levantar-se-á uma vara de Israel, e ferirá os capitães de Moabe e destruirá todos os filhos de Sete (NÚMEROS, XXIV, 17).

"Eu lhes suscitarei do meio de seus irmãos um profeta semelhante a ti, e porei na sua boca as minhas palavras, e ele lhes dirá tudo o que eu lhe mandar.

E o que não quiser ouvir as suas palavras, que ele falar em meu nome, eu me vingarei dele. (DEUTERONÔMIO, XVIII, 18 e 19).

"E quando os teus dias forem completos para ires para teus pais, eu suscitarei um do teu sangue, que será de teus filhos, e estabelecerei o seu reino. Esse me edificará casa, e firmarei o seu trono para sempre.

Eu serei seu pai e ele será meu filho, e eu não tirarei dele a minha misericórdia, como eu a tirei do teu predecessor.

Mas eu o estabelecerei na minha casa e no meu reino para sempre e o seu trono será perpetuamente firmíssimo". (I — PARALIPÔMENOS, XVII, 11 a 14).

"Pois por isso o mesmo Senhor vos dará este sinal. Eis que uma virgem conceberá e parirá um filho, e será chamado o seu nome Emmanuel". (ISAÍAS, VII, 14).

"Porquanto já um pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado e a nós, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e o nome, com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, Príncipe da paz" (ISAÍAS, IX, 5).

"Eis aqui o meu servo; eu o ampararei; o meu escolhido; nele pôs a minha alma a sua complacência; sobre ele derramarei o meu espírito; ele promulgará a justiça às nações.

Não clamará, não fará acepção de pessoas, nem a sua voz se ouvirá fora.

Não será triste, nem turbulento, até que estabeleça na terra a justiça". (ISAÍAS, XLII, 1, 2 e 4).

"Verás o fruto do que a sua alma trabalhou, e se fartará; aquele mesmo justo, meu servo, justificará a muitos com a sua ciência, e ele tomará sobre si as suas iniqüidades". (ISAÍAS, LIII, 11).

"Salta de extremado prazer, oh! filha de Siam, enche-te de júbilo, oh! filha de Jerusalém; eis aí o teu rei virá a ti justo e salvador; ele é pobre, e ele vem montado sobre uma jumenta, e sobre o potrinho da jumenta.

E eu exterminarei as carroças de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e os arcos que servem na guerra serão quebrados; e ele anunciará a paz às gentes, e o seu poder se estenderá de um até o outro mar, e desde os rios até as extremidades da terra". (ZACARIAS, IX, 9 e 10).

"E ele estará firme, e apascentará o seu rebanho na fortaleza do Senhor, na sublimidade do nome do Senhor, seu Deus; e eles se converterão, porque agora se engrandecerá ele até as extremidades da terra". (MIQUÉIAS, V, 4).

A distinção entre Deus e o seu futuro enviado está caracterizada de modo claríssimo.

Deus o designa por seu servo; por conseguinte, seu subornado. Nem uma palavra só, que dê a ideia de igualdade em poderes, nem de consubstancialidade entre duas pessoas.

Ter-se-ia Deus enganado, e os homens, três séculos depois de Cristo, enxergariam melhor do que Ele? Esta é segundo parece, a sua pretensão.

VIII — O Verbo se Fez Carne

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

Ele estava no princípio com Deus.

Todas as coisas foram feitas por ele, e nada do que foi feito foi feito sem ele;

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens;

E a luz resplandesceu nas trevas, mas as trevas não a compreenderam.

Houve um homem enviado por Deus, que se chamava João.

Este veio por testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele;

Ele não era a luz, mas para que desse testemunho da luz.

Era a luz verdadeira, que alumia a todo o homem, que vem a este mundo.

Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.

Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.

Mas a todos os que o receberam deu ele poder de se fazerem filhos de Deus; aos que crêem no seu nome.

Que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus.

E o verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória como Filho unigênito do Pai, cheio de graça e verdade". (S. JOÃO, I, 1 a 14).

Esta passagem dos Evangelhos é a única que, à primeira vista, parece encerrar implicitamente uma idéia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus; é também aquela sobre a qual se estabeleceu mais tarde a controvérsia a respeito do assunto.

A questão da divindade de Jesus foi sendo, gradualmente, suscitada. Nasceu das discussões levantadas a propósito das interpretações e alguns sobre as palavras — Verbo e Filho: mas foi somente no 4.° século que uma parte da Igreja a adotou. Este dogma, portanto, é o resultado de decisões humanas; não emana de revelação divina.

É preciso notar-se que as palavras supracitadas são de João e não de Jesus e admitindo-se que não tenham sido alteradas, não exprimem, na realidade, senão uma opinião pessoal, uma indução, onde se descobre o misticismo habitual da linguagem daquele escritor. Não podem, pois, prevalecer contra as reiteradas afirmações do próprio Jesus. Aceitando-se, porém, tais quais são, ainda assim elas não resolvem a questão no sentido da divindade, porque tanto se aplicariam a Jesus-Deus, como a Jesus-criatura de Deus.

De fato, o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Jesus, tendo recebido esta palavra diretamente de Deus, com a missão de a revelar aos homens, assimilou-a. A palavra divina que ele observou, encarnou-se nele. Ele a trouxe consigo, nascendo, e é com razão que disse: O verbo se fez carne e habitou entre nós. Jesus podia, pois, ser encarregado de transmitir a palavra de Deus, sem ser Deus, como um embaixador transmite as palavras de seu soberano, sem ser o soberano.

Segundo o dogma da divindade, é Deus quem fala; na outra hipótese, ele fala pela boca do seu enviado, o que não prejudica a autoridade das suas palavras. Quem autoriza, porém, antes esta do que a outra suposição? A única autoridade competente para cortar a questão, são as próprias palavras de Jesus, quando diz: "Eu não falo por mim; mas Aquele que me enviou, me prescreve por seu mandamento, o que devo dizer: a minha doutrina não é minha, mas sim d'Aquele que me enviou; a palavra que tendes ouvido não é minha, mas de meu Pai, que me enviou".

É impossível exprimir-se alguém com mais clareza e precisão. A qualidade de messias ou enviado, que lhe é dada em todos os

Evangelhos, implica uma posição subordinada a quem lha deu; quem obedece não pode ser igual a quem manda.

João caracteriza esta posição secundária — e, por conseguinte, estabelece a dualidade das pessoas, quando diz: nós vimos a sua glória, a sua glória como filho único, que a devia receber do Pai; porque aquele que recebe, não pode ser o que dá, nem aquele que dá a glória, pode ser igual ao que a recebe. Se Jesus é Deus, possui a glória por si mesmo e não precisa que outro lhe dê. Se Deus e Jesus são uma mesma pessoa com dois nomes diferentes, não poderia existir entre eles nem supremacia, nem subordinação. Desde pois que não há paridade absoluta de posição, é que são duas pessoas distintas.

A qualificação de Messias divino não significa igualdade entre o mandatário e o mandante, mais do que entre um rei e o seu representante a de enviado real. Jesus era um Messias divino pela dupla razão de ter recebido de Deus a sua missão, e estar em relação direta com Deus pelas suas perfeições.

IX — Filho de Deus e Filho do Homem

O título de Filho de Deus, longe de implicar a igualdade, é antes indicativo de submissão; ora ninguém pode ser submetido a si mesmo. Para que Jesus fosse absolutamente igual a Deus, seria preciso que fosse como Ele de toda a eternidade, isto é, que fosse incriado; ora o dogma diz que Deus o gerou de toda a eternidade, e quem diz gerado diz criado; quer seja ou não de toda a eternidade, nem por isto é menos criatura, e, como criatura, subordinada ao seu criador; esta é a idéia implicitamente contida na palavra Filho.

Jesus teve nascimento no tempo? Por ventura houve tempo na eternidade em que ele não existia? Ou é co-eterno com o Pai? Estas são as sutilezas acerca das quais se tem disputado por séculos.

Em que se apoia a doutrina da co-eternidade, elevada à categoria de dogma? Na opinião dos homens que a estabeleceram. Mas esses homens, em que autoridade fundaram a sua opinião? Não foi na de Jesus, pois que este se declara subordinado, nem na dos Profetas, que o anunciaram como enviado e servo de Deus.

Em que documentos desconhecidos, mais autênticos do que os Evangelhos, descobriram essa doutrina? Parece que na consciência e na superioridade das suas próprias luzes.

Deixemos pois estas inúteis discussões, intermináveis, as quais, se ainda tivessem uma solução, não tornariam os homens melhores. Digamos que Jesus é Filho de Deus, como todas as criaturas; ele o chama seu Pai, como nos ensinou a chamá-lo nosso Pai. Ele é o Filho muito amado de Deus, porque, tendo chegado à perfeição próxima de Deus, possui toda a sua confiança e toda a sua afeição; ele diz-se Filho unigênito, não porque seja o único chegado àquele grau, mas porque só ele era predestinado para esta missão na Terra.

Se a qualificação de Filho de Deus parece apoiar a doutrina da divindade, o contrário deve supor-se da qualificação de Filho do homem, que Jesus se deu em sua missão e que foi objeto de muitos comentários.

Para compreender-lhe o verdadeiro sentido, faz-se preciso remontar à bíblia, onde ele é dado pelo próprio Deus a Ezequiel.

"Esta foi a visão da semelhança da glória do Senhor; e vi, e caí com o meu rosto em terra, e ouvi uma voz de quem falava; e me disse: Filho do homem, põe-te sobre os teus pés, e eu falarei contigo.

E entrou em mim o espírito depois que me falou, e me firmou sobre os meus pés; e ouvi ao que me falava.

E dizia: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, às gentes apóstatas que se apartaram de mim; eles e seus pais têm prevaricado, violando o meu pacto até o dia de hoje". EZEQUIEL, II, 1, 2 e 3).

"E tu, filho do homem, sabe que eles têm deitado sobre ti cadeias, e te ligarão com elas, e tu não sairás do meio delas". (Idem, III, 25).

"E foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual dizia: E tu, filho do homem, dize: Isto diz o Senhor Deus à terra de Israel; o fim vem, vem o fim sobre as quatro plagas da terra". (Idem, VII, 1 e 2).

"E no ano nono, no décimo mês, a dez dias do mês, foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual dizia: Filho do homem, escreve com pontualidade este dia, em que o rei da Babilônia se postou contra Jerusalém, hoje mesmo". (Idem, XXIV, 1 e 2).

"E foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual dizia:

Filho do homem, eis aqui estou eu que te tiro de um golpe o objeto mais agradável de teus olhos; mas tu não te lamentarás, nem chorarás, nem te correrão as lágrimas pelo rosto.

Geme lá para ti; não tomarás luto, como se faz pelos mortos; fique-te atada na cabeça a tua coroa, e tu terás metidos nos pés os teus sapatos; não cobrirás com véu o teu rosto, nem comerás manjares que se dão aos que estão de nojo.

Eu, pois, falei de manhã ao povo, e à tarde morreu minha mulher, e ao outro dia pela manhã fiz o que o Senhor me tinha ordenado". (Idem, XXIV, 15 a 18).

"E foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual dizia:

Filho do homem, profetiza sobre os pastores de Israel; profetiza, e dirás aos tais pastores: Isto diz o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentavam a si mesmo; não são os rebanhos os que são apascentados pelos pastores"? (Idem, XXXIV, 1 e 2).

"Então o ouvi falando-me dentro da casa, e o homem que estava ao pé de mim.

Disse-me: Filho do homem, este é o lugar do meu trono, e o lugar das plantas dos meus pés, onde eu habito para sempre no meio dos filhos de Israel; e os da casa de Israel não profanarão mais para o futuro o meu santo nome, nem eles, nem os seus reis, pelas suas devassidões e pelos supulcros dos seus reis, e pelos seus atos". (Idem, XLIII, 6 e 7).

"Porque Deus não ameaça como os homens, nem ele se inflama em ira como os filhos dos homens". (JUDITE, VIII, 15).

É evidente que a qualificação de Filho do homem quer dizer aqui: nascido do homem, por oposição ao que está fora da humanidade. A última citação, tirada do livro de Judite, não deixa dúvida acerca da significação daquela expressão, empregada em sentido estritamente literal.

Deus não designa Ezequiel senão com aquela expressão, certamente para lembrar-lhe que, apesar do dom da profecia, que lhe foi concedido, não pertencia menos à humanidade, a fim de que se não julgasse de natureza excepcional. Jesus dava-se aquela qualificação com singular persistência porque só em raríssimas circunstâncias se disse Filho de Deus. Em sua boca não pode ela ter outra significação que não seja lembrar que também ele pertence à humanidade, assemelhando-se assim aos profetas, que o precederam, aos quais se comparou, aludindo à sua morte, quando disse: Jerusalém que mata os profetas!

A insistência, com que se designa filho do homem, parece um protesto antecipado contra a qualificação que, previra, se lhe daria mais tarde, a fim de que ficasse bem provado que da sua boca não saíra.

É para notar que, durante esta interminável polêmica, que apaixonou os homens por muitos séculos, e até hoje dura, — que acendeu fogueiras e derramou sangue em catadupas, versasse a controvérsia sobre uma abstração: a natureza de Jesus, de que se fez a pedra angular do edifício, apesar de nada haver dito a semelhante respeito — e se tenha esquecido aquilo que o Cristo ensinou ser toda a lei e os profetas: o amor de Deus e do próximo e a caridade, de que fêz a condição de salvamento.

Aplicaram-se, fervorosamente, à questão da afinidade de Jesus com Deus e deixaram em olvido as virtudes, que ele recomendou e de que deu o exemplo.

O próprio Deus ficou na penumbra perante a exaltação da personalidade de Cristo. No concílio de Nicéia foi dito simplesmente: Cremos em um só Deus, etc.; mas como é esse Deus? nenhuma palavra sobre os atributos essenciais dele: a soberana bondade e a soberana justiça. Tais palavras serão condenação dos dogmas, que consagram a sua parcialidade por determinadas criaturas, a sua inexorabilidade, o crime, a cólera, o espírito vingativo de que se servem para justificar crueldades, praticadas em nome dele.

Se o concílio de Nicéia, que se constituiu em fundamento da fé católica, fosse conforme ao espírito de Cristo, para quê o anátema final? Não é isto a prova de que ele é a obra das paixões dos homens? A que foi devida a sua adoção? À pressão do imperador Constantino, que fez dele uma questão mais política que religiosa. Sem ordem sua não se teria realizado o concílio de Nicéia e sem a sua intimidação seria mais que provável o triunfo do arianismo.

Dependeu pois da autoridade soberana de um homem, que não pertencia à Igreja, que reconheceu mais tarde a falsa política seguida, e que em vão procurou emendá-la, conciliando os partidos, não sermos hoje arianos, em lugar de católicos, e não ser hoje o arianismo a ortodoxia e o catolicismo a heresia.

Depois de dezoito séculos de lutas e discussões sem proveito, durante as quais se deixou de parte o essencial do ensino de Cristo, único meio de assegurar a paz da humanidade, veio o cansaço dessas discussões estéreis, que só produziram perturbações, geraram a incredulidade e cujo objeto já não satisfazia à razão.

Há hoje uma tendência manifesta da opinião geral para voltar às ideias fundamentais da primitiva Igreja e à parte moral do ensino de Cristo, por ser esta a única que pode tornar os homens melhores, visto ser clara, positiva, e não dar ensejo a controvérsias.

Se a Igreja tivesse seguido, desde o princípio, aquela via, seria hoje onipotente, em vez de ter sido despedaçada pelas facções.

Quando os homens caminharem com esta bandeira, se darão fraternalmente as mãos, em vez de se lançarem anátema e maldição, por questões que a maior parte das vezes não compreendem. Essa tendência da opinião é o sinal de que chegou o momento de pôr a questão no seu legítimo terreno.([46])


 

Influência Perniciosa das Ideias Materialistas — Sobre as Artes em Geral. Sua Regeneração pelo Espiritismo

Lê-se no Courrier de Paris du Monde Illustré de 19 de dezembro de 1868:

"Carmouche escreveu mais de duzentas comédias e xácaras, e poucos nos dias de hoje lhe conhecem o nome. É que nada é tão fugaz como a glória dramática, que excita tantas ambições.

"Quem não produz obras-primas está condenado a ver o nome cair no esquecimento, tão depressa deixe o campo de batalha. Mesmo durante a luta, a maior parte não o conhece. O público, quando lê o anúncio, só o preocupa o título da peça, pouco lhe importando saber quem a escreveu. Bem poucas vezes vos lembrareis do nome do autor de uma obra interessante de que guardais memória. E quanto mais entrardes pela vida, mais vos acontecerá isto: são as preocupações materiais sobrepondo-se cada vez mais aos interesses artísticos.

"Carmouche contava a este respeito uma anedota típica. — O meu livreiro — dizia ele — com quem eu conversava sobre o seu comércio, exprimia-se assim: o negócio não vai mal, mas está muito mudado; não são mais os mesmos artigos o que tem saída. Outrora, quando eu via entrar um rapaz de dezoito anos, já sabia que, nove vezes em dez, vinha procurar um dicionário de rimas; hoje, já sei que vem procurar um manual de operações da Bolsa".

As preocupações materiais substituem o interesse pela arte... Por que não há de ser assim, se o pensamento e a atividade só se dirigem para a matéria, para as necessidades da carne, eliminando-se então não só as aspirações, como até a esperança pela vida de além-túmulo?

Esta consequência é lógica e inevitável para aquele que nada vê fora do pequeno círculo da vida presente. Quando nada se vê atrás de si, nem adiante de si, nem acima, a que aplicar o pensamento, senão ao ponto em que se acha?

O sublime da arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da esfera estreita da nossa atividade; o ideal, porém, existe positivamente nessa região extramaterial, onde se não penetra senão pelo pensamento, e que a imaginação concebe, embora não a divisem os olhos do corpo. Que inspiração pode trazer ao espírito a ideia do nada?

O pintor, que não tiver visto senão o céu brumoso, as estepes áridas e monótonas da Sibéria, e que acreditar ser aquilo todo o universo, poderá conceber e descrever a brilho e a riqueza dos tons da natureza tropical? Como quereis que os vossos artistas e poetas vos transportem a regiões, que não veem com os olhos da alma, que não compreendem e nas quais não acreditam?

O Espírito não pode identificar-se senão com o que sabe e crê que é verdade, e esta verdade, ainda que moral, torna-se para ele realidade, que exprime tanto melhor, quanto a sente; e então, se a inteligência da coisa ajunta a flexibilidade do talento, comunica as impressões à alma dos outros. Que impressões, porém, pode transmitir quem não as tem?

Para o materialista, a realidade é a Terra, o seu corpo todo, pois que fora dele nada existe, e o pensamento extingue-se com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não pode traduzir pela linguagem da arte senão aquilo que vê e sente. Ora se não vê e não sente senão a matéria tangível, nada mais pode transmitir.

Onde só vê o vácuo, impossível lhe é colher alguma coisa. Se se aventura por este mundo, que lhe é desconhecido, vai como um cego, e por mais esforços que empregue para elevar-se ao idealismo, não pode desprender-se da terra, como a ave de asas cortadas.

A decadência das artes, no século atual, é o resultado natural da concentração das ideias sobre as coisas materiais, e esta concentração, por sua vez, é o resultado da ausência de toda a fé e de toda a crença na espiritualidade do ser. O século colhe só o que semeou e quem semeia pedras não pode colher frutos.

As artes só sairão do seu torpor por uma reação no sentido das ideias espiritualistas. E como poderão ligar o nome a obras duráveis, o pintor, o poeta, o literato, o músico, quando, na maior parte, eles mesmos não confiam no futuro dos seus trabalhos, quando não percebem que a lei do progresso, essa invencível potência, que arrasta o universo pelas sendas do infinito, lhes pede mais do que pálidas cópias das produções magistrais dos artistas do tempo passado?

Não são esquecidos os Fídia, os Apele, os Rafael, os Michelangelo, faróis luminosos, que brilham na obscuridade dos séculos idos, como fulgurantes estrelas em meio de profundas trevas; mas quem prestará atenção à claridade de uma lâmpada que luta contra a luz brilhante do sol num belo dia de estio?

O mundo tem caminhado a passos de gigante desde os tempos históricos e a filosofia dos povos primitivos tem-se gradualmente transformado. As artes, que se apoiam na filosofia, que é a sua consagração idealizada, devem ter também sofrido modificações e transformações.

É matematicamente exato dizer que, sem crença, as artes não têm vitalidade possível, e que toda transformação filosófica arrasta, necessariamente, uma transformação artística correspondente.

Em todas as épocas de transformação, periclitam as artes, porque a crença em que se apoiam não é suficiente às crescentes aspirações da humanidade e porque os princípios novos, ainda não adotados definitivamente pela maioria dos homens, não animam os artistas a explicar, senão de modo vacilante, a mina desconhecida, que se lhes abre.([47])

Durante as épocas primitivas, em que os homens não conheciam senão a vida material e em que a filosofia divinizava a natureza, a arte procurou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era então a primeira das qualidades; a arte aplicou-se a reproduzi-la, a idealizá-la. Mais tarde a filosofia entrou em nova senda; os homens, progredindo, reconheceram acima da matéria um poder criador e organizador, recompensando os bons, punindo os maus, fazendo uma lei da caridade; um mundo novo, o mundo moral, levantou-se sobre as ruínas do velho mundo.

Dessa transformação nasceu uma arte nova, que fez palpitar a alma sob a forma e aliou à perfeição plástica a expressão de sentimentos desconhecidos dos antigos. O pensamento, a princípio sujeito à matéria, revestiu as formas severas da filosofia, em que a arte se inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e pinturas das torturas físicas e morais dos condenados. A arte elevou-se, revestiu um caráter grandioso e sublime, ainda que sombrio.([48])

Ainda hoje, não há como contestá-lo, o mundo se acha num período de transição, entre os hábitos vetustos, as crenças insuficientes do passado e as verdades novas, que lhe são progressivamente reveladas.

Assim como a arte cristã sucedeu à pagã, transformando-a, assim a arte espírita será o complemento e a transformação da arte cristã.

O Espiritismo, com efeito, oferece-nos a perspectiva do futuro, sob uma face nova e mais ao nosso alcance; por ele, a felicidade está mais perto de nós, ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que não cessam de entreter relações conosco.

A habitação dos eleitos e a dos condenados não são mais separadas: antes há constante solidariedade entre o céu e a terra, entre todos os mundos do universo. A felicidade consiste no amor recíproco de todas as criaturas elevadas à perfeição e numa constante atividade, cujo fim é instruir e guiar para aquela perfeição os que ainda estão atrasados. O inferno está no próprio coração do culpado, que encontra o castigo em seus remorsos; não é, porém, eterno, e o mau, entrando nas vias do arrependimento, sente na alma a esperança, a sublime consolação dos desgraçados.

Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Obras-primas de todo o gênero poderão produzir as novas ideias, pela reprodução das múltiplas e tão variadas cenas da vida espírita. Em lugar de representar frias e inanimadas relíquias, ver-se-á a mãe, tendo ao lado o filho adorado em sua forma radiante e etérea, ver-se-á a vítima per doando ao seu algoz, o criminoso procurando em vão fugir ao quadro, sem cessar presente aos olhos, de ações culpadas, o isolamento egoísta e do orgulhoso em meio da multidão, a perturbação que sente o Espírito quando volta à vida espiritual, etc., etc.

E, se o artista quiser elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros Édens, onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade, que conquistaram, ou reproduzir algumas cenas dos mundos inferiores, verdadeiros infernos, onde as paixões campeiam soberanas, que cenas comoventes, que quadros palpitantes de interesse poderá reproduzir!([49])

Sim. O Espiritismo abre à arte um campo novo, imenso, e ainda inexplorado; e quando o artista reproduzir o mundo espírita com perfeita convicção, encontrará nessa fonte as mais sublimes inspirações e o seu nome viverá nos séculos futuros, porque, às preocupações materiais e efêmeras da vida presente, anteporá o estudo da vida futura e eterna da alma.

A Teoria do Belo

O belo é coisa convencional e relativa a cada tipo? O que é belo para uns tantos povos não é para outros horrível fealdade? Os negros julgam-se mais belos que os brancos e vice-versa. Neste desencontro de gostos, haverá uma beleza absoluta? Em que consiste? Somos realmente mais belos que os hotentotes e os cafres? Por que?

A questão que, à primeira vista, parece estranha ao objeto dos nossos estudos, prende-se-lhe, entretanto, da maneira direta, e interessa ao futuro da humanidade. Foi-nos ela sugerida, bem como a sua solução, pela seguinte passagem de um livro interessantíssimo e muito instrutivo intitulado: As revoluções inevitáveis no globo e na humanidade, por Charles Richard.

O autor empenha-se em combater a opinião da degeneração física do homem, dos tempos primitivos para cá. Refuta vitoriosamente a crença na existência de uma raça primitiva de gigantes e procura provar que, do ponto de vista da força física e da estatura, os homens atuais valem os antigos, se não lhes levam vantagem. Passando à beleza das formas, exprime-se ele nestes termos, pág. 41 e seguintes:

"No que concerne à beleza do rosto, à graça da fisionomia, a este conjunto que constitui a estética do corpo, a superioridade ainda é mais fácil de ser provada. Basta olhar para os tipos que as medalhas e estátuas antigas nos transmitiram intatas através dos séculos. A iconografia de Visconti e o Museu do Conde de Clarol são, entre muitas outras, duas fontes, onde é fácil encontrar profusos elementos para esse interessante estudo.

"O que impressiona, desde logo, neste conjunto de figuras, é a rudeza dos traços, a animalidade da expressão, a crueldade do olhar. Sente-se, com involuntário calafrio, estar em presença de indivíduos que nos cortariam sem piedade, em mil postas, para alimentar as suas moréias, como fazia Polião, rico cidadão romano e amigo de Augusto. O primeiro Bruto (Lúcio Júnio), que mandou decapitar dois filhos e assistiu àquele suplício, tem os instintos da fera carniceira. O seu sinistro busto tem da águia e do mocho, desses dois carnívoros do ar, o que há neles de mais feroz. Não há que duvidar, olhando-se para ele, que bem tenha merecido a triste honra que a história lhe confere. Se foi capaz de matar os dois filhos, pelo mesmo motivo teria morto a própria mãe.

"O segundo Bruto (Mário), que apunhalou César, seu pai adotivo, precisamente quando este mais contava com o reconhecimento e com o amor dele, traz à mente um pobre fanático. Não tem sequer essa beleza sinistra, que o artista descobre na energia indomável que arrasta ao crime.

"Cícero, o brilhante orador, o espirituoso e profundo escritor, que deixou imorredoura memória da sua passagem por este mundo, tem uma figura aborrecida e comum, que devia torná-lo mais agradável de ouvir-se que de ver-se.

"Júlio César, o grande e incomparável vencedor, o herói dos morticínios, que fez a sua entrada no reino das sombras com um cortejo de dois milhões de almas, quantas tinha vitimado durante a vida, é tão feio como o seu predecessor; mas a fealdade é de outro gênero. O rosto descarnado e ossudo, assentado num pescoço comprido, ornado de uma desgraciosa saliência laringética, fá-lo parecer antes um palhaço que um grande guerreiro.

"Galba, Vespasiano, Nerva, Caracala, Alexandre, Severo, Balbino, são mais hediondos do que feios.

"É difícil encontrar na galeria dos antigos tipos de nossa espécie algumas figuras que inspirem simpatia. A de Cipião, o Africano, a de Pompeu, de Cômodo, de Heliogábalo, de Antinous, o favorito de Adriano, são deste pequeno número. Sem serem belas no sentido moderno da palavra, são, no entanto, regulares e de agradável aspecto.

"As mulheres regulam pelos homens e provocam as mesmas considerações. Lívia, filha de Augusto, tem uma cara de fuinha; Agripina mete medo e Messalina parece que, para derrotar Cabinis e Lavater, se assemelha a uma criada machacaz, mais apaixonada por uma boa iguaria que por qualquer coisa.

"Os gregos, convém frisá-lo, são geralmente superiores aos romanos. As figuras de Temístocles e Melcíades, entre outras, podem ser comparadas aos mais belos tipos modernos, mas Alcebíades, este remotíssimo avoengo dos nossos Richelieu e Lauzun, cujas façanhas galantes enchem por si sós a crônica de Atenas, tem, como Messalina, um físico bem pouco afeiçoado ao seu emprego. Os traços principais da fisionomia e a fronte de pensador inculcam mais um jurisconsulto apto para aprofundar algum texto de lei do que o audacioso zombeteiro, que se faz exilar de Esparta unicamente para ludibriar o pobre rei Agis e gabar-se, depois, de haver sido amante de uma rainha.

Afora a pequena vantagem, que se é obrigado a reconhecer nos gregos sobre os romanos, neste ponto, a comparação daqueles velhos tipos com os do nosso tempo demonstra o progresso, que temos feito neste terreno, como em todos os outros. Convém não esquecer que, nesta comparação, trata-se de classes privilegiadas, sempre mais belas que as outras e, portanto, os tipos modernos a opor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões e não nas alfurjas. Porque a pobreza, coitada, em todos os tempos e sob todas as relações nunca é bela, e assim acontece para provocar-nos vergonha e obrigar-nos a procurar elevar-nos.

"Não quero, entretanto, dizer que a fealdade tenha completamente desaparecido de nossas frontes, e que o selo divino esteja impresso em todas as máscaras, que nos ocultam a alma. Longe de mim uma afirmação, que facilmente poderia ser contestada por todos. A minha pretensão limita-se, unicamente, a consignar que, num período de dois mil anos, tão curto espaço para uma humanidade, que tanto tem ainda de viver, a fisionomia da nossa espécie tem melhorado de modo apreciável. Creio, por outro lado, que as mais belas figuras antigas são inferiores às que podemos todos os dias admirar em nossas reuniões públicas, nas festas, e até no trânsito pelas ruas.

"Se não receasse ferir algumas modéstias, e levantar zelos, citaria exemplos conhecidos entre os contemporâneos, que confirmariam, evidentemente, a realidade.

"Os admiradores do passado têm constantemente a boca cheia da sua famosa Vênus de Médicis, que lhes parece o ideal da beleza feminina, esquecendo que esta mesma Vênus passeia todos os domingos pelos bulevares de Arles, na figura de mais de cinqüenta espécimens, e que poucas são as nossas cidades, especialmente as do Meio-Dia, que não possuam algumas.

"Em tudo o que havemos dito, não tratamos senão da comparação do nosso tipo atual com o dos povos que nos precederam apenas alguns milhares de anos. Se, porém, remontando às mais longínquas eras, revolvermos as terras onde dormem os restos das primeiras raças, que habitaram o globo, a nossa vantagem será tão grande que nem é possível levantar contestação.

"Sob a influência teológica, que deteve Copérnico e Tycho-Brahe, que perseguiu Galileu e que, nestes últimos tempos, obscureceu por momentos o gênio de Cuvier, a ciência hesitava em sondar os mistérios das épocas antediluvianas. A narração bíblica, tomada ao pé da letra, no mais restrito sentido, parecia ter dito a última palavra sobre a nossa origem e sobre os séculos, que nos separam daqueles tempos. A verdade, porém, implacável em suas irradiações, acabou por despedaçar as cadeias de ferro, com que queriam prendê-la para sempre e patentear formas até então desconhecidas.

"O homem antediluviano, que vivia em companhia dos mastodontes, do urso das cavernas e de outros grandes mamíferos hoje desaparecidos, — o homem fóssil, em uma palavra, por tanto tempo negado, foi afinal descoberto e a sua existência posta fora de dúvida.

Os trabalhos recentes dos geólogos, e particularmente os de Boucher de Perthes, de Filippi e de Lyell, permitem-nos agora apreciar os caracteres físicos daquele venerando avô do gênero humano. Ora, apesar dos contos imaginados pelos poetas acerca da sua beleza original, apesar do respeito devido ao antigo chefe da nossa raça, a ciência é forçada a provar que ele era de prodigiosa fealdade. O ângulo facial não excedia de 70°, as mandíbulas, de considerável volume, eram armadas de dentes longos e salientes, a fronte imperceptível, as têmporas achatadas, o nariz chato, largas as narinas; em suma, esse venerável pai devia assemelhar-se muito mais a um orangotango do que aos seus atuais filhos. E tanto que, senão se tivesse encontrado ao seu lado os instrumentos de pedra, por ele fabricados, e, em alguns casos, os animais que ainda exibiam os sinais das feridas por aqueles instrumentos produzidas, ter-se-ia toda a razão de pôr em dúvida o distinto papel, que representou na gênese terrestre.

Não só sabia fabricar instrumentos de pedra, mas também clavas e pontas de dardos da mesma matéria. A galanteria antediluviana chegava ao ponto de se fazerem pulseiras e colares de pequenas pedras redondas, com que adornavam, naqueles remotos tempos, os braços e o pescoço do sexo encantador, que era e é tão exigente, como todos o sabem e melhor o sentem.

"Não sei o que pensarão a respeito disso as elegantes dos nossos dias, cujo colo é tabuleta de diamantes; quanto a mim, confesso-o, não me posso furtar a uma profunda comoção, pensando neste primeiro esforço do homem, mal diferenciado ainda do bruto, por agradar à sua companheira, pobre e nua como ele, no seio de uma natureza inóspita, sobre a qual um dia a sua raça devia reinar.

"Oh remotíssimos avós! Se, com essas faces rudimentares, já sentíeis o fogo do amor, como duvidarmos da vossa paternidade em frente do sinal divino da espécie?

"Não resta portanto dúvida de que esses disformes seres humanos foram nossos pais, pois deixaram-nos traços da sua inteligência e do seu amor, atributos essenciais que nos distinguem da besta. Podemos, examinando-os atentamente, lavados do pó dos séculos, medir, como um compasso, o progresso físico realizado pela nossa espécie desde a sua aparição na Terra.

Ora, esse progresso, que ainda há pouco podia ser contestado pelo espírito de sistema e pelos preconceitos de educação, adquire agora tal evidência que forçoso é reconhecê-lo e proclamá-lo. Alguns milhares de anos podiam ainda deixar dúvidas, que centenas de séculos dissipam irrevogavelmente . . .

"...Como ainda podemos ser infantis em todas as coisas? Ignoramos o nosso posto e o caminho na imensidade do universo e ousamos negar progressos que, por falta de tempo, não puderam ainda ser suficientemente demonstrados. Crianças que somos, tenhamos um pouco de paciência, e os séculos, aproximando-nos do nosso fim, nos descobrirão esplendores, que escapam, por distanciados, a nossos olhos apenas descerrados.

Proclamemos, porém, desde hoje, que a ciência nô-lo permite já, o fato capital e consolador do progresso, lento mas seguro, de nosso tipo físico para este ideal entrevisto pelos grandes artistas através das inspirações, que o céu lhes envia para nos revelar os segredos. Esse ideal não é um produto enganador da imaginação, um sonho fugitivo destinado a dar, de tempos em tempos, descanso às nossas misérias; é um objetivo assinado por Deus ao nosso aperfeiçoamento, objetivo sem limites, sem fim, porque, em todos os casos, só o infinito pode satisfazer-nos o Espírito e oferecer-lhe uma carreira digna de si".

Resulta dessas judiciosas observações que a forma dos corpos tem-se modificado, em determinado sentido e segundo uma lei, à medida que o ser moral se tem desenvolvido; que a forma exterior está em constante relação com o instinto e os apetites do ser moral; que quanto mais os seus instintos se aproximam da animalidade, tanto mais aquela forma se lhe aproxima igualmente; enfim, que à medida que os instintos materiais se estiolam e dão lugar aos sentimentos morais, o invólucro exterior, que não tem mais de satisfazer a necessidades grosseiras, reveste formas cada vez mais leves, delicadas, em harmonia com a elevação e delicadeza dos pensamentos.

A perfeição da forma é, assim, a consequência da perfeição do Espírito; podendo-se concluir que o ideal da forma deve ser a que reveste o Espírito no estado de pureza — a que imaginam os poetas e os verdadeiros artistas, porque penetram pelo pensamento nos mundos superiores.([50])

Diz-se, há muito, que o rosto é o espelho da alma. Esta verdade, tornada axiomática, explica o fato vulgar de desaparecerem certas fealdades ao reflexo das qualidades morais do Espírito, e a preferência muitas vezes de uma pessoa feia, dotada de eminentes qualidades, à que não tem senão a beleza plástica. É que essa fealdade não consiste senão nas irregularidades da forma e não exclui a delicadeza dos traços, necessária à expressão dos sentimentos delicados.([51])

Do que precede, pode concluir-se que a beleza real consiste na forma que mais se afasta da animalidade e melhor reflete a superioridade intelectual e moral do Espírito, que é o ser principal. Influindo o moral sobre o físico, que ele apropria às suas necessidades físicas e morais, segue-se que: 1.° o tipo da beleza consiste na forma mais apropriada a exprimir as mais elevadas qualidades intelectuais e morais; 2.° à medida que o homem se eleva moralmente o seu invólucro se aproxima do ideal da beleza, que é a beleza angélica.

O negro pode ser belo para o negro, como um gato para os gatos; mas não o é no sentido absoluto, porque os seus traços grosseiros, os lábios grossos, acusam a materialidade dos instintos; podem perfeitamente exprimir as paixões violentas, mas nunca as delicadas variedades do sentimento e as modulações de um Espírito elevado.([52]) Eis porque podemos, sem fatuidade, julgar-nos mais belos que o negro e o hotentote. Talvez as gerações futuras, melhores, nos considerem grosseiros, como, hoje, consideramos os hotentotes. Talvez os nossos fósseis sejam classificados como de alguma espécie animal desaparecida.

Este artigo, tendo sido lido na Sociedade de Paris, foi objeto de grande número de comunicações, que chegaram às mesmas conclusões.

Não transcrevemos senão as duas seguintes, que foram as mais desenvolvidas:

Paris, 4 de fevereiro de 1869 (Médium Sra. Malet).

Pensastes bem; a origem primordial de toda a bondade e de toda a inteligência é também a de toda a beleza. O amor gera a perfeição de todas as coisas, sendo ele mesmo a perfeição. O Espírito é votado à conquista desta perfeição: a sua essência e o seu destino. Deve pelo trabalho aproximar-se da inteligência soberana e da infinita bondade; deve revestir, progressivamente, a forma mais perfeita, que caracteriza os seres perfeitos. Se, em vossas pobres sociedades, em vossos globos ainda mal equilibrados, a espécie humana está muito longe da beleza física, isto procede de ser aí ainda rudimentar a beleza moral.

A conexidade entre as duas é um fato certo, lógico, e de que a alma tem, desde aí, a intuição.

Realmente, sabeis quanto é penoso o aspecto de uma bela fisionomia desmentida pelo caráter. Se ouvirdes falar de uma pessoa de grande mérito, dar-lhe-eis, pela imaginação, traços simpáticos, e sofreis decepção à vista de uma cara, que vos contradiz as previsões. Que concluir daí? Que, como de tudo quanto o futuro oculta, a alma tem a presciência da beleza, a medida que a humanidade progrida e se aproxima do tipo divino.

Não tireis argumentos contrários a esta afirmação da aparente decadência da vossa mais adiantada raça. Sim, é verdade, a espécie parece degenerar, abastardar-se; as enfermidades vos afligem antes da velhice, a infância mesma sofre moléstias, que não pertencem, habitualmente, senão a outra idade da vida; mas isto é uma transição. A vossa época é má — ela fecha e abre; fecha um período doloroso, e abre uma era de regeneração física, de progresso moral e intelectual.

A raça nova, de que já falei, terá mais faculdades, mais instrumentos ao serviço do Espírito; será maior, mais forte, mais bela. Desde o princípio pôr-se-á em harmonia com as riquezas da criação, que a vossa raça descuidosa e fatigada desdenha ou ignora. As grandes coisas, que tiverdes feito, ela aproveitará, e marchará nas vias das invenções e do aperfeiçoamento, com febril ardor e um poder ora desconhecido. Mais adiantados, também, em bondade, os vossos descendentes farão o que não soubestes fazer: farão desta terra desgraçada um mundo de felicidade, onde o pobre não será mais repelido e desprezado, mas protegido por instituições largas e liberais. Já desponta a aurora dessa mudança; a luz não tardará a vir.

Amigos, aproxima-se, enfim, o dia em que a luz brilhará nessa terra escura e miserável, em que a raça humana será boa e bela, segundo o progresso conquistado, em que o sinal posto na fronte do homem não será mais o da reprovação, mas um sinal de alegria e esperança. Então uma multidão de Espíritos adiantados virá tomar lugar entre os colonos dessa terra, onde eles se acharão em maioria, e tudo cederá diante deles. Este renovamento far-se-á e a face do globo se transformará, porque a nova raça será grande e poderosa, e a hora da sua vinda será o começo da era de felicidade.

Panfílio.

Paris, 4 de fevereiro de 1869.

O belo, sob o ponto de vista puramente humano, é uma questão bem discutível e assaz discutida.

Para bem a conhecermos, é preciso que a estudemos como amador desinteressado; o entusiasta não pode ter voto no capítulo. Também entra em linha de conta, nesta apreciação, o gosto de cada um. Não é belo, realmente belo, senão o que o é sempre e para todos; e esta beleza eterna, infinita, é a manifestação divina sob os seus aspectos incessantemente variados; é Deus em suas obras, em suas leis! Eis a única beleza absoluta. Essa é a harmonia das harmonias — e faz jus ao título de absoluta, porque não pode conceber-se maior beleza.

Quanto ao que, por convenção, se chama belo, e que é realmente digno de ser assim qualificado, cumpre não o considerar senão como relativo, porque pode sempre conceber-se coisa mais bela e mais perfeita.

Só há uma beleza e uma perfeição: é Deus. Fora dele, tudo o que decoramos com aquele título, não passa de pálido reflexo do belo único: uma forma harmoniosa das mil e uma harmonias da criação.

Há tantas harmonias quanto os objetos criados, outros tantos tipos de beleza, determinando o ponto culminante da perfeição, que pode alcançar uma das subdivisões do elemento animado.

A pedra é bela e diversamente bela; cada espécie mineral tem as suas harmonias, e o elemento que reúne todas as harmonias da espécie possui a maior soma de beleza, que a espécie pode alcançar.

A flor tem as suas harmonias; também ela pode possuí-las todas, ou em separado e ser bela de diferentes formas; mas não o será senão quando as harmonias, que concorrem para a sua criação, forem harmonicamente ligadas.

Dois tipos de beleza podem produzir, pela sua fusão, um ser híbrido informe, de aspecto repulsivo. Há, então, cacofonia. Todas as vibra ções eram harmônicas isoladamente, mas a diferença de tons produz um desconcerto ao encontro das ondas vibrantes; daí o monstro!

Descendo na escala criada, cada tipo animal dá lugar às mesmas observações; e a ferocidade, a astúcia, a inveja poderão dar nascimento a belezas especiais, se o princípio, que determina a forma, for sem mescla.

A harmonia, mesmo no mal, produz o belo. Há o belo satânico e o belo angélico, a beleza enérgica e a beleza resignada. Cada sentimento, cada feixe de sentimentos, desde que sejam harmônicos, produz um tipo particular de beleza, de que todos os aspectos humanos são, não degenerescências, mas esboços.

É pois lícito dizer não que é mais belo, porém que se aproxima mais do belo real aquele que mais se eleva em perfeição.([53])

Todos os tipos se fundem harmonicamente no perfeito; e é por isso que este é o belo absoluto.

Nós, que progredimos, não possuímos senão uma beleza relativa, enfraquecida e combatida pelos elementos desarmônicos da nossa natureza.

Lavater.

A Música Celeste

Certo dia, em reunião familiar, um pai leu a passagem de O Livro dos Espíritos relativo à música celeste.

Uma das filhas, boa musicista, pensava consigo: no mundo invisível não há música. Parecia-lhe aquilo impossível e por isso não externou o seu pensamento.

À noite, recebeu ela a seguinte comunicação:

"Hoje de manhã, minha filha, teu pai lia-te uma passagem de O Livro dos Espíritos. Tratava-se de música e tu ficaste sabendo que a do céu é muito mais bela que a da Terra. Assim a consideram os Espíritos.

"Tudo isso é verdade: entretanto, tu pensaste: como poderia Bellini vir dar-me conselhos e ouvir a minha música? É obra de algum Espírito leviano e enganador. (Alusão aos conselhos que o Espírito de Bellini lhe dava às vezes sobre música).

"Enganas-te, minha filha; quando os Espíritos tomam sob a sua proteção algum encarnado, têm por fim fazê-lo adiantar-se. Bellini não acha hoje bela a sua música, comparada à do espaço; mas nota a tua aplicação e amor pela arte e tem sincero prazer em te dar conselhos. Deseja que o teu mestre seja recompensado do seu trabalho, porque, embora tenha por infantil a sua ciência, em relação às sublimes harmonias do mundo invisível, aprecia-lhe o talento, que pode dizer-se grande na Terra. Acredita, minha filha, os sons dos instrumentos terrestres, as mais belas vozes, nenhuma idéia vos podem dar da música celeste e das suas suaves harmonias".

Momentos depois, a moça exclama: "Papai, papai, vou adormecer, segure-me"; e, imediatamente, reclinada em uma poltrona, exclama de novo: "Papai, papai, que música deliciosa!... Desperta-me, senão eu vôo daqui". Os assistentes, atordoados, não sabiam como despertá-la, quando ela exclamou: "Água! Água!" E, com efeito, alguns pingos d'água atirados ao rosto produziram o desejado efeito. A princípio, meio atordoada, a moça, pouco a pouco, voltou a si, sem ter a mínima consciência do que se tinha passado.

Na mesma noite, achando-se o pai só, obteve do Espírito de S. Luís a seguinte explicação:

"Quando lias à tua filha aquela passagem de O Livro dos Espíritos sobre a música, ela teve dúvidas, não podendo compreender a existência da música no mundo espiritual; eis porque, esta noite, eu lhe disse ser verdade o que lhe foi lido, mas não se tendo ela convencido, permitiu-lhe o Senhor aquele sono sonambúlico para que se convencesse.

"Então, o seu Espírito, desprendendo-se do corpo adormecido, voou ao espaço e foi admitido às regiões etéreas, onde o êxtase produzido pela impressão das celestes harmonias a fez exclamar: `'Que música! Que música!". Sentindo-se, porém, cada vez mais atraída para as mais elevadas regiões do mundo espiritual, pediu que a despertassem, indicando o meio: a água.

Tudo se faz pela vontade de Deus. O Espírito de tua filha não terá mais dúvida, conquanto, despertada, nenhuma memória ela conserve do que se passou; ele porém, o Espírito, bem sabe o que apreciou.

"Agradece a Deus os favores que dispensa a essa menina; agradece-lhe por dignar-se fazer-lhe conhecer, cada vez mais, a sua onipotência e bondade. As suas bênçãos desçam sobre vós e sobre esta médium feliz entre mil".

Observação — Perguntar-se-á que convicção pode ter aquela moça, desde que não guarde lembrança do que ouviu. Se, no seu estado normal, os fatos não se apresentam à sua memória, o Espírito os tem bem lembrados, ela conserva uma vaga intuição, que lhe modifica os pensamentos. Em vez de opor-se, aceitará sem dificuldades as explicacões que lhe forem dadas, porque compreenderá e intuitivamente acha-las-á conforme ao seu pensamento.

O que se passou aqui, por um fato insulado, no espaço de alguns minutos, durante a curta excursão feita pelo Espírito daquela moça ao mundo espiritual, é análogo ao que se passa de uma para outra existência, quando o Espírito, que encarna, possui luzes sobre um determinado assunto. Facilmente se apropria de todas as ideias, concernentes àquele assunto, nem que não guarde memória, depois de encarnado, da bagagem desses conhecimentos que trouxe consigo. As ideias porém, não cultivadas por ele, em outras eras, dificilmente lhe entram no cérebro.

É assim que se explica a facilidade com que certas pessoas assimilam as ideias espíritas; é que não fazem mais do que recordar as que já possuíram. Nascem já espíritas, como se nasce poeta, músico, matemático. Compreendem à primeira palavra e não precisam de fatos para se convencer. É este um sinal incontestável do seu adiantamento moral e do desenvolvimento do seu Espírito.

Na comunicação acima transcrita, foi dito:

"Agradece a Deus os favores, que dispensa a essa menina; as suas bênçãos desçam sobre vós e sobre esta médium feliz entre mil".

Estas palavras pareceriam indicar um favor, uma preferência, um privilégio, quando o Espiritismo nos ensina que Deus, sendo soberanamente justo, não tem preferência por nenhum dos seus filhos, não facilita a ascensão a uns mais do que a outros. Não haja dúvida que a mesma estrada está para todos aberta, mas não a percorrem todos com a mesma rapidez e o mesmo resultado, e não se aproveitam, por igual, das instruções a todos dadas.

O Espírito daquela menina, posto que jovem como encarnado, já sem dúvida muito viveu e, certamente, progrediu. Os bons Espíritos, encontrando-o dócil aos seus ensinos, folgam de instruí-lo, como faz o professor com o discípulo de boas disposições. É nesta conformidade que ele é feliz médium entre muitos outros, os quais pelo seu atraso moral não tiram grande vantagem da mediunidade. Por conseqüência, não há, neste caso, nem favor, nem privilégio, mas unicamente recompensa. Se a jovem deixasse de ser digna, imediatamente ficaria privada dos bons guias, correndo a rodeá-la uma multidão de maus Espíritos.([54])

A Música Espírita

O presidente da Sociedade Espírita de Paris fez-me recentemente a honra de pedir a minha opinião acerca do estado atual da música e das modificações que poderiam fazer-lhe as crenças espíritas.

Se não acedi imediatamente ao benévolo e simpático apelo, acreditai que motivos de força maior deram causa à minha abstenção.

Os músicos são homens como os outros e portanto falíveis e pecáveis.

Não fiquei isento de fraquezas, e se Deus me concedeu longa vida, para que tivesse tempo de arrepender-me, tem-me embaraçado neste intuito a vanglória de sucessos, a complacência de amigos, a lisonja de aduladores.

Um maestro é uma potência nesse mundo, onde o prazer representa um grande papel. Aquele cuja arte consiste em deleitar o ouvido e em tocar o coração, está à beira de um abismo, onde descamba, pobre infeliz! Embriaga-se com a embriaguez dos outros; os aplausos enchem-lhe os ouvidos, e lá vai ele, sem mesmo procurar evitá-lo, atirar-se àquele abismo. Entretanto, apesar dos meus erros, eu tinha fé em Deus e acreditava na alma, que palpitava dentro de mim e, desprendida da sua prisão sonora, reconheceu-se em meio das harmonias da criação, confundindo a sua prece com as que se elevam da natureza ao infinito, das criaturas ao Ente incriado.

Sinto-me feliz pelo sentimento que provocou a minha vinda entre os espíritas, porque foi ditada pela simpatia, e se, a princípio, me atraiu a curiosidade, deveis ao meu reconhecimento a apreciação sobre o tema, que me foi proposto.

Já estava resolvido a falar, acreditando saber tudo, quando me caiu a venda do orgulho, fazendo reconhecer a minha ignorância.

Emudeci; porém, fiquei atento; instruí-me e aqui volto. Quando às palavras de verdade emitidas pelos vossos instrutores se juntarem a reflexão e a meditação, podereis dizer: o grande Rossini, criador de tantas obras-primas, segundo os homens, não fêz senão colher algumas pérolas, as menos perfeitas, do escrínio musical, criado pelo Mestre dos mestres.

Rossini enfileirou notas, compôs melodias, bebeu na taça que contém todas as harmonias, roubou algumas centelhas de fogo sagrado: mas este fogo, nem foi ele nem outros que o criaram! Nós não inventamos; mal copiamos no grande livro da natureza, e a multidão aplaude, quando não deformamos a partitura.

Uma dissertação sobre a música celeste!

Quem ousará tomar semelhante compromisso? Que Espírito humano tem o poder de fazer vibrar a matéria por aquela deliciosa arte? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderá apanhar-lhe as variações infinitas? Quem possuirá nesse grau o sentimento da harmonia?

Não: o homem ainda não está em semelhantes condições!

Mais tarde! ... Muito mais tarde! ...

Entretanto, eu virei, talvez breve, satisfazer o vosso desejo e dar-vos a minha apreciação acerca do estado atual da música notando as transformações, os progressos, que ela poderá fazer debaixo da influência do Espiritismo.

Hoje ainda é cedo. O assunto é vasto: já o estudei, mas ainda excede a minha compreensão. Quando for mestre, se chegar a sê-lo, ou antes, quando já tenha compreendido, tanto quanto o permitir o estado do meu Espírito, satisfazer-vos-ei; esperai, portanto, um pouco mais.([55])

Se só o músico pode falar da música do futuro, cumpre-lhe fazê-lo magistralmente, e Rossini não quer fazê-lo como estudante.

Rossini (Médium, Sr. Desliens)

O silêncio que guardei acerca da questão proposta pelo Mestre da doutrina espírita, já o expliquei. Era preciso, antes de aflorar o difícil assunto, que me recolhesse, procurasse recordar-me e condensasse os elementos que estavam à mão.

Eu não tinha de estudar música, mas somente classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar exata idéia do modo como compreendo a harmonia. Este trabalho, que me foi bem difícil, está feito e hoje venho submetê-lo à apreciação dos espíritas.

É difícil definir o que seja a harmonia; muitas vezes a confundem com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas e das vibrações de instrumentos que reproduzem aquele arranjo. A harmonia, porém, não é isto, assim como a chama não é a luz. A chama provém da combinação de dois gases e é tangível. A luz que projeta é um efeito daquela combinação e não a chama; não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa.

É o mesmo com relação à harmonia, que resulta de um arranjo musical; é um efeito igualmente superior à causa. A causa é material e tangível, o efeito é sutil e intangível. Pode conceber-se a luz sem chama, bem como harmonia sem música.

A alma é apta para perceber a harmonia, independentemente do concurso de instrumentos, como o é para ver a luz, independentemente de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo da alma; quanto mais desenvolvido está, mais ele percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma, por ela percebida na razão do desenvolvimento desse sentido.

Fora das coisas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; têm-se tanto mais, quanto mais esforços se empregam para que sejam adquiridas. Se as comparo, é para melhor fazer-me compreender e também porque estes dois sublimes gozos da alma são filhos de Deus, e, conseguintemente, irmãos.

A harmonia do espaço é muitíssimo complexa: muitos graus eu já conheço, mas quantos ainda me escapam no éter infinito! Aquele que estiver colocado em certo plano de percepções fica extasiado ao ouvir estas diversas harmonias, que, se estivessem reunidas, constituiriam a mais insuportável cacofonia; ao passo que, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau.

Essas harmonias são elementares e grosseiras, nos graus inferiores; mas levam ao êxtase, nos graus superiores. A que não agrada a um Espírito, cujas percepções são sutis, agrada a outros, que as têm, grosseiras. E quando é dado a um Espírito inferior apreciar as maravilhas das harmonias superiores, toma-o o êxtase e entra-lhe na alma a prece. O entusiasmo arrebata-o às esferas elevadas do mundo moral e ele vive uma vida superior à sua, desejando continuar a viver sempre assim. Quando, porém, deixa de afagá-lo aquela harmonia, ele desperta, ou, antes, dorme; em todo o caso desce à realidade da sua situação e, sentindo-se pesaroso, eleva ao Senhor uma prece, pedindo forças para tornar a subir, o que serve para estimulá-lo.

Não tentarei explicar os efeitos musicais que o Espírito provoca quando atua no éter. É certo, porém, que o Espírito provoca os sons que quer, mas não pode querer o que não sabe.

Portanto aquele que muito já compreende, que possui a harmonia e dela está saturado, que se regozija com o seu íntimo sentido; — este nada impalpável, esta abstração, que é a concepção da harmonia, — atua, quando quer, no fluido universal, que facilmente reproduz o que ele concebe e quer. Sob a ação da vontade, o éter vibra a harmonia, que o Espírito traz em si, concretiza-se por assim dizer, e exala-se doce e suave, como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, produz o estampido do raio, ou sussurra como a brisa.

A harmonia é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; entrecortada, como um suspiro, ou compacta como um prado de relva; precipitada como a catadupa, ou plácida como um lago; murmurante como o ribeiro, ou marulhosa como a torrente.

Às vezes tem a aspereza agreste das montanhas, outras a frescura amena de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica, como a noite, alegre e prazenteira qual o dia; é caprichosa como a criança e protetora como um pai; desordenada qual a paixão, límpida qual o amor e grandiosa como a natureza. Quando toca a este ponto, confunde-se com a súplica, glorifica a Deus e arrebata a quem a produz ou concebe.

Comparação! Comparação! Por que somos obrigados a empregar-te? Pela simples razão de precisarmos recorrer à natureza tangível, para pedir-lhe as grosseiras imagens, único meio de conceber-se a sublime harmonia, em que se deleita o espírito. E, apesar das comparações, mal se pode fazer compreender essa abstração, que é um sentimento, quando é causa, e sensação, quando é efeito.

O Espírito, que tem o sentimento da harmonia, é como o que tem o maior grau de saber; goza incessantemente da riqueza, que amontoou. O homem inteligente, que ensina a ciência aos que a ignoram, sente a felicidade de ensinar, porque sabe que faz felizes os que instrui. O que faz ressoar o éter, produzindo os acordes harmoniosos, que tem em si, sente a felicidade de ver satisfeitos os que o escutam.

A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira enleva-o, a segunda esclarece-o, a terceira eleva-o. Quem as possui em sua plenitude tem a pureza que resulta da união das três.

Espíritos puros, que tendes a excelsa felicidade, descei às nossas trevas e esclarecei-nos o caminho: mostrai-nos a via que trilhastes para que possamos também segui-la.([56]) Quando penso que esses Espíritos, cuja existência já posso compreender, são seres infinitos, átomos em face do Senhor universal e eterno, a razão se me ofusca, pensando na grandeza de Deus e na felicidade infinita que Ele tem em si mesmo, pelo fato da sua pureza infinita; pois que tudo o que a criatura adquire são parcelas que emanam do Criador. Ora se esse átomo pode fascinar pela vontade, pode arrebatar pela suavidade e deslumbrar pela virtude, quanto deverá produzir a eterna e infinita fonte de onde emana? Se o Espírito, ser criado, pode haurir em sua pureza tanta felicidade, que ideia deve fazer-se de que haure o Criador em sua pureza absoluta? Eterno problema!

O compositor, que concebe a harmonia, a traduz na linguagem grosseira que se chama música, condensa a ideia e a escreve. O artista aprende a forma e toma o instrumento, que lhe permite representar a ideia. O ar, posto em movimento pelo instrumento, leva-a aos ouvidos que a transmitem à alma. Mas o compositor é impotente para exprimir completamente a harmonia que concebe, pela insuficiência da linguagem de que dispõe o executor, e igualmente não pode compreender toda a ideia escrita, assim como o instrumento indócil, de que se serve, lhe não permite traduzir tudo o que compreendeu. O ouvido é impressionado pelo ar grosseiro do ambiente e a alma recebe, por um órgão rebelde, a péssima tradução da ideia, que borbulhou na do maestro. Esta era o seu sentido íntimo e, embora descorada pelos agentes da instrumentação e da percepção, ainda produz sensações nos que a ouvem traduzir. Estas sensações são a harmonia. A música é que as produz e elas são o seu efeito.

A música põe-se ao serviço do sentimento para produzir a sensação. O sentimento, no compositor, é a harmonia; a sensação do ouvinte, é também a harmonia, com a diferença de ser concebida por um e recebida por outro.([57])

A música é o médium da harmonia; ela recebe e transmite, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Ela transmite mais ou menos descorada, conforme é bem ou mal executada, como o refletor transmite a luz mais ou menos viva, conforme o seu brilho e como o médium transmite, mais ou menos fielmente, os pensamentos nos Espíritos, segundo a sua passividade.

E agora, que já deve ter sido bem compreendida a harmonia; que já se sabe ser ela concebida pela alma e transmitida à alma, é fácil conhecer a diferença, que vai da vossa para a do espaço. Aí, na Terra, tudo é grosseiro; o instrumento de tradução e o de percepção; aqui, no espaço, tudo é sutil; vós tendes o ar, nós o éter; vós o órgão que obstrui e encobre, nós a percepção direta, que a colhe pura. Aí o autor precisa de tradutor; aqui dispensa intermediário e fala numa língua, que exprime todas as concepções. E, no entanto, ambas procedem da mesma origem, como a luz da Lua tem a mesma que a do Sol.

A harmonia da Terra é o reflexo da do espaço e é tão indefinível como a felicidade, o medo, a cólera; é um sentimento. Para compreendê-lo, é preciso possuí-lo e para possuí-lo cumpre tê-lo adquirido.

O homem alegre não sabe explicar a alegria, o medroso não sabe explicar o temor. Podem dizer o que lhes causou estes sentimentos, mas não sabem explicá-los. O fato que causa a alegria de um, não a produz em outro; o objeto que provoca medo a um, pode despertar noutro a coragem. As mesmas causas produzem efeitos desiguais, ao contrário do que se dá em física, mas de conformidade com o que se dá em metafísica. Assim acontece porque o sentimento pertence à alma e as almas diferem em sensibilidade, impressionabilidade e liberdade.

A música, causa secundária da harmonia percebida, impressiona e provoca o transporte em determinadas almas, mas encontra outras frias e indiferentes. É que as primeiras estão em estado de receber a impressão que produz a harmonia e as outras, não; ouvem os sons do ar vibrado, mas não compreendem a ideia neles encerrada. Estes sentem tédio e dormem enquanto aquelas se entusiasmam e choram.

Evidentemente, o homem que aprecia as maravilhas da harmonia é mais elevado e apurado do que aquele que não pode concebê-la. A sua alma, mais apta para sentir, desprende-se mais facilmente, e a própria harmonia ajuda-a a desprender-se. Ela transporta-a em suas asas e permite-lhe ver melhor o mundo moral. De tudo isso se deve concluir que a música é essencialmente moralizadora por levar a harmonia ao seio das almas, que por ela se elevam e engrandecem.

A influência da música na alma e no seu progresso moral é proclamada por todos; mas ignoram, geralmente, o motivo dessa influência. A explicação consiste nisto: a harmonia põe a alma sob o império de um sentimento, que a desmaterializa. Este sentimento existe num determinado grau, mas apura-se sob a ação de outro mais elevado. Quem não possui este, chegará a ele mais cedo ou mais tarde; acabará por deixar-se dominar por ele e por ele ser arrastado ao mundo ideal, onde esquece, por momentos, os prazeres grosseiros que preferia à harmonia divina.

E uma vez que se considere resultar a harmonia do estado do Espírito, deduzir-se-á que, se a harmonia exerce uma feliz influência sobre a alma, a alma, que a concebe, exerce também influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que tem a suma posse da harmonia, produzirá obras-primas, capazes de impressionar as mais remissas e comovê-las. Se o compositor é rasteiro, como poderá traduzir a virtude, que desdenha o belo, que ignora o grande, que não compreende?

As suas composições serão o reflexo dos próprios gostos sensuais, da sua leviandade, da sua indiferença. Serão ora licenciosas, ora obscenas, cômicas e até burlescas. Comunicarão aos ouvintes os sentimentos que concentram, e perverte-los-ão em vez de concorrer para o seu aperfeiçoamento.

O Espiritismo, moralizando os homens, exercerá necessariamente grande influência na música. Há de produzir mais compositores virtuosos, que comunicarão as virtudes por meio das composições. Dirá menos e chorará mais: a hilariedade será substituída pelas comoções, a fealdade pela beleza, o cômico pelo heróico. Além disso, os ouvintes que o Espiritismo houver disposto a receber facilmente a harmonia, fruirão, ouvindo a música séria, um verdadeiro encanto. Desdenharão a música frívola e licenciosa, que é o gozo das massas populares. Quando o grotesco e obsceno forem esquecidos pelo belo e pelo bom, desaparecerão os compositores daquela ordem, porque os seus ouvintes nada lucrarão e é para lucrar que eles descem ao terreno lodoso.

Sim, o Espiritismo terá grande influência sobre a música! Como não ser assim? O seu desenvolvimento depurando-a transformará a arte. A sua origem é divina, a sua força conduzi-lo-á a toda a parte onde houver homens para amar, para elevar-se, para compreender. Tornar-se-á o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas, hão de lhes pedir inspirações e ele lhe há-de prestar, porque é opulento e inesgotável.

O Espírito do maestro Rossini, em nova existência, voltará a cultivar a arte, que considera a primeira de todas, e tomará por símbolo e inspirador das suas composições o Espiritismo.([58])

Rossini (Médium, Sr. Nivart)

A Estrada da Vida

A questão da pluralidade de existências preocupa, há longo tempo, os filósofos e mais de um viu, na preexistência da alma, a única solução possível dos mais importantes problemas da psicologia. Sem aquele princípio, eles se vêem peados a cada passo e retidos por barreiras, que somente pela pluralidade de existências podem ser transpostas.

A maior objeção que se pode levantar contra essa doutrina é o esquecimento das anteriores existências. Na verdade, a sucessão de existências inconscientes umas da outras, o abandono de um corpo para tomar outro, sem haver memória do passado, equivale ao nada, porque seria o nada para o pensamento; seriam outros tantos pontos de partida, novos, sem ligação com os precedentes; seria um rompimento, um constante rompimento com todas as afeições, que tornam encantadora a vida presente e a mais doce e consoladora esperança do futuro: seria enfim a negação de qualquer responsabilidade moral. Semelhante doutrina seria tão inadmissível e tão incompatível com a justiça de Deus, como a de uma única existência, com a perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas temporárias.

Compreende-se bem que não possam admiti-la aqueles que fazem ideia assim da reencarnação.

O Espiritismo, porém, não no-la apresenta com esse aspecto.

A existência espiritual da alma, ensina ele, é a sua existência normal, com indefinida lembrança retrospectiva. As existências corporais não são senão intervalos, curtas estações na vida espiritual e a soma de todas essas estações não passa de uma mínima da existência normal, absolutamente como se, numa viagem de muitos anos, se parasse, de tempos em tempos, por algumas horas.

Se durante as existências corporais parece haver solução de continuidade, por falta de memória ou lembrança do passado a ligação se restabelece durante a vida espiritual, que não tem interrupção. A solução de continuidade não existe, realmente, senão para a vida corpórea exterior e de relação e, aqui, a ausência de lembrança prova a sabedoria da Providência, que não quis que o homem estivesse muito afastado da vida real, em que tem deveres a cumprir. No estado de repouso do corpo, porém, no sono, a alma readquire, mais ou menos, a vista retrospectiva e assim restabelece a cadeia, somente interrompida no estado de vigília.([59])

Pode objetar-se, perguntando: que proveito se colhe das existências anteriores, uma vez que se não tem consciência das faltas cometidas? O Espiritismo responde, primeiramente, que a lembrança das existências desgraçadas, acumuladas às misérias da vida presente, tornaria esta ainda mais penosa. Foi, pois, um excesso de sofrimento que Deus nos quis poupar. Se assim não fora, qual seria, muitas vezes, a nossa humilhação, tendo presente o que fomos! Quanto ao proveito, inútil é, para melhorarmos, aquela lembrança. Em cada existência damos alguns passos para diante, adquirimos algumas qualidades e despojamo-nos de imperfeições. Cada uma delas é, pois, um novo ponto de partida, em que somos o que nós tivermos feito, em que atendemos ao que somos, sem cuidar do que fomos.

Se, numa existência anterior, fomos antropófagos, que nos importa saber, se já não o somos? Se tivemos uma falta qualquer, de que nos não resta mais sinal, vale isto por questão terminada, de que não temos mais necessidade de tratar. Suponhamos, pelo contrário, que tivemos uma falta, de que só nos corrigimos em parte; certamente, o resto não combatido nos acompanhará na nova existência, em que nos poderemos corrigir. Tomemos um exemplo. Um homem foi assassino e ladrão; castigado na vida corpórea, e na espiritual, arrependeu-se e corrigiu-se do primeiro arrastamento, mas não do segundo; na seguinte existência será somente ladrão, talvez um grande ladrão, mas não um assassino; mais um passo, ele não será mais senão um fraco ladrão; ainda mais, e já não roubará, embora ainda sinta o desejo, que a consciência lhe combate; um último esforço, e tendo desaparecido todo o sentimento do vício, será um modelo de probidade. De que lhe serve para isso saber o que foi? A lembrança de ter acabado no cadafalso não lhe serviria senão de tortura e de humilhação perpétuas. Aplicai este raciocínio a todos os vícios, a todos os erros e reconhecereis que a alma se aperfeiçoa passando pelo cadinho das encarnações.

Não será mais digno da soberana justiça entregar o Senhor ao homem o seu próprio destino, só dependente dos esforços que fizer por melhorar, do que criar uma alma ao mesmo tempo que o corpo, condená-la a tormentos eternos, por erros passageiros, sem lhe dar os meios de correção?

Pela pluralidade das existências, o seu futuro está nas próprias mãos; se gasta muito tempo em melhorar, sofre as consequências da demora; é a suprema justiça; mas a esperança nunca o deixa. A seguinte comparação nos faz melhor compreender as peripécias da vida da alma. Suponhamos uma longa estrada, em cujo percurso se encontram, de distância em distância, mas com intervalos desiguais, florestas que é preciso atravessar. Na entrada de cada floresta, a estrada larga e bela é interrompida e só na saída é que continua.

Um viajante segue por aquela via e chega à primeira floresta; aí, porém, não encontra caminho, mas um décalo, onde se perde. A claridade do sol não penetra a espessa abóbada formada pelas árvores; ele caminha sem rumo; porém, afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da mata, mas chega alquebrado pelo cansaço, com as carnes rasgadas pelos espinhos, os pés feridos pelas pedras. Ali torna a encontrar o caminho e a luz, e prossegue em sua marcha tratando de curar-se das feridas. Mais longe depara com a segunda floresta, onde o esperam as mesmas dificuldades; já tem, porém, um pouco de experiência e rompe o matagal sem ferir-se muito. Noutra, encontra um lenhador, que lhe indica a direção a seguir e o impede de perder-se.

Daí por diante, aumenta a sua habilidade, os obstáculos são mais facilmente vencidos e, seguro de encontrar na saída o caminho desbravado, alenta-se com esta confiança. Finalmente, já possui a precisa orientação para achá-lo. O caminho termina no cume de alta montanha, de onde ele distingue toda a caminhada que fez, desde o ponto de partida, assim como vê as florestas que atravessou e recorda as vicissitudes porque passou. Essa recordação, porém, não lhe é penosa, visto como já chegou ao fim da viagem; é como o velho soldado que, na calma do lar doméstico, recorda as batalhas a que assistiu.

As florestas esparramadas pelo caminho são para ele pontos negros numa fita branca; diz: — "Quando estava ali, principalmente na primeira, como me pareciam longas! Parecia-me que não chegava ao fim; tudo era gigantesco e inextricável em torno de mim. E quando penso que, sem aquele bom lenhador que me ensinou o caminho, ainda andaria hoje por lá! Mas agora, que as contemplo daqui, como me parecem pequenas aquelas florestas, tão pequenas, que me bastariam alguns passos para as poder atravessar! E quanto mais as contemplo e lhes reparo nas minúcias, mais falso me parece o juízo que fiz delas".

Aparece-lhe então um velho, que lhe fala assim:

— Filho, eis-te no termo da viagem; mas o repouso indefinido causar-te-ia brevemente mortal enjoo e far-te-ia ter saudades daquelas vicissitudes porque passastes e que davam atividade ao corpo e à alma. Vês daqui um sem número de viajantes no caminho que percorreste, os quais, como tu, correm o perigo de perder-se. Tens a experiência, nada mais temes; vai procurá-los e esforçar-te por guiá-los com os teus conselhos, a fim de que cheguem mais cedo.

— Com sumo gosto — responde o homem — mas qual a razão de não haver um caminho reto do ponto de partida até aqui? Isso pouparia aos viajantes o incômodo de atravessar aquelas abomináveis florestas.

— Filho — torna-lhe o velho — pensa bem e verás que muitas são as pessoas que as evitam; aquelas que, tendo já adquirido a necessária experiência, sabem escolher um caminho mais direto e mais curto; essa experiência, porém, é o fruto do trabalho durante as primeiras travessias, de maneira que eles não vêm ter aqui senão por obra de seus méritos.

Que seria de ti se não houvesse experimentado? A atividade que precisaste desenvolver, os recursos de imaginação que te foram precisos para abrires o caminho, aumentaram-te os conhecimentos e desenvolveram-te a inteligência. Sem isto ainda serias tão insciente como no dia da partida. E, ainda, esforçando-te por vencer os empecilhos, contribuístes para o melhoramento das florestas, que atravessastes. O que fizeste é pouco, é imperceptível; mas pensa nos milhares de viajantes que têm feito outro tanto e que, trabalhando para si, trabalham sem que o saibam, pelo bem comum. Justo é que recebam o salário do trabalho, no descanso que aqui gozam. Que direito haveriam a esse descanso se nada tivessem feito?

— Meu pai — responde-lhe o viajante — em uma destas florestas encontrei um homem, que me disse: "Há ali um abismo, que é preciso vencer de um salto; mas, entre mil viajantes, só um o transpõe, os outros caem no fundo duma fornalha ardente e ficam perdidos sem remissão". Eu, porém, não vi tal abismo.

— Não existe o abismo, meu filho; a não ser assim, seria uma cilada abominável armada aos viajantes, que vêm à minha casa. Bem sei que muitas são as dificuldades por vencer; mas sei também que cedo ou tarde as vencerão.

— Se eu tivesse criado impossibilidades para um só homem que fosse, sabendo que ele sucumbiria, teria praticado uma crueldade; quanto mais se as tivesse criado para tantos. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vou dar-te. Olha para a estrada, no intervalo das florestas; entre aqueles que por ela transitam vês uns que marcham lentamente com ar alegre, vês aqueles amigos que se perderam de vista no labirinto, como são felizes de se encontrarem na saída; mas, ao lado deles há outros que se arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a piedade dos transeuntes, porque sofrem cruelmente das feridas que, por culpa sua, fizeram através dos espinhais; serão curados e isto lhes servirá de lição para quando tiverem de atravessar nova floresta, da qual sairão menos contundidos.

— O abismo é a figura dos males que sofrem, e dizendo que em mil só um o vence, o homem teve razão, porque infinito é o número dos imprudentes. Claudicou porém ao afirmar que uma vez caído, ninguém logra sair daquele báratro. Há sempre uma saída para aqueles que querem vir a mim. Vai, meu filho, vai ensinar a saída aos que estão no fundo do poço; vai alentar aqueles que se estão ferindo no trajeto, vai ensinar o caminho àqueles que estão atravessando a floresta.([60])

A estrada é a figura da vida espiritual da alma, em cujo percurso o viajante é mais ou menos feliz; as florestas são as existências corpóreas, em que ele trabalha no próprio e no geral progresso; se alcançou o termo da viagem e volta para ajudar aqueles que ficam para trás, que ainda se debatem, é o anjo da guarda, missionário de Deus, em cuja presença encontra felicidade, como a encontra também na atividade, na prática do bem e na obediência ao Supremo Senhor.

As Cinco Alternativas da Humanidade

Bem poucos são aqueles que não cuidam do dia de amanhã. Se inquieta o que possa vir depois de um dia de vinte e quatro horas, com sobrada razão deve preocupar o que será depois do grande dia da vida, porque não se trata de alguns instantes, mas da eternidade.

Viveremos ou não depois daquele dia? Não há que fugir; é questão de vida ou de morte, é a suprema alternativa!...([61])

Se se interroga o senso íntimo da quase universalidade dos homens, todos responderão: "viveremos".

Esta esperança é para eles uma consolação. Entretanto, esforça-se uma pequena parte, sobretudo depois de algum tempo, por provar que não viveremos. Esta escola faz prosélitos, força é confessá-lo e principalmente no seio daqueles que, temendo a responsabilidade do futuro, acham mais cômodo gozar do presente, sem constrangimento, sem se perturbar com a perspectiva das consequências. Não passa porém isto de opinião de um pequeno número.([62])

Se vivermos, como havemos de viver? Em que condições viveremos? Aqui os sistemas variam, segundo as crenças religiosas e filosóficas. Entretanto, todas as opiniões sobre o futuro dos homens podem ser reduzidas a cinco alternativas principais, que vamos, sumariamente, analisar, a fim de ser mais fácil a comparação e cada um escolher aquela que lhe parecer mais racional e melhor corresponder às suas aspirações pessoais e às necessidades da sociedade.

As cinco alternativas são aquelas que resultam das doutrinas do materialismo, do panteísmo, do deísmo, do dogmatismo e do Espiritismo.

1.° — Doutrina Materialista

A inteligência do homem é uma propriedade da matéria; nasce e morre com o organismo. O homem é tão nada antes, como é nada depois da vida corporal.

Consequências: não sendo senão matéria, o homem não tem de reais e de invejáveis senão os gozos materiais; as afeições morais são efêmeras, os laços morais a morte os rompe para sempre; as misérias da vida não têm compensação; o suicídio deve ser o fim racional e lógico da existência, quando não há esperança de melhoria para os sofrimentos. É inútil qualquer constrangimento para vencer ruins inclinações; deve viver para si, o melhor possível, enquanto dura a vida terrestre; é estupidez contrariar-se e sacrificar comodidades e bem-estar por amor de alguém, isto é, por quem há de ser aniquilado também; os deveres sociais ficam sem fundamento, o bem e o mal são coisas inventadas e a contenção social fica reduzida à ação material da lei civil.

Observação. Não será talvez inútil lembrar aos nossos leitores algumas passagens de um artigo, que publicamos acerca do materialismo na Revue de agosto de 1868.

"O materialismo, escrevíamos, firmando-se como nunca o fizera em época alguma, dando-se como regulador supremo dos destinos morais da humanidade, assombrou as massas pelas consequências inevitáveis das suas doutrinas com relação à ordem social. Por essa razão, provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma enérgica reação, que deve dar-lhe a medida do quanto está longe de possuir simpatias tão gerais como supõe, e do quanto se ilude, esperando poder um dia dar leis ao mundo.

"É incontestável que as crenças espiritualistas do tempo passado são insuficientes para o atual, não se acham no nível intelectual da nossa geração e são, em muitos pontos, contraditadas pelos dados seguros da ciência; sustentam ideias incompatíveis com as necessidades positivas da sociedade moderna; incorrem, além disso, na grande falta de impor-se pela fé cega e proscrever o livre exame.

"Daí, sem a menor dúvida, o desenvolvimento da incredulidade na maior parte dos homens.

"Naturalmente que se eles fossem criados e educados com ideias mais tarde confirmadas pela razão, nunca seriam incrédulos. Quantos, aceitando o Espiritismo, nos têm dito: "se nos tivessem sempre apresentado Deus, a alma e a vida futura de maneira racional, nunca teríamos duvidado!" Por se haver em princípio recebido má ou falsa aplicação, é razão para que o rejeitem?

"As coisas espirituais são como a legislação e todas as instituições; precisam acomodar-se aos tempos, sob pena de sucumbirem. Em vez de apresentar algo melhor que o velho espiritualismo, preferiu o materialismo tudo suprimir, dispensando-se de procurar a verdade, o que parecia mais cômodo àqueles a quem era importuna a idéia de Deus e da vida futura.

"Que diriam de um médico que, julgando o regime de um convalescente insuficiente, lhe prescrevesse absoluta abstinência?

"O que se admira na maior parte dos materialistas da escola moderna é o espírito de intolerância, levado aos derradeiros limites, quando são os que mais clamam pelo direito de liberdade de consciência!...

"...Há, na atualidade, de parte de um determinado partido, leva de broquéis contra as ideias espiritualistas em geral, das quais naturalmente participa o Espiritismo. O que procuram, não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos molesto, porque ninguém lhe precisa prestar contas.

"Ninguém nega a esse partido o direito de opinião e o de discutir as dos outros; mas não se lhe pode autorizar a pretensão, bem singular de parte de homens que se dão por apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam a seu modo e discutam as doutrinas de que não compartilham. Intolerância por intolerância, tanto vale a das velhas crenças, como a do moderno materialismo..."([63])

2.° — Doutrina Panteísta

O princípio inteligente (alma), independente da matéria, está espalhado por todo o universo, mas individualiza-se em cada ser durante a vida, e volta, pela morte, à massa comum, como voltam ao oceano as águas da chuva.

Consequências. Sem individualidade e sem consciência de si mesmo, o ser é como se não existisse. As consequências morais desta doutrina são exatamente as mesmas do materialismo.

Observação. Um determinado número de panteístas admite que a alma, aspirada, ao nascer, do todo universal, conserva a sua individualidade por tempo indefinido, não voltando à massa geral senão depois de ter alcançado o último grau da perfeição. As consequências desta variedade de crenças são absolutamente as mesmas que as da doutrina panteísta, propriamente dita, porque é completamente inútil todo o trabalho para adquirir conhecimentos, dos quais se perderá a consciência, aniquilando-se a alma depois de um tempo relativamente curto.

Se o espírito recusa a concepção panteísta em geral, sobe de ponto a repugnância em a admitir, quando se vem dizer que, ao alcançar a ciência a perfeição suprema, perde ele o resultado do seu esforço e desaparece a individualidade.([64])

3.° — Doutrina Deísta

O deísmo compreende duas ordens bem distintas de crentes: os deístas independentes e os providenciais. Os primeiros creem em Deus e admitem todos os seus atributos como criador.

Deus, dizem, estabeleceu as leis gerais, que regem o universo; mas essas leis, uma vez estabelecidas, funcionam por si sós, sem que o seu autor cuide delas. As criaturas fazem o que querem ou o que podem, sem que Ele com isso se importe.

Não há providência, e desde que Deus não se ocupa conosco, nada temos que lhe pedir e menos que lhe agradecer. Quem nega a intervenção da providência na vida do homem, faz como a criança, que se julga com bastante capacidade para dispensar a tutela, os conselhos e a proteção dos pais; ou pensa que estes não se devem mais ocupar com ela, desde que lhe deram o ser. Sob pretexto de glorificar o Senhor, muito grande, dizem, para se abaixar até às criaturas, fazem dele um grande egoísta, rebaixando-o ao nível dos animais, que abandonam os filhos aos azares da vida.

Esta crença é filha do orgulho e encerra o pensamento de libertar-se de um poder superior, que fere o amor próprio de cada um. Ao passo que uns recusam reconhecer aquele poder, outros aceitam a sua existência, condenando-o porém à nulidade.

Há uma diferença essencial entre o deísta independente, de que nos temos ocupado, e o deísta providencial; este crê não somente na existência e no poder criador de Deus, como também em sua intervenção incessante na criação; não admite, porém, o culto externo, nem o dogmatismo atual.

4.° — Doutrina Dogmática

A alma, independente da matéria, é criada para cada ser, mas sobrevive à morte e conserva a sua individualidade depois dela. O seu destino é, desde aquele momento, irrevogavelmente fixado; os seus progressos ulteriores são nulos, sendo, por conseguinte, intelectual e moralmente, e para sempre, o que era quando acabou na vida. A do mau, sendo condenada a castigos eternos e irremissíveis, no inferno, nada colhe pelo arrependimento; Deus recusa-lhe a possibilidade de reparar o mal que fez. A do bom é recompensada com a vista de Deus e com a perpétua contemplação no céu. Os casos de condenação ou de salvação ficam à decisão ou juízo de homens falíveis, a quem foi dado o poder de condenar e absolver.

Nota. Se a esta última proposição se objetar, que Deus julga em última instância, responder-se-á, perguntando: qual é, então, o valor da decisão pronunciada pelos homens, pois que pode ser anulada?

Separação definitiva e absoluta dos condenados e dos eleitos. Inutilidade de socorros morais e de consolações aos condenados. Criação de anjos ou almas privilegiadas, isentas de todo o trabalho para chegarem à perfeição, etc., etc.

Consequências: Esta doutrina deixa sem solução os seguintes graves problemas:

1.° — Donde vêm as disposições inatas, intelectivas e morais que fazem os homens nascer bons ou maus, inteligentes ou idiotas?

2.° — Qual o destino dos que morrem na infância? Por que hão de alcançar a bem-aventurança, sem o trabalho a que estão sujeitos os outros por longos anos? Por que hão de ser recompensados, sem nenhum bem terem feito, ou hão de ser privados da felicidade perfeita, sem terem feito o mal?

3.° — Qual o destino dos loucos e idiotas, que não têm consciência dos seus atos?

4.° — Onde o cunho da justiça nas misérias e enfermidades de nascença, quando não são resultantes de nenhum ato da vida presente?

5.° — Qual o destino dos selvagens e de todos os que morrem, por força maior, no estado de inferioridade moral, em que os colocou a natureza, se não lhes é permitido progredir ulteriormente?

6.° — Por que criou Deus uns mais favorecidos que outros?

7.° — Por que chamar da vida, prematuramente, os que poderiam progredir, se vivessem mais tempo, uma vez que não lhes é dado fazê-lo depois da morte?

8.° — Por que a criação de anjos, sem nenhum trabalho elevados à perfeição, quando o homem é submetido às mais rudes provas, em que tem mais provas, em que tem mais probabilidades de sucumbir do que sair vitorioso, etc., etc.?([65])

5.° — Doutrina Espírita

O princípio inteligente é independente da matéria. A alma individual preexiste e sobrevive ao corpo. O ponto de partida é o mesmo para todas as almas, sem exceção; todas são criadas simples e ignorantes e estão submetidas à lei do progresso indefinido. Nada de criaturas privilegiadas ou mais favorecidas que outras; os anjos são almas elevadas à perfeição, depois de terem passado, como as outras, por todos os graus da inferioridade.

As almas ou Espíritos progridem, mais ou menos rapidamente, em virtude do seu livre-arbítrio e na medida do seu trabalho e boa vontade. A vida espiritual é a normal; a corpórea não passa de uma fase transitória da vida do Espírito, enquanto este reveste o invólucro material de que se despoja pela morte. O Espírito progride no estado corporal e no espiritual; aquele, porém, lhe é necessário até que tenha alcançado determinado grau de perfeição.

Desenvolve-se pelo trabalho a que é sujeito pelas próprias necessidades e adquire, por esse trabalho, conhecimentos práticos especiais.

Sendo insuficiente uma única existência corpórea para adquirir todas as perfeições, toma um corpo tantas vezes quanta lhe é necessário, trazendo, quando se reencarna, o adiantamento adquirido nas anteriores existências e na vida espiritual. Quando adquiriu no mundo tudo o que se pode aí adquirir, deixa-o, para subir a outros mais adiantados intelectual e moralmente, e menos materiais. Assim chega a criatura à perfeição de que é susceptível.

O estado feliz ou desgraçado dos Espíritos é inerente ao seu adiantamento moral; a punição é a consequência do seu endurecimento no mal, de maneira que são eles próprios que se castigam; nunca, porém, lhes é fechada a porta do arrependimento, por onde podem, quando quiserem, voltar ao caminho do bem e alcançar, com o tempo, todos os progressos.

Os que morrem ainda crianças podem ser mais ou menos adiantados, porque já têm tido outras existências, nas quais puderam praticar o bem ou fazer más obras. A morte não os isenta das provas pelas quais devem passar, porque, a seu tempo, recomeçarão nova existência, na Terra ou em mundos superiores, segundo o grau de elevação de cada um.

A alma dos loucos e idiotas é da mesma natureza das outras e a sua inteligência é muitas vezes superior, sofrendo pela insuficiência de meios para entrar em relação com as suas companheiras de existência, como os mundos sofrem por não poderem falar, senão como expiação ou prova. Abusaram da inteligência em anteriores existências e aceitaram, voluntariamente, a pena que os reduziu à impotência, para expurgo do mal que fizeram.([66])

A Morte Espiritual

A questão da morte espiritual é um dos princípios novos, que acentuam o progresso da ciência espírita. A maneira porque foi apresentada em certa teoria individual fê-la ser logo rejeitada, porque parecia implicar a perda do eu individual e assemelhar as transformações da alma às da matéria, cujos elementos se desagregam para formar novos corpos. Os seres felizes e aperfeiçoados seriam, por conseguinte, seres novos, o que é inadmissível. A equidade das penas e dos gozos futuros não é evidente senão com a perpetuidade do mesmo ser, que ascende pela escala do progresso e se apura por trabalhos e esforços da vontade.

Essas eram as consequências, que se podiam tirar a priori, daquela teoria. Devemos porém convir que ela não foi apresentada com a arrogância de um orgulhoso, que impõe o seu sistema. O autor disse modestamente que lançava sua ideia no terreno da discussão, convicto de que poderia dela sair uma verdade nova.

Na opinião dos nossos guias espirituais, ele pecou mais no fundo que na forma, dada a sua interpretação falsa e, por esta razão, nos incentivam eles a estudar seriamente a questão. É o que vamos tentar, baseando-nos na observação dos fatos decorrentes da situação do Espírito, na dupla hipótese da sua vida corpórea e da sua entrada espiritual.

No momento da morte corporal, vemos o Espírito entrar em perturbação, perdendo a consciência de si, de maneira a não poder testemunhar o último suspiro do corpo. Pouco a pouco, dissipa-se aquela perturbação, e ele se reconhece, como quem sai de um profundo sono. A sua primeira sensação é a de estar livre do fardo carnal, depois vem a de estranheza à vista do novo meio em que se acha. Fica na situação de quem foi cloroformizado para uma amputação e, nesse estado, foi transportado para outro lugar.

Ao despertar, sente-se livre do membro que o fazia sofrer, surpreendido por não mais o sentir. Pelo mesmo modo, o Espírito procura o corpo, descobre-o ao seu lado, sabe que é o seu e fica surpreendido de estar dele separado. Pouco a pouco, porém, vai tendo conhecimento da nova situação.

No fenômeno não se operou senão uma mudança da situação material; pois que, moralmente, o Espírito é o que era, há poucas horas. Nenhuma modificação sofreu; as suas faculdades, ideais, gostos, inclinações, o caráter, são os mesmos, não se operando senão gradualmente, pela influência do novo meio, as mudanças porque deve passar.

Em resumo: só houve morte para o corpo; para o Espírito a mudança não passou de um sono.

Na reencarnação, as coisas passam-se por modo oposto. No momento da concepção do corpo destinado ao Espírito, é este tomado por uma corrente fluídica que, à guisa de um laço, o puxa e o aproxima da nova habitação. Desde então ele pertence ao corpo e este pertence-lhe até à morte; mas a união completa, a posse, não se dá senão na hora do nascimento.

Desde a concepção, o Espírito fica em estado de perturbação; as ideias tornam-se confusas; as faculdades entorpecem-se e a perturbação vai crescendo à medida que o laço aperta e se torna completa nos últimos tempos da gestação, de modo que o Espírito nunca tem consciência do nascimento do corpo, como não a tem da morte dele. A partir do momento em que a criança respira, começa a dissipar-se a perturbação, as ideias vêm, gradualmente, porém em condições diferentes das da morte do corpo.

No ato da reencarnação, as faculdades do Espírito não são simplesmente entorpecidas por uma espécie de sono passageiro, como na volta à vida espiritual. Todas, sem exceção, ficam em estado latente. O fim da vida corpórea é desenvolvê-las pelo exercício; mas não podem ser todas desenvolvidas simultaneamente, porque o exercício de uma pode perturbar o de outra, ao passo que o desenvolvimento sucessivo fará com que uma sirva de apoio a outra. É, portanto, conveniente que fiquem algumas em repouso, enquanto outras entram em atividade; e é por isso que, em sua nova existência o Espírito pode apresentar-se sob aspecto completamente diverso do que foi na precedente existência, principalmente se é atrasado.

Numa, por exemplo, ativa-se a faculdade musical, e ele conceberá, perceberá e depois executará tudo o que é necessário ao desenvolvimento daquela faculdade. Noutra existência, será a vez da pintura, das ciências exatas, da poesia, etc., e enquanto se exercem estas novas faculdades, a da música estará latente, não sendo, aliás, perdido o progresso realizado. Resulta daí que quem foi artista numa existência, pode vir a ser cientista, militar, em outra; tanto como nesta pode apresentar-se nulo como artista e vice-versa.

O estado latente das faculdades, na reencarnação, explica o esquecimento das existências precedentes, ao passo que, na morte do corpo, havendo apenas um sono passageiro, o espírito, ao despertar, tem a lembrança e a consciência da vida corporal, que acaba de perder. As faculdades, que se manifestam, estão naturalmente em relação com a posição que o Espírito deve ocupar na vida corpórea e com as provas por ele escolhidas; acontece, muitas vezes, que os preconceitos sociais o deslocam, dando motivo a que algumas pessoas fiquem, intelectual e moralmente, acima ou abaixo da posição que ocupam. Este deslocamento, causando empecilhos, faz parte das provas e deve cessar com o progresso.

Numa ordem social adiantada, tudo se regula pela lógica das leis naturais e aquele que só tem aptidão para sapateiro não pode, por direito de nascimento, ser elevado à governança dos povos.(·)

Voltemos à criança.

Até o nascimento, achando-se todas as faculdades em estado latente, o Espírito nenhuma consciência pode ter de si. Na ocasião do nascimento, as que se devem exercitar não adquirem subitamente o desenvolvimento; segue este o dos órgãos, que devem servir à sua manifestação, promovendo elas, pela atividade íntima, o do órgão correspondente, como o grelo nascendo distende a casca da árvore.

Resulta daí que, na primeira infância, o Espírito não tem o gozo pleno de nenhuma das suas faculdades, quer como encarnado, quer como Espírito, sendo tão criança como o corpo, a que está ligado. Não se acha comprimido penosamente no corpo imperfeito, porque, do contrário, teria Deus feito da encarnação um suplício para os Espíritos bons e maus. Dá-se o inverso com o louco e com o idiota, cujos órgãos, não se desenvolvendo correspondentemente às faculdades, dão ao Espírito a situação de um homem amarrado de modo a não poder fazer movimento. Essa é a razão porque o Espírito de um idiota, quando invocado, dá respostas sensatas, ao passo que o de uma criança, na primeira infância ou que ainda não viu luz, é incapaz de responder.

Todas as faculdades, todas as aptidões estão em germe no Espírito, desde a sua criação, mas em estado rudimentar, como os órgãos no primeiro filete do feto informe, como todas as partes da árvore na semente. O selvagem, que mais tarde será civilizado, possui os germes que, um dia, o tornarão um sábio, um famoso artista, um grande filósofo.

À medida que tais germes chegam à maturidade, a Providência lhes dá, para a vida terrestre, um corpo apropriado à sua nova situação. E assim que o cérebro de um europeu é mais bem organizado, dotado de maior número de circunvoluções, que o de um selvagem. Para a vida espiritual, ela lhe dá um corpo fluídico, ou perispírito, mais sutil e impressionável, para as novas sensações. À medida que o Espírito progride, dota-o dos instrumentos que lhe são necessários.

No sentido de desorganização, de desagregação das partes, de dispersão dos elementos, não há morte senão para o corpo material e para o fluídico; a alma ou o Espírito não pode morrer para progredir, pois que, se morresse, perderia a sua individualidade, o que equivaleria ao nada. No sentido de transformação, de regeneração, pode dizer-se que o Espírito morre em cada encarnação, para ressuscitar com atributos novos, sem cessar de ser ele próprio.

Um campônio, por exemplo, que enriqueça e se torne potentado, trocará a choça por um palácio e as vestes rústicas por uma casaca; terá outros hábitos, outros gostos, outra linguagem e até um caráter diferente; numa palavra, morreu o campônio, substituiu os trajes rústicos pelos de um homem de sociedade; no entanto será o mesmo indivíduo, apenas transformado. Cada existência corpórea é pois para o Espírito uma ocasião de progresso maior ou menor; de volta ao mundo espiritual leva ele novas ideias, tem mais largo horizonte moral, e dotado de mais delicadas percepções, vê e compreende o que antes não via nem compreendia; a sua vista, que a princípio não alcançava além da última existência, abrange sucessivamente as passadas, como o homem, que sobe ao alto, ou que depois de se dissiparem as névoas, descortina sucessivamente mais vastos horizontes.

A cada nova estação na erraticidade se lhe desdobram aos olhos novas maravilhas do mundo invisível, porque em cada uma se rasga um véu. Ao mesmo tempo, apura-se o seu invólucro fluídico, que se torna mais livre, mais brilhante, até chegar à resplandecência. Então será quase novo como o campônio polido e transformado; o velho Espírito morreu, e, no entanto, é sempre o mesmo.

Parece-me que só assim se deve compreender a morte espiritual.([67])

A Vida Futura

A vida futura não é mais um problema, mas um fato racional, demonstrado para a quase unanimidade dos homens visto como os negadores formam insignificante minoria, embora procurem fazer grande ruído.([68]) O que escrevemos não é pois para provar essa realidade — o que seria repetir o que todos sabem. Admitida como premissa, o que queremos é examinar a sua influência na ordem social e a moralização que dela resulta, segundo a maneira como a encarem.

As consequências do princípio contrário, o niilismo, são geralmente bem conhecidas e bem compreendidas, para que precisemos repisá-las. Apenas diremos que, se se provasse a não existência da vida futura, a vida presente teria por único objetivo a manutenção de um corpo que, amanhã, ou dentro de uma hora, poderia deixar de existir, ficando tudo acabado sem remissão. A consequência lógica dessa condição da humanidade seria a concentração dos pensamentos em torno dos meios de fruir gozos materiais, sem atenção a quem quer que seja, porque não seria estulto privar-se de prazeres, impor-se sacrifícios?

Por que haveria de mortificar-se o homem para corrigir defeitos e melhorar-se?

Nada tendo a esperar, seriam inúteis o arrependimento e o remorso. A máxima predominante deveria ser a do egoísmo: o mundo é para o mais forte e para o mais esperto.

Sem a vida futura, a moral não passa de uma violência, de um código de convenções arbitrariamente imposto, sem raízes no coração. Uma sociedade fundada em semelhante crença não teria por sustentáculo senão a força e cairia logo no aniquilamento.

Não procede a objeção de haver, entre os que negam a vida futura, homens honestos, incapazes de fazer mal a seus semelhantes e suscetíveis das maiores dedicações.

Digamos desde já que para a maior parte dos incrédulos a negação do futuro não passa de fanfarronada, de jactância, espécie de orgulho de uns considerados espíritos fortes, baldos completamente de qualquer convicção firme. No foro íntimo da consciência, há uma dúvida, que os importuna e que procuram abafar, aturdindo-os. Não pronunciam o terrível nada sem um certo constrangimento, porque aquilo os priva dos frutos da inteligência e rompe-lhes as mais caras afeições.

Mais de um desses, que falam grosso, tremem ante a ideia do desconhecido e, quando se avizinha o momento fatal de o encarar de frente, bem poucos são os que dormem o último sono com a firme convicção de que não acordarão além, porque a natureza não abdica jamais dos próprios direitos.

Digamos pois que em geral a incredulidade não é absoluta. Queremos dizer: muitos são incrédulos, porque não aceitando a razão, as crenças e os dogmas religiosos, e não tendo com que os substituam para preencher o vácuo, que sentem na alma, propendem para a negação. São incréus, porque não conhecem outra solução para o problema. Incréus absolutos são raros, se os há.

Uma intuição latente e inconsciente do futuro pode pois suster certo número nos declives para o mal, e poder-se-ia citar grande quantidade de atos, mesmo da parte dos mais endurecidos, que dariam testemunho daquele sentimento secreto, que os domina a contragosto.

Convém ainda notar que, em qualquer grau de incredulidade, os homens de certa condição social são contidos por considerações humanas. A sua posição obriga-os a seguir uma norma de vida muito reservada. O que eles mais receiam é a desconsideração e o desprezo que, fazendo-os perder a posição que ocupam, os privam dos gozos, que são o seu regalo. Se não têm um fundo de virtudes, procuram parecer que o têm.

Aqueles porém que nenhuma razão possuem para respeitar a opinião pública, que zombam dela — e convir-se-á que não são poucos —, que freio poderá contê-los nos excessos das paixões brutalizantes e dos apetites grosseiros? Em que base apoiar a teoria do bem e do mal, a necessidade de reformar os maus instintos, o dever de respeitar o que é dos outros, quando nada possuem? Qual o ponto de honra para homens que se persuadem de que não passam de puros animais?

A lei, afirmam-no, os há de conter; mas a lei não é código de moral, que afete o coração; é uma força, a que se submetem e de que, quando o podem, escapam; se incorrem nos rigores dela, foi isso um insucesso ou uma imbecilidade, que procuram emendar na primeira ocasião. Aqueles que pretendem que mais merecem os incrédulos que fazem o bem, sem esperança de uma recompensa na vida futura, inexistente, aliás, para eles, sofismam sem nenhum viso de razão. Os crentes também dizem que é menos meritório o bem praticado com vistas nas vantagens futuras. Vão ainda mais longe; estão persuadidos de que o mérito pode ser completamente anulado, conforme o móvel que determinar o ato.

A perspectiva da vida futura não exclui o desinteresse das boas ações, porque a felicidade, que elas nos facultam, é subordinada ao grau de progresso moral. Ora os orgulhosos e ambiciosos, embora façam boas ações, são os menos aquinhoados. E serão tão desinteressados, como pretendem, os incrédulos que fazem o bem? Se nada esperam do outro mundo, não esperam alguma coisa deste? O amor próprio não toma parte nisso? São insensíveis aos aplausos dos homens? Seria este um raríssimo grau de perfeição e acreditamos que bem poucos são a eles impelidos exclusivamente pelo culto da matéria.

Mais séria é esta objeção: se a crença na vida futura é um elemento moralizador, por que é que os homens, a quem é ensinada desde que nascem, são maus? Em primeiro lugar, é preciso saber se eles não seriam piores sem aquela crença, e isto parece indubitável, pesando-se devidamente os resultados inevitáveis do niilismo universalizado. Em segundo lugar, não se vê, observando os diferentes graus da escala humana, desde a selvageria até à civilização, caminharem de frente o progresso intelectual e moral, melhoramento dos costumes e a mais clara ideia da vida futura? Esta ideia, porém ainda muito imperfeita, não pode exceder a influência, que necessariamente exercerá, à medida que for sendo melhor compreendida e que se adquiram noções mais justas a respeito do futuro que nos está reservado.([69])

Por mais firme que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa da alma senão no ponto de vista místico. A vida futura, pouco claramente definida, só vagamente o impressiona; é um ponto que se perde no espaço e não um meio, porque o destino lhe está irrevogavelmente fixado, e nunca lhe foi apresentado como progressivo, concluindo-se então que o homem será, por toda a eternidade, o que era, quando daqui partiu. Além disso, os quadros que se desenham, as condições que se impõem para a felicidade ou para a desgraça, estão longe de satisfazer de modo completo à razão, principalmente num século de exame, como é o nosso. Ela não se liga muito diretamente à vida terrestre; entre as duas não há solidariedade, mas um abismo; de maneira que quem se preocupa com exclusividade de uma, perde necessariamente de vista a outra.

Sob o domínio da fé cega, bastava às inspirações humanas a crença abstrata; os homens se deixavam levar. Hoje, porém, no regime do livre exame, eles querem dirigir-se por si mesmos, ver com os próprios olhos e compreender.

Agora as noções vagas da vida futura estão abaixo do espírito humano e não correspondem às necessidades criadas pelo progresso, com o desenvolvimento das ideias; tudo em torno do homem deve progredir, porque tudo se liga, tudo é solidário em a natureza: ciências, crenças, cultos, legislação, meios de ação. O movimento para diante é irresistível, porque é a lei da existência dos seres. Tudo o que ficar atrás, abaixo do nível social, será posto de lado, como trajes usados, e por fim será levado pela onda que cresce. Assim não passavam de pueris as ideias, com as quais os nossos avoengos se contentavam, acerca da vida futura; querer pois alguém impô-las ainda hoje é provocar a incredulidade.

Para ser aceita pela opinião e para exercer influência moralizadora, a vida futura deve apresentar-se como coisa positiva, quase tangível, capaz de suportar o exame; deve satisfazer à razão, sem lhe deixar sombra de dúvida. E no momento em que a deficiência de noções sobre o futuro abre a porta à dúvida e à incredulidade, que novos meios de investigação são facultados ao homem para penetrar esse mistério e fazer-lhe compreender a vida futura em sua realidade, em seu positivismo, em suas relações íntimas com a vida corpórea.

Por que tão pouco se cuida daquela vida? Entretanto ela é uma atualidade, pois que se vê, em cada dia, partirem para aquele destino desconhecido milhares de criaturas. E tendo cada um de nós de partir fatalmente, podendo soar a todo o instante a hora da partida, é natural cuidar-se do que será depois dela. Por que não se cogita então disto? Simplesmente porque é desconhecido e não se teve, até agora, meio de conhecê-lo.

A ciência inexorável veio afastá-la dos lugares em que a havia colocado. Está perto? Está longe? Perde-se no infinito?

As filosofias do passado não respondem, porque não sabem. Então limitam-se a dizer: "Será o que for"; daí proveio a indiferença.

Ensinam que o homem será feliz ou desgraçado, conforme viver bem ou mal. Mas isso é tão vago! Em que consiste, na verdade, essa felicidade ou essa desgraça? O quadro, que nos sintam, quer de uma, quer de outra, está tão em desacordo com a idéia que fazemos da justiça divina, aparece semeado de tantas contradições, inconseqüências e impossibilidades radicais, involuntariamente, que somos assaltados pela dúvida, quando não caímos na incredulidade absoluta. Podemos então dizer: assim como erraram, quando localizaram a futura morada das almas, também se enganaram acerca das condições da felicidade e do sofrimento futuros. Como viveremos nesse mundo desconhecido? Teremos uma forma, uma aparência? Se lá não possuímos corpo, como termos sofrimentos físicos? Se os felizes nada fazem, a perpétua ociosidade, em vez de recompensa, lhes será um suicídio, a não ser que aceitem o nirvana do Budismo, que não é mais desejável.

O homem só se ocupará da vida futura quando vir nela um fim nitidamente definido, uma situação lógica, respondendo às suas aspirações, resolvendo as dificuldades do presente, quando não encontrar aí o que a razão não possa aceitar.

Se se preocupa com o dia de amanhã é porque esse dia se liga intimamente à vida de hoje; entre um e outro há perfeita solidariedade; do que se faz hoje, depende a posição de amanhã e do que se fizer amanhã dependerá a do dia seguinte; e assim por diante.

Assim deve ser para ele a vida futura, quando esta não mais se perder nas nuvens da abstração, mas for uma atualidade palpável, o complemento necessário da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando vir o presente agir sobre o futuro, por força natural e principalmente quando compreender a reação do futuro no presente; quando, em uma palavra, vir o passado, o presente e o futuro encadearem-se por inexorável necessidade, como os dias de ontem, de hoje e os de amanhã na vida atual: então as suas ideias mudarão completamente, porque verá na vida futura não somente um alvo, mas também um meio, não um efeito remoto, mas atual. Então essa crença exercerá forçosamente e, por consequência natural, uma ação preponderante no estado social e na moralidade.([70])

É sob esse aspecto que o Espiritismo nos faz encarar a vida futura.


 

Questões e Problemas — As Expiações Coletivas

Pergunta. — Explica-nos perfeitamente o Espiritismo a causa dos sofrimentos individuais, como consequência, ou expiação do passado; mas, visto que ninguém responde senão pelas próprias faltas, como explicar as desgraças coletivas, que ferem aglomerações de indivíduos, uma família, uma cidade, uma nação, ou uma raça inteira, as quais atingem tanto os bons como os maus, tanto os inocentes como os culpados?

Resposta. — As leis, que regem o universo, físicas ou morais, materiais ou intelectuais, têm sido descobertas, estudadas e compreendidas, dirigindo-se o estudo do indivíduo e a família para a universalidade, por generalização, demonstrando-se a universalidade dos resultados. Têm hoje o mesmo cunho as que o Espiritismo revela. Podeis, sem receio de errar, aplicar as que regem o indivíduo, à família, à nação, às raças, à massa dos habitantes dos mundos, que são individualidades coletivas.

Todas as faltas, quer do indivíduo, quer de famílias e nações, seja qual for o caráter, são expiadas em cumprimento da mesma lei.

O algoz expia o mal praticado, quer tendo sempre a vítima presente, no espaço, quer vivendo em contato com ela em uma ou muitas existências sucessivas até a reparação do mal causado. O mesmo acontece, quando se trata de crimes cometidos solidariamente por mais de um; as expiações são solidárias; o que não embarga a cada um de fazer simultaneamente a de suas faltas individuais.

Em todo o ser humano há três caracteres: o do indivíduo ou do ente em si mesmo, o do membro da família e o do cidadão. Sob cada uma dessas três faces, pode ele ser criminoso ou virtuoso; isto é, pode ser virtuoso, como pai de família, e criminoso como cidadão e vice-versa; daí as situações especiais em que se acha nas existências sucessivas.([71])

Pode pois admitir-se como regra geral, que todos os que se ligam, numa existência, por empenhos comuns, já viveram juntos, trabalhando para o mesmo fim, e encontrar-se-ão no futuro, até que o tenham alcançado, isto é, expiado o passado, ou cumprido a missão que aceitaram.

Graças ao Espiritismo, compreende-se hoje a justiça das provações, que não estão em relação com os atos da vida presente, desde que as considerem, em referência aos atos do passado, uma amortização de dívidas. Por que serão assim as punições coletivas? Dizem que os males gerais ferem culpados e inocentes; mas não se sabe que o inocente de hoje pode ter sido o criminoso de ontem? Quer seja ferido individual, quer coletivamente, não o é senão porque o mereceu ser. Demais, como dissemos, há as faltas do indivíduo e as do cidadão, e a expiação de umas não dispensa a das outras, porque é preciso que a dívida seja paga até o último ceitil.

As virtudes da vida privada não são as da vida pública; pode o indivíduo ser excelente cidadão, porém mau pai de família; um pai de família bom, pobre e honesto, pode ser mau cidadão, ter fomentado a discórdia, oprimido o fraco, manchado as mãos em crimes de lesa-sociedade. São faltas coletivas, que devem ser expiadas coletivamente pelos que, juntos, as praticaram, e então, para sofrerem a pena de Talião ou terem ensejo de reparar o mal que fizeram, reúnem-se na seguinte existência, com o intuito de se dedicarem à causa pública, socorrendo e ajudando aqueles que outrora maltrataram.

O que é incompreensível, inconciliável com a justiça de Deus sem a preexistência da alma, se torna claro e lógico pelo conhecimento da lei.

A solidariedade, que é o verdadeiro laço social, não é só para o presente; estende-se ao passado e ao futuro, pois que os mesmos indivíduos se encontram, e se encontrarão para juntos seguirem as vias do progresso, prestando mútuo concurso.

Eis o que faz compreender o Espiritismo pela equitativa lei da reencarnação e da continuidade das relações entre os mesmos seres.([72])

Clelie Duplantier

Reflexões. — Conquanto esta comunicação seja moldada nos princípios conhecidos da responsabilidade do passado e da continuidade das relações do Espírito, encerra, entretanto, uma ideia até certo ponto nova e de grande importância.

A distinção que estabelece entre a responsabilidade pelas faltas individuais ou coletivas, da vida privada e da vida pública, dá a razão de alguns fatos, ainda mal compreendidos e mostra, mais precisamente, a solidariedade que liga os seres uns aos outros e as gerações entre si. É assim que, muitas vezes o indivíduo renasce na mesma família, ou os membros de uma família renascem em condições de constituir uma nova com outra posição social, a fim de estreitarem os laços de afeição ou repararem erros comuns.

Por motivos de ordem mais geral, o Espírito renasce, às vezes, no mesmo meio, na mesma nação, na mesma raça, por simpatia ou para continuar, com os elementos já elaborados, os estudos a que se dedicou, aperfeiçoar-se, prosseguir os trabalhos começados que a brevidade da vida ou as circunstâncias não permitiram concluir. A reencarnação no mesmo meio é a causa do caráter distintivo dos povos e das raças. Com o progresso geral, os indivíduos vão, necessariamente, perdendo os caracteres primitivos até que de todo se transformem.

Os franceses de hoje são, pois, os do século passado, os da Idade Média, os dos tempos druídicos; são os verdugos e as vítimas do feudalismo, os que escravizaram ou trabalharam pela libertação dos povos, que tornaram à França transformada, onde uns expiam, em humildes posições, o seu orgulho de raça, e outros gozam do fruto dos seus esforços.

Quando pensamos em todos os crimes daqueles tempos em que a vida dos homens e a honra das famílias eram tidas na mais vil conta, em que o fanatismo acendia fogueiras em honra da divindade; quando pensamos em todos os abusos do poder, nas injustiças cometidas com desprezo dos mais sagrados direitos: quem pode estar seguro de ter as mãos limpas e admirar-se de ver grandes e terríveis expiações coletivas?

Porém das convulsões sociais resulta sempre algum benefício; os Espíritos esclarecem-se pela experiência; a desgraça estimula-os a procurar remédios para os seus males; refletem na erraticidade, tomam novas resoluções e, quando voltam à Terra, procedem melhor. É assim que se faz o progresso de geração em geração.

Não podemos duvidar que haja famílias, cidades, nações, raças culpadas, porque, dominadas pelo orgulho, o egoísmo, a ambição, a avareza, seguem por mau caminho e fazem em comum o que faz, isoladamente, um indivíduo.

Uma família enriquece-se à custa de outra, um povo subjuga outro e plana em seu seio a ruína e a desolação, uma raça procura aniquilar outra, eis porque há famílias, povos e raças, sobre os quais pesa a pena de Talião.

"Quem com ferro fere, com ferro será ferido", disse Cristo. Estas palavras podem ser assim traduzidas: aquele que derramar sangue verá ser derramado o seu; aquele que levar o incêndio à casa do outro, verá ateado o incêndio na sua; aquele que roubar, será roubado; aquele que escravizar ou maltratar o fraco, será fraco, escravizado e maltratado; quer seja um indivíduo, uma nação ou uma coletividade, são solidários no bem como no mal feito em comum.

Ao passo que o Espiritismo alarga o campo da solidariedade, o materialismo a reduz às mesquinhas proporções da existência efêmera do homem, fazendo dela um dever social sem raízes, sem outra sanção além da boa vontade e do interesse pessoal do momento. É uma teoria, um preceito filosófico, sem resultado prático. Para o Espiritismo, porém, a solidariedade é um fato, que assenta numa lei universal da natureza, que liga todos os seres ao passado, ao presente e ao futuro, e a cujas consequências ninguém pode subtrair-se. Isto entra pela mente do mais ignorante.

Quando todos conhecerem o Espiritismo, terão perfeita ideia da verdadeira solidariedade e, por dedução, da verdadeira fraternidade. A solidariedade e a fraternidade não mais serão deveres de ocasião, invocados, muitas vezes, pelo interesse próprio, sem atenção ao de outrem.

O reino da solidariedade e da fraternidade será necessariamente o da justiça para com todos e o da justiça será o da paz e da harmonia entre os indivíduos, as famílias, os povos e as raças. Chegaremos a ele? Duvidar seria negar o progresso.

Se compararmos a sociedade atual, nas nações civilizadas, à da Idade Média, grande diferença reconheceremos. Se, pois, temos caminhado até aqui, por que havemos de parar agora? Pelo progresso feito durante o último, podemos avaliar o que será realizado em mais um século.

As revoluções sociais são as revoltas dos Espíritos encarnados contra o mal que os vexa, o indício das suas aspirações ao reino da justiça, de que têm sede, sem que, entretanto, possam bem saber o que querem e os meios de satisfazerem àquelas aspirações. É por isso que eles se movem, se agitam, andam tontos, criam sistemas, recorrem a meios mais ou menos utópicos, cometem mil injustiças em nome da justiça, esperando colher alguma coisa de semelhante movimento. Mais tarde melhor definirão as suas aspirações e o caminho se lhes esclarecerá.([73])

Quem aprofunda os princípios do Espiritismo filosófico e considera os horizontes, que ele descortina, as ideias que faz brotar em si e os sentimentos que lhe provoca, não pode duvidar da preponderância que deve exercer na regeneração da humanidade, porque ele conduz precisamente, e pela força das próprias coisas, ao fim que a humanidade aspira: o reino da justiça pela extinção dos abusos, que lhe retardaram o progresso, e pela moralização das massas.

Aqueles, que desejam conservar as coisas do passado, se assim não fosse o Espiritismo, não o combateriam com tanto ardor; deixá-lo-iam morrer como tem morrido tantas utopias. Refletindo sobre este fato, certos escarnecedores conheceriam que o Espiritismo resolve problemas muito sérios, que antes estavam sem solução. Há porém homens que de tudo riem e que até de Deus ririam, se o vissem na Terra. Há também alguns que, negando a alma, tremeriam de medo, se a vissem.

Por mais influência que o Espiritismo venha a exercer no futuro das sociedades, não se julgue que ele substitua uma aristocracia por outra, ou que imponha leis; não o fará, porque, proclamando o direito absoluto da liberdade de consciência e do livre-arbítrio em matéria de fé, ele quer que a crença seja livremente aceita por convicção e não por constrangimento; em virtude de sua própria natureza não pode, nem deve exercer pressão alguma em nada, visto como proscreve a fé cega e quer ser apenas compreendido. Para ele não há mistérios, mas uma fé baseada na razão e nos fatos, fé que procura a luz. Não repudia qualquer descobrimento da ciência, porque a ciência é o repertório das leis da natureza e, sendo estas de Deus, repudiar a ciência é repudiar a obra de Deus.

Em segundo lugar, sendo moralizadora a ação do Espiritismo, não pode assumir caráter autocrático sem praticar o que condena. A sua influência será preponderante pelas modificações, que imprimirá nas ideias, no caráter, nos hábitos dos homens e nas relações sociais, e tanto crescerá que não precisará mais tarde impor-se. Poderoso, como filosofia, só teria a perder, neste século pesquisador, se nutrisse a pretensão de transformar-se em poder temporal. Não lhe cabe pois formular às instituições sociais do mundo regenerado, mas aos homens dominados pelas ideias de justiça, fraternidade, e solidariedade, por efeito dele mais bem compreendidas.([74])

Essencialmente positivo em suas crenças, repele todo misticismo, salvo se compreendem esta expressão como significando não crer em nada, não crer em toda a ideia espiritualista, em Deus, na alma e na vida futura. Quer que os homens se ocupem, com seriedade, da vida espiritual, que é a vida normal e aquela onde se completam os seus destinos, pois que a terrestre é transitória e passageira. Dando provas da vida espiritual, ensina ao homem que as coisas deste mundo têm importância relativa, e dá-lhe forças e coragem para sofrer, com paciência, as vicissitudes desta existência passageira. Ensinando, porém, que pela morte não deixamos para sempre este mundo; que podemos, se não fizermos progresso necessário para a ascensão a mundo superior, voltar aqui a fim de completarmos a educação intelectual e moral; que os trabalhos e progressos feitos na Terra aproveitam, melhorando a posição futura dos que os realizaram; ensinando isto, mostra exuberantemente que não é para ser desprezada a vida terrestre.

Se nos repugna voltar a ela, façamos por merecer a promoção a mundo melhor; mas não nos enganemos quanto às condições para conseguirmos aquela promoção! Não é com algumas fórmulas de palavras ou de ações, que a obteremos, mas por uma reforma séria e radical das nossas imperfeições. É modificando-nos, despindo-nos das más paixões, adquirindo cada dia novas qualidades, é ensinando a todos pelo exemplo que alcançaremos o objetivo, tornando todos os homens solidários na felicidade, pela fraternidade, pela tolerância e pelo amor.

A humanidade compõe-se de pessoas, que constituem as existências individuais, e de gerações, que constituem existências coletivas. Uma e outras seguem a via do progresso por fases variadas de provas, que são também individuais para as pessoas e coletivas para as gerações. Assim como cada existência é um passo adiante, que dá o encarnado, também cada geração assenta um marco nas vias do progresso; e este progresso da coletividade é irresistível e arrasta as massas, ao mesmo tempo que modifica e transforma em instrumento de regeneração os erros e os preconceitos de um passado que tem fatalmente de desaparecer. Ora, como as gerações são compostas de indivíduos, que já viveram nas precedentes gerações, o progresso daquelas é a resultante do progresso destes.

Perguntareis quem demonstra a solidariedade entre a geração atual, as que a precederam e as que lhe hão de suceder, e como provar que alguém viveu na Idade Média, por exemplo e como volverá a tomar parte nos acontecimentos que se realizarão no correr dos tempos?

O princípio da pluralidade de existência foi demonstrado à saciedade na Revue e nas obras fundamentais da doutrina; não precisamos repisá-lo aqui. A experiência e a observação dos fatos de cada dia nos fornecem numerosas provas físicas, que contêm uma demonstração quase matemática. Aos pensadores não pedimos senão que atentem às provas morais resultantes do raciocínio e da indução. Será absolutamente necessário ver para crer? Vendo-se os efeitos, não se pode ter certeza material da causa? Fora da experimentação, a única via legítima que se abre a quem procura a verdade é a que remonta do efeito à causa. Notável justificação deste princípio oferece-nos a justiça, quando aplicada à verificação dos indícios de algum crime e das intenções do criminoso. Ele é condenado pelos indícios, embora não tenha sido apanhado em flagrante.

A ciência experimental firma diariamente princípios, que mais não são do que induções das causas, as quais se conhecem pelos efeitos. Não se determina em Geologia a idade das montanhas, sem que os geólogos tenham assistido ao seu crescimento, ou visto formarem-se as camadas sedimentares, que lhes demarcam a idade?

Os conhecimentos astronômicos, físicos e químicos, permitem apreciar o peso dos planetas, a densidade, o volume, a velocidade e a natureza dos elementos que os compõem; entretanto os cientistas não podem fazer experiência direta, e só à analogia e à indução devemos importantes e preciosos descobrimentos.

Os primeiros homens, levados pelo testemunho dos sentidos, afirmavam ser o Sol que girava em torno da Terra; entretanto o raciocínio corrigiu aquele erro.

O mesmo se dá com os princípios firmados pelo Espiritismo, desde que sejam estudados sem preconceitos. É assim que a humanidade entrará, verdadeira e rapidamente, na era do progresso e da regeneração, porque os indivíduos, não mais sentindo-se entre dois abismos — o desconhecido do passado e a incerteza do futuro — trabalharão ardentemente por se aperfeiçoar e por multiplicar os elementos de felicidade, que estão ao seu alcance, porque reconhecerão que não devem ao acaso a posição que ocupam no mundo e terão no futuro os frutos dos seus trabalhos e vigílias.

Enfim, o Espiritismo lhes ensinará que se as faltas cometidas coletivamente são expiadas solidariamente, os progressos realizados em comum são da mesma forma solidários e é em virtude deste princípio, que desaparecerão as dissensões de raça, de família, de indivíduos e que a humanidade, despidas as faixas da infância, caminhará rápida e varonilmente para a conquista do seu verdadeiro destino.([75])

Egoísmo e Orgulho Causas, Efeitos e Meios de Destruí-los

É fato reconhecido que a maior parte das misérias da vida provém do egoísmo dos homens. Desde que cada um só pensa em si sem pensar nos outros e ainda só quer a satisfação dos próprios desejos, é natural que a procure a todo preço, sacrificando embora os interesses de outrem, quer nas pequenas, quer nas maiores coisas, tanto na ordem moral, como na material. Daí todo o antagonismo social, todas as lutas, conflitos e misérias, visto como cada um quer pôr o pé adiante dos outros.

O egoísmo tem origem no orgulho. A supremacia da própria individualidade arrasta o homem a considerar-se acima dos demais. Julgando-se com direitos preferenciais, molesta-se por tudo o que, em seu entender, o prejudica. Naturalmente a importância que, por orgulho, se atribui, o torna naturalmente egoísta.

O egoísmo e o orgulho têm origem num sentimento natural: o instinto de conservação. Todos os instintos têm razão de ser e utilidade, pois que Deus não faz coisa inútil. Deus não criou o mal; é o homem que o produz por abuso dos dons divinos, em virtude do livre-arbítrio.

Este sentimento contido em justos limites é bom em si; a sua exageração é que o torna mau e pernicioso. O mesmo acontece às paixões, que o homem desvia do seu fim providencial. Deus não criou o homem egoísta e orgulhoso, mas simples e ignorante; foi o homem que, ao malversar o instinto, que Deus lhe deu para a própria conservação, se tornou egoísta e orgulhoso.

Os homens não podem ser felizes enquanto não viverem em paz, isto é, enquanto não forem animados pelos sentimentos de benevolência, indulgência e condescendência recíprocas e enquanto procurarem esmagar uns aos outros. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e deveres sociais, mas reclamam abnegação. Ora a abnegação é incompatível com o egoísmo e com o orgulho; logo, com estes vícios não pode haver verdadeira fraternidade e, em consequência, igualdade e liberdade; porque o egoísta e o orgulhoso tudo querem para si. Serão sempre eles os vermes roedores de todas as instituições progressistas e, enquanto reinarem, os mais generosos sistemas sociais, os mais sabiamente combinados, cairão aos golpes deles.

Faz gosto ver proclamar o reino da fraternidade; mas de que serve, se vai de par com uma cauda de destruição? É construir na areia; é o mesmo que procurar um país insalubre para restabelecer a saúde. Para ali, se quiserem garantir os habitantes, não basta enviar médicos, que morrerão como outros; é preciso mandar os meios de estudar as causas de insalubridade.

Se quiserdes que os homens vivam como irmãos, na Terra, não basta dar-lhes lições de moral; é preciso destruir a causa do antagonismo existente e atacar a origem do mal: o orgulho e o egoísmo. É esta a chaga que deve merecer toda a atenção daqueles que desejam seriamente o bem da humanidade. Enquanto subsistir este obstáculo, estarão paralisados os seus esforços, não só pela resistência da inércia, como por uma força ativa, que trabalhará incessantemente para destruir o trabalho; porque toda idéia grande, generosa e emancipadora, arruína as pretensões pessoais.

Destruir o egoísmo e o orgulho é impossível, direis, porque esses vícios são inerentes à espécie humana.

Se assim fosse, impossível seria o progresso moral, ao passo que, quando considerarmos o homem em diversas épocas, reconhecemos à evidência um progresso incontestável; logo, se temos sempre progredido, em progresso continuaremos. Demais, não haverá, por ventura, algum homem limpo de orgulho e de egoísmo? Não há exemplos de uma pessoa dotada de natureza generosa, em quem osentimento do amor ao próximo, da humildade, do devotamento e da abnegação, parece inato? O número é inferior ao dos egoístas, bem o sabemos, e se assim não fora, estes não fariam a lei; mas não é tão reduzido, como pensam, e se parece menor é porque a virtude, sempre modesta, se oculta na sombra, ao passo que o orgulho se põe em evidência. Se pois o egoísmo e o orgulho fossem condições de vida, como a nutrição, então, sim, não haveria exceção.

O essencial portanto é fazer que a exceção passe a ser regra e para isso incumbe destruir as causas produtoras do mal. A principal é, evidentemente, a falsa idéia, que faz o homem da sua natureza, do seu passado e do seu futuro. Não sabe donde vem, julga-se mais do que é; não sabendo para onde vai, concentra todos os pensamentos na vida terrestre. Deseja viver o mais agradavelmente possível, procurando a realização de todas as satisfações, de todos os gozos. É por isso que investe contra o vizinho, se este lhe opõe obstáculo; então entende dever dominar, porque a igualdade daria aos outros o direito que ele quer só para si, a fraternidade lhe imporia sacrifícios em detrimento do próprio bem-estar, e a liberdade, deseja-a só para si, não concedendo a outrem senão o que não fira as prerrogativas. Se todos têm essas pretensões, hão de surgir perpétuos conflitos, que farão comprar bem caro o pouco gozo, que conseguem fruir.

Identifique-se o homem com a vida futura e a sua perspectiva mudará inteiramente, como acontece a quem sabe que pouco tempo deve estar em pouso ruim e que dele saindo alcançará um excelente lugar para o resto da vida.

A importância da presente vida, tão triste, tão curta e efêmera, desaparece diante do esplendor da vida futura infinita, que se abre à frente. A consequência natural e lógica desta certeza é o sacrifício voluntário do presente fugitivo a um futuro sem fim, ao passo que antes tudo era sacrificado ao presente. Desde que vida futura se torna o fim, que importa gozar mais ou menos nesta? Os interesses mundanos são acessórios, em vez de principais. Trabalha-se no presente, a fim de assegurar-se uma boa posição no futuro, sabendo quais as condições para alcançá-la. Em matéria de interesses mundanos, podem os homens opor obstáculos, que ocasionem a necessidade de combatê-los, o que gera o egoísmo. Se porém erguerem os olhos para onde a felicidade não pode ser perturbada por ninguém, nenhum interesse alheio precisa de ser debelado e, conseguintemente, não há razão de ser para o egoísmo, embora subsista o estimulante do orgulho.

A causa do orgulho está na crença, que o homem tem, da sua superioridade individual, e aqui se faz ainda sentir a influência da concentração do pensamento nas coisas da vida terrestre.

O sentimento de personalidade arrasta o homem que nada vê diante de si, atrás de si ou acima de si; então o seu orgulho não conhece medidas.

A incredulidade, além de não ter meio para combater o orgulho, estimula-o e dá-lhe razão, pelo fato de negar a existência de um poder superior à humanidade. O incrédulo só crê em si; é, portanto, natural que tenha orgulho, não vendo nos contratempos que oferecem senão obra do acaso; ao passo que o crente vê a mão do Senhor naqueles contratempos e curva-se submisso, enquanto o outro se revolta.

Crer em Deus e na vida futura é pois a principal condição para quebrar o orgulho; mas não é a única. Conjuntamente com o futuro, é preciso ter em vista o passado, para poder fazer justa ideia do presente. Para que o orgulhoso cesse de crer em sua superioridade, é preciso provar-lhe que ele não é mais que os outros e que todos lhe são iguais, que a igualdade é um fato e não uma teoria filosófica. São verdades que derivam da preexistência da alma e da reencarnação.

Sem a preexistência da alma, o homem, que crê em Deus, é levado a acreditar que lhe deve singulares vantagens, e o que não crê é levado a atribui-los ao acaso e aos méritos próprios. A preexistência, dando-lhe a noção da vida anterior da alma, ensina-o a distinguir a espiritual, infinita, da corporal, temporária. Ele chega por aí a compreender que as almas saem iguais das mãos do Criador, têm o mesmo ponto de partida e o mesmo fim, que todos atingirão em mais ou menos tempo, segundo os esforços empregados; que ele próprio não chegou ao ponto, em que se acha senão depois de ter longa e penosamente vegetado como os outros, nos planos inferiores; que não há entre os mais e os menos adiantados senão questão de tempo; que as vantagens do nascimento são puramente corporais e não afetam o Espírito; que o proletário pode, noutra existência, nascer em um trono e o mais poderoso vir como proletário.

Se ele não considerar senão a vida corporal, vê as desigualdades sociais e não as pode explicar; mas se lançar a vista para o prolongamento da vida espiritual, para o passado e o futuro, desde o ponto de partida até o terminal, todas aquelas desigualdades se lhe desfazem perante os olhos e reconhecerá que Deus não deu a nenhum de seus filhos vantagens que negasse a outros; que fez a partilha com a mais rigorosa igualdade, não preparando o caminho melhor para uns do que para outros; que o mais atrasado de hoje, dedicando-se à obra do seu aperfeiçoamento, pode ser amanhã mais adiantado; enfim, reconhece que, não se elevando ninguém a não ser pelos esforços pessoais, o princípio da igualdade tem o caráter de um princípio de justiça e de lei natural, diante das quais não prevalece o orgulho dos privilégios.

A reencarnação, provando que os Espíritos podem renascer em diferentes condições sociais, quer como expiação, quer como prova, faz-nos saber que muitas vezes tratamos desdenhosamente uma pessoa, que foi noutra existência nosso superior ou igual, amigo ou parente. Se o soubéssemos, trata-lo-íamos com atenção, mas neste caso não haveria nenhum mérito; e se soubéssemos, que o amigo de hoje fora antes um inimigo, um servo, um escravo, não o repeliríamos? Deus não quis que fosse assim e por isso lançou um véu sobre o passado para que em todos víssemos irmãos e iguais, como é mister para estabelecer-se a fraternidade; sabendo que poderemos ser tratados como houvermos tratado os outros, firmaremos o princípio de caridade como dever e necessidade, fundados nas leis da natureza.

Jesus estabeleceu os princípios da caridade, da igualdade e da fraternidade, dos quais fez condições indispensáveis para a salvação; mas ao Espiritismo ficou reservada a terceira manifestação da vontade de Deus, pelo conhecimento da vida espiritual, pelos horizontes novos que descortina e pelas leis, que revela, como sanção daquele princípio, provando que não é somente uma doutrina moral, mas uma lei natural, que está no interesse dos homens cultivar e praticar. Ora, eles hão de praticá-la desde que deixarem de ver no presente o princípio e o fim, desde que compreenderem a solidariedade, que existe entre o presente, o passado e o futuro.

No infinito campo, que o Espiritismo lhes põe aos olhos, a sua importância pessoal anula-se, porque compreendem que, sós nada valem e nada podem, que todos precisamos uns dos outros não sendo nenhum mais que outro; duplo golpe desfechado contra o orgulho e o egoísmo.

Para isso, porém, é preciso terem fé, sem a qual ficarão detidos dentro do círculo do presente, mas não a fé cega, que foge da luz, que acanha as ideias e portanto alimenta o egoísmo, mas sim a fé inteligente, racional, que pede a luz e não as trevas, que rasga, ousadamente, o véu dos mistérios e alarga os horizontes. Essa fé, elemento essencial de todo progresso, é a que o Espiritismo proclama: fé robusta, porque se firma na experiência e nos fatos, dá as provas palpáveis da imortalidade e nos ensina de onde ela vem, para onde vai e porque está na Terra e, finalmente, fixa as nossas ideias a respeito do futuro.

Uma vez encaminhados por esta larga via, não daremos mais ao orgulho e ao egoísmo o pasto, que os alimenta, resultando daí o seu aniquilamento progressivo e a modificação de todos os laços sociais pela caridade e pela fraternidade bem compreendidas. Pode dar-se essa modificação de chofre? Não, isso é impossível, pois nada vai de um salto em a natureza; a saúde não volta subitamente; e entre a moléstia e a cura, há sempre a convalescença.

O homem não pode instantaneamente mudar de sentimentos e elevar os olhos da terra ao céu; o infinito deslumbra-o e confunde-o; precisa de tempo para assimilar as novas ideias.

O Espiritismo é, sem contestação, o elemento mais potente de moralização, porque alui os fundamentos do egoísmo e do orgulho, dando sólido fundamento à moral; faz milagres de conversão. Não são ainda, é certo, senão curas individuais e, quase sempre, parciais; mas o que ele produz nos indivíduos é prenúncio do que produzirá um dia nas massas populares. Não pode, de uma vez, arrancar toda a erva daninha; mas dá a fé, que é boa semente e que não precisa senão de tempo para germinar e frutificar. Eis porque ainda não são todos perfeitos. Ele encontrou o homem no meio da vida, no ardor das paixões, na força dos preconceitos, e se em tais condições tem operado prodígios, como não operará quando o tomar no berço, virgem de todas as impressões maléficas, quando lhe der, com o leite, a caridade, e o acalentar com a fraternidade, quando, enfim, uma geração inteira vier alimentada por ideias que a razão fortificará em vez de debilitar?([76]) Sob o império dessas ideias, que serão mandamentos de fé racional para todos, o progresso, limpando a estrada de egoísmo e orgulho, penetrará nas instituições que se reformarão a si mesmas, e a humanidade caminhará rapidamente para os destinos que lhe são prometidos na terra, enquanto não chega a hora de alcançar o céu.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade

Liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que são por si sós o programa de uma ordem social, que realizaria o mais absoluto progresso da humanidade, se os princípios que representam pudessem receber inteira aplicação. Vejamos os obstáculos que, no estado atual da sociedade, lhes podem ser apresentados e procuraremos os meios de removê-los.

A fraternidade, na rigorosa acepção da palavra, resume todos os deveres do homem para com os semelhantes. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência; é a caridade evangélica por excelência e a aplicação da máxima "fazer aos outros o que queremos que os outros nos façam". O oposto constitui a norma do egoísmo. A fraternidade proclama: um por todos e todos por um; o egoísmo perora: cada um para si. Estes dois princípios, sendo a negação um do outro, tanto impedem ao egoísta de ser fraterno como ao avarento de ser generoso e um homem medíocre de chegar às culminâncias de um grande homem. Ora, sendo o egoísmo social, enquanto ele dominar, será impossível a verdadeira fraternidade, querendo a cada um para proveito próprio ou quando muito em proveito de outrem, uma vez que nada perca com isso.

Atenta a sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade está na primeira linha: é a base; sem ela seriam impossíveis a liberdade e a igualdade reais. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade do conjunto das duas.

Suponhamos uma sociedade de homens assás desinteressados, benévolos e prestativos, para viverem fraternalmente. Entre eles não haverá privilégios e direitos excepcionais, o que destruiria a fraternidade.

Tratar alguém de irmão é tratar de igual para igual, é querer para ele o mesmo que para si. Em um povo de irmãos, a igualdade será a consequência dos seus sentimentos, da sua maneira de proceder, e se estabelecerá pela força das coisas.

Qual é, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que trabalha por ser o primeiro e por dominar; que vive de privilégios e de exceções e que aproveitará a primeira ocasião para destruir a igualdade social, nunca por ele bafejada. Ora, sendo o orgulho uma das chagas sociais, é evidente que nenhuma sociedade terá a igualdade sem arrasar primeiro esta barreira.

A liberdade, já o dissemos, é filha da igualdade e da fraternidade. Falamos da liberdade legal, e não da natural, que é um direito imprescritível de toda a criatura humana, até do selvagem.

Os homens, vivendo como irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de recíproca benevolência, praticarão entre si a justiça, não causarão danos e, portanto, nada recearão uns dos outros. A liberdade será inofensiva, porque ninguém abusará, em prejuízo do seu semelhante. Como conseguir que o egoísmo, tudo desejando para si, e o orgulho, que quer tudo dominar, deem as mãos à liberdade, que os destrona? Nunca o farão, porque a liberdade não tem mais encarniçados inimigos, assim como a igualdade e a fraternidade.

A liberdade pressupõe confiança mútua, mas este sentimento é impossível entre homens, que só têm em vista a sua personalidade e não podendo satisfazer à sua ambição à custa de outrem, vivem em guarda uns contra os outros, sempre receosos de perder o que chamam o seu direito e têm o predomínio como condição da existência; e por isto levantarão barreiras à liberdade e a sufocarão tão depressa encontrem propício ensejo.

Os três princípios são, como já dissemos, solidários entre si e apoiam-se mutuamente. Sem a co-existência deles, o edifício social fica incompleto. A fraternidade, praticada em sua pureza, requer a liberdade e a igualdade, sem as quais não será perfeita. Sem a fraternidade, a liberdade soltará a rédea às más paixões, que correrão sem freio. Com a fraternidade, o homem saberá regular o livre-arbítrio, estará sempre na ordem. Sem ela, usará do livre-arbítrio, sem escrúpulos; serão a licença e a anarquia. É por isso que as mais livres nações são forçadas a por limites à liberdade. A igualdade, sem fraternidade, conduz aos mesmos resultados, porque a igualdade requer liberdade. Sob o pretexto da igualdade, o pequeno abate o grande, para tomar-lhe o lugar, e torna-se tirano por sua vez. Não há senão um deslocamento de despotismo.

Do exposto resulta que deve permanecer na escravidão o povo que não possui ainda o verdadeiro sentimento de fraternidade? Que não têm capacidade para as instituições fundadas sobre os princípios de igualdade e de liberdade? Pensar assim é mais o que cometer um erro, é cometer um absurdo. Nunca se espera que a criança chegue a todo o seu desenvolvimento orgânico para ensiná-la a andar.

Quem é, as mais vezes, o guia ou o tutor dos povos? São homens de ideias grandiosas e generosas dominados pelo amor do progresso, que aproveitam a submissão dos seus inferiores, para neles desenvolver o senso moral e elevá-los pouco a pouco à condição de homens livres? Não; são, quase sempre homens ciosos do seu poder, a cuja ambição outros servem de instrumentos mais inteligentes do que os animais e que por isso, em lugar de emancipá-los, os conservam, quando podem, sob o jugo e na ignorância. Esta ordem de coisas, entretanto, muda por si mesma, sob a irresistível influência do progresso.

A reação é, não raro, violenta e tanto mais terrível quando o sentimento de fraternidade, imprudentemente sufocado, não interpõe o seu poder moderador. A luta é travada entre os que querem arrebatar e os que querem guardar; daí um conflito que se prolonga, às vezes, por séculos. Um equilíbrio fictício por fim se estabelece. As condições melhoram, mas os fundamentos de ordem social não estão firmes, a terra treme debaixo dos pés; porque ainda não é o tempo do reinado da liberdade e da igualdade sob a égide da fraternidade, visto como o orgulho e o egoísmo ainda contrastam com os esforços dos homens de bem.

Vós todos, que sonhais com esta idade de ouro para a humanidade, trabalhai principalmente na construção dos alicerces do edifício; antes de lhes terdes coroado o fastígio, dai-lhe por pedra angular a fraternidade em sua mais pura acepção; mas é preciso saber que, para isto, não basta decretar e inscrever a palavra numa bandeira; é mister que haja o sentimento no fundo dos corações e não seja ele trocado por disposições legislativas. Assim como para fazer frutificar um campo é preciso remover as pedras e arrancar a erva, urge trabalhar sem descanso para remover e arrancar o orgulho e o egoísmo, porque são eles a fonte de todo o mal, o obstáculo real ao reino das coisas boas.([77])

Destruí nas leis, nas instituições, nas religiões, na educação, os mais imperceptíveis vestígios dos tempos da barbaria e dos privilégios, bem como todas as causas, que entretém e desenvolvem esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, vícios que são ingeridos, por assim dizer, como o leite, e aspirados por todos os poros na atmosfera social.

Só então os homens compreenderão, os deveres e benefícios da fraternidade, só então se firmarão por si mesmos, sem abalos e sem perigos, os princípios complementares da liberdade e da igualdade. E é possível a destruição do orgulho e do egoísmo? Respondemos alta e formalmente: SIM, porque, do contrário, fixar-se-á um marco eterno ao progresso da humanidade. Que o homem avulta sempre em inteligência, é fato incontestável. Terá chegado ao ponto culminante da sua caminhada por esse caminho? Quem ousaria sustentar tão absurda tese? Progride em moralidade? Para responder a esta pergunta, basta comparar as épocas de um mesmo país. Por que razão alcançará o limite de progresso moral antes que o do intelectual? A sua aspiração para uma ordem superior é o indício da possibilidade de ali chegar. Aos homens do progresso pertence ativar esse movimento pelo estudo e aplicação dos meios mais eficazes.

As Aristocracias

Aristocracia vem do grego aristos, melhor, e kratos, poder; na acepção literária aristocracia significa: o poder dos melhores. Hão de concordar que esta significação tem sido muitas vezes deturpada. Vamos apreciar a influência que o Espiritismo pode exercer sobre essa concepção e os seus resultados. Tomaremos as coisas em seu ponto de partida e segui-la-emos através dos tempos, para deduzir delas as consequências.

Em nenhum tempo ou nação, os povos dispensaram chefes, ainda mesmo no estado de selvageria. É assim porque, em razão da diversidade de aptidões e de caracteres, que se dão na espécie humana, há sempre incapazes que precisam ser dirigidos, fracos que reclamam proteção, paixões a combater: daí a necessidade de uma autoridade. Sabemos que nas sociedades primitivas a autoridade foi conferida aos chefes de família, aos anciãos, aos velhos, aos patriarcas. Foi esta a primeira de todas as aristocracias. Tornando-se mais numerosas as sociedades, a autoridade patriarcal foi, em certas circunstâncias, impotente. As questões entre os povos vizinhos trouxeram guerras, que reclamaram a direção, não mais de velhos, porém de homens fortes, vigorosos e inteligentes; daí os chefes militares. Estes, vitoriosos, foram investidos de autoridade, esperando-se achar em seu valor uma garantia contra os ataques dos inimigos; muitos porém se apossaram do poder valendo-se da sua posição. Depois os vencedores impuseram-se aos vencidos e reduziram-nos à escravidão; daí a autoridade da força bruta que foi a segunda aristocracia.

Os fortes transmitiram, naturalmente, aos filhos, o poder e a fortuna, e os fracos, não ousando resistir, acostumaram-se, pouco a pouco, a considerar estes como os herdeiros dos direitos conquistados por seus pais e como seus superiores; aparece então a divisão da sociedade em duas classes; os superiores e os inferiores, os que comandam e os que obedecem; eis pois surge a aristocracia do nascimento, que se tornou tão poderosa e preponderante, como a da força, porque, se não tinha esta por si, como nos primeiros tempos, em que cada um pagava com seu próprio corpo, possuía a força necessária. Dispondo de todo o poder, cercou-se, muito naturalmente, de privilégios, para a conservação dos quais era preciso dar-lhe o prestígio da legalidade: fez as leis em seu próprio proveito, o que lhe era fácil, pois que só ela as fazia. Nem sempre sendo isto suficiente, recorreu ao direito divino para torná-las respeitáveis e invioláveis. Para assegurar-se do respeito da classe submetida, que crescia cada vez mais e se tornava mais difícil de conter, ainda mesmo pela força, não havia senão um meio: impedir que ela visse claro, mantendo-a na ignorância.

Se a classe superior pudesse ter a inferior na ociosidade, ou sem necessidade de trabalhar, o seu domínio estender-se-ia indefinidamente; mas desde que esta era obrigada a trabalhar para viver, e tanto mais quanto aumentava a necessidade pelo seu crescimento, resultou disso a necessidade de novos recursos, de lutar contra a concorrência, de procurar novos mercados para os produtos; e ela desenvolveu a inteligência e chegou ao conhecimento das causas, de que se serviram para sujeitá-la. Não está aí visível a mão da Providência?

Viu claro, viu a falta de prestígio do poder, que a esmagava e, sentindo-se forte pelo número, aboliu os privilégios e proclamou a igualdade perante a lei.

Esse movimento marcou, em alguns países, o termo do reino da aristocracia de nascimento, que se tornou nominal e honorífica, porque não tem mais o poder de legislar.

Então, elevou-se novo poder: o do ouro, porque com o ouro se dispõe dos homens e das coisas. Foi um sol nascente, diante do qual se inclinaram, como outrora diante de um brasão ou de outro qualquer símbolo. O que se não concedia mais aos títulos, concedeu-se à fortuna e a fortuna teve os seus privilégios.

Começaram, depois, a perceber que, se para alguém fazer fortuna é necessário dispor de inteligência, não precisa tê-la quem adquire a riqueza por herança, sendo os herdeiros mais hábeis para gastar do que para ajuntar, e que, além disso, os meios de enriquecer não são sempre lícitos. Como consequência, o domínio do ouro vai, pouco a pouco, perdendo prestígio. Surge uma outra potência, outra aristocracia mais justa — a da inteligência, diante da qual todos podem inclinar-se sem se aviltar, porque ela pertence tanto ao rico como ao pobre. Será a última? É a mais alta expressão da humanidade civilizada?

Não.

A inteligência nem sempre é penhor de moralidade e o homem mais inteligente pode fazer mau uso das faculdades. Por outro lado, a simples moralidade pode não ter capacidade. É, pois, necessária a união da inteligência e da moralidade para haver legítima preponderância, a que a massa se submeterá, confiada em suas luzes e justiça. Será esta a última aristocracia, sinal do advento do reino do bem na Terra. Ela virá naturalmente, pela força dos acontecimentos, e quando os homens daquela categoria forem tão numerosos, que constituam uma imponente maioria, a massa popular lhes confiará os próprios interesses.

Como vimos, as aristocracias tiveram a sua razão de ser, nasceram do estado da humanidade no seu tempo; o mesmo será em relação àquela que tem de vir. Todas tiveram ou terão a sua época segundo os países, porque nenhuma se funda em princípio moral. Só este princípio pode constituir uma supremacia durável, porque será animada por sentimentos de justiça e caridade: supremacia que chamaremos aristocracia intelecto-moral.

É compatível este estado de coisas com o egoísmo, com o orgulho e com a ganância, que ainda imperam na Terra? A isto responderemos francamente: sim; não somente é possível, como virá, porque é inevitável. Hoje, a inteligência domina, torna-se soberana no conceito universal; tão realmente, que vemos o homem do povo elevado à culminância social.

Esta aristocracia não é mais justa, mais lógica, mais racional que a da força bruta, a do nascimento, a do ouro? Por que, então, não ser possível ajuntar-lhe a moralidade? Porque, dizem os pessimistas, o mal domina na Terra. Já foi dito que o bem não o apagará jamais? Os costumes e as instituições não valem hoje cem vezes mais que na Idade Média? Cada século não se tem assinalado por um progresso? Por que pois há de a humanidade estacionar, quando tanto lhe falta conquistar?

Os homens, por instinto natural, procuram o seu bem-estar; se o não encontrarem satisfatório no reino da inteligência, procurá-lo-ão algures. E onde poderão encontrá-lo a não ser no reino da moralidade? Para isto é preciso que a moralidade domine a maior parte.

Muito há que fazer, certamente, mas, ainda uma vez, é néscia presunção dizer que a humanidade chegou ao apogeu, quando a vemos caminhar incessantemente nas vias do progresso. Digamos desde já que os bons na Terra não são tão raros como pensam. Os maus são numerosos, é verdade; mas o que parece avultar-lhes o número é a audácia, que julgam necessária ao êxito. Não desconhecem, porém, a preponderância do bem, tanto que, embora não o pratiquem, tomam-lhe a máscara. Os bons, pelo contrário, não fazem praça das suas qualidades, não procuram pôr-se em evidência e é por isso que o seu número parece ser diminuto. Sondai, porém, os arcanos da vida íntima, e encontrareis, em todas as classes sociais, muitas naturezas boas e leais, que vos não permitirão desesperar da humanidade.

Importa também saber que dos maus, muitos só o são por influência do meio, podendo tornar-se bons se forem submetidos à ação de um meio benéfico. Admitamos que, sobre 100 indivíduos, há 25 bons e 75 maus; destes, 50 o são por fraqueza e seriam bons se tivessem tido bons exemplos, principalmente se houvessem recebido boa educação; dos 25 francamente maus, nem todos são incorrigíveis. No estado atual das coisas, os maus estão em maioria e dão leis aos bons; mas, se por qualquer circunstância, se converterem os 50 fracos, os bons ficarão em maioria e, por sua vez, darão as leis; dos 25 francamente maus, muitos sentirão a influência daquela maioria, não restando senão poucos incorrigíveis, que nenhuma preponderância podem ter.

Tomemos um exemplo. Há povos para quem o homicídio e o roubo são coisas normais. Para estes, o bem é exceção.

Entre os povos mais adiantados e melhor governados da Europa, o crime é exceção, e não exerce influência sobre a sociedade, na qual o que domina ainda são os vícios de caráter: o orgulho, o egoísmo, a ambição com o seu cortejo.([78]) Por que, continuando o progresso daqueles povos, os próprios vícios não ficarão sendo exceção, como já o são os crimes? Negar a possibilidade desta caminhada ascendente é negar o progresso. Certamente a transformação não pode ser obra de um dia; se, porém, há causa que possa apressar a caminhada, essa causa é o Espiritismo.

Agente, por excelência, da solidariedade humana, mostrando as provas da vida atual como consequências lógicas e racionais dos atos praticados em anteriores existências, fazendo de cada pessoa o autor da felicidade própria, ele elevará, necessariamente, mediante a sua vulgarização, o nível moral da atualidade.

Os princípios gerais da nossa filosofia estão elaborados e coordenados e já têm reunido, em imponente comunhão de pensamentos, milhões de sectários, disseminados por todos os países do mundo. Os progressos realizados por influência sua, as transformações individuais e locais, por eles provocadas em menos de 15 anos, permitem-nos avaliar as imensas modificações essenciais, que terão de realizar no futuro.

Se, porém, graças ao desenvolvimento e geral aceitação do ensino dos Espíritos, o nível moral da humanidade tende constantemente a elevar-se, não se vá daí concluir que a moralidade obscurecerá a inteligência. O Espiritismo não quer ser aceito cegamente, antes pede a discussão e a luz.

Em vez da fé cega, que sufoca a liberdade de pensar, ele ensina: a fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade. A fé precisa de uma base, e esta é o conhecimento perfeito do que devemos crer. Para crer, não basta ver, é preciso sobretudo compreender. (O Evangelho segundo o Espiritismo).

Temos pois razão para considerar o Espiritismo como um dos mais poderosos precursores da aristocracia do futuro, isto é, da aristocracia intelecto-moral.([79])

Os Desertores

Se todas as grandes ideias têm tido apóstolos dedicados, as melhores têm tido desertores. Não podia pois o Espiritismo escapar às consequências da fraqueza humana. Ele tem os seus e a respeito do assunto convém fazer algumas observações, que não serão inúteis. No princípio, muitos enganavam-se com a natureza e fim do Espiritismo, cujo alcance não perceberam. O que mais imperou foi a curiosidade; as manifestações valiam por distrações; brincava-se com os Espíritos, enquanto eles se prestavam a isto e era tudo um passatempo.

Esse modo de manifestação, em seu início, era uma hábil tática dos Espíritos. Sob a forma de divertimentos, a ideia caminhou e lançou raízes, sem assustar as consciências timoratas. Brincou-se com a criança; mas a criança devia crescer. Quando aos Espíritos brincalhões sucederam os sérios e moralizadores, quando o Espiritismo assumiu o caráter de filosofia e de ciência, os fúteis não lhe acharam mais nenhuma graça. Para os que vivem a vida material, foi ele censor importuno, desmancha prazeres. Não fizeram falta estes desertores, porque os homens frívolos nunca são bons auxiliares.

Entretanto, não foi perdida aquela primeira fase. Com o favor do disfarce, a ideia popularizou-se cem vezes mais do que se tivesse, desde o princípio, revestido forma de austeridade. Dos próprios levianos e irrefletidos saíram pensadores sérios.

Os fenômenos espíritas, considerados da moda pelo atrativo da curiosidade, servindo de engodo, provocaram a atenção geral daqueles que tinham esperança de aí descobrir novidades. As manifestações pareceram matéria maravilhosamente explorável e houve muito quem pensasse em fazer delas uma indústria; assim como quem aí descobrisse uma variante da adivinhação, um meio porventura mais seguro que a cartomancia, a borra de café, etc., etc., para conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, pois julgavam naquele tempo que os Espíritos sabiam tudo. Desde porém que eles reconheceram que a especulação falhava, que tudo não passava de mistificação, que os Espíritos não os ajudavam a conseguir fortuna, a obter os números sorteados da loteria, a conhecer a buena-dicha, a descobrir tesouros ou receber heranças, a ser senhores de alguma invenção rendosa, que lhes suprisse a ignorância e os dispensasse do trabalho intelectual e material, condenaram os Espíritos por imprestáveis e lhes taxaram de ilusão as manifestações. Tanto quanto exaltaram o Espiritismo, enquanto tiveram esperança de colher-lhe algum proveito, rebaixaram-no desde que se desenganaram. Mais de um, dentre os que o ridicularizam, o levaria às nuvens se lhe tivesse descoberto um tio rico na América, ou feito ganhar, na Bolsa. Esta é a falange mais numerosa dos desertores; quem poderá conscienciosamente qualificá-los como espíritas?

Esta fase tem também a sua utilidade, por mostrar o que não é lícito esperar dos Espíritos e fazer conhecer o fim altamente sério do Espiritismo. Ela depurou a doutrina. Os Espíritos sabem que as lições da experiência são as mais proveitosas. Se, desde o princípio, eles tivessem dito: não peçais isto ou aquilo, que não obtereis, talvez não fossem acreditados. Foi por isso que deixaram correr as coisas, para que a verdade saísse da observação. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para lhes diminuir o número. Foram parasitas que elas tiraram do Espiritismo; não foram adeptos sinceros.

Certos indivíduos, mais perspicazes, lobrigaram o homem na criança que acabava de nascer e tiveram-lhe medo, como Herodes o teve ao menino Jesus. Não ousando atacá-lo de frente, suscitaram quem o sufocasse com abraços, quem lhe tomasse a máscara, a fim de introduzir-se por toda a parte, soprar astuciosamente a discórdia nos centros, espalhar sorrateiramente o veneno da calúnia, lançar o pomo da desavença, arrastar a excessos comprometedores, impelir a doutrina por sendas ridículas e odiosas e simular, depois, defecções.

Ainda há outros mais hábeis: pregam a união e semeiam a divisão, atiram destramente à arena questões irritantes e ofensivas, excitam os zelos de preponderância entre os diferentes centros. Seriam felizes se viessem levantar-se uns contra os outros, por questões de forma ou de substância, por eles suscitadas.

Todas as doutrinas têm tido o seu Judas e o Espiritismo não havia de ser a exceção. São espíritas de contrabando, que, entretanto, trazem alguma utilidade, porque ensinam ao verdadeiro espírita a prudência, a circunspecção e a não se fiar em aparências.

Em tese, é preciso desconfiar de entusiasmos muito calorosos, que são quase sempre fogos de palha, simulacros, calor do momento, que suprem as obras por palavras. A verdadeira convicção é calma, refletida, moderada; revela-se, como a verdadeira coragem, por obras, isto é, na firmeza, perseverança, e sobretudo na abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

A sinceridade tem um cunho especialíssimo; reflete-se por modalidades mais fáceis de compreender que de definir. Sentimo-la por efeito da transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo veio revelar-nos e cuja simulação é impossível, porque não se pode mudar a natureza das correntes fluídicas por elas projetada.

Erra grosseiramente quem acredita poder substituí-la pela baixa e servil lisonja, que não seduz senão as almas orgulhosas, é por esta mesma lisonja que as almas elevadas reconhecem a sua ausência.

Não há como substituir o calor pelo gelo.([80])

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí nos acharemos a braços com certas fraquezas humanas, das quais nem sempre a doutrina triunfa imediatamente. As mais difíceis de vencer são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originais do homem. Entre os adeptos convencidos, não há verdadeiramente deserções, porque aquele que desertasse por um motivo de interesse ou outro qualquer, não teria sido verdadeiramente espírita. Pode porém haver defecções.

A coragem e a perseverança pode desfalecer diante de uma decepção, de uma ambição iludida, de uma preeminência não alcançada, do amor próprio ofendido, de uma prova difícil. Recuam diante do sacrifício da comodidade, temem comprometer os interesses materiais, receiam do que possam outros dizer, ficam desnorteados com uma mistificação. Não se deserta, mas esfria-se. Vivem para si, e não para os outros, querem o benefício da crença, mas desde que nada lhes custe. Os que assim procedem podem ser crentes; mas são crentes egoístas, a quem a fé não comunicou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação. A sua alma custa a desapegar-se da matéria. Fazem número, mas não podemos contar com eles.

Os demais são espíritas dignos da denominação, aceitam todas as consequências da doutrina e caracterizam-se pelos esforços que fazem para melhorar.

Sem desprezarem, além do que é razoável, os interesses materiais, consideram-nos o acessório e não o essencial; a vida terrestre é para eles uma travessia mais ou menos penosa; do seu emprego útil ou inútil depende o seu futuro; as alegrias que dá são mesquinhas comparadas às que lobrigam adiante; não recuam diante dos obstáculos que encontram no caminho; as vicissitudes, as decepções são provas que não os desanimam, porque o repouso é o prêmio do trabalho. E por isso que não vemos no meio destes nem deserções, nem defecções.

Também os bons Espíritos protegem, visivelmente, os que lutam com perseverança e coragem, com devotamento sincero e sem pensamento reservado. Eles os ajudam a triunfar dos obstáculos e atenuam as provas, que não lhes podem evitar; ao passo que abandonam, não menos visivelmente, os que sacrificam a causa da verdade pela ambição pessoal.

Devemos incluir entre os desertores do Espiritismo os que se retiram por não concordarem com o nosso método muito lento ou muito rápido; pretendem alcançar mais cedo e em melhores condições o fim, a que nos propomos? Não, certamente, se os guia o desejo sincero de propagar a verdade. Sim, se os seus esforços tenderem somente a pô-los em evidência, a captarem a atenção pública para satisfazerem o seu amor próprio e interesse pessoal.

Tendes uma opinião, que não é a nossa. Não simpatizais com os nossos princípios. Nada prova que a verdade esteja convosco e não conosco.

Podeis divergir em ciência, mas fazei as vossas pesquisas, e nós faremos as nossas; o futuro mostrará quem teve razão.

Não temos a pretensão de ser os únicos capazes de fazer estudos sérios, úteis, e o que temos feito, outros poderão igualmente fazê-lo.

Os homens inteligentes reúnam-se conosco ou fora, e nós faremos as nossas; o futuro mostrará quem teve razão. Melhor, porque será sinal evidente de progresso, que aplaudiremos com todas as veras.

Quanto às rivalidades e tentativas para suplantar-nos, temos razão poderosa para não as temer. Trabalhamos por compreender, por engrandecer a inteligência e o coração; lutamos com os outros, mas a nossa luta é a da caridade e a da abnegação.

Seja a nossa divisa o amor do próximo, inscrito em nossa bandeira, e a pesquisa da verdade, venha donde vier, seja o nosso único fim! Com esses sentimentos desafiaremos a crítica dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores.

Quando nos enganamos, não temos obstinado amor-próprio de sustentar o que verificamos ser falso; mas há princípios, sobre os quais não pode haver engano: o amor do bem, a abnegação, a renúncia aos sentimentos de inveja e ciúme. Estes princípios são os nossos, porque neles vemos o laço, que deve unir todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência das suas opiniões. Só o egoísmo e a má-fé levantam, entre eles, barreiras insuperáveis. Qual será porém a consequência deste estado de coisas?

Com certeza os manejos dos falsos irmãos podem momentaneamente produzir passageiras perturbações e por isso mesmo há necessidade de frustrá-las, conquanto não possam ser prejudiciais para o futuro, não só porque são manobras de oposição, que caem por sua natureza, como porque, digam e façam o que quiserem, nunca conseguirão tirar à doutrina o seu caráter distintivo, a filosofia racional e lógica, a moral consoladora e regeneradora.

As bases do Espiritismo já são hoje inabaláveis: os livros escritos com clareza e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a exata expressão do ensino dos Espíritos, que o transmitirão intacto às futuras gerações.([81])

Convém não esquecer que nos achamos em um momento de transição, e nenhuma transição se efetua sem conflito. Não é pois de admirar que se agitem certas paixões, quais as ambições contrariadas, os interesses feridos, as pretensões malogradas. Pouco a pouco, porém, tudo isto cessará, a febre se acalmará, os homens passarão e as novas ideias ficarão.

Espíritas, se quiserdes ser invencíveis, sede benevolentes e caritativos. O bem é um escudo contra o qual se quebram as armas da maldade! Não tenhamos receio; o futuro é nosso, deixemos os adversários se debaterem ofuscados pela verdade. Toda oposição é impotente contra a evidência, que triunfará inevitavelmente pela própria força das coisas. A generalização do Espiritismo é questão de tempo, e, neste século, o tempo voa ao impulso do progresso.

ALLAN KARDEC

Observações. — Publicamos, como complemento deste artigo, uma instrução dada, depois de sua entrada no mundo espiritual. Por Allan Kardec.

Parece-nos interessante juntar às páginas eloquentes que aí ficam, a opinião atual daquele que foi, por excelência, o organizador da nossa filosofia.

Paris, novembro de 1869

Quando me achava corporalmente entre vós, muitas vezes disse que seria de grande interesse fazer a história do Espiritismo. Mantenho esta opinião, e os elementos, que reuni para aquele fim, servirão um dia para ver o meu pensamento realizado.

Com efeito, acho-me em condições de apreciar melhor que ninguém, o curioso espetáculo operado pelo descobrimento e vulgarização de uma grande verdade. Outrora pressentia, hoje conheço a ordem maravilhosa e a inconcebível harmonia, que presidem à concentração dos documentos necessários para a organização da nova obra.

A benevolência, a boa vontade, a dedicação de uns; a má fé, a hipocrisia, as artimanhas maldosas de outros; tudo isto concorre para a estabilidade do edifício, que se ergue.

Nas mãos das potências superiores, que presidem a todos os progressos, se tornam instrumento de elaboração as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques, que têm por fim semear o descrédito e o ridículo.

O que não é feito! Que meios não empregaram para sufocar a ideia nova!

O charlatanismo e a superstição, à porfia, tentaram apossar-se desses princípios, para explorá-los em seu proveito; todos os raios da imprensa foram lançados sobre nós; converteram em derrisão as mais respeitáveis coisas; ao Espírito do mal atribuíram os ensinos dos Espíritos mais dignos de admiração e veneração universais e, no entanto, todos esses esforços congregados, esta coligação de todos os interesses feridos, só serviram para provar a impotência dos nossos adversários. É ao calor dessa luta incessante contra os preconceitos estabelecidos, contra os erros enraizados, que aprendeis a conhecer os homens.

Quando me entreguei à minha obra predileta, sabia que me expunha ao ódio, à inveja, ao ciúme. O caminho estava semeado de dificuldades sempre crescentes. Não podendo refutar a doutrina, atacavam o homem; mas falhava ainda esta arma, porque eu tinha feito abnegação da minha personalidade. Que me importavam os botes da calúnia, se a minha consciência e a magnitude da empresa me tornavam insensível às urzes e espinhos do caminho?

Os testemunhos de simpatia e estima, que recebia dos que me apreciavam, era a maior recompensa a que aspirava. Ah! quantas vezes teria eu vergado ao peso da carga, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me tivessem feito esquecer a ingratidão e a injustiça de alguns?

Se os ataques dirigidos contra mim sempre me encontravam insensível, devo dizer que era penosamente afetado, todas as vezes que encontrava falsos amigos naqueles de quem mais devia esperar.

Se me é lícito censurar os que tentaram explorar o Espiritismo, ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o prévio e necessário estudo; mais justa é a censura feita àqueles que, depois de haverem assimilado os altos princípios, não se contentaram com retrair-se, mas tornaram-se os seus mais intransigentes detratores!

É sobretudo para os desertores desta categoria que é preciso evocar a misericórdia divina, porque eles voluntariamente apagaram o facho que os esclarecia e com a ajuda do qual podiam esclarecer a outros. Esses pobres infelizes perdem a proteção dos bons Espíritos e temos a dolorosa experiência de que, de queda em queda, chegam à mais penosa situação. Ao tornar ao mundo dos Espíritos, tive a ocasião de encontrar alguns desses infelizes.

Agora arrependem-se e choram pela sua inação e má vontade; mas não podem reparar o tempo perdido!... Voltarão à Terra com a firme resolução de concorrer ativamente para o progresso; mas terão de lutar com as velhas tendências, até que consigam vencê-las.

Poderíamos ser levados a crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam incorrer nos mesmos erros. Assim não será porém. Por muito tempo ainda haverá falsos irmãos e fingidos amigos; estes porém não conseguirão, como não o conseguiram outros antes deles, afastar o Espiritismo da sua estrada. Se causam algumas perturbações momentâneas e puramente locais, não farão periclitar com isto os fundamentos da doutrina; pelo contrário, os espíritas devotados terão em seus erros novo estímulo para o trabalho e, agindo de concerto com os Espíritos superiores, que dirigem as transformações humanas, avançarão a passos rápidos para os tempos felizes prometidos à humanidade regenerada.

Breve Resposta aos Detratores do Espiritismo

O direito de exame e de crítica é um direito imprescritível ao qual o Espiritismo não tem a pretensão de esquivar-se, como não tem a de agradar a todos. Todos têm o direito de aceitá-lo ou repeli-lo, contanto que o façam com conhecimento de causa.

A crítica, que se lhe há feito, tem o mais das vezes provado ignorância dos seus mais elementares princípios, fazendo-o dizer exatamente o contrário do que ele diz, atribuindo-lhe o que ele combate, confundindo-o com imitações grosseiras e burlescas de charlatanismo, considerando enfim como regra geral as excentricidades de alguns indivíduos. Muitas vezes também a maledicência quis responsabilizá-lo por atos repreensíveis e ridículos, em que o seu nome se achou incidentalmente envolvido, fazendo da ocorrência arma contra ele.

Antes de imputar a uma doutrina incitação a um ato condenável, manda a razão e a equidade que se examine se ela consagra princípios, que o justifiquem. Para que reconheçam a responsabilidade, que cabe ao Espiritismo, em uma circunstância dada, há um meio bem simples: inquirir de boa fé, não dos adversários, mas da própria doutrina, o que ela aprova e o que condena. Tanto fácil é este estudo, quanto é certo não ter ele mistérios, visto como os ensinos são publicados e podem ser todos apreciados.

Se pois os livros da doutrina espírita condenam explícita e formalmente um ato reprovável, se além disso não encerram senão instruções para o bem, é evidente que os culpados de ações ruins não beberam neles as suas inspirações, e talvez nem os tivessem visto.

O Espiritismo não é mais solidário com os que se dizem espíritas do que a medicina com os charlatães que a exploram, ou a verdadeira religião com os abusos e crimes praticados em nome dela. Só reconhece por adeptos os que praticam os seus ensinos, isto é, os que trabalham pelo próprio melhoramento moral procurando vencer as suas más inclinações, trabalhando por ser menos egoístas e menos orgulhosos, mais benevolentes, mais humildes, pacientes, caridosos para com o próximo, mais moderados em tudo; pois são esses os sinais característicos do verdadeiro espírita.

O fim deste breve escrito não é refutar todas as falsas alegações contra o Espiritismo, nem desenvolver e provar todos os seus princípios, e ainda menos converter às suas ideias os que professam opiniões contrárias; mas dizer, em poucas palavras, o que ele é e o que não é, o que admite e o que repele.

As suas crenças, tendências e fins, resumem-se nas seguintes proposições:

1.° — O elemento espiritual e o elemento material são os dois princípios, as duas forças vivas da natureza, contemplando-se uma pela outra, e reagindo incessantemente uma sobre a outra, sendo ambas indispensáveis ao funcionamento do mecanismo do universo. Da ação recíproca destes dois princípios nascem fenômenos, que qualquer deles, isoladamente, não pode explicar.

A ciência, propriamente dita, tem por missão especial o estudo das leis da matéria. O Espiritismo tem por objeto o estudo do elemento espiritual em suas relações com o elemento material, e descobre, na união destes dois princípios, a razão de inumeráveis fatos até agora inexplicados.

O Espiritismo marcha de par com a ciência, no terreno da matéria, admite todas as verdades, que a ciência demonstra, mas onde terminam as investigações desta, ele começa as suas, no terreno da espiritualidade.

2.° — Sendo o elemento espiritual um estado ativo da natureza, os fenômenos dele oriundos são submetidos a leis, e, conseguintemente, são tão naturais, como os oriundos da matéria inerte. Alguns deles têm sido reputados sobrenaturais unicamente por ignorância das leis que os regem. Firmado neste princípio, o Espiritismo não admite o caráter miraculoso atribuído a certos fatos, embora acredite na sua possibilidade e na sua realidade. Para ele, não há milagres no sentido de ab-rogação das leis naturais; o que implica não fazerem milagres os espíritas e ser imprópria a qualificação, que lhes dão, de taumaturgos.

O conhecimento das leis, que regem o princípio espiritual, prende-se diretamente à questão do passado e do futuro do homem. Sua vida é limitada à existência atual? Entrando neste mundo, sai do nada e volta ao nada, saindo dele? Viveu antes de vir e viverá depois que ir? Como ir e em que condições viverá? Numa palavra, de onde veio e para onde vai? Para que está na Terra e por que motivo aí sofre? São questões que todos levantam, porque são elas, para todos, de capital interesse e nenhuma doutrina lhes deu solução racional.

Aquela que dá o Espiritismo, apoiado nos fatos, satisfazendo exigências da lógica e da justiça mais rigorosa, é uma das principais causas da rapidez da sua propagação.

O Espiritismo não é uma concepção pessoal, nem o resultado de um sistema preconcebido. É a resultante de milhares de observações feitas em todos os pontos do globo, as quais têm convergido para um centro, que as coligiu e coordenou. Todos os seus princípios fundamentais são deduzidos, sem exceção, de rigorosa experiência.([82])

A experiência precedeu a teoria, e por isso o Espiritismo, desde o seu começo, lançou raízes por toda a parte. A história não oferece exemplo de uma doutrina filosófica ou religiosa que tenha em dez anos reunido tão grande número de adeptos; e, no entanto, ele não empregou, para tornar-se conhecido, nenhum dos meios vulgares usados. Propagou-se por si mesmo pelas simpatias que encontrou.

Não menos notável é o fato de não ter ele, em país algum, surgido das camadas mais baixas da escala social. Foi nas classes esclarecidas que ele encontrou o melhor acolhimento, sendo a parte iletrada de seus sectários uma ínfima minoria.([83])

Está averiguado que a propagação do Espiritismo seguiu, desde a sua origem, marcha constantemente ascendente, apesar dos esforços empregados para entravá-lo e desnaturar-lhe o caráter, a fim de desacreditá-lo na opinião pública.

E parece incrível que tudo quanto se tem feito naquele sentido não tem servido senão para favorecer-lhe a difusão. O estardalhaço feito levou-o ao conhecimento de muita gente, que o desconhecia. Quanto mais procuram enegrecê-lo e ridicularizá-lo, levantando invectivas violentas, tanto mais provocam a curiosidade.

E, como só tem a ganhar com o exame, resultou de tudo aquilo que os seus adversários se tornaram os mais ardentes propagandistas. Se as diatribes nenhum mal lhe têm feito é porque quem o estuda em sua verdadeira origem o conhece muito diferente daquilo que o pintam.

Nas lutas, que teve de sustentar, os homens imparciais aplaudiram-lhe a moderação e, de fato, ele nunca empregou a represália, nem respondeu à injuria com a injúria.

O Espiritismo é uma doutrina filosófica, que tem consequências religiosas, como toda filosofia espiritualista; pelo que toca forçosamente nas bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma, a vida futura. Não é ele, porém, uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templo, e, entre os seus adeptos, nenhum tomou nem recebeu o título de sacerdote ou papa. Estas qualificações são puras invenções da crítica.

Espírita é quem aceita os princípios da doutrina e conforma com eles as suas obras.

É uma opinião, como qualquer outra, que todos têm o direito de professar, como tem o de ser judeu, católico, protestante, furierista(·), são-simoniano(··), voltariano, cartesiano, deísta e até materialista...

O Espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; reclama-a para si e para todos, respeita toda a convicção sincera e pede reciprocidade.(···)

Da liberdade de consciência resulta, em matéria de fé, o direito de livre exame. O Espiritismo combate o princípio da fé cega, que impõe ao homem a abdicação de seu próprio juízo, reconhecendo que não pode ter fundamento a fé imposta.

No número das suas máximas está esta: "A fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade".

Consequente com os seus princípios, o Espiritismo não se impõe a ninguém: quer ser aceito livremente e por convicção; expõe a doutrina e acolhe os que o procuram voluntariamente.

Não tenta demover quem quer que seja das próprias convicções religiosas. Não se dirige àqueles que possuem uma fé, com a qual estão satisfeitos, mas somente àqueles que, não estando satisfeitos com a que têm, procuram coisa melhor.

 


 

Segunda Parte

 

Transcrições In-Extenso do Livro das Previsões Referentes ao Espiritismo

MANUSCRITO FEITO COM ESPECIAL CUIDADO

POR

ALLAN KARKDEC

E DO QUAL NENHUM CAPÍTULO FOI ATÉ HOJE PUBLICADO (·)

 


 

A Minha Iniciação no Espiritismo

Foi em 1854 que ouvi falar pela primeira vez em mesas girantes. Encontrando-me um dia com o Sr. Fortier, magnetizador que eu conhecia, havia muito, disse-me ele:

— Sabeis que se acaba de descobrir no magnetismo uma singular propriedade? Parece que não são somente as pessoas que se magnetizam, mas também as mesas que giram e andam à nossa vontade.

— E com efeito singular — respondi-lhe — mas isso não me parece rigorosamente impossível. O fluido magnético, espécie de eletricidade, pode muito bem atuar sobre os corpos inertes e fazê-los mover.

As notícias dadas pelos jornais de experiências feitas em Nantes, Marselha e outras cidades, não permitiam duvidar da realidade do fenômeno. Tempos depois, tornei a encontrar Fortier, que me disse:

— Mais extraordinário do que fazer uma mesa girar e andar é fazê-la falar: perguntam e ela responde.

— Isso é outra questão — respondi-lhe — Só acreditarei se vir ou se me provarem que a mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que pode tornar-se sonâmbula. Até então, permita-me que considere isso uma história fabulosa.

Este raciocínio era lógico. Eu compreendia a possibilidade do movimento por uma força mecânica, mas, ignorando a causa e a lei do fenômeno, parecia-me absurdo atribuir inteligência a uma coisa material. Coloquei-me na posição dos incrédulos dos nossos dias, que negam, porque não podem compreender os fatos.

Há 50 anos, se tivessem dito, pura e simplesmente, a alguém que era possível a transmissão de uma notícia a 500 léguas, e a recepção da resposta, dentro de uma hora, obter-se-ia uma gargalhada em troco, aliás bem firmada em razões científicas, que provavam a impossibilidade material do fato. Hoje, que a lei da eletricidade é conhecida, ninguém o contesta, nem mesmo um campônio. O mesmo acontece aos fenômenos espíritas.

Para quem não conhece a lei que os rege, parecem sobrenaturais, maravilhosos e, por conseguinte, impossíveis e ridículos. Conhecida, porém, essa lei, desaparece o maravilhoso e eles não têm mais nada que repugne a razão, porque se lhe compreende a possibilidade.

Eu achava-me, pois, diante de fato contrário às leis conhecidas da natureza e repugnante à minha razão. Ainda não tinha visto, nem observado nenhum caso. As experiências feitas na presença de pessoas acima de toda a suspeição e dignas de maior fé, não me permitiam duvidar do efeito puramente material; mas a ideia de uma mesa falante não podia entrar em meu cérebro.

No ano seguinte, em princípios de 1855, encontrei o Sr. Carlotti, amigo de vinte e cinco anos, que, com o entusiasmo, que despertam as ideias novas, falou-me dos fenômenos que me preocupavam. O Sr. Carlotti era corso, de natureza ardente e enérgica, e eu sempre estimei nele as qualidades, que distinguem uma grande e bela alma, mas desconfiava da sua exaltação. Foi ele quem primeiro me falou da comunicação dos Espíritos, contando-me tantas coisas surpreendentes, que, longe de me convencerem, aumentaram as minhas dúvidas.

— Um dia serás dos nossos — disse-me — e eu respondi-lhe:

— Não digo que não; veremos mais tarde.

Algum tempo depois, em maio de 1855, fui à casa da Sra. Roger, sonâmbula, em companhia de Fortier, seu magnetizador. Ali encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. de Plainemaison, que me falaram no mesmo sentido que Carlotti, mas em outro tom.

O Sr. Pâtier era empregado público, homem de meia-idade, muito instruído, de caráter grave, frio e calmo. A sua linguagem comovida, isenta de entusiasmo, produziu-me viva impressão, e, quando me convidou para assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison, na Rua Batelière, 18, aceitei o convite com sumo prazer. Emprazamo-nos para terça-feira, às 8 horas da noite. Ale, pela primeira vez, fui testemunha do fenômeno das mesas que giram, saltam e correm; e o fui em condições de não poder alimentar dúvida. Vi, também, alguns ensaios, muito imperfeitos, de escrita mediúnica em uma ardósia, com o auxílio de uma cesta.

Longe estava eu de firmar as minhas ideias mas ali se deparava um fato, que devia ter uma causa. Entrevi, oculto naquelas futilidades aparentes, e entre aqueles fenômenos, de que se fazia um passatempo, algo de muito sério, talvez a revelação de uma nova lei, que fiz o propósito de descobrir. Bem cedo tive ocasião de observar mais atentamente do que até então o havia feito.

Em uma das sessões da Sra. Plainemaison, travei relações com a família Baudin, que morava na Rua Rochecourt. O Sr. Baudin convidou-me para as suas sessões hebdomadárias, nas quais fui assíduo. As reuniões eram muito numerosas, admitindo-se quem quer que o pedisse, além das pessoas habituais. Os dois médiuns eram as Srtas. Baudin, que escreviam numa pedra, com o auxílio da cesta, chamada tupia([84]), descrita em O Livro dos Médiuns.

Este método, que exige o concurso de duas pessoas, exclui toda a possibilidade de participação das ideias do médium. Por ele vi comunicações seguidas e respostas dadas, não só a perguntas, que eram propostas, como até a mentais, fato que denunciava, em toda a evidência, a intervenção de inteligência estranha.

Os assuntos aí tratados eram geralmente frívolos; ocupavam-se principalmente de coisas da vida material; nada verdadeiramente sério, sendo a curiosidade e o passatempo o principal móvel dos assistentes. O Espírito, que se manifestava, habitualmente, dava o nome de Zéfiro, de acordo com o seu caráter e com o da reunião; entretanto, era muito bom e tinha-se declarado protetor da família. Se quase sempre fazia rir, sabia, a propósito, dar bons conselhos e manejar, convenientemente, o epigrama mordaz e espirituoso.

Em pouco nos relacionamos e ele deu-me constantes provas de grande simpatia. Não era muito adiantado, porém, mais tarde, assistido por Espíritos superiores, ajudou-me nos meus primeiros trabalhos. Depois, disse-me que devia reencarnar, e nunca mais tive notícias suas.

Foi ali que fiz os meus primeiros estudos sérios sobre Espiritismo, não tanto pelas revelações, como pelas observações. Apliquei a esta ciência o método experimental, não aceitando teorias preconcebidas, e observava atentamente, comparava e deduzia as consequências, dos efeitos procurava elevar-me às causas, pela dedução e encadeamento dos fatos, não admitindo por valiosa uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus anteriores trabalhos, desde os 15 anos.

Compreendi logo a gravidade da tarefa, que ia empreender, e entrevi naqueles fenômenos a chave do problema, tão obscuro e tão controvertido, do passado e do futuro da humanidade, cuja solução vivi sempre a procurar; era, enfim, uma revolução completa nas ideias e nas crenças do mundo.

Cumpria-me pois proceder com circunspecção e não levianamente, ser positivo e não idealista para não me deixar levar por ilusões.

Um dos primeiros resultados das minhas observações foi saber que, sendo os Espíritos as almas dos homens, não possuem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência, e que o seu saber era limitado ao grau de adiantamento, assim como a sua opinião só tinha o valor de opinião pessoal. Esta verdade, reconhecida desde o princípio, preservou-me do perigo de acreditar na infalibilidade deles e livrou-me de formular teorias prematuras sobre os ditados de um ou de alguns.

O fato apenas de comunicação com os Espíritos, independente do que eles pudessem dizer, provava a existência do mundo invisível: ponto capital, campo imenso aberto às nossas explorações, chave de uma multidão de fenômenos inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era conhecer o estado desse mundo e os seus costumes, se assim me posso exprimir. Vi logo que cada Espírito, segundo a sua posição e conhecimentos, me patenteava uma fase daquele mundo, do mesmo modo como se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habitantes de todas as classes e condições, podendo cada um ensinar-nos alguma coisa e nenhum, individualmente, ensinar tudo.

Incumbe ao observador formar o conjunto, coordenado, colecionando e conferindo, uns com os outros, documentos que tenha recolhido. Procedi com os Espíritos como teria feito com os homens; considerei-os, desde o menor até o maior, como elementos de instrução e não como reveladores predestinados.

Tais foram as disposições com que empreendi e com que sempre segui os estudos espíritas: observar, comparar e julgar, essa foi a regra invariável que me impus.

As sessões da casa do Sr. Baudin nunca tinham tido fim determinado: procurei, nelas, resolver problemas, que me interessavam, sobre filosofia, psicologia e natureza do mundo invisível. Em cada sessão, apresentava uma série de perguntas preparadas e metodicamente arranjadas, e tinha sempre respostas precisas, profundas e lógicas. As reuniões tomaram então outro caráter. Entre os assistentes achavam-se pessoas sérias, que tomaram vivo interesse pelo meu estudo, e se me acontecia faltar um dia, nenhum trabalho se fazia. As questões fúteis tinham perdido todo o atrativo para a maior parte. A princípio não tive em vista senão a minha própria instrução, mais tarde, porém, quando vi que formava um núcleo em torno do qual os trabalhos tomavam as proporções de uma doutrina, pensei em torná-los públicos para a instrução de todos. Foram aquelas questões, desenvolvidas e completadas, que constituíram a base de O Livro dos Espíritos.

No ano seguinte, em 1856, acompanhei também as reuniões espíritas da Rua Tiquetone, em casa do Sr. Roustan e Srta. Japhet, sonâmbula. Essas reuniões eram sérias e ordeiras. O meu trabalho estava quase acabado e dava para um livro; mas eu quis revê-lo com outros Espíritos, mediante outros médiuns. Tive o pensamento de fazer dele objeto de estudo para as sessões do Sr. Roustan; mas no fim de algumas sessões, os Espíritos disseram que preferiam revê-lo na intimidade e marcaram para este efeito certos dias, em que trabalhariam com a Srta. Japhet, a fim de o fazerem com mais calma e mesmo para evitar indiscrições e comentários prematuros do público. Não me contentei com essa verificação que os próprios Espíritos me recomendaram.

Tendo-me relacionado com outros médiuns, sempre que se me oferecia ocasião, a aproveitava para propor algumas das perguntas, que me pareciam mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram a sua assistência ao trabalho e foi da comparação e da fusão de todas essas respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes remoídas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, aparecida a 18 de abril de 1857.

No fim daquele ano, as duas Baudin casaram; as reuniões não se realizaram mais e a família dispersou-se. Mas então as minhas relações começavam a estender-se e os Espíritos multiplicaram-me os meios para obter os ulteriores trabalhos.([85])

Meu Espírito Protetor

11 de dezembro de 1855

Casa do Sr. Baudin — Médium, a Sra. Baudin.

Pergunta ao Espírito Zéfiro. — Há no mundo dos Espíritos algum que seja para mim um bom gênio?

Resposta. — Sim.

P. É o Espírito de um parente ou de um amigo?

R. Nem um, nem outro.

P. Que foi ele na Terra?

R. Um homem justo e sábio.

P. Que devo fazer para alcançar a benevolência dele?

R. Todo o bem que puderes.

P. Qual o sinal por onde poderei reconhecer-lhe a intervenção?

R. A satisfação que experimentares.

P. Há meio de evocá-lo? Qual é?

R. Ter fé viva e chamá-lo com instância.

P. Depois de morto, reconhecê-lo-ei no mundo dos Espíritos?

R. Que dúvida! Ele virá receber-te e felicitar-te, se tiveres satisfeito o teu compromisso.

Observação. — Vê-se por estas perguntas que eu ainda era muito noviço nas coisas do mundo espiritual.

P. O Espírito de minha mãe vem visitar-me algumas vezes?

R. Sim, e protege-te, quando lhe é possível.

P. Eu a vejo muita vez em sonho; será uma recordação, efeito da imaginação?

R. Não; é ela que aparece e tu deves compreendê-lo pela emoção, que sentes.

Observação. — Isso era perfeitamente exato. Quando minha mãe me aparecia em sonho, eu sentia uma emoção indescritível, o que a médium não podia saber.

P. Quando evocamos — S —, e lhe perguntamos se ele poderia ser protetor de um de nós, ele nos respondeu: "Se um de vós se mostrar digno, eu estarei com ele; Zéfiro vo-lo dirá". Julgas-me digno desse favor?

R. Se o quiseres.

P. Que devo fazer para merecê-lo?

R. Todo o bem que puderes, suportando com coragem as penas desta vida.

P. Sou apto, pela natureza da minha inteligência, para penetrar, quanto é permitido ao homem, às grandes verdades do nosso destino futuro?

R. Sim; tens a necessária aptidão; mas o resultado depende da tua perseverança no trabalho.

P. Posso concorrer para a propagação dessas verdades?

R. Certamente.

P. Por que meios?

R. Mais tarde o saberás; no entanto, trabalha.

Meu Guia Espiritual

25 de março de 1856.

Em casa do Sr. Baudin — Médium, a Srta. Baudin.

Naquele tempo morava eu na Rua dos Mártires, 8, 2.° andar, no fundo da casa.

Uma noite, achando-me no gabinete de trabalho, ouvi fracas, reiteradas pancadas na parede, que o separava do cômodo vizinho.

A princípio nenhuma atenção lhes dei; como porém continuassem com mais força, variando de pontos, fiz minucioso exame de um e de outro lado da parede e escutei para ver se partiam do outro andar, sem descobrir-lhes explicação. O que havia de particular é que toda a vez que eu examinava, cessava o ruído, recomeçando logo que voltava ao trabalho. Minha mulher entrou pelas 10 horas, veio ao gabinete e, ouvindo as pancadas, perguntou-me o que era aquilo.

— Não sei — respondi-lhe — há uma hora que se dá isto.

Procuramos, os dois, sem nada descobrir, continuando o ruído até a meia-noite, quando fui deitar-me. No dia seguinte, havendo sessão em casa do Sr. Baudin, contei o fato e pedi explicação.

P. Tendes, certamente, visto o fato que acabo de referir; podereis dizer-me qual a causa das pancadas tão persistentes, que ouvi?

R. Foi o teu Espírito familiar.

P. Com que fim batia daquele modo?

R. Queria falar-te.

P. Podereis dizer-me quem ele é e o que queria?

R. Pergunta-lhe, que ele está aqui.

Observação. — Naquela época não se fazia ainda distinção entre as diversas categorias de Espíritos simpáticos; confundiam-se sob a denominação geral de Espíritos familiares.

P. Espírito familiar, quem quer que sejais, agradeço-vos a visita e peço-vos que me digais quem sois.

R. Para ti, chamar-me-ei A Verdade e todos os meses, por um quarto de hora, aqui estarei à tua disposição.([86])

P. Ontem, quando dáveis sinal, enquanto eu trabalhava, tínheis alguma coisa particular a dizer-me?

R. O que eu tinha a dizer-te era sobre o que estavas fazendo. O que escrevias me desagradava e eu queria que cessasse.

Observação. — O que eu escrevia era precisamente sobre os estudos, que fazia quanto aos Espíritos e suas manifestações.

P. A vossa desaprovação era quanto ao capítulo, que eu escrevia, ou sobre o assunto em geral?

R. Sobre o capítulo. Faço-te juiz. Torna a lê-lo esta noite e, reconhecendo as tuas faltas, hás de emendá-las.

P. Eu mesmo não fiquei satisfeito e reformei-o hoje. Ficou melhor?

R. Está melhor, mais ainda não está bom. Lê da 3ª à 30ª linha e reconhecerás um grave erro.

P. Rasguei o que escrevi ontem.

R. Não importa. A falta subsiste. Lê e verás.

P. O nome de Verdade, que tomaste, é alusivo à verdade que procuro?([87])

R. Talvez. Pelo menos é um guia que te protegerá e te ajudará.

P. Posso evocar-vos em minha casa?

R. Sim, para assistir-te em pensamento; quanto a respostas escritas, muito tempo levarás antes de obtê-las.

Observação. — De fato, pelo espaço de um ano, nunca pude obter, em casa, comunicação alguma escrita, e toda a vez que ali se achasse um médium, de quem esperasse obter alguma coisa, surgiam circunstâncias imprevistas, que o impediam. Não obtinha comunicações senão fora de casa.

P. Não podeis vir mais de uma vez por mês?

R. Posso; mas até nova ordem, não prometo.

P. Animaste alguma pessoa conhecida na Terra?

R. Disse-te que para ti eu era a Verdade; este para ti quer dizer — discrição; não deves querer saber mais.([88])

Observação. — À noite, entrando em casa, apressei-me a ler o que havia escrito e, tanto no rascunho atirado à cesta, como em o novo escrito, reconheci um grave erro na 30ª linha, que me admirei de haver cometido. Desde então nenhuma manifestação daquele gênero se deu, por inútil, visto acharem-se estabelecidas as relações com o meu espírito protetor. As conferências mensais, que ele me havia prometido, não foram pontualmente realizadas, a princípio, e mais tarde deixaram de o ser completamente. Foi sem dúvida para advertir-me de que devia trabalhar por mim mesmo e não me acostumar a recorrer a ele, para resolver qualquer dificuldade, por mais insignificante que fosse.

9 de abril de 1856

Em casa do Sr. Baudin — Médium, a Srta. Baudin

P. (À Verdade). Criticaste o trabalho, que fiz outro dia, e tiveste razão. Tornei a lê-lo e reconheci na 30ª linha um erro contra o qual protestaste com as pancadas que me fizeste ouvir. Tive de reconhecer outros defeitos e refazer o trabalho. Estais agora mais satisfeito?

R. Acho-o melhor; mas peço-te que demores um mês em dá-lo à publicidade.

P. O que quereis dizer em dá-lo à publicidade? Eu não tinha intenção de publicá-lo agora, se é que algum dia o faça.

R. Quero dizer — mostrá-lo a alguém. Procura qualquer pretexto para recusá-lo aos que te pedirem. Daqui até lá, poderás melhorá-lo. Faço-te esta recomendação para poupar-te à crítica. É o teu amor- próprio que zelo.

P. Disseste-me que seríeis para mim um guia a ajudar-me e a proteger-me. Compreendo essa proteção e o seu fim em certa ordem de coisas; mas tende a bondade de dizer-me se também se estende às coisas materiais da vida.

R. A vida material é na Terra coisa de grande importância. Não te ajudar a viver, seria não te amar.

Observação. — A proteção desse Espírito, cuja elevação bem longe estava então de avaliar, nunca me faltou. A sua solicitude, e a dos bons Espíritos às suas ordens, estendeu-se a todas as circunstâncias da minha vida, tanto em relação às dificuldades materiais, como para facilitar-me os trabalhos e preservar-me da malevolência dos meus antagonistas, sempre reduzidos à impotência. Se não me foram poupadas as tribulações inerentes à missão, que eu tinha que desempenhar, foram, entretanto, atenuadas e compensadas por bem doces satisfações morais.

Primeira Revelação da Minha Missão

30 de abril de 1856

Em casa do Sr. Roustan — Médium, a Srta. Japhet

Frequentava eu, havia algum tempo, as sessões do Sr. Roustan e tinha começado a verificação do trabalho, que devia ser O Livro dos Espíritos.

Em uma sessão íntima, a que não assistiram senão sete ou oito pessoas, entretínhamo-nos com diferentes assuntos relativos aos acontecimentos, que podiam produzir uma transformação social; e eis que o médium, tomando a cesta, escreve espontaneamente o seguinte:

"Quando soar o bordão, o deixareis; somente tendes de aliviar o vosso semelhante; individualmente, haveis de magnetizá-lo para o curar. Depois, cada um em seu posto; todos necessários, porque tudo será destruído por um momento.

"Não haverá diversas religiões, nem há mister senão de uma que é verdadeira, grande, bela e digna do Criador... Os seus primeiros fundamentos já foram lançados...

"Rivail, a tua missão é esta: (a cesta, libertando-se, voltou-se para mim rapidamente, como o faria uma pessoa, que me apontasse com o dedo) A ti, M..., compete a espada que não fere, porém mata; contra tudo o que existe, és tu que virás, primeiro; Rivail virá depois; é o operário que reconstrói o que foi demolido."

NOTA — Foi a primeira revelação positiva da minha missão e confesso que, quando vi a cesta dirigir-se abruptamente para mim e designar-me pelo nome, não pude forrar-me a profunda comoção.

O Sr. M., que assistia à sessão, era um moço de opiniões radicais, comprometido em negócios políticos, pelo que era obrigado a não por-se em evidência.

Acreditando num próximo cataclismo, preparava-se para nele tomar parte e combinava planos de reforma. Era não obstante um homem brando e inofensivo.([89])

A Minha Missão

7 de maio de 1856

Em casa do Sr. Roustan — Médium, a Srta. Japhet

P. (A Hahnemann). Outro dia disseram-me os Espíritos que eu tinha uma importante missão a desempenhar e me indicaram o seu objetivo. Desejo saber se o confirmais.

R. Sim, e se interrogares as tuas aspirações, as tuas tendências e o objeto quase constante das tuas meditações, não te surpreenderá o que te disseram. Deves realizar o teu sonho de longo tempo. É preciso, porém, que trabalhes ativamente para estares pronto, porque o dia está mais próximo do que pensas.

P. Para desempenhar essa missão, como a compreendo, são preciso meios, que ainda estão longe de mim.

R. A Providência fará a sua obra, e ficarás satisfeito.

Acontecimentos

P. A comunicação do outro dia leva a presumir que teremos gravíssimos acontecimentos. Podeis dar-nos explicações a respeito do assunto?

R. Não nos é dado precisar os fatos; o que podemos dizer é que haverá muitas ruínas e desolações, porque os tempos previstos para a renovação da humanidade são chegados.

P. O que causará essas ruínas? Será um cataclismo?

R. Não haverá cataclismo material, como o entendeis, mas flagelos de toda espécie assolarão as nações, a guerra dizimará os povos, as instituições decrépitas se afundarão num mar de sangue. É preciso que o velho mundo se esboroe para abrir uma nova era de progresso.

P. A guerra será limitada a um país?

R. Não; envolverá toda a Terra.

P. Nada, entretanto, parece pressagiar tempestade próxima.

R. Tudo está suspenso por um fio de teia de aranha meio corroído.

P. Poderei perguntar, sem indiscrição, de onde partirá a primeira faísca?

R. Da Itália.([90])

Acontecimentos

12 de maio de 1856

Sessão pessoal em casa do Sr. Baudin

P. (À Verdade). O que pensais do Sr. M.? Terá ele influência nos acontecimentos?

R. Mais vozes do que nozes. Ele tem boas ideias e é homem de ação; mas não é uma cabeça.

P. Deve tomar-se à risca o que foi dito quanto a caber-lhe o papel de destruidor do que existe?

R. Não; quiseram personificar nele o partido, cujas ideias compartilha.

P. Posso entreter com ele relações de intimidade?

P. Por enquanto, não; correrias perigos sem vantagens.

P. O Sr. M., que dispõe de um médium, disse que lhe precisaram a marcha dos acontecimentos, quase com dia fixo; é isto verdade?

R. Sim; fixaram-lhe épocas, mas foram Espíritos levianos, que sabem mais do que ele e que lhe exploram a exaltação. Bem sabes que não devemos precisar as coisas futuras. Os acontecimentos pressentidos devem realizar-se em um tempo próximo, mas não pode ser prefixado.

P. Os Espíritos dizem ser chegados os tempos, em que se devem completar aquelas coisas; que sentido devemos dar a essas palavras?

R. Para coisas de tamanha gravidade, que são alguns anos de mais ou menos? Elas não vêm nunca de chofre e como um raio, mas são lentamente preparadas por acontecimentos parciais que são como precursores, ruídos surdos, que precedem a erupção do vulcão. Pode pois dizer-se que os tempos são chegados, sem significar que chegarão amanhã. Quer dizer que nos achamos no período em que se realizarão.([91])

P. Confirmais o que foi dito — que não haverá cataclismo?

R. Seguramente não deveis recear, nem dilúvio, nem incêndio do nosso planeta, nem coisas deste gênero, porque não se pode dar o nome de cataclismo a perturbações locais, como as que se têm dado em todos os tempos. Não haverá senão um cataclismo moral de que os homens serão os instrumentos.([92])

O Livro dos Espíritos

10 de junho de 1856

Em casa do Sr. Roustan — Médium, a Srta. Japhet

P. (A Hahnemann). Tendo concluído a primeira parte do livro, julguei que para andar mais depressa, podia chamar o médium B... para me ajudar; que me dizeis?

R. Digo que me parece melhor não te servires dele porque a verdade não pode ser interpretada pela mentira.

P. Se o Espírito familiar de B... é mentiroso, pode ele embaraçar a comunicação de um bom Espírito?

R. Sim, porque esse médium ajuda o Espírito, prestando-se à falsidade. Aristo, seu intérprete, e B..., acabarão mal.([93])

NOTA. — B... era um moço médium, que escrevia muito facilmente, mas assistido por um Espírito orgulhoso, déspota e arrogante, que tomava o nome de Aristo e lhe lisonjeava o amor-próprio. As previsões de Hahnemann realizaram-se. Aquele moço, julgando ter na faculdade uma fonte de riqueza, quer por consultas médicas, quer por invenções e descobrimentos valiosos, não colheu senão decepções e mistificações. Passado algum tempo, não ouvimos mais falar nele.

A Minha Missão

12 de junho de 1856

Em casa do Sr. C. — Médium, a Srta. Aline C.

P. (À Verdade). Bom Espírito, desejo saber o que pensais da missão, que alguns Espíritos me atribuíram. Peço-vos que me digais se esses dizeres foram uma prova para o meu amor-próprio. Tenho, como sabeis, o maior desejo de contribuir para a propagação da verdade, mas do papel de simples trabalhador ao de missionário-chefe, imensa é a distância; e não sei o que possa justificar, em mim, um favor dessa natureza, de preferência a tantos outros, que possuem talento e qualidades, que não tenho.

R. Confirmo o que te foi dito, mas aconselho-te a maior discrição, se quiseres ser bem sucedido. Tu saberás, mais tarde, coisas que te explicarão o que agora te surpreende. Não te esqueças que tanto podes vencer como falir; neste último caso, outro te há de substituir porque, os desígnios de Deus não assentam sobre a cabeça de um homem. Nunca fales, portanto, da tua missão, pois seria um meio de falir. Ela não pode ser justificada senão depois da obra acabada e tu ainda nada fizeste. Se a acabares, os homens saberão, cedo ou tarde, reconhecê-lo, porque é pelos frutos que se conhece a qualidade da árvore.

P. Não desejo furtar-me a uma missão, em que nem sei como acreditar. Se pois estou destinado a servir de instrumento às vistas da Providência, que ela disponha de mim. Neste caso, eu reclamo a vossa assistência e a dos bons Espíritos.

R. Não te faltaremos com ela; mas inútil será se, da tua parte, não fizeres o que te incumbe. Tens o teu livre-arbítrio e, portanto, cabe-te usar dele como entenderes. Ninguém é fatalmente constrangido a fazer coisa alguma.([94])

P. Quais são as coisas, que me podem fazer cair? Será a insuficiência da minha capacidade?

R. Não; mas a missão dos reformadores é cheia de tropeços e perigos. A tua é rude, previno-te, porque tens de revolver e formar o mundo inteiro. Não suponhas que basta publicar um livro, dois, dez, e ficar tranquilo em casa; não, será preciso expor a tua pessoa.

Levantarás contra ti ódios terríveis; inimigos encarniçados conjurarão a tua perda; serás alvo da maledicência, da calúnia, da traição, até dos que te parecem dedicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e adulteradas; mais de uma vez vergarás ao peso da fadiga; em uma palavra, haverá uma luta quase constante e o sacrifício do teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde, e até da tua vida, porque, sem isto, viverias mais tempo. Pois bem! Nem um passo para trás tu deves dar quando, em vez de um caminho juncado de flores, encontrares, sob os teus pés, urzes, agudas pedras e venenosas serpentes. Para tais missões não basta a inteligência; é preciso, principalmente, para agradar a Deus, humildade, modéstia e desinteresse, porque Ele abate os orgulhosos, os presunçosos e ambiciosos.

Para lutar contra os homens é preciso coragem, perseverança e inabalável firmeza; igualmente é preciso prudência e jeito para levar as coisas de modo a não comprometer os acontecimentos por medida ou palavras intempestivas; é preciso finalmente dedicação, abnegação e disposição para o sacrifício, pois vários já recuaram.([95])

Já vês que a tua missão é subordinada a condições, que só de ti dependem.

Espírito de Verdade.

Eu. Agradeço-vos os sábios conselhos, Espírito de Verdade. Aceito tudo, sem restrição, nem pensamento reservado.

Senhor! Se vos dignaste lançar os olhos sobre mim, para satisfazer os vossos desígnios, seja feita a vossa vontade! A minha vida está em vossas mãos; disponde do vosso servo. Para tão alto empenho, eu reconheço a minha fraqueza. A minha boa vontade não falhará, mas podem trair-me as forças. Supri a minha insuficiência, dai-me as forças físicas e morais, que me sejam necessárias. Sustentai-me nos momentos difíceis e com o vosso auxílio e o dos vossos celestes mensageiros esforçar-me-ei por corresponder às vossas vistas.([96])

Observação. — Escrevo esta nota em 1o de janeiro de 1867, dez anos e meio depois de me haver sido feita esta comunicação e dou testemunho de que ela se realizou em todos os pontos, porque passei por todas as vicissitudes que me foram anunciadas.

Fui alvo do ódio de inimigos intransigentes, da calúnia, da inveja e do ciúme; infames libelos foram publicados contra mim; as minhas melhores instruções foram adulteradas; fui traído por aqueles em quem mais confiava e pago com ingratidão por aqueles a quem servi. A Sociedade de Paris foi um foco constante de intrigas urdidas por aqueles próprios que se diziam estar a meu favor e que, abraçando-me pela frente, me apunhalavam pelas costas. Disseram que os meus sectários eram pagos com o dinheiro que eu arranjava com o Espiritismo. Não tive mais repouso e muitas vezes verguei ao peso do trabalho; comprometi a saúde e arrisquei a vida.

Entretanto, graças à proteção e assistência dos bons Espíritos, que sempre me deram provas sensíveis da sua solicitude, sou feliz porque posso dizer que nunca num momento sequer senti falta de ânimo ou de coragem e prossegui sempre em minha obra com o mesmo ardor, sem preocupar-me com as setas que me jogavam. Eu devia esperar tudo isto e tudo isto se verificou, conforme me comunicou o Espírito de Verdade.

A par de tais vicissitudes, porém, que satisfação por ver a obra progredir prodigiosamente! Que doces compensações tive para as minhas tribulações! Quantas bênçãos, quantos testemunhos de real simpatia recebi dos aflitos, que a Doutrina consolou! Este resultado me havia sido comunicado pelo Espírito de Verdade que, sem dúvida, de propósito, não me tinha mostrado senão as asperezas do caminho. Seria ingratidão minha queixar-me!

Se eu dissesse que o bem compensa o mal, não diria a verdade; porque o bem —falo das satisfações morais — sobrepujou o mal, sem comparação possível. Quando me vinha uma decepção, uma contrariedade, eu me elevava, em pensamentos, acima da humanidade, colocava-me, por antecipação, na região dos Espíritos, e desse ponto culminante, onde descobria muitas razões, as misérias da vida passavam por mim sem me atingir. Habituei-me tanto a isso, que os maus nunca mais me perturbaram.([97])

O Livro dos Espíritos

17 de junho de 1856

Em casa do Sr. Baudin — Médium, a Srta. Baudin

P. (À Verdade). Está revista uma parte da obra. Tende a bondade de dizer-me o que dela pensais.

R. O que foi revisto está bom; mas, quando tiveres acabado, deves revê-la mais uma vez, para ampliá-la em certos pontos e reduzi-la em outros.

P. Devo publicá-la antes que se verifiquem os acontecimentos anunciados?

R. Uma parte, sim; toda a obra, porém, não, porque te asseguro que teremos capítulos bem espinhosos. Por mais importante que seja este primeiro trabalho, de certo modo não é ele senão uma introdução. Tomará proporções, que longe estais de suspeitar agora.

Tu mesmo compreenderás que determinadas partes não devem ser dadas à luz senão muito tarde e gradualmente, à medida que as novas ideias se desenvolverem e criarem raízes. Dar tudo, ao mesmo tempo, seria uma imprudência. É preciso deixar à opinião o tempo para se formar. Encontrarás impacientes, que procurarão impelir-te para diante. Não lhes dês ouvidos. Vê, observa, sonda o terreno, sabe esperar e faze como o general prudente, que não ataca senão no momento favorável.

Observação (escrita em janeiro de 1867) — Na época em que foi dada esta comunicação, eu não cogitava senão de O Livro dos Espíritos e bem longe estava, como disse o Espírito, de prever as proporções, que tomaria o conjunto do trabalho. Os acontecimentos anunciados não deviam realizar-se antes de muitos anos, pois que ainda agora o não são.([98])

As obras, que apareceram até agora, foram publicadas sucessivamente, e eu fui obrigado a fazê-lo, à medida que as novas ideias se iam desenvolvendo; das restantes, a mais importante, a que pode ser considerada o coroamento do edifício e contém com efeito os capítulos mais espinhosos, não poderia ser dada à luz, sem detrimento, antes do período dos desastres.

Eu não via, então, senão um livro e não compreendia que ele pudesse ser secundado, conquanto o Espírito aludisse aos que deviam seguir-se-lhe e seria inconveniente publicá-los prematuramente.([99])

"Tem paciência, disse-me o Espírito; não escutes a voz dos impacientes, que te impelem para diante." Os impacientes não faltavam e se eu os tivesse escutado, teria levado o navio, em cheio, contra os escolhos. Coisa singular! Enquanto uns me diziam que andasse mais depressa, outros me acusavam por não ir mais lentamente. Não atendi a ninguém e tomei somente por bússola o desenvolver das ideias.

Quanta confiança devia animar-me no futuro ao ver realizaram-se as coisas previstas, o que me fazia reconhecer a profunda sabedoria dos meus protetores invisíveis.

O Livro dos Espíritos

11 de setembro de 1856

Em casa do Sr. Baudin — Médium, a Srta. Baudin

Depois de haver feito a leitura de alguns capítulos de O Livro dos Espíritos, relativos às leis morais, o médium espontaneamente escreveu:

"Compreendeste bem o alcance do teu trabalho. O plano está retamente concebido; estamos satisfeitos contigo.

"Continua; porém, quando a obra estiver pronta, lembra-te principalmente da recomendação que te fazemos de a imprimir e propagar. É de utilidade geral.

"Estamos satisfeitos e não te deixaremos mais. Crê em Deus e prossegue.

Muitos Espíritos."

A Tiara Espiritual

6 de maio de 1857

Em casa da Sra. de Cardone

Tive a ocasião de ver, nas sessões do Sr. Roustan, a Sra. de Cardone. Disse-me alguém, creio que foi o Sr. Carlotti, que possuía um talento notável para ler na mão. Nunca acreditei que as linhas da mão tivessem alguma significação; mas pensei sempre que pudessem ser, para determinadas pessoas, dotadas da vista dupla, um meio de estabelecer relações, que lhes permitissem, como aos sonâmbulos, dizer, às vezes, coisas verdadeiras. Os sinais da mão são apenas um pretexto, meio de fixar a atenção, de desenvolver a lucidez, como são as cartas e os espelhos mágicos, para os que gozam dessa faculdade. A experiência me tem confirmado esta opinião por mais de uma vez.

Como quer que seja, tendo-me aquela senhora convidado a visitá-la, aceitei-lhe o convite, e eis um resumo do que ela me disse:

"Nasceste com grande abundância de recursos e de meios intelectuais... força extraordinária de julgamento... O vosso gosto formou-se; governado pela cabeça, moderais a inspiração pelo julgamento; sujeitais o instinto, a paixão, a intuição ao método, à teoria. Sempre foste propenso às ciências morais... amor da verdade absoluta... amor da arte definida. Vosso estilo tem número, medida e cadência; mas às vezes esqueceis a precisão pela poesia.

"Como filósofo idealista, sujeitais a vossa opinião à de outros; como filósofo crente sentis, às vezes, necessidade imperiosa de aliviar, socorrer e consolar, necessidade de independência.

"Brandamente vos corrigis dos transportes do vosso arrebatamento. Éreis mesmo singularmente próprio para a missão, que vos foi confiada, porque sois mais centro de grandes desenvolvimentos do que para trabalhos isolados. Vossos olhos exprimem os pensamentos.

"Vejo aqui sinal da tiara espiritual... está muito pronunciado... olha " (Olhei — e nada descobri).

— Que entendeis, perguntei-lhe, por tiara espiritual? Quereis dizer que hei de ser papa? Se é isso, não será nesta existência, com certeza, que isso se dará.

R. Notai que eu disse tiara espiritual, o que quer dizer autoridade moral e religiosa e não soberania efetiva.

Tenho referido pura e simplesmente as palavras, que me disse aquela senhora; não me pertence julgar se elas são ou não verdadeiras; algumas reconheço que o são, porque se conforma ao meu caráter e às disposições do meu espírito; há porém uma passagem evidentemente falsa — aquela em que diz, a propósito do estilo, que sacrifico à poesia um pouco da precisão.

Não tendo nenhuma vocação poética, o que procuro mais que tudo, o que me agrada, o que admiro nos outros é a clareza, a nitidez, a precisão, e longe de sacrificar isto à poesia, poderiam antes acusar-me de sacrificar o sentimento poético à rigidez da forma positiva.

Sempre preferi o que fala à inteligência ao que fala à imaginação.([100]) Quanto à tiara espiritual, O Livro dos Espíritos acabava de aparecer, a doutrina estava no berço, mal se podia prever os resultados ulteriores; não liguei maior importância a essa revelação e limito-me a consigná-la, a título de instrução.

Aquela senhora deixou Paris no ano seguinte e eu não a vi senão oito anos depois, em 1866, tendo as coisas caminhado muito neste intervalo. Então disse-me ela:

— Lembrai-vos da tiara espiritual por mim predita? Ei-la realizada.

— Como assim? Eu não estou, que o saiba, sentado no trono de S. Pedro.

— Não; mas não foi isso o que vos anunciei. Não sois de fato o chefe da doutrina, reconhecido pelos espíritas de todo o mundo? Não são os vossos escritos que fazem a lei? Os vossos adeptos não se contam por milhões? Há algum nome que tenha, mais que o vosso, autoridade, em matéria de Espiritismo? Os títulos de sumo sacerdote, de pontífice, mesmo de papa, não vos têm sido espontaneamente dados? Partem dos vossos adversários por ironia, bem sei, mas isso não deixa de ser a maior prova da influência, que eles vos reconhecem: pressentem o vosso papel e esses títulos ficarão.

Em suma, tendes conquistado, sem procurá-la, uma posição moral, que não há quem vo-la possa tirar, porque quaisquer trabalhos, que se façam depois de vós, ou concorrentemente convosco, não vos roubarão o título de fundador da Doutrina. Desde esse momento, possuís, portanto, de fato a tiara espiritual, isto é: a supremacia moral. Vedes pois que estou com a verdade. Credes agora um pouco mais nos sinais da mão?

— Menos que nunca, e estou convencido de que, se alguma coisa vistes, não foi na mão, mas em vosso próprio Espírito, o que vou prová-lo: admito na mão, como no pé, nos braços e nas demais partes do corpo, certos sinais fisiognomônicos; mas cada órgão apresenta sinais especiais, segundo o uso a que é destinado e suas relações com o pensamento; os sinais da mão podem ser os mesmos que os do pé, dos olhos, etc.

Relativamente às dobras interiores da mão, a sua maior ou menor acentuação é devida à natureza da pele e à maior ou menor abundância do tecido celular e como essas partes nenhuma relação fisiológica têm com os órgãos das faculdades intelectuais e morais, não podem ser-lhes a expressão. Admitindo mesmo esta relação, poderiam elas fornecer indícios sobre o estado presente do indivíduo: nunca, porém, serem sinais presságios de coisas futuras, nem de acontecimentos, que não dependem da sua vontade.

Na primeira hipótese, eu admitiria, em rigor, que, com o auxílio destas linhas, se pudesse dizer que uma pessoa possui essa ou aquela aptidão, essa ou aquela inclinação; o mais vulgar bom senso, porém, repele a ideia de se poder ver aí: se a pessoa foi casada, ou não, e quantas vezes, quantos filhos teve, se é ou não viúva, e outras coisas semelhantes, como pretende a maior parte dos quiromantes.

Entre as dobras da mão há uma bem conhecida de todos com a figura distinta de um M.; se ela é profundamente marcada, é, asseveram, presságio de vida desgraçada; mas a palavra Malheur é francesa e não nos esqueçamos de que as equivalentes nas diversas línguas não começam por aquela letra; donde se segue que aquelas linhas deviam tomar variadas formas em relação às diversas línguas.([101])

Quanto à tiara espiritual, é, evidentemente, uma ideia especial, excepcional, de algum modo individual, e estou convencido de que não achastes esta palavra no vocabulário de algum tratado de quiromancia. Como pois vos veio ela ao pensamento? Por intuição, por inspiração, por uma espécie de presciência inerente à dupla vista, que muitas pessoas possuem sem o saber.

A vossa atenção estava concentrada sobre as linhas da mão, aplicastes o pensamento a um sinal em que outra pessoa teria visto coisa diversa, ao qual vós mesmos teríeis atribuído uma significação diferente em outro indivíduo.([102])

Primeiro Aviso de uma Nova Encarnação

17 de janeiro de 1857.

Em casa do Sr. Baudin — Médium, a Srta. Baudin.

O Espírito prometeu-me escrever pela entrada do Ano Novo. Tinha, disse-me, coisa particular a comunicar-me. Havendo eu reclamado o cumprimento da promessa em uma das reuniões ordinárias, respondeu-me que o faria na intimidade do médium, que me transmitira. Eis a carta que me escreveu:

"Caro amigo, não quis escrever-te na última terça-feira, diante de todos, porque há determinadas coisas que se não podem dizer senão entre nós. Eu queria, primeiro, falar-te da obra que publicaste (O Livro dos Espíritos acabava de ser dado à luz). Não te mates, trabalhando dia e noite; passarás melhor e a obra não perderá por esperar.

Pelo que tenho visto és capaz de levar a bom termo a tua empresa e és chamado a fazer grandes coisas; mas nada se deve exagerar; vê e aprecia tudo sã e friamente; não te deixes arrastar pelos entusiastas e sôfregos; mede todos os teus passos e atos, a fim de caminhares com segurança. Não aceita o que não tiveres verificado, nem recuses só porque te parece incompreensível; tu levas vantagem aos demais, porque serão trazidas a teus olhos as peças para o estudo.

Mas ah! A verdade não será conhecida e recebida senão depois de muito tempo. Tu não verás, nesta existência, senão a aurora do sucesso da tua obra; é preciso que tornes a vir reencarnado noutro corpo para completares o que tens feito e então terás a satisfação de ver em plena frutificação a semente que espalhaste pela Terra.

Terás invejosos e ciosos, que procurarão ferir-te e contrariar-te; não te desencorajes, não te inquietes com o que se disser e fizer contra ti: prossegue na tua obra; trabalha sempre pelo progresso da humanidade e, enquanto trabalhares na boa causa, serás secundado pelos bons Espíritos.

Não te lembras que, há um ano, prometi a minha amizade aos que, durante um ano, fossem corretos em todos os seus atos? Pois bem! Anuncio-te que és um daqueles que escolhi entre todos.

Teu amigo que te ama e protege,

Z.

Observação. — Eu já havia dito que Z., posto que não fosse um Espírito superior, era bom e benévolo. Talvez fosse mais adiantado do que fazia supor o nome, que adotou. Assim parece, a julgar pelo caráter sério e pela sabedoria das comunicações, conforme as circunstâncias. Justificando aquele nome, podia ele permitir-se uma linguagem familiar apropriada ao meio em que se manifestava e, como muitas vezes o fazia, dizer duras verdades sob a forma ligeira do epigrama.

Seja como for, guardei sempre dele grata recordação e reconhecimento pelos bons avisos que me deu e pela estima que me testemunhou.

Com a dispersão da família Baudin, ele desapareceu, tendo antes anunciado que logo devia reencarnar.([103])

A Revista Espírita

15 de novembro de 1857.

Em casa do Sr. Dufaux — Médium, a Sra. E. Dufaux.

P. Tenho a intenção de publicar um órgão espírita. Pensais que poderei fazê-lo? Que me aconselhais? A pessoa, a quem me dirigi, o Sr. Tiedeman, não me parece disposta a dar o seu concurso pecuniário.

R. Sim. Tu o conseguirás com perseverança. A ideia é boa, mas é preciso deixá-la amadurecer mais.

P. Receio que outros se antecipem.

R. Adianta-te.

P. Não desejo outra coisa, mas falta-me tempo. Tenho dois empregos, que me são necessários, como sabeis; bem quereria poder renunciar a eles a fim de consagrar-me à obra, sem preocupação estranha.

R. Não precisas, por enquanto, abandoná-los; para tudo há sempre tempo; põe-te a caminho e chegarás.

P. Devo dispensar o concurso do Sr. Tiedeman?

R. Age com o concurso dele ou sem ele; não te incomodes: podes dispensá-lo.

P. O meu plano é fazer um primeiro número para ensaio, a fim de dar início à publicação e firmar a data, continuando mais tarde com ela, se for possível; que me dizeis?

R. É boa a ideia, mas um número só não é bastante; entretanto é útil e necessário mesmo para abrir caminho aos outros. É preciso ter o maior cuidado, de maneira que assegure o êxito, se for defeituoso, melhor seria nada fazeres, porque a primeira impressão pode decidir do seu futuro. É preciso tomar muito a peito, principalmente no começo, satisfazer à curiosidade; ele deve reunir o sério ao agradável, que deleita o vulgo;([104]) esta parte é essencial, porém a outra é a mais importante, porque sem ela o órgão não terá fundamento sólido. Em uma palavra, é preciso evitar a monotonia pela variedade, reunir a instrução sólida ao interesse, o que será de poderoso auxílio para os trabalhos ulteriores.

Observação. — Apressei-me em redigir o primeiro número e o fiz aparecer no primeiro de janeiro de 1858, sem que a ninguém tivesse prevenido.

Não tinha um só assinante, nem nenhum fornecedor de capitais. Fi-lo pois exclusivamente por minha conta e não tive do que me arrepender, porque o êxito excedeu a minha expectativa. A partir do 1.° de janeiro, os números sucederam-se, sem interrupção, e, como previra o Espírito, o órgão foi-me poderoso auxiliar. Reconheci mais tarde que fora uma felicidade não ter comanditário, porque tive sempre toda a liberdade, havendo um interessado estranho, poderia querer impor-me as suas ideias e vontades e tolher-me a caminhada; sozinho, não tinha que dar contas a ninguém, por mais pesado que me fosse o trabalho.([105])

Fundação da Sociedade Espírita de Paris

1.° de abril de 1858.

Se bem não se trate de nenhum fato de previsão, menciono, de passagem, a fundação da Sociedade, por causa do papel que ela representou no andamento do Espiritismo e das comunicações ulteriores, a que deu causa.

Havia cerca de seis meses que eu reunia em minha casa, na Rua dos Mártires, às terças-feiras, alguns adeptos da Doutrina. O principal médium era a Srta. Dufaux.

Apesar do local não poder conter mais de 15 a 20 pessoas, concorriam, às vezes, 30.

Aquelas reuniões ofereciam grande interesse pelo seu caráter sério e pela importância das questões aí tratadas. Iam a elas príncipes estrangeiros e outras distintas personagens.([106]) A casa, pois, incômoda pela disposição, tornou-se insuficiente para os trabalhos.

Alguns dos frequentadores propuseram-se fazer uma cotização e alugarmos um cômodo suficiente. Neste caso porém era preciso tirar a licença da autoridade, e o Sr. Dufaux, que conhecia pessoalmente o chefe de Polícia, se incumbiu disso. A licença dependia também do Ministro do Interior, que então era o general X..., simpático, sem que o soubéssemos, às nossas ideias, conquanto não as conhecesse completamente; e, devido a isto, obtivemo-la em quinze dias, quando deveria levar três meses. A Sociedade constituiu-se pois regularmente, funcionando às terças-feiras, na casa que se alugou no Palais-Royal, galeria de Valois, onde permaneceu desde 1o de abril de 1858 até 1o do mesmo mês de 1859.

Não tendo podido manter-se ali por mais tempo, reunia-se, às sextas-feiras, no salão do restaurante Douix, no Palais-Royal, galeria de Montpensier, desde 1o de abril de 1859 até 1o de abril de 1860, época em que se instalou em local seu na Rua Sant'Ana, 59. Formada, a princípio, de elementos pouco homogêneos, porque se aceitavam facilmente todos os que concorriam, a Sociedade passou por numerosas vicissitudes, que me causaram bem sérios aborrecimentos.([107])

Duração dos Meus Trabalhos

24 de janeiro de 1860.

Em casa do Sr. Forbes — Médium, a Sra. Forbes.

Calculava que me seriam precisos dez anos para terminar os meus trabalhos; mas a ninguém comuniquei este pensamento.

Fui porém surpreendido por uma comunicação, que me transmitiu um dos meus correspondentes de Limoges, na qual um Espírito, falando dos meus trabalhos, me dizia que eu não os terminaria antes de dez anos.

P. (À Verdade). Como explicar o fato de um Espírito dizer, em Limoges, onde nunca fui, que os meus trabalhos durarão exatamente o tempo que eu calculava?

R. Nós sabemos o que ainda te falta, e por conseguinte, calculamos aproximadamente quando acabarás. É pois natural que Espíritos o tenham dito, em Limoges e noutros lugares, para dar uma ideia da importância do trabalho, pelo tempo que exige.

Entretanto o prazo de dez anos não é exato; pode bem acontecer que se prolongue por circunstâncias imprevistas e independentes da vontade.

Observação. — (escrita em dezembro de 1866). — Publiquei quatro volumes sobre o assunto essencial, sem falar nas publicações acessórias. Os Espíritos me inspiram a publicar A Gênese em 1867, antes das convulsões, em cujo período deverei trabalhar nos livros complementares da Doutrina, que só poderão aparecer depois da grande tormenta e com os quais levarei de três a quatro anos, o que nos leva a 1870, isto é, quase dez anos.([108])

Acontecimentos. Papado

28 de janeiro de 1860.

Em casa do Sr. Solichon — Médium, a Srta. Solichon

P. (Ao Espírito Ch.). Foste embaixador em Roma e naquele tempo predissestes a queda do governo papal; que pensais hoje a respeito do assunto?

R. Creio que se aproxima o tempo de realizar-se a minha profecia; mas isso não se dará sem grandes abalos. Tudo se complica; as paixões incandescem e o que poderia vir sem perturbações motivará comoções em toda a cristandade.

P. Quereis ter a bondade de dar-nos a vossa opinião sobre o poder temporal do papa?

R. Penso que o poder temporal do papa não é necessário à sua grandeza e ao seu poder moral; e, pelo contrário, quanto menos o tiver, mais venerado será. O representante de Deus na Terra está colocado tão alto que dispensa absolutamente o relevo dos poderes terrestres. Dirigir espiritualmente é a missão do pai dos cristãos.

P. Pensais que o papa e o Sacro Colégio, mais bem esclarecidos, farão o necessário para evitar o cisma e a guerra intestina, embora somente moral?

R. Não o creio. Aqueles homens são teimosos, ignorantes e habituados a todos os gozos profanos; têm necessidade de ouro para satisfazê-lo e receiam naturalmente perder tudo com a nova ordem de coisas. Irão aos extremos, pouco se lhes dando do que acontecer, mesmo porque são cegos e não compreendem as consequências do seu procedimento.

P. Nesse conflito não se deve temer que sucumba a desgraçada Itália, sendo reduzida ao domínio da Áustria?

R. Não; a Itália sairá vitoriosa e sobre o seu solo glorioso raiará a liberdade. A Itália salvou-nos da barbaria; foi nossa mestra em tudo que é nobre e elevado, intelectualmente. Ela não tornará a cair sob o jugo dos que a rebaixaram.([109])

A Minha Missão

12 de abril de 1860.

Em casa do Sr. Dehau — Médium, o Sr. Crozet.

(Comunicação espontânea obtida em minha ausência).

Pela firmeza e perseverança, o vosso presidente desfez os planos dos que lhe pretendiam destruir o crédito e arruinar a sociedade, na esperança de dar golpe fatal na Doutrina. Honra lhe seja feita! e saiba que somos com ele, e os bons Espíritos folgarão de auxiliá-lo na missão. Quantos aspiram à sombra dessa missão para terem a sombra dos bens, que dela emanam!

Não é ela perigosa; mas para levá-la a termo é preciso fé e vontade inabalável: é preciso abnegação e coragem para sofrer as injúrias, os sarcasmos, as decepções, sem se abater com as investidas da inveja e da calúnia. Nesta posição, o menos que pode acontecer é ser tratado como louco e charlatão. Deixai-os dizer o que quiserem; tudo passa, exceto a felicidade eterna. Tudo vos será contado, e bem sabeis que é necessário, para ser feliz, ter contribuído para a felicidade dos pobres seres com que Deus povoou a Terra.

Permaneça em paz e serenidade a vossa consciência, prelibando a felicidade celeste.([110])

Futuro do Espiritismo

15 de abril de 1860.

Marselha — Médium, o Sr. Georges Grenouillat.

(Comunicação obtida pelo Sr. Brion Dorgeval).

O Espiritismo está destinado a representar importantíssimo papel na Terra: cabe-lhe reformar a legislação, por via de regra contrária às leis divinas, cabe-lhe retificar os erros da história e apurar a religião do Cristo, transformada, nas mãos dos padres, em comércio e em vil tráfico. Instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai, diretamente, a Deus, sem dependência das obras da sotaina ou dos degraus do altar. Extinguirá para sempre o ateísmo e o materialismo, a que tem sido arrastados certos homens pelos abusos constantes dos que se dizem ministros de Deus e pregam a caridade com uma espada em cada mão sacrificando à sua cobiça e ao espírito de denominação os mais sagrados direitos da humanidade.

UM ESPÍRITO

A Minha Volta

10 de junho de 1860.

Em minha casa — Médium, a Sra. Schmidt.

P. (À Verdade). Acabo de receber de Marselha uma carta em que me dizem que no Seminário daquela cidade se ocupam seriamente do Espiritismo e de O Livro dos Espíritos. Que pensar disso? Quererá o clero tomar a peito a questão?

R. Não ponhas isso em dúvida. Ele toma-a muito a peito, porque sabe quais serão as consequências a seu respeito e tem grandes apreensões. O clero, principalmente a parte esclarecida, estuda o Espiritismo mais do que supões; mas não o faz por simpatia. O que procura é descobrir nele os meios de combatê-lo e eu te asseguro que lhe moverá a mais cruel guerra.

Não te incomodes, porém; continua a caminhar com prudência e circunspecção; põe-te em guarda contra os laços que te serão armados; evita cuidadosamente, quando falares ou quando escreveres, tudo o que possa fornecer-lhes armas contra ti. Prossegue sem receio e se o teu caminho for eriçado de espinhos, garanto-te que grandes satisfações terás, mesmo antes de vires para nós, "por um pouco".

P. Que queres dizer por estas palavras — "um pouco?"

R. Tu não ficarás muito tempo entre nós; é preciso que voltes para completar a tua missão, que não pode ficar concluída nesta existência. Se fosse possível, continuarias aí; mas é preciso obedecer à lei natural. Ficarás ausente por alguns anos e, quando voltares, o será em condições que te permitirão trabalhar com mais êxito. Há entretanto trabalhos que precisam ser concluídos antes de partires e é por isso que te deixaremos o tempo necessário para acabá-los.

Observação. — Calculando aproximadamente a duração dos trabalhos que me restam e levando em conta o tempo da minha ausência e o da infância e da juventude, até à idade em que um homem pode desempenhar um papel no mundo, a minha volta deve ser para o fim deste século ou para o princípio do outro.([111])

Auto-de-Fé de Barcelona. — Queima de Livros

21 de setembro de 1861.

Em minha casa — Médium, o Sr. d'A...

A pedido do Sr. Lachatre, estabelecido em Barcelona, remeti-lhe grande número de exemplares do O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, coleções da Revista Espírita e diversas obras e brochuras espíritas, formando um total de 300 volumes, pouco mais ou menos. A expedição foi feita regularmente pelo seu correspondente de Paris, em uma caixa, que continha outras mercadorias, e sem a menor infração dos regulamentos.

Chegados os livros, cobraram-se do destinatário os direitos de importação, mas antes de lhes entregarem, tiveram de deferir o despacho ao bispo, autoridade eclesiástica que, na Espanha, tem a fiscalização dos livros.

Achava-se este em Madri, mas na sua volta, em vista do catálogo, ordenou que aquelas obras fossem apreendidas e queimadas na praça pública pelo carrasco.

A execução da sentença foi marcada para 9 de outubro de 1861.

Se tivesse havido tentativa de passar aquelas obras por contrabando, a autoridade espanhola estava no direito de dispor delas, como lhe parecesse; desde porém que não houve fraude, nem ardil, tendo-se pago os respectivos direitos, era de rigorosa justiça que ordenasse a reexportação se não lhe convinha admiti-las no país. As reclamações feitas ao cônsul francês em Barcelona de nada valeram. O Sr. Lachatre perguntou-me se queria recorrer para autoridade superior; mas eu, embora entendesse conveniente deixar a causa correr à revelia, julguei dever consultar o meu guia espiritual.

P. (À Verdade). Sem dúvida não ignorais o que se passou em Barcelona com relação às obras espíritas; tereis a bondade de dizer-me se convém tentar o processo de restituição?

Tens o direito de reclamar a devolução das obras e certamente as terás de volta desde que faças a reclamação por intermédio do Ministério das Relações Exteriores de França; a minha opinião porém é que maior bem resultará do auto-de-fé, que da leitura de alguns volumes. A perda material será grandemente compensada pela repercussão que terá o ato da queima dos livros — o que concorrerá para a propaganda da doutrina. Compreendes quanto uma perseguição tão ridícula e tão retrógrada pode fazer progredir o Espiritismo na Espanha? As ideias espalhar-se-ão com tanto mais rapidez, as obras serão procuradas com tanto maior avidez, quanto maior for o escândalo da condenação.

P. Convém fazer um artigo no próximo número da Revista?

R. Aguarda o auto-de-fé.

Auto-de-fé de Barcelona(·)

O auto-de-fé de Barcelona assinalará uma data nos anais do Espiritismo. Eis o extrato da ata da execução.

"Aos 9 de outubro de 1861, às 10 e meia horas da manhã, sobre a colina da cidade de Barcelona, no lugar onde são executados os condenados à pena última, e por ordem do bispo desta cidade, foram queimados 300 volumes de brochuras sobre o Espiritismo, a saber: "O Livro dos Espíritos", por Allan Kardec..., etc."

Os principais jornais de Espanha deram a circunstanciada notícia do acontecimento, que os órgãos da imprensa liberal severamente profligaram.

É para notar que, em França, os jornais liberais apenas se limitaram a mencioná-lo, sem fazer-lhe o mais ligeiro comentário.

O Siècle mesmo, tão pronto sempre em estigmatizar os abusos do poder e os menores atos de intolerância do clero, não achou uma palavra para aquele, digno da Idade Média. Alguns jornais da pequena imprensa acharam até motivo para rir.

A parte qualquer ideia de crença, havia ali uma questão de princípio, de direito internacional, de interesse para todos, pela qual não teriam passado com tão pouco caso, se fossem outros os livros queimados. Não se poupam censuras quando se trata de uma simples recusa de estampilha para selar um livro materialista e, no entanto, era uma coisa muito mais grave acender fogueiras à inquisição, com a solenidade antiga, às portas de França. Por que semelhante indiferença? É que se tratava de uma doutrina, cujos progressos assombram a incredulidade; reivindicar a favor dela a justiça, seria consagrar o direito à proteção da autoridade e aumentar-lhe o crédito.

Como quer que seja, o auto-de-fé de Barcelona produziu o esperado efeito, pelo ruído que fez em Espanha, onde contribuiu poderosamente para propagação das ideias espíritas. (Vede A Revista Espírita de novembro de 1861, pág. 321). Esse processo provocou numerosas comunicações da parte dos Espíritos; a que se segue foi obtida espontaneamente na Sociedade de Paris, a 19 de outubro na minha volta de Bordéus:

"Era preciso que alguma coisa abalasse violentamente certos Espíritos encarnados para que se decidissem a ocupar desta grande doutrina que há de regenerar o mundo.

"Nada se perde na terra e por isso nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos que por aquele meio obrigávamos a dar um grande passo adiante. Esse fato brutal, inaudito nos tempos atuais, foi consumado para atrair a atenção dos jornalistas, indiferentes à profunda agitação que se operava nas cidades e centros espíritas; eles não se ocupavam dessa agitação, antes se obstinavam em cerrar ouvidos e em responder pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Por bem ou por mal, é preciso que falem. Provando uns a verdade do fato histórico de Barcelona e desmentindo-o outros, dão ensejo a uma polêmica, que fará a volta do mundo, do que se aproveitará o Espiritismo.

"Eis porque hoje, e por vontade nossa, a retaguarda da inquisição fez o seu último auto-de-fé".

Um Espírito.

NOTA. — De Barcelona foi-me enviado um desenho de aquarela, feito por um artista notável, representando a cena do auto-de-fé. Mandei tirar, em ponto menor, uma cópia fotográfica. Possuo também cinzas colhidas no lugar da fogueira, no meio das quais se encontram fragmentos, ainda legíveis, das folhas queimadas. Guardo-os em uma urna de cristal.(·)

O Meu Sucessor

22 de dezembro de 1861.

Em minha casa; comunicação Particular — Médium. Sr. d'A...

Conversando com os Espíritos, veio a propósito falar em quem me substituiria na direção do Espiritismo, assunto a respeito do qual fiz a seguinte pergunta:

P. Muitos dos adeptos incomodam-se com o que será o Espiritismo quando eu faltar e perguntam quem me substituirá, não havendo ninguém que, de maneira notória, possa tomar em mãos os remos. Hei respondido que não tenho a pretensão de ser o único indispensável; que Deus é muito sábio para fazer depender da vida de um homem o futuro de uma doutrina que deve regenerar o mundo; que, por demais, sempre me disseram que tenho de constituir a doutrina e que para isto me darão o tempo necessário. A missão do meu sucessor será, pois, mais fácil, estando o caminho traçado, não lhe cumprindo senão segui-lo.

Entretanto se os Espíritos julgassem conveniente dizer-me qualquer coisa sobre este assunto, ser-lhe-ia agradecido.

R. Tudo isto é rigorosamente verdade, e além do mais eis o que nos é permitido dizer-te:

Tens razão de te não julgares indispensável; aos olhos dos homens o és com efeito, porque era preciso concentrar o trabalho da organização nas mãos de um só para que houvesse unidade; aos olhos de Deus porém, não o és. Foste escolhido e é por isso que és o único; mas não és, como bem sabes, o único capaz de desempenhar a missão se por qualquer causa fosse ela interrompida. Deus suscitaria quem te substituísse. Assim pois, haja o que houver, não há perigo para o Espiritismo.

Até terminar o trabalho de elaboração, convém que sejas o único em evidência, servindo como de bandeira, em torno da qual se agrupem todos; convém que te considerem indispensável, para que a obra, saída de tuas mãos, tenha mais autoridade no presente e no futuro; é mesmo útil que se nutram receios pela tua partida.

Se o teu sucessor estivesse já designado, a obra poderia ser perturbada em meio; formar-se-iam contra ele oposições suscitadas pelo ciúme; discuti-lo-iam antes de qualquer prova; os inimigos da doutrina procurariam tolher-lhe a evolução. Ele surgirá porém quando for chegada a ocasião.

A sua tarefa tornar-se-á mais fácil porque, como disseste, o caminho já estará traçado; se ele se afastasse, perder-se-ia, como se perderam os que têm querido atravessá-lo. O seu trabalho, porém, será pesado noutro sentido, porque ele terá que sustentar as mais terríveis lutas. A ti, a concepção, a ele a execução, e é por isso que deverá ser homem de energia e de ação.

Admira a sabedoria de Deus na escolha dos seus mandatários; tu tens as qualidades requeridas para o encargo que te foi dado; mas não tens as que são precisas ao teu sucessor. A ti é preciso a calma, a tranquilidade do escritor que fecundou as ideias no remanso da meditação; a ele a força do capitão que comandava um navio, segundo as regras da ciência. Desobrigado do trabalho da criação, a cujo peso o teu corpo sucumbirá, ele será mais livre para aplicar todas as suas faculdades ao desenvolvimento e à consolidação do edifício.

P. Podereis dizer-me se já está feita a escolha do meu sucessor?

R. Está e não está; pois que o homem, tendo seu livre-arbítrio, pode à última hora recuar diante da empresa por ele mesmo escolhida. Além disso, é preciso que ele dê provas de capacidade, devotamento, desinteresse e abnegação. Se ele tivesse por móvel a ambição, o desejo de primar, seria posto certamente à margem.

P. Tem-se dito que muitos Espíritos superiores devem encarnar para auxiliar o movimento.

R. Com certeza muitos Espíritos superiores terão essa missão; cada um, porém, terá a sua especialidade e deverá agir, por sua posição, sobre tal ou tal parte da sociedade. Todos se revelarão por suas obras e nenhum deles nutriria a pretensão a qualquer supremacia.([112])

"Imitação do Evangelho"

Ségur, 9 de agosto de 1863 — Médium, o Sr. d'A...

NOTA. — A ninguém comunicara eu o objeto da obra em que estava trabalhando; guardei tanto segredo acerca do título, que lhe dei, que o próprio editor, o Sr. Didier, só veio a saber dele quando a foi imprimir. O título era, na primeira edição, Imitação do Evangelho. Mais tarde, porém, devido à observação do Sr. Didier e de outros, foi substituído por este: O Evangelho segundo o Espiritismo. Assim pois as reflexões contidas nas comunicações seguintes não podiam ser o resultado de ideias preconcebidas do médium.

P. Que pensais da nova obra em que, atualmente, trabalho?

R. Este livro de doutrina terá influência considerável. Tu atacas as questões capitais e não somente o mundo religioso encontrará nele as máximas, que lhe são necessárias, mas a vida prática das nações obterá excelentes instruções.

Fizeste bem em tratar de questões de alta moral prática sob o ponto de vista do interesse geral, dos interesses sociais e dos religiosos. A dúvida precisa ser destruída; a Terra e a sua população civilizada estão preparadas; há longo tempo os teus amigos do espaço a tem roteado: lança pois a semente que te confiamos, porque é tempo de fazer a Terra gravitar na ordem radiante das esferas para sair da penumbra e do nevoeiro, que obscurece as inteligências.

Acaba a tua obra: conta com a proteção do teu guia — guia de todos nós — e com o concurso devotado dos mais fiéis Espíritos, em cujo número podes contar-me.

P. Que dirá dela o clero?

R. Clamará heresia porque atacas as penas eternas e outros pontos sobre os quais apoiam o seu crédito e influência. Clamará tanto mais quanto mais se sentir ferido do que pela publicação de O Livro dos Espíritos, cujos principais dados ele pode, em rigor, aceitar. Agora porém vais entrar em nova senda, pela qual o clero não poderá acompanhar-te.

O anátema secreto tornar-se-á oficial e os espíritas serão, como os judeus e os pagãos, excomungados pela Igreja romana. Em compensação verão crescer o seu número na medida dessas perseguições, principalmente vendo-se o clero acusar de demoníaca uma doutrina, cuja moralidade brilhará, como um raio de luz do sol, com a publicação do teu novo livro e dos que se seguirem.

Aproxima-se a hora em que deverás abertamente declarar o que é o Espiritismo e mostrar a todos onde está a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo; aproxima-se a hora em que, à face do céu e da terra, deverás proclamar o Espiritismo como única tradição verdadeiramente cristã, única instituição realmente divina e humana. Escolhendo-te, conheciam os Espíritos a solidez das tuas convicções e que a tua fé, como um muro de aço, resistiria a todos os ataques. Entretanto, amigo, se a tua coragem não fraquejou ao peso da árdua tarefa, saibas que até hoje só comestes o pão alvo e que, agora, vão começar as dificuldades.

Sim, caro mestre, aparelha-se a grande batalha; o fanatismo e a intolerância, irritados pelos êxitos da tua propaganda, vão atirar sobre ti e os teus com armas envenenadas. Prepara-te para a luta. Tenho confiança em ti, como tens em nós, porque a tua fé é das que transportam as montanhas e fazem caminhar por cima das águas. Coragem pois e que a tua obra se complete.

Conta conosco e, principalmente, com o grande Espírito do Mestre de todos, que te protege de maneira muito particular.([113])

Paris, 14 de setembro de 1863.

NOTA. — Havia solicitado uma comunicação, pedindo que fosse enviada para o meu retiro de Sainte-Adresse:

"Quero falar-te de Paris, conquanto não haja nisto utilidade alguma, porque posso fazê-lo aí, visto que o teu cérebro recebe as nossas inspirações com uma facilidade que não imaginas.

"A nossa ação, especialmente a do Espírito de Verdade([114]) é constante sobre ti, e tal, que não podes fugir-lhe. É por isso que não entrarei em inúteis minudências sobre o plano da tua obra, que tens de todo modificado, de acordo com os meus ocultos conselhos. Compreendes agora a razão por que nos era preciso ter-te afastado de qualquer preocupação, que não fosse a da doutrina.

"Uma obra como a que, juntos, elaboramos, requer isolamento e o mais completo recolhimento. Acompanho, com vivo interesse, os progressos do teu trabalho, que é um grande passo para a frente e abre ao Espiritismo a larga via para as aplicações úteis à sociedade.

"Com esta obra o edifício começa a destacar-se e já se pode entrever a cúpula desenhando-se no horizonte. Continua pois sem impaciência e sem fadiga; o monumento será concluído a seu tempo.

"Já te entretivemos com questões incidentes, quais as religiosas. O Espírito de Verdade falou-te da leva de broquéis, que se faz neste momento. Estas hostilidades previstas são necessárias para despertar a atenção dos homens, que, tão facilmente, desdenham as coisas sérias. Aos soldados, que se batem pela santa causa, virão incessantemente juntar-se novos combatentes, cujas palavras e escritos farão sensação e levarão às falanges adversas a perturbação e a confusão.

"Adeus, caro companheiro de outrora, fiel discípulo da verdade; vai continuando nessa vida a obra que, outrora, juramos, nas mãos do Grande Espírito, que te ama e eu venero, consagrar as nossas forças e existências até concluí-la.

"Eu te saúdo."

Observação. — O plano da obra tinha de fato sido completamente modificado, o que não podia saber o médium, achando-nos, ele em Paris e eu em Sainte-Adresse. Tampouco podia ele saber que o Espírito de Verdade me havia falado em leva de broquéis do bispo d'Alger e de outros. Todas estas circunstâncias eram, propositadamente, trazidas à cena, para que eu me confirmasse na ciência de que os Espíritos tomavam parte nos meus trabalhos.

A Igreja

Paris, 30 de setembro de 1863.

Médium, o Sr. d'A...

Eis-te de volta, meu amigo, e não perdeste o tempo; trabalha, trabalha, porque é preciso não deixares esfriar a bigorna. Forjas armas de boa têmpera; repousa do trabalho, empreendendo outros mais difíceis. Ser-te-ão dados todos os elementos à medida das necessidades.

Chegou a hora em que a Igreja deve prestar contas do depósito que lhe foi confiado; do modo como praticou os ensinos do Cristo, do uso que fez da sua autoridade, da incredulidade, enfim, a que arrastou os homens.

Chegou a hora em que ela deve dar a César o que é de César e sentir a responsabilidade de todos os seus atos. Deus a julgou e reconheceu-a imprópria, de hoje em diante, para a missão do progresso, que incumbe a toda autoridade espiritual.

Só passando por uma completa transformação ela poderia continuar, mas resignar-se-ia a isso? Não, porque então deixaria de ser a Igreja. Para abraçar as verdades e os descobrimentos da ciência, precisaria renunciar aos seus dogmas fundamentais. Para voltar à prática rigorosa dos preceitos do Evangelho, precisaria renunciar ao poder, à dominação, trocar o fausto e a púrpura pela simplicidade e pela humildade apostólica. Acha-se nesta alternativa: ou se transforma e suicida-se, ou fica estacionária e sucumbe esmagada pelo carro do progresso.

Roma já sente a agonia e sabem, na Cidade Eterna, por irrecusáveis revelações, que a doutrina espírita é chamada a ferir de morte o papado, porque o cisma se levanta, vigoroso, na Itália.

Não deve causar admiração o encarniçamento do clero contra o Espiritismo, porque a isso o leva o instinto de conservação. Ele, porém, já viu as suas armas embotarem-se contra este poder nascente, os seus argumentos serem desfeitos pela lógica inflexível e não lhe resta senão o recurso de fazê-lo passar por obra do demônio, fraquíssimo recurso para o século XIX!

Por demais, a luta está travada entre a Igreja e o Progresso, mais do que entre ela e o Espiritismo. É o progresso geral das ideias que a acomete por todos os lados e a farei sucumbir, como a tudo quanto não se lhe nivelar. A marcha rápida dos acontecimentos deve fazer-vos pressentir que o desfecho não tardará. A Igreja atira-se, por si mesma, ao precipício.

Espírito D'E.

"Vida de Jesus", por Renan

Paris, 14 de outubro de 1863.

Sobre o futuro de várias publicações — Médium, o Sr. d'A...

P. (À Erasto). Qual é o efeito que produzirá a Vida de Jesus, de Renan?

R. Será imenso. Grande será o rumor no seio do clero, porque esse livro lança por terra os fundamentos do edifício, em que ele se abriga há dezoito séculos. O livro não é irrepreensível; ao contrário, oferece larga margem à crítica, por ser o reflexo de uma opinião exclusiva, que se circunscreve a um estreito círculo da vida material.

Renan não é materialista, mas pertence à escola, que não nega o princípio espiritual, mas não lhe atribui função efetiva e direta nas coisas do mundo. Ele é destes cegos inteligentes, que explicam a seu modo o que não podem ver; que, não compreendendo o mecanismo da vista à distância, imaginam que não se pode conhecer uma coisa senão tocando-a. Por isso, reduziu ele o Cristo às proporções do homem mais vulgar, negando-lhe todas as faculdades, que são os atributos do Espírito livre e independente da matéria.

Entretanto, de par com erros capitais, principalmente no que toca à espiritualidade, aquele livro contém observações muito justas, que tinham até agora escapado aos comentadores e que lhe dão alto relevo sob certos aspectos.

O autor pertence à legião dos Espíritos encarnados, que podem ser chamados demolidores do velho mundo e cuja missão é nivelar o terreno, em que se edificará novo mundo mais racional. Quis Deus que um escritor de grande fama viesse, com o seu talento, lançar a luz sobre certas questões obscuras e envoltas em preconceitos seculares, a fim de predispor os Espíritos para as novas crenças. Sem querer, Renan aplainou os caminhos para o Espiritismo.([115])

Precursores de Tempestade

30 de janeiro de 1866.

Paris. Grupo do Sr. Golovine. Médium, o Sr. L...

Permiti que um velho dignitário de Táurida abençoe os vossos dois filhos. Possam eles, sob o amparo das mães, tornar-se inteligentes e ser para vós a fonte de reais aspirações!

Desejo-lhes venturas, como espíritas convictos, que estão saturados de ideias sobre outras vidas, dos princípios de fraternidade, caridade, solidariedade, de modo que, quando se derem os acontecimentos previstos, estando eles já na idade da razão e da consciência, não ficarão surpresos, nem perderão a confiança na justiça divina, no meio das provações que terá de sofrer a humanidade.

Às vezes admirai-vos da violência com que vos atacam os adversários; eles nos qualificam de loucos, de alucinados; tomam por verdade a ficção; ressuscitam o diabo e todos os erros da Idade Média. A todos estes ataques sabeis que — responder seria travar uma polêmica sem fim. O silêncio é a prova da força e não tendo a quem responder, eles ficarão calados.

Só há a temer o imprevisto. Desde que uma mudança de governo se processe no sentido ultramontano, que é o mais intolerante, sereis perseguidos, condenados, expatriados. Os acontecimentos, porém, mais fortes que as manobras ocultas, preparam, no horizonte político, uma tempestade bem negra, e quando ela desabar, procurai abrigar-vos, procurai ser fortes e desinteressados.

Haverá ruínas, invasão, mudanças de fronteiras, e desse naufrágio imenso que virá da Europa, da Ásia e da América, sobreviverão, ficai sabendo, somente as almas bem temperadas, os Espíritos esclarecidos, tudo o que é, de justiça, lealdade, honra, solidariedade. As vossas sociedades, tais como são organizadas, são perfeitas? Contais por milhões os árias; as vossas prisões estão cheias de miseráveis, assim como os lupanares que abastecem o cadafalso.

A Alemanha vê, como sempre, emigrarem seus habitantes por centenas de milhares, o que não honra o seu governo; o papa, príncipe temporal, espalha pelo mundo o erro, em lugar do Espírito de Verdade, de que é o artificial emblema. Por todos os lados, a inveja. Vejo interesses em conflito, mas não vejo esforços para dissipar a ignorância.

Os governos minados pelo egoísmo, julgam que podem opor um dique à onda que sobe, e esta onda é a consciência humana, que afinal se insurge, depois de esperar durante séculos contra os que exploram as forças vivas das nacionalidades. As nacionalidades! Possa a Rússia não descobrir nestas palavras um cachopo terrível, um cabo tormentoso! Amado país; não esqueçam os teus estadistas que a grandeza duma nação não consiste em ter fronteiras sem fim, províncias despovoadas, grandes cidades num mar de ignorância, imensas planícies desertas, estéreis, inclementes, como o ódio, como tudo que é falso ou marcha em falso.

Que importa que o sol nunca se ponha em vossos domínios, se isso não priva de haver muitos deserdados, menos ranger de dentes, um inferno de faces abertas como a imensidade?!

Entretanto as nações, como os governos, têm o livre-arbítrio; sabem como os indivíduos, dirigir-se pelo amor, união e concórdia.

Elas fornecerão à anunciada tempestade elementos elétricos próprios para melhor desagregá-las e destruí-las.([116])

Inocente

Em vida, arcebispo de Táurida.

A Nova Geração

30 de janeiro de 1866.

Lião, Grupo Villon. Médium, o Sr. G...

A Terra estremece de alegria! Aproxima-se o dia do Senhor! Todos quantos vivem pelo espaço disputam um lugar na lição. Já os Espíritos de alguns encarnados agitam os corpos, como se quisessem deixá-los; a carne interdita não sabe o que pensar; devora-a um fogo desconhecido. Serão libertos, porque são chegados os tempos; uma eternidade está quase a expirar, uma eternidade gloriosa está quase a despontar e Deus conta o número de seus filhos.

O reinado do ouro dará lugar a outro mais puro: o pensamento será em breve soberano e os Espíritos de eleição, que, vindos de remotas eras, já iluminaram o século, voltam para nova encarnação. Que digo? Muitos já estão encarnados. A sua palavra, cheia de sabedoria, vai ser a chama destruidora dos velhos abusos.

Quantos preconceitos antigos irão rolar por terra quando o Espírito, como uma espada de dois gumes, vier arrancá-los pela raiz! Diretores espirituais do progresso humano, deixam uns as radiantes moradas, outros os grandes trabalhos, em que a felicidade se une ao desejo de se instruírem e vêm tomar de novo o bastão de peregrino, que haviam depositado à entrada do templo da ciência; e dos quatro pontos cardeais do globo, muito breve os maiores sábios vão ouvir, com espanto, a moços imberbes, que virão, em profunda linguagem, destruir argumentos que eles supunham irrefutáveis.

O sorriso de mofa não será mais um escudo de valor, e, sob pena de degradação, ninguém poderá eximir-se de responder. Então, o círculo vicioso, em que se encerram os mestres de balofas filosofias, será invadido e inutilizado, porque os novos campeões trazem um farol, que é a inteligência desembaraçada de pesados véus e, entre eles, muitos terão o privilégio das grandes almas, como Jesus, com o poder de fazer curas e realizar maravilhas, consideradas milagres.

Diante de fatos materiais, em que o Espírito se mostra tão superior, como negá-los? O materialista é suplantado no raciocínio por palavras mais eloquentes e, no terreno prático, por fatos patentes, positivos e averiguados por todos, porque os novos S. Tomé, grandes ou pequenos, podê-los-ão tocar com o dedo.

Sim; o velho mundo desaba por todos os lados, vai acabar, e com ele todos os velhos dogmas, que apenas brilham pelo dourado com que são galvanizados.

Valentes Espíritos, compete-vos a missão de desfazer essa casca de ouro falso. Fugi, vós que ainda tendes a louca pretensão de sustentar o ídolo, que, aluído nos seus fundamentos, vai cair por terra, arrastando-vos na queda. Fugi, vós que negais o progresso; fugi com as vossas crenças de outros tempos. Por que negais o progresso e quereis bani-lo? É que só quereis primar, primar ainda e sempre; e por isso condensaste o pensamento em artigos de fé, dizendo à humanidade: "Tu serás sempre criança e nós, que recebemos as luzes do céu, somos os encarregados de guiar-te."

Ficastes, entretanto, com as faixas da criança nas mãos, e vendo-a saltar, negais que possa andar só! Será batendo com as faixas, que lhe provareis a força de vossos argumentos? Não, e bem o sabeis. Sentis satisfação, quando proclamais a vossa infalibilidade, supondo que os outros, contra a vossa própria opinião íntima, nela acreditam.

Quantos gemidos enchem o santuário! É aí que se ouvem dolorosos soluços. Que podereis dizer, pobres obstinados? Que a mão de Deus pesa sobre a vossa Igreja? Que por toda a parte a imprensa livre vos ataca e destrói os argumentos? Onde o novo Crisóstomo, para pulverizar esse dilúvio de argumentadores? Em vão o esperareis. Nada mais pode o vigor e a eloquência das vossas penas. Elas obstinam-se em sustentar o passado, que se funde, quando a nova geração, em sua irresistível impulsão para diante, brada: abaixo o passado, o futuro é nosso! Uma nova aurora surge e é para ela que convergem todas as nossas aspirações!

Avante! diz; alargai o caminho, que nossos irmãos nos seguem; segui a onda, que nos leva; nós temos necessidade do movimento, que é a vida, ao passo que vós representais a imobilidade, que é a morte.

Abri túmulos e catacumbas e baixai os olhos a essas relíquias de um passado, que se extinguiu. Os santos mártires não deram o seu sangue para manter a imobilidade; eles previram a hora atual e atiraram-se para a morte, como o caminho que deviam conduzi-los a esta época.

Cada época tem seu gênio. Queremos atirar-nos à vida, porque os séculos futuros, que nos aparecem, têm horror à morte.

Eis, meus amigos, o que vão fazer compreender os ousados Espíritos, que presentemente se encarnam. Este século não acabará sem que inúmeros destroços cubram o solo. A guerra mortífera e fratricida cederá o posto à discussão, o espírito substituirá a força bruta. E, depois que essas almas generosas tiverem combatido, voltarão para o mundo espiritual a receberem a coroa do vencedor.

Eis o fim, meus amigos. Os combatentes são muito aguerridos para que se duvide do sucesso. Deus escolheu a flor deles e a vitória está garantida à humanidade. Exultai vós todos que aspirais à felicidade e que quereis que vossos irmãos a compartilhem, o dia é chegado! A terra pulsa de alegria, porque vai ver o princípio do reino da paz, prometido pelo Cristo, o Messias divino, reino cujos fundamentos ele veio assentar.

Um Espírito.

Instrução para a Saúde de Allan Kardec

23 de abril de 1866.

Paris. Comunicação particular — Médium, o Sr. D...

Enfraquecendo, diariamente, a saúde de Allan Kardec, em consequência dos excessivos trabalhos superiores às suas forças, vejo-me na necessidade de lhe repetir o que por muitas vezes tenho dito: tendes necessidades de descanso; as forças humanas têm limites que não deveis exceder no ardor de ver progredir o ensino. Fazeis mal, porque assim não apressareis o caminhar da doutrina e, arruinando a saúde, ficareis materialmente impossibilitado de concluir a obra, de que vos encarregastes.

A vossa moléstia atual não passa de um esgotamento constante de forças vitais, que não têm tempo de refazer-se, e de um excesso de calor no sangue, produzido pela falta absoluta de descanso. Nós vos sustentamos com muitos fluidos, mas é preciso que não desfaçais o que fazemos. De que serve correr? Não se tem dito tantas vezes que tudo virá a seu tempo e que os Espíritos prepostos ao movimento das ideias farão surgir circunstâncias favoráveis quando for chegado o momento?

Quando cada espírita concentra as forças para a luta, julgais que deveis esgotar as vossas? Não, em tudo deveis dar exemplo e o vosso lugar é na brecha, no momento do perigo. Que faríeis, se o vosso corpo alquebrado não permitisse ao Espírito servir-se das armas da experiência e da revelação, posta em vossas mãos?

Crede-me. Adiai os grandes trabalhos destinados a completar a obra esboçada nas primeiras publicações; os trabalhos gerais, e algumas pequenas brochuras urgentes, chegam para vos entreter e devem ser os únicos objetos das vossas preocupações atuais.

Não vos falo só em meu nome; sou, aqui, o delegado de todos os Espíritos que têm contribuído poderosamente para a propagação do ensino por meio das suas sábias instruções. Eles vos dizem por meu intermédio, que esta demora, que julgais prejudiciais ao futuro da doutrina, é uma medida necessária, por mais de uma razão; já porque certas questões ainda não estão bem elucidadas, já porque é preciso preparar os ânimos para melhor assimilá-las. Convém que outros preparem o terreno; que fiquem provadas a insuficiência de certas teorias e a necessidade de serem elas substituídas. Em fim o momento não é oportuno. Poupai-vos pois, porque quando for tempo precisareis de todo o vigor do corpo e do Espírito.

O Espiritismo foi até hoje objeto de diatribes e levantou tempestades? Julgais que tudo isso passou, que os ódios estejam acalmados ou reduzidos à impotência? Perdei a ilusão. O cadinho depurador ainda não expeliu todas as impurezas. O futuro vos reserva outras provas e as últimas crises não serão as mais fáceis de suportar.

Sei que a vossa posição especial reclama uma multidão de trabalhos secundários, que consomem a maior parte de vosso tempo. Acabrunham-vos os pedidos de toda a parte, a que tendes por sistema não deixar de satisfazer. Pois bem; eu farei daqui o que não ousais fazer: pedirei à generalidade dos espíritas que, no interesse do Espiritismo, vos poupem todo o trabalho, que vos rouba o tempo necessário à conclusão da vossa obra. Se com isto sofre a vossa correspondência, ganha o ensino. Muitas vezes é mister sacrificar ao interesse geral o que é de nosso gosto. É esta uma medida urgente, que todos os adeptos sinceros saberão compreender e aprovar.

A imensa correspondência, que recebeis, é para vós uma fonte preciosa de documentos e ensinos. Ela esclarece-vos sobre a marcha real e os progressos feitos pela doutrina. É um termômetro imparcial onde, além disso, colheis satisfações que, muitas vezes, têm servido para vos alentar a coragem, por verdes a adesão que encontram as vossas ideias em todo o mundo. Neste sentido ela é um bem e não um inconveniente, quando favoreça, em vez de vos embaraçar os trabalhos, criando excesso de preocupações.

Dr. Demeure.

Meu caro Demeure, eu vos agradeço os sábios conselhos. Graças à resolução, que tomei, de chamar um auxiliar, salvo para os casos excepcionais, a correspondência atual está quase regularizada e o será completamente para o futuro; que fazer porém acerca do atraso de mais de quinhentas cartas que a despeito de todo o esforço ainda não tiveram resposta?

R. É preciso fazer como se usa no comércio: levá-las à conta de lucros e perdas. Anunciando esta medida na Revista, saberão os vossos correspondentes como se avirem. Eles compreenderão a necessidade, que houve, de tomá-la e reconhecerão que bem a justificam os conselhos que aí vos deixo. Repito: é impossível que continuem as coisas como vão. Tudo sofreria com isso e a vossa saúde tanto como a doutrina. E preciso saber fazer sacrifício. Tranquilo, doravante, a este respeito, podereis mais livremente entregar-vos aos trabalhos obrigatórios. Eis o que vos aconselha o que será sempre vosso amigo devotado.

Demeure.

Aceitando tão sábios conselhos, pedimos aos nossos correspondentes, com quem estávamos em atraso, que nos desculpassem não podermos responder ponto por ponto às suas obsequiosas cartas e que aceitassem, coletivamente, a expressão dos nossos sentimentos fraternais.([117])

Regeneração da Humanidade

25 de abril de 1866.

Paris. Resumo das comunicações transmitidas

pelos Srs. M... e T... em estado sonambúlico.

Precipitam-se os acontecimentos com tanta rapidez, que já não vos diremos que os tempos aproximaram-se, mas sim que são chegados os tempos. Não tomeis estas palavras como anúncio de novo dilúvio, de algum cataclismo ou de uma comoção geral.

Convulsões parciais do globo têm-se dado em todas as épocas e ainda hoje se dão, porque são inerentes à sua constituição; mas não são sinais. Entretanto tudo o que está predito no Evangelho tem de se cumprir e neste momento se cumpre, como o conhecereis mais tarde. Não tomeis porém os sinais anunciados senão como figuras, que se devem entender pelo espírito que não pela letra.

Todas as Escrituras encerram grandes verdades, sob o véu da alegoria, e extraviaram-se os comentadores, que ficaram restritos à letra. Faltou-lhes a chave para compreender o verdadeiro sentido, a qual está nas descobertas da ciência e nas leis do mundo invisível, que o Espiritismo veio revelar. Doravante, com o auxílio desses novos conhecimentos, o que era obscuro se tornará claro e inteligível.

Tudo segue a ordem natural das coisas e jamais serão invertidas as leis imutáveis do Criador. Não há milagres, nem prodígios, nem coisas sobrenaturais, no sentido que se dá a estas palavras. Não procureis no céu sinais precursores, porque não os vereis e aqueles, que vo-los anunciam, abusam da vossa boa fé.

Olhai porém em torno de vós, no meio dos homens, e aí os encontrareis.

Não percebeis que sopra um vento pela superfície da Terra, o qual agita os Espíritos? O mundo espera alguma coisa e sente-se dominado de um vago pressentimento de próxima tempestade.

Não acrediteis entretanto que o mundo acabe materialmente. Ele progrediu desde o primeiro dia e deve progredir indefinidamente. A humanidade é que atingiu um dos seus períodos de transformação e a Terra vai elevar-se na hierarquia dos mundos.

Não é o fim do mundo material que se aproxima, mas o fim do mundo moral. É o mundo velho, o mundo dos preconceitos, do egoísmo, do orgulho e do fanatismo, que se esboroa. Cada dia se lhe destaca um pedaço. Tudo se concluirá com a geração que se vai, e a que lhe suceder elevará novo edifício, que as subsequentes consolidarão e completarão.

De mundo de expiação, a Terra será graduada em mundo feliz e a habitação nela será uma recompensa em vez de punição. O reino do bem sucederá nela ao reino do mal.

Para que os homens sejam felizes na Terra é preciso que seja habitada exclusivamente por bons Espíritos, encarnados e desencarnados, que não cogitem senão do bem. Chegada esse tempo, haverá grande emigração entre os que ora o habitam. Não sendo mais dignos da Terra transformada, os que fazem o mal pelo mal, sem que os afete o sentimento do bem, serão excluídos daí, porque se continuassem manteriam a perturbação e a confusão e seriam obstáculos ao progresso.

Estes irão expirar o seu endurecimento em mundos inferiores para onde levarão os conhecimentos adquiridos, tendo por missão fazê-los progredir; serão substituídos na Terra por Espíritos mais adiantados, que farão reinar aí a justiça, a paz, a fraternidade.

A Terra, dissemo-lo, não há de ser transformada por um cataclismo, que destrua toda a humanidade. Desaparecerá gradualmente a atual geração e a nova lhe há de suceder pelo mesmo modo sem que nada se altere na ordem natural das coisas. Tudo se passará pois aparentemente, como de costume, com uma única diferença capital: certo número de Espíritos, que aí se encarnavam, não voltará mais à Terra, em nova encarnação. Em cada menino que nascer, em lugar de um Espírito atrasado e propenso ao mal, surgirá um Espírito adiantado e propenso ao bem. Não se trata portanto de nova geração corporal, mas de nova geração de Espíritos. Ficarão assim desiludidos os que contavam com uma transformação sobrenatural e maravilhosa.

A época atual é de transição; já se misturam os elementos das duas gerações. Quem estiver de fora assistirá à partida de uma e à chegada de outra, sendo certo que ambos se assinalam no mundo pelos caracteres que lhes são próprios. As duas gerações que se sucedem têm ideias e projetos completamente opostos. Pelas disposições morais, e principalmente pelas intuitivas e inatas, é fácil conhecer a qual das duas pertence cada indivíduo.([118])

A nova geração, devendo firmar a era do progresso moral, distingue-se por uma inteligência e uma razão geralmente precoces, de par com um sentimento inato do bem e crenças espiritualistas — o que é sinal evidente de anterior progresso. Não será composta exclusivamente de Espíritos que tenham grande superioridade, mas daqueles que, tendo já progredido, são predispostos a assimilar toda ideia progressista e estão aptos para secundar o movimento regenerador.

O que pelo contrário distingue os Espíritos atrasados é, primeiro, a revolta contra Deus, pela negação da Providência e de qualquer poder superior à humanidade e, segundo, a instintiva propensão para as paixões degradantes, para os sentimentos antifraternais do orgulho, do ódio, do ciúme, da avareza, enfim o arrastamento para tudo quanto é material. São estes os vícios de que a Terra deve ser libertada, pela remoção dos que recusam combatê-los, porque tais vícios são incompatíveis com o reino da fraternidade e fazem sofrer os homens de bem. A Terra será deles libertada e os homens caminharão, sem empecilhos, para melhor futuro, que lhes está reservado, mesmo aqui, conquistado por seus esforços e perseverança, enquanto mais completa depuração não lhes permitir a entrada em mundos superiores.

Não pensem porém que em virtude da falada emigração, todos os retardatários sejam expulsos da Terra e atirados para mundos inferiores. Muitos destes tornarão à vida terrena, por terem sido vítimas da influência das circunstâncias e do exemplo: o envoltório era neles pior que o âmago. Uma vez subtraídos à ação da matéria e dos preconceitos do mundo corporal, eles, em crescido número, verão as coisas muito diferentemente do que lhes parecia em vida. Tendes inúmeros exemplos disso. Serão ajudados pelos Espíritos beneficentes, que procuram esclarecê-los e mostrar-lhes o falso caminho, que seguiram.

Pelas preces e exortação podeis também contribuir para que melhorem, visto como há perpétua solidariedade entre vivos e mortos. Eles poderão pois voltar e serão felizes, porque a volta é uma recompensa. Que importa o que foram e o que fizerem, se estão animados dos melhores sentimentos? Longe de serem adversos à sociedade e ao progresso, serão auxiliares úteis, porque pertencerão à nova geração.

Não haverá portanto exclusão definitiva senão para os Espíritos tenazmente rebeldes ou sejam aqueles que, dominados pelo egoísmo e pelo orgulho, mais do que por ignorância, se tornam surdos à voz do bem e da razão. Estes mesmos porém não são votados à inferioridade perpétua e dia virá em que repudiarão o passado e abrirão os olhos à luz. Orai pois por esses espíritos endurecidos a fim de que se dobrem enquanto é tempo, porque se aproxima o dia da expiação.

A maior parte infelizmente, não ouvindo a voz de Deus, persistirá na cegueira e essa resistência marcará o fim do reinado desses infelizes por lutas tremendas. No desvairamento, correrão para a sua perda — provocarão a destruição, que produzirá uma multidão de flagelos e calamidades, de sorte que, sem o quererem, apressarão o advento da era nova. E como se a destruição não caminhasse com bastante rapidez, ver-se-ão os suicídios multiplicarem-se numa proporção inaudita, até entre as crianças.

Jamais se terá visto tão grande número de loucos, pobres desgraçados, que são riscados, antes da morte, do número dos viventes. São estes os verdadeiros sinais dos tempos! E tudo isto se realizará pelo encadeamento de circunstâncias, sem que, como já dissemos, sejam derrogadas, nem de leve, as leis da natureza.([119])

Entretanto, através da nuvem sombria que vos envolve, e no seio da qual brame a tempestade, já podeis divisar os primeiros raios da nova era! A fraternidade já lança os fundamentos por todos os pontos do globo e os povos estendem-se as mãos. A barbaridade familiariza-se em contato com a civilização; os preconceitos de raça e de seitas, que fizeram correr em ondas, se vão extinguindo; o fanatismo, a intolerância, perdem terreno, ao passo que a liberdade de consciência se introduz nos costumes e se torna um direito. Por toda a parte fermentam as ideias; vê-se o mal e procura-se o remédio; muitos porém navegam sem bússola e perdem-se em utopias.

O mundo está num grande trabalho de gestação, que dura há cerca de um século; neste trabalho, ainda confuso, domina entretanto a tendência para certo fim; o da unidade e da uniformidade, que predispõem para a confraternização.([120]) São também sinais dos tempos.

Enquanto os outros são da agonia do passado, são estes os primeiros vagidos da criança, que nasce, os precursores da aurora do próximo século, em que a nova geração está em plena pujança, tanto quanto a fisionomia do século dezenove difere da do dezoito como, sob certos aspectos, difere a do século dezenove da do vigésimo, sob outros.

Um dos característicos distintivos da nova geração será a fé inata; não a exclusivista e cega, que divide os homens, mas a fé racional, que esclarece e fortifica, que os une e confunde no mesmo sentimento de amor de Deus e do próximo. Com a geração que se extingue desaparecerão os últimos vestígios da incredulidade e do fanatismo, igualmente contrário ao progresso moral e social.

O Espiritismo é a vida que conduz à renovação, porquanto arruína os dois maiores obstáculos que se lhe opõem: incredulidade e fanatismo. Desperta fé sólida e esclarecida, desenvolve todos os sentimentos e ideias correspondentes aos ideais da nova geração. Por isso é inato e em estado de intuição no coração dos seus representantes. A nova era o verá pois, crescer e prosperar pela força das coisas; tornar-se-á a base de todas as crenças, o ponto de apoio de todas as instituições.

Mas daqui até lá, quantas lutas a sustentar contra os seus dois grandes inimigos: a incredulidade e o fanatismo, os quais, coisa inaudita, se dão as mãos para combatê-lo. É que pressentem o futuro do Espiritismo e a ruína própria; pelo que o temem, vendo-o já plantar, sobre as ruínas do velho mundo egoísta, o estandarte que deve unir todos os povos. Na divina máxima fora da caridade não há salvação, leem a condenação própria, porque ela é o símbolo da nova aliança fraternal proclamada pelo Cristo. Soam-lhe as palavras fatais do festim de Baltasar. Entretanto deveriam abençoar a máxima, porque os garante contra qualquer represália da parte dos que são por eles perseguidos. Uma força cega porém os impele a rejeitar o único meio de salvação que poderiam ter. Que poderão contra a corrente da opinião, que os repudia?

O Espiritismo, não o duvideis, triunfará da luta porque está nas leis da natureza e será por isso imperecível. Vede por qual multidão de meios as suas ideias se espalham e penetram em toda a parte. Acreditai que esses meios não são casuais, mas providenciais. O que parece, à primeira vista deve fazer-lhe mal, é precisamente o que auxilia a propagação. Não tardarão os campeões, distintos entre os mais considerados e conceituados, a apoiá-lo com a autoridade dos seus nomes e exemplos, a impor silêncio aos detratores, porque a esses ninguém ousará chamar loucos.

Esses homens estudam-no em silêncio e virão a público quando for oportuno. Até então convém que não apareçam. Bem depressa vereis também as artes nele beber como numa fecunda fonte e assim traduzirem seus pensamentos e os horizontes, que ele revela pela pintura, pela música, pela poesia e pela literatura.

Já vos foi dito que haverá um dia a arte espírita, como houve a arte pagã e a cristã; e disseram-vos uma grande verdade, porque os maiores gênios se inspirarão nele. Bem cedo vereis os primeiros esboços e mais tarde ele tomará a posição que lhe compete.([121])

Espíritas: o futuro é vosso e de todos os homens de sentimento e dedicação. Não vos assustem os obstáculos, porque não os há que contrariem os desígnios da Providência. Trabalhai sem descanso e agradecei a Deus ter-vos colocado na vanguarda da nova falange. É um posto de honra que vós mesmos pedistes e de que deveis tornar-vos dignos pela coragem, perseverança e dedicação.

Felizes aqueles que sucumbirem na luta contra a força; mas opróbrio para aqueles que, no mundo espiritual, sucumbirem por fraqueza e pusilanimidade. As lutas fortificam a alma, o contato do mal faz apreciar melhor as vantagens do bem. Sem as lutas, que estimulam as faculdades, o Espírito deixar-se-ia levar pela indiferença, aliás funesta, ao seu desenvolvimento. As lutas contra os elementos desenvolvem as forças físicas e a inteligência e contra o mal desenvolvem as forças morais.

Caminhar Gradual do Espiritismo. Dissidências e Perturbações

27 de abril de 1866.

Paris, em casa do Sr. Leymarie — Médium, o Sr. L...

Caros condiscípulos: A verdade é a verdade; nada pode perturbar-lhe a manifestação.

Às vezes pode encobri-la, fazer com ela o que fazem os teredens(·) nos diques holandeses. Ela porém não está assente sobre estas; percorre o espaço, anda no ar e, se uma geração ficou em cegueira, há sempre novas encarnações para os cegos; há recrutas da erraticidade, portadores de germes fecundos e outros elementos e que sabem atrair para essas encarnações grandes coisas desprezadas.

Não vos apresseis muito, amigos; muitos de vós querem ir a vapor e, neste tempo de eletricidade, correr como ela. Esquecidos das leis da natureza, querem ir adiante do tempo. Refleti no entanto como Deus em tudo é sábio.

Os elementos, que constituem o vosso planeta, têm sofrido longa e laboriosa gestação; para que pudésseis existir, ele passou pelas transformações, que o tornavam apto para a vida. A matéria, os minerais, fundidos e refundidos, os gases, os vegetais, pouco a pouco se harmonizaram e condensaram, a fim de permitirem o vosso aparecimento na Terra. É a eterna lei do trabalho, que rege sempre os seres inorgânicos, tanto como os inteligentes.

O Espiritismo não está fora dessa lei, que é a lei da infância. Plantado em solo ingrato, é preciso que se avenha com as ervas daninhas e com os maus frutos; mas também todos os dias vão sendo podados os maus galhos, fertiliza-se o terreno insensivelmente e, quando o viajante, fatigado das lutas da vida, encontrar a abundância e a paz na sombra de fresco oásis, correrá a estancar a sede, a enxugar o suor neste reino lenta e sabiamente preparado. Aí o rei é Deus, o distribuidor generoso, o igualador judicioso, que bem sabe como é doloroso, mas fecundo, o trajeto a seguir; doloroso, mas necessário, porque o Espírito, formado na escola do trabalho, sai mais forte e mais apto para as grandes coisas.

Aos que desfalecem, diz ele: coragem, e, como esperança suprema, permite entrever, até aos mais ingratos, um ponto de chegada, ponto salutar, o caminho demarcado pelas reencarnações.

Não deis ouvidos às parolações: deixai falar os dissidentes, vociferar os que se não podem consolar por não serem os primeiros; todo esse insignificante ruído não impedirá que o Espiritismo siga a sua rota. Ele é uma verdade e, como um rio, a verdade deve seguir o seu curso.

Publicações Espíritas

16 de agosto de 1867.

Sociedade de Paris — Médium, o Sr. M..., em sonambulismo

Nota. — O Sr. L... acabava de anunciar que se propunha a publicar obras espíritas, a preços fabulosamente reduzidos. Foi a este respeito que o Sr. Morin disse, em estado sonambúlico, o que se segue:

Os espíritas são hoje numerosos, porém ainda não compreendem o alcance eminentemente moralizador e emancipador do Espiritismo. O núcleo, que sempre seguiu o bom caminho, continua a marcha lenta, mas segura, não tem ideias preconcebidas e cuidados, que ficam em caminho.([122])

Entre os que formam o núcleo há muitos, infelizmente, que veem tudo cor-de-rosa e, facilmente benévolos, se deixam levar pelas aparências e vão, infantilmente, cair nos laços inimigos de uns tantos que dizem dar o sangue, a fortuna, a inteligência para que triunfe a ideia. Pois bem! Relede a comunicação (comunicação que ele acabava de fazer) e vereis que, em certos indivíduos, tais sacrifícios nunca são feitos sem pensamento oculto.

É preciso estar prevendo com as dedicações e generosidades dos que as ostentam e com as asseverações dos que dizem que nunca mentem.

Anunciar a venda de alguma coisa a preço impossível, dizendo não ter prejuízo, é ocultar especulação, é fazer mais: dar de graça todos os elementos de uma doutrina sublime alegando primazia e excesso de zelo. Isto é o cúmulo da hipocrisia. Espíritas, acautelai-vos!".

Acontecimentos

16 de agosto de 1867.

Sociedade de Paris — Médium, o Sr. D...

A sociedade em geral, ou antes a reunião dos seres, tanto encarnados como desencarnados, que compõem a população flutuante do globo, em uma palavra, a humanidade, não é mais do que uma criança, sob a forma coletiva que, como todo o ser dotado de vida, passa por todas as fases, se sucedem, desde o nascimento até a mais avançada idade.

E, da mesma sorte que o desenvolvimento do indivíduo é acompanhado de certas perturbações físicas e intelectuais, que se dão mais particularmente em determinados períodos da vida, a humanidade tem suas moléstias próprias desses períodos, seus desarranjos morais e intelectuais. É a uma destas grandes épocas que fecham um período e abrem outro, que vos é dado assistir.

Participante, simultaneamente, das coisas do passado e do futuro, dos sistemas que caem e das verdades que se fundam, tende cuidado, meus amigos, de colocar-vos do lado firme, do progresso e da lógica, se não quiserdes ser arrastados — e de abandonardes palavras suntuosas na aparência, mas de base vacilante, que sepultarão, em breve, sob suas ruínas, os insensatos que não quiserem sair, apesar de todas as advertências e admoestações.

Todas as frontes se ensombram e a calma aparente, que gozais, não serve senão para acumular maior cópia de elementos destruidores.

Algumas vezes, a tempestade, que destrói o fruto de um ano de trabalho, é precedida de sinais, que permitem tomar precauções para evitar, tanto quanto possível, a devastação. Desta vez não será assim. O céu sombrio parecerá aclarar-se, as nuvens fugirão e depois, inesperadamente, todas as fúrias, por longo tempo comprimidas, desencadear-se-ão com inaudita violência.

Desgraçados aqueles que não se tiverem preparado um abrigo! Ai dos fanfarrões, que afrontarem o perigo, com o braço desarmado e o peito descoberto! Ai dos que o fizerem de taça em punho! Que cruel desgraça os espera! Antes que o copo lhes toque os lábios, serão fulminados!

Avante, pois, espíritas, e nunca esqueçais de que vos deveis ter prudência e previdência. Tendes um escudo, saibais servir-vos dele; uma âncora de salvação, não a menosprezeis.

A Minha Nova Obra sobre a Gênese (Comunicação Espontânea)

9 de setembro de 1867.

Segur, sessão íntima — Médium, o Sr. D...

Duas palavras acerca da obra que está na forja, como tantas vezes dissemos, e é urgente apressar-lhe a publicação.

É necessário que ao tempo de romper o conflito europeu já tenha ela produzido impressão no público. Se tardar, é possível que os acontecimentos brutais possam afastar a atenção de qualquer obra puramente filosófica. E, como esta é destinada a um papel conspícuo na elaboração que se prepara, urge que ela não falte no tempo oportuno.

Entretanto, não se deve, por isso, sacrificar-lhe o desenvolvimento. Dai-lhe toda a amplitude; cada pequena parte tem seu peso na balança da ação e, em época tão decisiva, como esta, nada se deve desprezar, assim na ordem material, como na moral. Pessoalmente estou satisfeito com o trabalho; todavia a minha opinião pouco é, comparada à satisfação daqueles que transformará.

O que principalmente me rejubila são as suas consequências sobre as massas tanto do espaço, como da Terra.

P. Se não houver obstáculos, a obra deve sair em dezembro. Supondes que os haverá?

R. Não prevejo dificuldades invencíveis; a principal seria a vossa saúde, tanto que não cessamos de aconselhar-vos a não a negligenciar. Quanto a obstáculos exteriores, não os vejo sérios.

Dr. D.

A Gênese

22 de fevereiro de 1868.

Comunicação particular — Médium, o Sr. D...

Após um ditado em que o Dr. Demeure me deu, sobre conselhos sábios que convinha fazer no livro da Gênese, quando houvesse de reimprimir-se, modificações em que ele queria que eu, sem demora, me ocupasse, disse-lhe eu:

— A venda até aqui tão rápida, parará, certamente; é o efeito do primeiro momento. Creio pois que a 4ª e 5ª edições levarão longo tempo a esgotar-se.

Não obstante, como é preciso não pouco tempo para a revisão e reimpressão, convém meter mãos à obra. Podereis dizer-me aproximadamente de quanto tempo disponho ainda para essa empresa?

R. É muito sério o trabalho desta revisão e eu aconselho a não vos demorardes em empreendê-lo; melhor é estardes pronto antes da hora do que esperarem por vós. Sobretudo não vos apresseis. Apesar da aparente contradição de minhas palavras, vós me compreendeis perfeitamente: sede solícito em começar, mas não vos mateis no trabalho. O trabalho moderado dará mais clareza às ideias e menos fadiga ao corpo. É mister no entanto que estejas preparado para uma saída rápida.

Quando vos dissemos que esse livro seria um êxito entre os vossos êxitos, queríamos falar de um êxito ao mesmo tempo filosófico e material. Como vedes, justas eram as nossas previsões. Aparelhai-vos, que, mais cedo do que pensais tendes de entrar em ação.

Observação. — Em uma comunicação de 18 de dezembro foi dito: será um êxito entre os vossos êxitos. É notável que, com intervalos de dois meses, outro Espírito repita as mesmas palavras, dizendo: "quando vos dissemos, etc..." Isto prova que os Espíritos agem de combinação e que muitas vezes um fala em nome de muitos.([123])

Acontecimentos

Paris, 23 de fevereiro de 1868.

Comunicação íntima dada ao médium, o Sr. C...

Ocupai-vos desde já com a obra, que iniciastes no sentido de ser um dia útil a vossos irmãos em crença, e servir a causa da doutrina, porque é possível que os acontecimentos que se vão realizar não vos deem tempo para vos aplicardes àquele trabalho. Os acontecimentos apresentarão fases durante as quais o pensamento humano se poderá manifestar com absoluta liberdade. Nesses momentos os cérebros em delírio, baldos de orientação reta, produzirão essas enormidades, que o anúncio de próxima aparição da besta do Apocalipse a ninguém pode admirar e passaria despercebido. A imprensa vomitará todas as loucuras humanas até se esgotarem as paixões, que elas criam.

Esses tempos são favoráveis aos espíritas, que farão o seu recenseamento e prepararão os seus materiais e armas.

Ninguém os inquietará, porque a ninguém perturbam. Serão eles os discípulos da matéria.

Trabalhos Pessoais. Diversos Conselhos

Paris, 4 de julho de 1868 — Médium, o Sr. D...

Estão em bom caminho os vossos trabalhos; prossegui na reimpressão da última obra; fazei o mapa geral até o fim do ano, deixai-nos o resto.

A impulsão produzida pela Gênese apenas começa a fazer-se sentir e inúmeros elementos por ela abalados virão alistar-se na vossa bandeira. Outras obras sérias aparecerão ainda para acabar de esclarecer o pensamento humano sobre a doutrina.

Aplaudo a publicação das cartas de Lavater, pequeno recurso destinado a produzir grandes efeitos. Em suma, o ano será auspicioso para os amigos do progresso racional e liberal.

Sou também do parecer que se publique o resumo que vos propondes fazer sob a forma de catecismo ou manual, mas julgo que ele deve ser revisto com o maior cuidado. Quando estiverdes para publicá-lo, não vos esqueçais de me consultar sobre o título, que eu talvez tenha uma boa lembrança, dependente dos acontecimentos ocorridos.

Quando ultimamente vos aconselhamos a não demorar muito à revisão da Gênese, dissemos que era preciso acrescentar alguns pontos, preencher algumas lacunas e resumir outros pontos, a fim de não dar ao volume demasiada extensão. Não foram perdidas aquelas observações e seremos constantes em colaborar na revisão da nova obra, como em ter contribuído para a sua execução. Por hoje, indico-vos a necessidade de reverdes com cuidado, principalmente os primeiros capítulos, cujas ideias, todas excelentes, não contêm senão verdades; mas tem certas expressões, que podem prestar-se a falsa interpretação.

Além dessas retificações, que vos aconselho, porquanto se atiram às palavras os que não podem combater as ideias, nada mais tenho a indicar-vos.([124]) Aconselho-vos, entretanto, que não percais tempo, visto como é sempre preferível que os livros esperem por aqueles que os procuram. Nada deprecia mais uma obra do que uma lacuna na venda. O editor, impaciente por não poder satisfazer os pedidos, perdendo a ocasião de realizar vendas, desanima com as obras de um autor imprevidente; o público cansa de esperar e essa má impressão não passa facilmente. Além disso, não é mau terdes algumas liberdades de espírito para prevenir as eventualidades que podem dar-se e cuidar de estudos particulares que, segundo os acontecimentos, podem tornar-se urgentes ou ser adiados para tempos mais propícios.

Preparai-vos para tudo, desembaraçai-vos de todo obstáculo, tanto para vos aplicardes a um trabalho especial, se a tranquilidade geral o permitir como para estardes escudados contra qualquer acontecimento, se complicações imprevistas exigirem uma súbita resolução vossa.

O ano novo está a despontar; é preciso portanto no fim deste dar a última demão à primeira parte da obra espírita, a fim de ter o campo pronto para receber a semente do futuro.([125])

Fora da Caridade Não Há Salvação (Pensamentos íntimos de Allan Kardec encontrados entre seus papéis)

Este princípio não é para mim simples teoria, pois que o ponho em prática. Faço o bem, quanto me permitem as minhas condições; presto os serviços que posso; os pobres nunca foram enxotados de minha casa, nem tratados com dureza, antes são sempre acolhidos com benevolência. Nunca lastimei os passos, que dei em favor de alguém. Muitos pais de família foram tirados das prisões por esforço meu.

Não me é lícito fazer o relatório dos bens, que tenho feito, mas ao tempo em que tudo é esquecido, julgo que me é permitido relembrar que a consciência não me acusa de ter feito mal a quem quer que seja, que tenho feito o bem que posso e isto repito sem ostentação. A este respeito a minha consciência está tranquila, e as ingratidões, que tenho recebido, não me tolhem a disposição de continuar na senda até hoje seguida.

A ingratidão é uma das imperfeições da humanidade e como não há quem seja isento delas, é preciso relevar aos outros, para que nos relevem a nós a fim de podermos dizer com Jesus Cristo: "O que estiver limpo de culpa, atire a primeira pedra".

Continuarei pois a fazer o bem que me for possível, mesmo aos meus inimigos, porque o ódio não me cega; estender-lhes-ei sempre a mão para arrancá-los aos precipícios, quando para isto se me oferecer ocasião. É assim que compreendo a caridade cristã, essa religião que manda pagar o mal com o bem e, com mais forte razão, o bem com o bem. Não compreendo porém aquela que retribui o mal pelo mal.

Projeto 1868

Um dos maiores obstáculos à propagação da doutrina é a falta de unidade. O único meio de evitá-lo, se não presentemente, ao menos no futuro, é apresentar essa propagação em todas as suas partes e até nas minudências com tal precisão e clareza, que seja impossível qualquer interpretação divergente.

Se a doutrina do Cristo deu lugar a tantas controvérsias, se, ainda hoje, é tão mal compreendida e diversamente praticada, é porque o Cristo se limitou ao ensino oral e os apóstolos não ensinaram senão princípios gerais que cada um interpretou, segundo suas ideias e interesses. Se tivesse procedido à organização da igreja cristã com a precisão de uma lei ou de um regulamento, é incontestável que isso teria prevenido a maior parte dos cismas e das querelas religiosas, assim como a exploração, que se tem feito da religião, em proveito de ambições pessoais. Resulta daí que, se o Cristianismo foi para alguns homens esclarecidos um meio de reforma moral séria, não foi nem é ainda para muitos senão objeto de crença cega e fanática, o que, num grande número, produziu a dúvida e a incredulidade.

O Espiritismo, bem entendido e bem compreendido, é o meio único de remediar este estado de coisas e tornar-se, como dizem os Espíritos, a grande alavanca de transformação da humanidade. A experiência deve esclarecer-nos sobre o caminho a seguir; mostrando-nos os inconvenientes do passado, ela nos diz claramente que o único meio de evitá-lo para o futuro é assentar o Espiritismo em bases sólidas de uma doutrina positiva, nada deixando à interpretação. As dissidências, que poderiam surgir, se fundirão na unidade principal, estabelecida em bases mais racionais, claramente definidas.

Resulta ainda destas considerações que este processo, dirigido com prudência, é o meio mais salutar contra os antagonistas da doutrina espírita. Todos os sofismas virão quebrar-se de encontro a princípios, que a sua razão é forçada a aceitar.

Dois elementos devem contribuir para o progresso do Espiritismo: o estabelecimento teórico da doutrina e os meios de popularizá-la. O desenvolvimento, que ela toma todos os dias, multiplica as nossas relações, que mais e mais avultarão pelo impulso da nova edição de O Livro dos Espíritos e consequente publicidade da doutrina.

Para utilizar vantajosamente essas relações se, depois de constituída a teoria, devo também concorrer para a sua instalação, seria mister que, além da publicação da minha obra, me fossem dados meios de ação mais direta. Penso que seria isso útil, porque haveria mais unidade em ser o fundador da doutrina, o seu impulsor. A este respeito, a sociedade deve, necessariamente, exercer grande influência, como o tem dito os próprios Espíritos; a sua ação porém não será realmente eficaz quando servir de centro e ligação para um ensino que prepondere sobre a opinião pública. Para isso precisa de uma organização mais forte e de elementos, que ora lhes faltam. Em nosso século e com os nossos costumes, os recursos financeiros são o grande motor de todas as coisas, quando empregado com critério. Na hipótese da sua falta completa, eis o plano, que eu seguiria e cuja explicação seria proporcional à importância dos meios e subordinada aos conselhos dos Espíritos.([126])

Estabelecimento Central

O mais urgente seria haver um local convenientemente situado e disposto para as sessões e as recepções. Sem dar-lhes um luxo inútil e mal cabido, conviria, no entanto, tê-lo bem disposto, de modo que as pessoas de distinção, que aí viessem, não sentissem constrangimento. Além do meu cômodo particular, deveria ele compreender:

1. Uma grande sala para as sessões da Sociedade e para as grandes reuniões;

2. Um salão de recepções;

3. Uma peça para evocações particulares, espécie de santuário nunca profanado por outras ocupações;

4. Um escritório para a Revista, arquivo e negócios da Sociedade.

Cada coisa disposta comodamente, conforme o seu destino.

Haveria mais uma biblioteca composta de todas as obras e escritos periódicos franceses e estrangeiros, antigos e modernos, acerca do Espiritismo.

O salão das recepções estaria aberto todos os dias, a certas horas, para os membros da Sociedade, que quisessem vir conversar e ler os jornais ou consultar o arquivo ou a biblioteca. Os adeptos estrangeiros, de passagem por Paris, e apresentados por um sócio, ali seriam recebidos. Uma correspondência regular seria estabelecida com os diversos centros de França e do estrangeiro.

O estabelecimento seria servido por um secretário e outro funcionário para os serviços gerais de escritório.

Ensino Espírita

Estabelecer-se-ia um curso regular de Espiritismo, no intuito de desenvolver os princípios da ciência e de propagar o gosto pelos estudos sérios. O curso teria a vantagem de fundar a unidade de princípio, de fazer adeptos esclarecidos, capazes de propagar as ideias espíritas e de desenvolver grande número de médiuns. Considero esse curso como elemento de influência capital sobre o futuro do Espiritismo e sobre as suas consequências.([127])

Publicidade

A Revista teria um desenvolvimento maior, quer quanto ao número de páginas, quer quanto à periodicidade, então menos espaçada. Contaria ela também com os serviços de um redator remunerado.

Publicações em larga escala, feitas nos jornais de maior circulação, levariam ao mundo inteiro, até às mais remotas partes, o conhecimento das ideias espíritas, fariam nascer o desejo de aprofundá-las e, multiplicando os adeptos, imporiam silêncio aos detratores, que se curvariam ante o ascendente da opinião.

Viagens

Dois ou três meses do ano seriam consagrados a visitas aos diversos centros para imprimir-lhes uma boa direção. Se os recursos permitissem, votar-se-iam fundos para certo número de viagens a missionários esclarecidos e de talento, que se encarregassem de espalhar a doutrina.

Uma organização completa e a assistência de auxiliares remunerados com quem eu pudesse contar, dispensando-me de uma multidão de ocupações e de preocupações materiais, deixar-me-iam o preciso lazer para ativar os trabalhos, que me incumbem, aos quais, nas atuais condições, não posso dedicar, tão assiduamente quanto é preciso, o tempo que me falta e as forças físicas, que me falecem.

Se porventura me fosse dado realizar este projeto, em cuja execução me seria preciso conservar a mesma prudência, que tenho tido desde o passado até hoje, é fora de dúvida que alguns anos bastariam para fazer adiantar de séculos a doutrina espírita.

A constituição do Espiritismo foi inserta por Allan Kardec na Revista de dezembro de 1868, mas sem os comentários que ele antes de morrer fizera e que reproduzimos textualmente. A morte corporal surpreendeu-o quando se dispunha a traçar os "Princípios fundamentais da doutrina espírita reconhecidos como verdades adquiridas", o que os nossos leitores sentirão, como nós, porque eles teriam completado a sua constituição por dados lógicos e judiciosos.

É o último manuscrito do Mestre e nós o lemos com o maior respeito.

 


 

Constituição do Espiritismo: Exposição de Motivos

I — Considerações Preliminares

Como todas as coisas, o Espiritismo teve o período de iniciação, e, enquanto as questões principais e acessórias, que se lhe prendem, não tiverem satisfatória resolução, não pode dar senão resultados incompletos; poderemos lobrigar-lhe o fim, pressentir-lhe as consequências, mas apenas de modo vago e incerto.

Da incerteza sobre os pontos ainda não determinados deviam, necessariamente, resultar divergência sobre o valor a dar-lhes. A unificação não podia ser senão obra do tempo e foi feita gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Só quando a doutrina tiver alcançado todas as partes, que a constituem, formará um todo harmônico e só então se poderá julgar o que é verdadeiramente o Espiritismo.

Enquanto não foi senão uma opinião filosófica, a sua influência sobre os adeptos não passava da simpatia natural produzida pela comunhão das ideias nunca porém chegou a uma união por laços sérios, que só podem existir quando há um programa claramente definido. Essa é evidentemente a causa principal da falta de coesão e de estabilidade dos grupos e sociedades, que se têm formado. Por isso nos opomos, com todas as forças, a que os espíritas fundem, prematuramente, qualquer instituição especial apoiada na doutrina antes que esta assente em sólidas bases. Seria exporem-se a decepções inevitáveis, cujo efeito seria desastroso, pela impressão que produziria no público e pelo desânimo, que traria aos próprios adeptos.

Esses desastres poderiam retardar de um século o progresso real da doutrina, a qual se imputariam os insucessos que, de fato, teriam sido o resultado da imprevidência. Por não saberem esperar, os apressados e impacientes sempre comprometeram as melhores causas.(·).

Não e lícito pedir às coisas senão o que podem dar, à medida do que podem produzir. Não se pode exigir de uma criança o mesmo que de um adulto, nem de uma árvore recentemente plantada o que ela só produzirá quando estiver em pleno desenvolvimento.

O Espiritismo em via de elaboração só podia dar resultados individuais; os gerais e coletivos serão o fruto do Espiritismo completo em seu sucessivo desenvolvimento. Conquanto não tenham dito ainda a última palavra sobre todos os pontos, é certo que se aproxima do complemento, e é chegado o tempo de assentar numa base forte, durável, conquanto ainda susceptível de receber todos os desenvolvimentos comportáveis pelas circunstâncias ulteriores, e dando toda a segurança àqueles, que desejarem saber quem tomará o seu governo depois de desaparecer aquele que lhe dirigiu os primeiros passos.

A doutrina é imperecível, porque repousa em leis naturais e, melhor que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações da humanidade. Entretanto a sua difusão e definitiva instalação podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias, algumas das quais dependem da evolução geral das coisas e outras são inerentes à própria doutrina, à sua constituição e organização.

Conquanto a questão de fundo seja a preponderante, a de forma tem aqui importância capital, podendo mesmo sobrelevar àquela momentaneamente, visto poder suscitar-lhe empecilhos segundo o modo como for resolvida. Teríamos pois feito obra incompleta e deixado grandes estorvos para o futuro senão tivéssemos previsto as dificuldades supervenientes. É no intuito de preveni-las, que elaboramos um plano de organização, para o qual aproveitamos a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais têm dado quase todas as doutrinas que apareceram na Terra. Esse plano foi concebido há longo tempo, porque sempre nos preocupou o futuro do Espiritismo. Por várias vezes temo-lo feito pressentir, vagamente, é certo, mas quanto basta para mostrar que ele não é uma concepção nova e que, embora ocupados com a parte teórica da obra, não esquecemos o seu lado prático.

II — Dos Cismas

Uma questão, que se apresenta, à primeira vista, ao pensamento, é a dos cismas, que poderão nascer no seio da Doutrina. O Espiritismo será deles preservado? Não, sem dúvida, pois que ele terá principalmente, no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre intransigentes, tenazes, difíceis de se harmonizar com as ideias de outrem e contra a ambição dos que querem ligar, a todo o custo, o seu nome a uma inovação qualquer, que inventam novidades só para poderem dizer que não pensam e não fazem como os outros, ou porque o seu amor próprio se revolta por terem de ocupar um lugar secundário. Se o Espiritismo não escapar às fraquezas humanas, com que é preciso contar, pode neutralizar-lhe as consequências; e isto é o essencial.

É de notar que os numerosos sistemas divergentes, que surgiram nos primeiros tempos do Espiritismo, sobre maneira de explicar os fatos, foram desaparecendo à medida que a doutrina se completava pela observação e pelo racionalismo. É hoje raro encontrar algum partidário desses primeiros sistemas. Deste fato notório infere-se que as últimas divergências se dissiparão com a completa elucidação de todas as partes da Doutrina; haverá porém sempre os dissidentes por sistema, interessados por esta ou por aquela causa, formando um grupo à parte. É contra as suas pretensões que devemos estar prevenidos.

Para garantir a unidade no futuro, é indispensável que todas as partes do corpo da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que nenhuma fique mal definida. Neste sentido temos feito todo o esforço para que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e esforçar-nos-emos por manter essa regra.

Quando for dito positivamente e sem ambiguidades, que dois e dois são quatro, ninguém ousará dizer que dois e dois são cinco. Poder-se-ão formar, fora da Doutrina, seitas que não adotem alguns ou todos os princípios; não assim no seio dela, por interpretação do texto, como se tem formado, tão numerosas, sobre o sentido das palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de importância capital. O segundo é não sair do círculo das ideias práticas. Se é certo que a utopia de hoje se torna muitas vezes a verdade de amanhã, deixemos que o futuro realize a utopia de hoje, mas não enredemos a Doutrina com princípios, que possam ser considerados quimeras e a tornem rejeitada pelos homens positivos.

O terceiro ponto enfim é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Por ela se não dever embalar por sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize. Apoiada, exclusivamente, em leis naturais, não pode ser mais variável que estas leis, mas se uma nova lei for descoberta, deve modificar-se para harmonizar-se com esta; não deve cerrar a porta a nenhum progresso sob pena de suicidar-se. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas e metafísicas, nunca será posta à margem e é esta uma das principais garantias da sua perpetuidade.([128])

Se pois uma seita formar-se a seu lado, fundada ou não em seus princípios acontecerá uma das duas — ou esta seita estará com a verdade, ou não. Se não estiver com a verdade, cairá por si mesma, à luz da razão e do senso comum, como tantas outras já têm caído nos séculos passados; mas se as suas ideias forem justas, ainda que sejam num ponto, a Doutrina espírita, que procura o bem e a verdade onde se acharem, assimilará essas ideias de modo que em lugar de ser absorvida, absorverá. Se algum dos seus membros se separar, é que acreditou que pode fazer melhor; se fizer realmente melhor, ela o imitará, se fizer mais benefícios, terá de esforçar-se por fazer outro tanto, ou melhor; se fizer males, a Doutrina o deixará, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem prevalecerá sobre o mal e a verdade sobre a falsidade. Eis a única luta que travará.

Acrescentemos que a tolerância, consequência da caridade, que é a base da moral espírita, lhe impõe a obrigação de respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por coação, proclamando a liberdade de consciência como um direito natural imprescritível, ela diz: "tenho razão, os outros acabarão por pensar como eu; se não a tenho, acabarei por pensar como os outros".

Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, nenhum pretexto dará a represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de palavras e obras.

O programa da doutrina não é invariável senão quanto aos princípios reconhecidos como verdades verificadas, no que respeita aos outros; ela não os admitirá, como o tem sempre feito, senão a título de hipótese, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro sobre um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo invariável; quem há porém que a possua inteira?

No estado de atraso dos nossos conhecimentos o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido verdade, por efeito de novas leis descobertas. Isto na ordem moral, como na ordem física. É contra esta eventualidade que a Doutrina deve estar sempre aparelhada. O princípio progressivo, que inscreveu em seu código, será a salvaguarda da sua perpetuidade, a unidade será mantida precisamente porque não repousa sobre o princípio de imobilidade. A imobilidade em lugar de ser uma força é causa de fraqueza e de ruína, porque não segue o movimento geral. Ela rompe a unidade, porque aqueles que querem ir adiante se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Seguindo porém o movimento progressivo, cumpre-lhe guardar a maior prudência e livrar-se dos devaneios, de utopias e de sistemas. É preciso andar a tempo, nem muito depressa, nem muito devagar e com conhecimento de causa.(·)

Compreende-se que uma Doutrina assentada sobre tais bases deve ser realmente forte. A experiência, além disto, tem justificado esta previsão. A Doutrina tendo caminhado por esta via desde a sua origem, seguiu avante constantemente, mas sem precipitação, examinando sempre se é sólido o terreno, em que põe o pé, e medindo os passos com respeito à opinião. Tem andado como o navegante: de sonda na mão e consultando os ventos.([129])

III — O Chefe do Espiritismo

Quem será encarregado de manter o Espiritismo com esse programa? Quem terá o tempo e a perseverança para se entregar ao duro trabalho, que exige essa missão? Se o Espiritismo for entregue a si próprio, sem guia, não é para temer que se desvie da rota e que a malevolência, de que será por muito tempo alvo, se esforce por desnaturá-lo? É esta certamente uma questão vital, cuja solução é do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é por tal modo evidente, que já lavra o incômodo por não se ver despontar no horizonte novo condutor.

Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar impulso, estimular o zelo, defender o fraco, sustentar as coragens vacilantes, auxiliar com os conselhos da experiência, fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de andar à matroca. Não somente essa direção é necessária; como é preciso que disponha da força e da estabilidade em grau de assoberbar as tempestades.

Aqueles que repelem toda a autoridade não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina; se alguns pensam poder dispensar a direção, a maior parte — os que não confiam em sua infalibilidade e em suas luzes — sentem a necessidade de um apoio, de um guia, ao menos para ajudá-los a caminhar com mais certeza e segurança. (Vede a Revista de abril de 1866, pág. 111, O Espiritismo independente).

Estabelecida a necessidade de uma direção, de quem receberá o chefe os precisos poderes? Será aclamado pela universalidade dos adeptos? Isto é impraticável.

Se se impõe como autoridade, será aceito por uns e rejeitado por outros, e vinte pretendentes podem surgir, erguendo estandarte contra estandarte. Seria o despotismo e a anarquia ao mesmo tempo. Semelhante procedimento só poderia partir de um ambicioso e nada mais impróprio do que um ambicioso, e portanto orgulhoso, para dirigir uma Doutrina baseada na abnegação, no devotamento, no desinteresse e na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, não faria senão falsificá-la. É o que aconteceria fatalmente se não se tomassem providências para prevenir o inconveniente.

Admitamos que um homem reúna todas as qualidades requeridas para aquele alto mandato e chegue à direção superior por qualquer modo: os homens seguem-se e não se parecem; depois de um bom, pode vir um mau; com o indivíduo pode mudar a direção, sem mau desígnio pode ter ele vistas menos justas e se quiser fazer prevalecer as suas ideias pessoais pode desviar a Doutrina, suscitar divisões; e as mesmas dificuldades se renovarão, consecutivamente, a cada mudança.

É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na pujança da sua força; considerada a sua organização é uma crença que começa a ensaiar os passos. Importa pois, principalmente no princípio, preveni-lo contra as dificuldades do caminho.

Perguntar-se-á: um dos Espíritos anunciados, que devem tomar parte na regeneração, não se colocará à frente do Espiritismo? É provável, mas como não trazem sinal na testa, e é por suas obras que afirmam a autoridade deles, não serão para a maior parte reconhecidos como tais, senão depois da desencarnação, e é preciso prever todas essas eventualidades.

Sabemos que a missão desses Espíritos será múltipla, que existirão em todos os graus da escala e nos vários ramos da economia social onde cada um exercerá a sua influência em proveito das ideias novas, segundo a sua posição especial. Todos trabalharão pois no estabelecimento da Doutrina, numa ou noutra parte, uns como chefes de Estado, outros como legisladores, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc. Cada um fará a prova, na sua especialidade, desde o proletário até o soberano, sem que se distingam do comum dos homens senão pelas obras.

Se um deles deve tomar parte na direção, é provável que seja, providencialmente, colocado em posição de aí chegar pelos meios legais que forem adotados. Circunstâncias aparentemente fortuitas aí o levarão, sem desígnio seu premeditado, sem mesmo consciência da missão. Revista Espírita: Os Messias do Espiritismo, fevereiro-março, 1868, págs. 45 e 65).

Nestes casos, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional admitir que Deus confie essas missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro Messias devem ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, em uma palavra o mais completo desinteresse material e moral. Ora a simples pretensão de ser um Messias seria a negação daquelas qualidades essenciais e provaria, no que se arrogasse aquele título, uma louca presunção, se de boa fé, ou uma insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pretensos espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou interesse, outros que, por falsas revelações, procurem pôr-se em evidência e fascinar as imaginações crédulas. É preciso prever também que sob falsas aparências podem alguns tentar apossar-se do leme para fazerem soçobrar o navio, desviando-o da rota certa. Ele não soçobrará, mas poderá ser retardado, o que é preciso evitar. São estes, com efeito, os maiores escolhos, de que o Espiritismo deve fugir; quanto mais aumenta a sua consistência, mais aumentarão as emboscadas dos inimigos.

É portanto dever de todos os espíritas sinceros desfazer os planos da intriga, que podem ser urdidos nos menores centros, como nos maiores. Devem desde logo repudiar absolutamente quem quer que se arvore em Messias, como chefe do Espiritismo, ou como apóstolo da doutrina. Conhece-se a árvore pelo fruto; esperem pois que ela dê fruto para julgarem se é bom (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXI, n.° 9: caracteres do verdadeiro profeta).(·)

Houve quem propusesse a designação dos candidatos pelos Espíritos, em cada grupo ou sociedade espírita. Além de não obviar este meio a todos os inconvenientes, encerra alguns especiais, que a experiência tem demonstrado e que é supérfluo referir aqui.

É preciso não esquecer que a missão dos Espíritos é instruir-nos e melhorar-nos, mas não substituirem-se ao livre-arbítrio. Sugerem-nos pensamentos, ajudam-nos com seus conselhos, sobretudo no que se refere às questões morais, mas deixam ao nosso critério o cuidado da execução das coisas materiais, de que não têm por missão desembaraçar-nos.

Contentem-se os homens com serem assistidos e protegidos pelos bons Espíritos; mas não descarreguem neles a responsabilidade inerente ao papel de encarnado. Aquele meio suscitaria mais embaraços do que se pensa, pela dificuldade de fazer todos os grupos tomarem parte na eleição. Seria uma complicação no mecanismo e o mecanismo, quanto mais simples for, mais difícil será a sua desorganização.

O problema é pois constituir uma direção central em condições de força e de estabilidade, que a ponham ao abrigo das flutuações; que satisfaçam a todas as necessidades da causa e oponham uma barreira absoluta aos manejos da intriga e da ambição. Esse é o fim do plano de que vamos dar um rápido esboço.

IV — Comissão Central

Durante o período da elaboração, fez-se mister que a direção do Espiritismo fosse individual: era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, que vinham de diferentes focos, em estado embrionário, chegassem a um centro, para serem aí examinados e colecionados, e que um pensamento único presidisse à coordenação, para estabelecer a unidade do conjunto e a harmonia das partes. Se tivesse sido de outro modo, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a um mecanismo, cujas peças não se adaptassem com precisão.

Temo-lo dito, porque é uma verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina podia sair tanto de um centro único, como a ciência astronômica de um único observatório; e todo centro que tivesse tentado constituí-la, mediante suas exclusivas observações, teria feito obra incompleta e achar-se-ia, numa infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer doutrina sua, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo na essência, seriam inevitavelmente discordes na forma.

Mas como há muita gente que atende mais à forma do que à essência, haveria por isso tantas seitas quantas as formas diferentes. A unidade não podia sair senão do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais. É por isso que a concentração dos trabalhos era necessária, (A Gênese, cap. I Caracteres da revelação espírita, n.° 51 e seguintes).

O que era vantagem em certo tempo pode tornar-se inconveniente mais tarde. Hoje, que está terminado o trabalho de elaboração, no que se entende com as questões fundamentais e que os princípios gerais da ciência estão estabelecidos, a direção, de individual que foi preciso ser no princípio, deve tornar-se coletiva, não só porque vem o momento, em que o seu peso excederá as forças de um homem, como porque há mais garantia de estabilidade em uma reunião de indivíduos, onde cada qual dispõe de seu voto e que nada podem sem o concurso uns dos outros, do que em um só que pode abusar da autoridade e querer fazer predominar as suas ideias pessoais.

Em lugar de um chefe único, a direção será cometida a uma comissão central permanente, cuja organização e atribuições serão determinadas, para nada haver de arbitrário. Essa comissão será composta no máximo de doze membros titulares, que reúnam certas condições, e de igual número de conselheiros. Completar-se-ia por si mesma, segundo regras também determinadas, toda vez que se der alguma vaga. Uma disposição especial fixará o modo de nomeação dos doze primeiros. A comissão nomeará anualmente um presidente.

A autoridade do presidente será puramente administrativa; dirigirá as deliberações da comissão, superintenderá a execução dos trabalhos e a expedição dos negócios; mas fora das atribuições que lhe são conferidas pelos estatutos, nenhuma decisão se dará sem o concurso da comissão, com a qual são impossíveis abusos, alimentos à ambição, pretexto para intrigas e ciúmes, supremacia que mortifique.

A comissão central será portanto o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem a aquiescência da maioria. Suficientemente numeroso para se esclarecer pela discussão, não o será para produzir confusão.

A autoridade da comissão central será temporária e seus atos sujeitos à apreciação de congressos ou assembleias gerais de que adiante falaremos.

Para os adeptos em geral a aprovação ou reprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando uma opinião coletiva, terão forçosamente autoridade, que nunca teriam, se emanassem de um só indivíduo, que não representa senão a sua própria opinião. Muitas vezes o indivíduo rejeita a opinião de um só, sente-se humilhado em submeter-se, mas sem relutância aceita a opinião de muitos.

Está subentendido que se trata de uma autoridade moral no que concerne à interpretação e aplicação dos princípios da Doutrina e não de um poder disciplinar qualquer. Esta autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é uma academia em matéria de ciência.(·)

Para os não adeptos, um corpo constituído tem mais ascendência e preponderância. Contra os adversários, principalmente, oferece uma força de resistência e possui meios de ação, que um indivíduo só não poderia ter. Luta com muito mais vantagens. Investem contra o indivíduo, batem-lhe; mas não se faz do mesmo modo a um ser coletivo.

Há igualmente em um ser coletivo uma garantia de estabilidade, que não existe quando tudo repousa sobre uma única pessoa; e é que qualquer coisa pode embaraçar o indivíduo e tudo paralisar. Um ser coletivo, pelo contrário, perpetua-se incessantemente; ainda que pereça um ou mais membros, nada periclita.

O essencial é que estejam de acordo acerca de princípios fundamentais; ora esta será uma condição absoluta para sua admissão e para a de todos os co-participantes da direção. Sobre as questões secundárias, pouco importa a divergência, pois que prevalecerá a opinião da maioria.

Aquele cuja opinião for justa não faltarão razões para justificá-las. Se alguém, contrariado por não aceitarem as suas ideias, se retirar, nem por isso interromperá a marcha das coisas, nem dará motivo de pesar, porque esse terá dado prova de orgulhosa suscetibilidade, pouco espírita, podendo vir a ser causa de perturbações.

A causa mais geral de divisão entre co-interessados é a colisão de interesses e a possibilidade de um suplantar a outro em seu proveito. Esta causa nenhuma razão de ser tem, desde o momento em que o preconceito de um não possa aproveitar aos outros, quando são todos solidários e não podem senão perder, em lugar de ganhar, com a desunião. Essa é uma questão de somenos importância, prevista na organização.

Admitamos que nesta entre um falso irmão, um traidor, ganho pelos inimigos da causa; que poderia ele, não tendo senão o seu voto nas decisões? Suponhamos (coisa impossível) que a comissão entre toda no mau caminho; os congressos aí estão para chamá-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração está no congresso, que poderá decretar a censura ou acusação contra a comissão central, por infração de seu mandato, desvio dos princípios reconhecidos, ou medidas prejudiciais à Doutrina. É por isso que ela recorrerá ao congresso nas circunstâncias em que julgar a sua responsabilidade gravemente comprometida.

Se pois o congresso é um freio para a comissão, esta adquirirá novas forças com a sua aprovação. É assim que o chefe coletivo depende, em última análise, da opinião geral, e não pode, sem perigo para si, afastar-se do caminho reto.

As principais atribuições da comissão central serão:

1.° — Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propaganda; sustentar sua utilidade pela conservação da integridade dos princípios reconhecidos; desenvolver todas as suas consequências;

2.°— Estudar princípios novos, suscetíveis de entrar no corpo doutrinário;

3.° — Concentrar todos os documentos e ensinos, que possam interessar ao Espiritismo;

4.° — Tratar da correspondência;

5.° — Manter, consolidar e estudar os laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares nos diversos países;

6.° — Dirigir a Revista, que será o órgão oficial do Espiritismo, e a que poderá ser anexada outra publicação periódica;

7.° — Examinar e apreciar obras, artigos de jornais e todos os escritos que interessem à doutrina e refutar os ataques, quando se derem;

8.° — Publicar obras fundamentais de doutrina, nas condições mais apropriadas para sua vulgarização. A confecção e publicação daquelas, cujo plano daremos, que não tivemos tempo de fazer em nossa vida. Animar as publicações que possam ser úteis à crença;

9.° — Fundar e conservar bibliotecas, arquivos e museus;

10.° — Administrar a caixa de socorros, as salas de consultas e os albergues;

11.° — Administrar os negócios materiais;

12.° — Dirigir as sessões das sociedades;

13.° — Fazer o ensino oral;

14.° — Visitar as sociedades particulares e dar instruções àquelas que lhe procurarem o patrocínio.

Essas atribuições serão repartidas pelos diversos membros da comissão, segundo a especialidade de cada um, sendo, se preciso for, assistidos por número suficiente de auxiliares ou de simples empregados.

V — Instituições Acessórias e Complementares da Comissão Central

Muitas instituições complementares da comissão central serão aqui anexadas, como dependências locais, à medida que o permitirem as circunstâncias, a saber:

1.° — Uma biblioteca, onde se encontrem todas as obras, que interessem ao Espiritismo, e que poderão ser consultadas aí, ou facultadas a domicílio;

2.° — Um museu, onde sejam as primeiras obras da arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos, que bem o tiverem merecido por sua dedicação, o dos homens que o Espiritismo quiser honrar, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da humanidade, grandes gênios, missionários do progresso, etc...;

3.° — Uma sala destinada a consultas médicas gratuitas e ao tratamento de certas afecções, sob a direção de um médico;

4.° — Uma caixa de socorros em condições práticas;

5.° — Um albergue;

6.° — Uma sociedade de adeptos, tendo sessões regulares.

Sem entrar em exame prematuro a respeito do assunto, é conveniente no entanto dizer algumas palavras sobre dois artigos, cujo sentido poderia ser mal interpretado.

O estabelecimento da nova caixa de socorros é impraticável e apresentaria sérios inconvenientes, como em artigo especial o demonstramos. (Revista de julho de l866; pág. 193).

A comissão pois não terá de tomar um caminho, que seja forçada a abandonar, nem de empreender o que não possa realizar. Ela deve ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas; é este o meio de ir longe e com segurança; por isso deve em tudo conservar-se nos limites do possível.

A caixa de socorros não pode, nem deve ser senão uma instituição local de limitado círculo de ação, cuja prudente organização possa servir de modelo às do mesmo gênero, criadas para sociedade particulares. Só pela sua multiplicidade, e não pela centralização dos seus meios de ação, poderão prestar serviços eficazes. A caixa será alimentada: 1.° — pela porcentagem, que se marcar da renda da caixa geral do Espiritismo; 2.° — pelos donativos particulares. Capitalizará o que receber para constituir uma renda certa, destinada à prestação de obrigações, segundo for estipulado no regulamento constitutivo.

O projeto de um albergue, como deve ser entendido, não pode ser levado a efeito de pronto, por falta do capital, que seria preciso, e porque é mister deixar à administração o tempo de se firmar e de caminhar com segurança, antes de complicar as atribuições com empresas, em que possa naufragar.

Abranger tanta coisa antes de ter seguros os meios de execução seria a maior das imprudências. Isto é intuitivo a quem estuda as minúcias de uma organização deste gênero. Muito valem as boas intenções; o essencial porém é a sua realização.

 

VI — Limites de Ação da Comissão Central

Formou-se desde o princípio, por si mesmo, um centro de elaboração das ideias espíritas, sem nenhum caráter oficial. Se assim não fosse, qual teria sido o ponto de ligação entre os espíritas disseminados por todos os países? Não podendo comunicar suas ideias, impressões, observações a todos os outros particulares, disseminados e às vezes sem consistência, os espíritas ficariam insulados com grave dano para a difusão da Doutrina. Era portanto indispensável um ponto, que recebesse tudo aquilo e do qual tudo se irradiasse.

O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de dispensar este centro, acentuava cada vez mais a sua necessidade pela conveniência de se ligarem os adeptos, movimento com o crescente aumento do seu número.

A constituição do Espiritismo, regularizando o estado das coisas, dará em resultado maiores vantagens, no sentido de se preencherem lacunas existentes. O centro, que ela criou, não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral, sem vislumbre de autoridade pessoal.

Qual será porém a esfera de atividade do centro? Será ele destinado a dirigir o mundo e a ser árbitro universal da verdade?

Se tivesse semelhante pretensão, falsa seria a concepção do Espiritismo que, proclamando os princípios do livre exame e da liberdade de consciência, repele a ideia de se erigir em autocracia. Seria enveredar, desde o princípio, por uma senda fatal.

O Espiritismo contém princípios que, sendo formados sobre leis naturais e não sobre abstrações metafísicas, tendem a ser, e um dia serão, abraçados pela universalidade dos homens. Abraça-los-ão todos, como verdades palpáveis e demonstradas, como abraçaram a teoria do movimento da Terra. Prometer porém que o Espiritismo venha a ser organizado, por toda a parte, da mesma maneira; que os espíritas do mundo inteiro sejam sujeitos a um regime uniforme, a uma única norma de procedimento; que devem esperar a luz de um único ponto, para onde tenham voltados os olhos, seria utopia tão absurda, como pretender que todos os povos da Terra não formem um dia senão uma única nação, governada por um único chefe, regida por um mesmo código de leis e tendo usos e costumes idênticos. Se há leis gerais, que podem ser comuns a todos os povos, estas leis serão sempre, quanto à forma e à regulamentação, apropriadas aos costumes, aos caracteres, aos climas de cada um.

Organizado o Espiritismo, os espíritas de toda a parte terão princípios comuns, que ligarão a grande família pelos laços sagrados da fraternidade; mas a respectiva aplicação poderá variar, segundo os países, sem que, por isso, seja rota a unidade fundamental sem que se forme seitas dissidentes, que se lancem o anátema, o que seria antiespírita.

Poderão pois formar-se e inevitavelmente se formarão centros gerais nos diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crenças e a solidariedade moral, sem subordinação de uns a outros, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de se impor aos espíritas americanos e vice-versa.

A comparação dos observatórios, que fizemos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diversos pontos do globo; todos, nas diversas nações, são fundados sobre princípios gerais e reconhecidos da astronomia; e entretanto não são dependentes uns dos outros; cada qual regula seus trabalhos como lhe parece; comunicam as suas observações e cada um traz à ciência os descobrimentos de seus congêneres. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo.

Serão os observatórios do mundo invisível que transmitirão reciprocamente o que tiverem de bom e de aplicável aos costumes dos países, onde forem estabelecidos, sendo seu fim o bem da humanidade e não a satisfação de ambições pessoais. ([130])

Sendo o espiritismo uma questão de fundo, prender-se a forma seria puerilidade indigna de seu alto fim. Eis porque os diversos centros, que fizerem o verdadeiro espiritismo, deverão estender-se mão fraternal e unir-se, combatendo seus comuns inimigos: a incredulidade e o fanatismo.

VII — Estatutos Constitutivos

A redação dos estatutos constitutivos devia preceder à execução. Se fosse confiada a uma assembleia, deveriam ser predeterminadas as condições para a execução do trabalho, por parte dos que fossem deles encarregados. A falta de base previamente estabelecida, a divergência de ideias e talvez também as pretensões individuais, não falando nas intrigas dos adversários, poderiam dar motivo a divisões. Um trabalho de tão alta monta não podia ser improvisado; pedia longa elaboração, a conhecimento das verdadeiras necessidades de doutrina, adquirido pela experiência e por sérias meditações.

A unidade de vistas, a harmonia e a coordenação de conjunto não podiam emanar senão da iniciativa individual, para receber depois a sanção dos interessados. Era preciso, porém, desde o princípio, uma regra, um caminho traçando um fim determinado, porque estabelecida a regra se caminha com segurança, sem tatear, nem hesitar. Como porém não é dado a ninguém possuir a luz universal, e fazer-se obra perfeita como pode alguém iludir-se com suas próprias ideias e outros verem o que não é real; como a pretensão de impor, por qualquer título, seria abusiva, os estatutos constitutivos serão submetidos à revisão do primeiro congresso, que lhes fará as precisas correções.

Uma constituição, por melhor que seja, nunca poderá ser perpétua. O que é bom hoje pode tornar-se mau amanhã. As necessidades mudam com os tempos e com a evolução das ideias. Se não é revestida convenientemente, cai em desuso ou será um dia violentamente destruída pelas ideias progressivas. É preciso que ela caminhe a par das ideias evolutivas.

Assim sucede com as doutrinas filosóficas e as sociedades particulares, do mesmo modo sucede com a política e a religião. Seguir ou não o movimento impulsor é questão de vida e de morte. No caso de que se trata aqui, seria grave erro encadear o futuro por uma regra, declarada inflexível. Não menos grave seria fazer, na constituição orgânica, modificações muito frequentes que lhe tirassem a estabilidade.

Convém madureza e circunspecção. Experiência apurada é indispensável para julgar-se da utilidade real das modificações.

Quem pode, em casos tais, ser juiz? Não será um único homem, que só verá as coisas pelo prisma das suas ideias; não será mesmo o autor do trabalho primitivo, que vê a sua obra com a maior complacência; são os interessados, que sentem, direta e permanentemente, os efeitos da instituição e reconhecem onde ela peca.

A revisão dos estatutos constitutivos se fará pelos congressos ordinários, transformados, para esse fim, em congressos constituintes em épocas determinadas; e assim constantemente, de maneira que se mantenham, sem interrupção, ao nível das necessidades e do progresso das ideias; por séculos e séculos. Sendo periódicas e previamente conhecidas as épocas da revisão, não será preciso fazer convocações especiais. A revisão será não somente um direito, mas até um dever para o congresso competente. Ela será antecipadamente inscrita em sua ordem do dia, de modo que não ficará dependente da boa vontade de quem quer que seja, não se arrogando o direito de decidir se é ou não oportuno fazê-la.

Se depois da leitura dos estatutos, o congresso entender que não há modificação a fazer, declará-los-á em pleno vigor. Sendo forçosamente limitado o número dos membros do congresso, atenta a impossibilidade material de reunir todos os interessados, os ausentes, concorrendo com as suas luzes, poderão enviar à comissão central as suas observações, que serão postas na ordem do dia.

Em menos de um quarto de século não se desenhará de modo apreciável um movimento nas ideias; portanto, será de 25 em 25 anos que a constituição orgânica do Espiritismo passará por uma revisão.

Este período, conquanto não seja longo, é suficiente para se apreciarem as novas necessidades; as modificações frequentes poderão ser prejudiciais.

Como porém é nos primeiros anos que se tem de fazer o maior trabalho de elaboração, desde que o movimento social, que se opera atualmente, pode fazer surgir necessidades imprevistas, até que a sociedade se tenha firmado, importando aproveitar, sem demora, as lições da experiência, as épocas de revisão serão mais aproximadas, mas sempre anunciadas previamente, até ao fim do século. No intervalo desses 30 anos a constituição ficará completa e retificada suficientemente para ter uma estabilidade relativa; depois poderão, sem inconveniente, começar os períodos de 25 anos. Desta maneira, a obra primitivamente individual, que abriu caminho, se torna realmente a obra coletiva de todos os interessados, com as vantagens inerentes ao duplo modo, sem seus inconvenientes; e modificar-se-á sob o influxo das ideias progressivas e da experiência; mas sem abalos, sem precipitações, porque o princípio regulador dessa modificação está na própria constituição.

VIII — Do Programa das Crenças

A condição absoluta de vitalidade para toda associação, qualquer que seja o seu objetivo, é a homogeneidade, isto é a unidade de vistas, de princípios e de sentimentos, a tendência para o mesmo fim, em suma, a comunhão de pensamentos.

Todas as vezes que se reúnem homens em nome de uma ideia vaga, não se entenderão, porque cada um compreende a ideia a seu modo. Toda reunião de elementos heterogêneos traz em si os germes de dissolução, porque se compõe de interesses divergentes, materiais, ou de amor-próprio, tendendo a fins diferentes, pelo que entram em conflito e bem raras vezes se fazem concessões no interesse comum, ou à própria razão e ainda que se submetam à opinião da maioria, por não poderem proceder de outro modo, nunca poderá haver união franca.

Assim tem sido até hoje com o Espiritismo. Formado gradualmente, por sucessivas observações, como todas as ciências, a sua significação foi, pouco a pouco, tomando maior extensão. A qualidade de espírita, aplicada sucessivamente a todos os graus da crença, compreende um número infinito de variedades desde a simples crença no fato das manifestações, até às mais altas deduções morais e filosóficas; desde aquele que não passando da superfície, não vê nele senão um passatempo de curiosidade, até quem procura a concordância dos princípios com as leis universais e a sua aplicação aos interesses gerais da humanidade, enfim, desde o que não vê senão um meio de exploração em proveito próprio até o que vai beber nele os elementos do seu melhoramento moral.

Dizer-se espírita, ainda que convencido, não indica pois, de modo algum, a medida da crença. Esta palavra diz muito para uns e nada para outros.

Uma assembleia, para a qual se convidassem todos os que se dizem espíritas, apresentaria uma amálgama de opiniões divergentes, que não se podiam fundir e nada produziria de sério, abrindo as suas portas a gente empenhada em levantar discussões nocivas. Esta falta de precisão, inevitável no princípio e durante o período de elaboração, tem muitas vezes causado lastimáveis enganos, fazendo atribuir à Doutrina o que é o abuso ou desvio dela.

É pela falsa aplicação que diariamente fazem da qualidade de espírita, que a crítica, pouco se importando de descer ao fundo das coisas, e menos ainda de estudar o lado sério do Espiritismo, acha matéria para zombarias. A seus olhos é representante da doutrina quem se diz espírita, quem pretenda fazer do Espiritismo, o que da física fazem os prestidigitadores seja embora um saltimbanco.

É certo que se faz uma distinção entre os bons e maus, os verdadeiros e os falsos espíritas, os mais ou menos esclarecidos, ou convencidos, e os espíritas de coração, mas essas designações, sempre vagas, não são autênticas, nada as caracteriza, não se conhecem os indivíduos e não se tem ocasião de julgá-los pelas obras.

Pode-se pois ser iludido por aparências, donde resulta que a qualidade de espírita, não tendo aplicação segura, não pode, em absoluto, recomendar ninguém; e esta incerteza lança nos espíritos tal desconfiança, que impede firmarem-se, entre os laços de verdadeira fraternidade.

Hoje, que estão fixados todos os pontos da doutrina e os deveres dos verdadeiros adeptos, a qualidade de espírita já pode ter um caráter definido. Um formulário de profissão de fé pode ser estabelecido, e a adesão, por escrito, a estes programas será testemunho autêntico da maneira de encarar o Espiritismo. Esta adesão, provando a uniformidade dos princípios, será também o laço, que unirá os adeptos em uma grande família, sem distinção de nacionalidade, da comunidade de pensamento, de vistas e de aspirações. A crença no Espiritismo não mais será uma simples aquiescência, às vezes parcial, a uma ideia vaga; mas uma adesão motivada, com conhecimento de causa, e provada por um título oficial dado ao aderente.

Para evitar os inconvenientes da falta de precisão da qualidade espírita, os signatários da profissão de fé tomarão o título de espíritas professos. Esta qualificação, assentando em base precisa e definida, acabará com os equívocos e permitirá aos adeptos, que professarem os mesmos princípios e marcharem pela mesma via, o reconhecerem-se à simples declaração de sua qualidade e, na dúvida, pela exibição do título.

Uma reunião de espíritas professos será tão homogênea, quanto é dado à humanidade. O formulário de profissão de fé circunstanciado e bem definido será o caminho traçado; o título de espírita professo será o laço de união.

Dirão: este título pode ser uma garantia segura contra os homens de duvidosa sinceridade? Garantia absoluta contra a má fé é coisa impossível, porque homens há que zombam dos atos mais solenes; hão de convir, porém, que esta garantia vale sempre mais do que nenhuma. Aquele que, sem escrúpulo, se dá pelo que não é, quando o faz por palavras que voam, recua muitas vezes diante de uma afirmação escrita, que perdura e que pode ser-lhe atirada em rosto, se se afastar do caminho reto. Se é certo que há quem não se prenda por estas considerações, também é certo que o seu número é muito limitado e sem influência. Este caso está previsto nos Estatutos e prevenido por disposição especial, que afastará inevitavelmente das reuniões sérias as pessoas indignas.

Se esse dispositivo der ensejo à retirada de alguns espíritas de boa fé, será porque eles ainda não estão bem seguros de si mesmos; serão os timoratos, que temem ser postos em evidência e os que, em todas as circunstâncias, são sempre dos últimos a se manifestar esperando o rumo que as coisas levam. Com o tempo, uns se esclarecerão e outros se encorajarão; mas até então, nem uns nem outros podem ser contados no número dos firmes defensores da causa.

Quanto àqueles, cuja ausência seria de lamentar, o número será pequeno, com tendência a diminuir.

Uma vez que nada é perfeito neste mundo, as melhores coisas têm os seus inconvenientes; se se quisesse rejeitar tudo quanto os tem, nada ficaria para ser aproveitado. Em tudo é preciso ter em conta as vantagens e os inconvenientes e é evidente que as primeiras sobrepujam as segundas.

Todos os que se intitulam espíritas não se ligarão certamente à constituição mas esta não é senão para os que a aceitarem livremente, porque não têm a pretensão de se impor a quem quer que seja.

Não sendo o Espiritismo compreendido da mesma maneira por todos, a sua constituição apela para os que aceitam o programa adaptado com o fim de lhes dar apoio, quando insulados, e de cimentar a união da grande família pela unidade de crenças. Fiel porém ao princípio de liberdade de consciência, que a Doutrina proclama como direito natural, ela respeita as convicções sinceras e não anatematiza os que têm ideias diferentes, antes aproveitará as luzes que estes possam emitir fora de seu seio. O essencial portanto é conhecer os que seguem a mesma via; como, porém, sabê-lo com precisão? É naturalmente impossível consegui-lo por interrogatórios individuais, além de que ninguém tem o direito de perscrutar consciências. O meio único, mas legal, é estabelecer um formulário de princípios, resumindo o estado dos conhecimentos atuais, que resultam da observação, e que são sancionados pelo ensino geral dos Espíritos, ao qual podem aderir ou não. A adesão escrita é uma profissão de fé, que dispensa investigações e deixa a cada um a sua liberdade.

A constituição do Espiritismo tem pois, por complemento necessário, um programa de princípios definidos no que respeita à crença, sem a qual ela seria obra balda de alcance e de futuro. Este programa, fruto da experiência, será o farol indicador do caminho. Para marchar com segurança, a par da constituição orgânica, é preciso a constituição da fé, um credo, se quiserem, que seja o centro convergente de todos os adeptos. O programa porém, do mesmo modo que a constituição orgânica, não pode encadear o futuro, sob pena de sucumbir, mais cedo ou mais tarde, sob as rodas do progresso. Feito para o estado atual dos conhecimentos, deve modificar-se e completar-se, à medida que venham novas observações demonstrar-lhe a insuficiência e os defeitos. Não devem porém tais modificações ser feitas leviana e precipitadamente.

Devem ser adotadas pelos congressos, quando se reunirem para a revisão dos estatutos e incorporadas ao formulário dos princípios. A constituição e o credo, sempre unidos, acompanhando o progresso, hão de sobreviver aos séculos.([131])

IX — Vias e Meios

Somos obrigados, a contragosto, a entrar em considerações sobre coisas de ordem material para chegar a um fim todo espiritual. Convém entretanto notar que a mesma espiritualidade da obra se prende à questão da humanidade terrestre e do seu bem-estar; que não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa positiva e durável, para a extensão e consolidação da Doutrina, convindo empregar os meios apropriados para que ela produza os frutos esperados. Supor que estamos no tempo em que alguns apóstolos podiam por-se a caminho com o seu bordão de viagem, sem cogitar do pouso e do pão cotidiano, seria uma ilusão cedo transformada em amargo desengano.

Para fazer coisa séria, é preciso que nos submetamos às necessidades impostas pelos costumes da época em que vivemos as quais são bem diversas das necessidades dos tempos patriarcais. O próprio interesse do Espiritismo exige, portanto, que se calculem os meios de ação, para não pararmos no caminho. Calculemos pois, uma vez que vivemos num século de algarismos.

São bem numerosas as atribuições da comissão central para atender às necessidades de uma boa administração. Tendo cada membro funções ativas e assíduas, ainda que todos fossem dotados de boa vontade, poderia sofrer o serviço, porque nenhum teria o direito de increpar os negligentes.

Para a regularidade dos trabalhos e boa expedição dos negócios, é preciso contar com a assiduidade dos incumbidos deles e que as funções não sejam simples atos de complacência. Quanto mais independentes, por seus recursos pessoais, menos se ateriam a ocupação assídua, e quando não tenham recursos, não lhes podem dar seu tempo.

É preciso portanto que sejam retribuídos, assim como todo o pessoal administrativo. Assim a Doutrina ganhará força, estabilidade e pontualidade e, ao mesmo tempo, dará serviços a pessoas, que precisavam encontrá-los para acudir às necessidades da existência.

Um ponto essencial na economia de toda a administração previdente é que a sua existência não fique dependente de eventualidades, que podem falhar; mas de recursos certos, regulares, de maneira que a sua marcha não sofra embaraços, haja o que houver. É preciso pois que as pessoas, de cujo concurso há mister, não tenham que se preocupar com o futuro. Ora, a experiência demonstra que devem ser reputados aleatórios os recursos, que não procedem senão de cotizações facultativas, quaisquer que sejam os compromissos, além de serem de difícil cobrança. Contar com recursos eventuais para despesas permanentes e indeclináveis é falta de previdência, que um dia trará dissabores.

São menos graves as consequências, quando se trata de fundações temporárias para durarem quanto for possível: em nosso caso porém é questão de futuro. A sorte de uma administração, como esta, não pode ser entregue aos azares de uma empresa comercial. Ela deve ser, desde o princípio, senão tão florescente, pelo menos tão estável, quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta ficará aos botes da intriga. Neste caso, a mais vulgar prudência exige que se capitalizem inalienavelmente os recursos, que se obtiverem, a fim de ter-se uma renda perpétua, ao abrigo de eventualidades.

Regulando-se a despesa pela renda, a administração não pode, em caso algum, comprometer a sua existência, pois que terá sempre os meios de funcionar. Pode começar em pequena escala; os membros da comissão podem ser reduzidos a cinco ou seis, e ao mínimo o pessoal e as despesas da administração. Com o aumento da renda, terá tudo progressivamente o conveniente desenvolvimento.

Para ir preparando essa organização, temos consagrado, até hoje, o produto de nossos trabalhos como acima dissemos. Se os nossos meios pessoais não nos permitirem mais, fica-nos ao menos, a satisfação de ter lançado a primeira pedra.

Suponhamos pois que, por um meio qualquer, a comissão central consiga dentro dum prazo determinado os recursos para funcionar, o que pressupõe um rendimento fixo de 25 a 30 mil francos; desde que no começo se imponham as devidas restrições, os recursos de várias natureza, que há de vir a dispor em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que ficará sujeita a uma contabilidade rigorosa. Estando reguladas as despesas obrigatórias, o excedente do rendimento aumentará o fundo comum; proporcionalmente aos recursos desse fundo é que a comissão subsidiará as diversas despesas úteis ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais seja transformado, em lucro pessoal seu, ou em objeto de especulação para qualquer dos seus membros. O emprego dos fundos e a sua contabilidade serão submetidos à verificação de comissários especiais delegados para esse efeito pelos congressos ou assembleias gerais.

Um dos primeiros cuidados da Comissão será o das publicações, logo que haja possibilidade de as fazer, sem esperar pelas rendas; os fundos destinados a semelhante uso não passarão na realidade de um adiantamento, visto como virão a reentrar em caixa pela venda das obras, cujo produto volverá assim ao fundo comum. É negócio de administração.

X — Allan Kardec e a Nova Constituição

As considerações extraídas do relatório sobre a Caixa do Espiritismo, apresentado à Sociedade de Paris, em 5 de maio de 1865, por Allan Kardec, sendo o prelúdio da nova constituição do Espiritismo, que ele estava elaborando, e a exposição de suas ideias a respeito da sua posição pessoal, tem lugar próprio neste preâmbulo.([132])

"Falaram muito dos proventos, que eu colhia de minhas obras; mas pessoa alguma capaz e séria, por certo, crê nos meus milhões sem embargo da afirmativa daqueles que diziam saber, de origem fidedigna, que eu mantinha um estado principesco, carruagens a quatro cavalos e que em minha casa não se andava senão por cima de tapetes d'Aubusson (Revista Espírita de junho de 1862, pág. 179).

"A despeito do que disse o autor de uma brochura, que conheceis, e que prova por cálculos hiperbólicos que meu orçamento de receita excede a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porque só em Franca, vinte milhões de espíritas são meus tributários, (Revista Espírita de junho de 1863, pág. 175) é um fato mais autêntico do que os seus cálculos, que eu nunca pedi coisa alguma a ninguém, que ninguém jamais me deu coisa alguma; em uma palavra, que não vivo à custa de ninguém, pois que das somas, que me tem sido confiadas no interesse do Espiritismo, nem um real foi aplicado em meu proveito.(·)

As minhas grandes riquezas proviriam pois das minhas obras espíritas. Posto que elas tenham tido um sucesso inesperado, é preciso ser totalmente ignorante em negócio de livraria para não saber que com livros filosóficos não se podem ajuntar milhões em cinco ou seis anos, quando não se tem senão direitos do autor e alguns cêntimos por exemplar. Seja porém grande ou pequeno o resultado, desde que é fruto do meu trabalho, não cabe a ninguém o direito de fiscalizar-lhe o emprego. Comercialmente falando, estou nas condições de quantos colhem o fruto do seu trabalho, e corre os riscos como qualquer escritor que pode ser bem ou mal acolhido. Conquanto, sob este ponto de vista, não tenha obrigações de dar contas a quem quer que seja, julgo útil por amor da causa, a que me tenho dedicado, dar algumas explicações.

"Quem entrou em minha casa outrora e entrar hoje pode verificar que não se deu mudança em meu modo de viver, desde que me ocupo do Espiritismo; ela é tão simples agora como outrora. E portanto certo que os meus lucros, quaisquer que sejam, não têm sido aplicados a luxo. Em que então os apliquei?

"O Espiritismo, tirando-me da obscuridade, lançou-me em uma via nova, em pouco tempo achei-me envolvido num turbilhão, que nunca imaginei. Quando concebi a idéia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr em evidência e ficar desconhecido; mas não me foi isto possível; tive de renunciar aos meus gostos pela vida retirada sob pena de abdicar a obra empreendida, que diariamente crescia. Foi-me preciso seguir a impulsão e tomar as rédeas. À medida que ela se desenvolvia, mais vastos horizontes se desenhavam a meus olhos. Compreendi então a imensidade da minha obrigação e a importância do trabalho que ainda me faltava para completá-la. As dificuldades e os obstáculos, longe de me abaterem, redobraram-me a energia. Vi o elevado fim e resolvi alcançá-lo com o auxílio dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo, nem em cerimônias ociosas. Eis o empenho da minha vida. Dei-lhe todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe o repouso, a saúde, porque via o futuro escrito com caracteres inalteráveis.

"Sem sair do meu gênero de vida, esta posição excepcional criou-me necessidades, que não me era dado satisfazer com os recursos pessoais, muito limitados. Seria difícil calcular a multiplicidade de despesas, a que ela me arrastava, despesas que eu em minhas condições ordinárias, bem pudera evitar.

Pois bem! O que me forneceu esse suplemento de recursos foram as minhas obras. Digo-o com satisfação: foi com o meu próprio trabalho, com o das minhas vigílias, que satisfiz, em grande parte, ao menos, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Concorri em larga escala para a Caixa do Espiritismo. Os que me ajudaram na propagação das obras não poderão dizer que trabalharam para me enriquecer, pois que o produto de todo o livro vendido, de toda assinatura da Revista, aproveita à Doutrina e não ao indivíduo.

Mas não bastava prover ao presente; era necessário também pensar no futuro e preparar uma fundação, que pudesse servir a quem me substituísse na grande tarefa. Essa fundação, a cujo respeito não devo ainda falar, prende-se a propriedade que possuo, e é por esse motivo que vou nela aplicando parte da minha renda a fim de melhorá-la. Como estou longe dos milhões, com que me presentearam, duvido muito que apesar das economias, os meus recursos me permitam dar a essa fundação o complemento que anseio ver em minha vida; mas sua realização está no plano dos meus guias espirituais. Se eu o não fazer, outros farão, mais cedo ou mais tarde.

"Entrementes elaboro os planos.

"Longe de mim o pensamento de vaidade em tudo o que fica exposto; foi precisa a perseverança de algumas diatribes para eu romper o silêncio sobre determinados fatos, que me dizem respeito. Mais tarde, aqueles que têm sido desnaturados pela malevolência serão trazidos à luz por documentos autênticos; não é porém chegado o tempo para essas explicações. O que me importava, por ora, era que ficásseis tranquilos acerca do que a Providência fez passar por minhas mãos, qualquer que seja a sua origem. Eu considero-me simples depositário, até dos que são ganhos por mim, e com dobrada razão, dos que me são confiados.

"Perguntaram-me um dia, sem curiosidade e por simples interesse pela causa, o que faria de um milhão. Respondi que o empregaria, hoje, muito diferentemente de outrora. Outrora o empregaria na propaganda por uma larga publicidade; hoje reconheço que àquilo teria sido inútil, pois que os nossos adversários têm feito, à sua custa, semelhante serviço. Não me colocando naquele período em condições de dispor de grandes recursos, quiseram os Espíritos provar que o Espiritismo deve o êxito à própria força.

"Hoje que o horizonte se alargou, que o futuro se desdobrou à nossa vista, bem diversas são as necessidades. Um capital, como o figurado, teria muito mais útil aplicação.

"Sem entrar em minúcias, que seriam prematuras, direi simplesmente que uma casa especial de retiro espiritual, cujos habitantes colheriam os benefícios da nossa doutrina moral, e a outra parte ser viria para constituir uma renda inalienável: 1.° — para sustentação do estabelecimento; 2.° — para garantir existência independente ao que me substituir e aos que o ajudarem em sua missão; 3.° — para ocorrer às necessidades eventuais de Espiritismo, sem correr o risco de precisar de recursos de ocasião como me acontece, pois que a maior parte dos nossos recursos são fruto do meu trabalho, que acabará.

"Eis o que eu faria; mas, como não me será dada essa satisfação, sei que os Espíritos que dirigem o movimento, de um modo ou de outro, proverão a todas as necessidades a tempo. Também por isto não me incomodo por esse lado e trato do que é para mim essencial — a aceleração dos trabalhos que estão a meu cargo. Feito isto, estou pronto para partir, quando Deus me quiser chamar".

Ao que então dizia, acrescenta Allan Kardec, hoje:

Quando a comissão estiver organizada, faremos parte dela como simples membro, com uma parte na colaboração, sem nenhuma supremacia, título ou privilégio. Embora com parte ativa na comissão, não pesaremos no orçamento, nem por emolumentos, nem por despesas de viagens, nem por qualquer título. Se nada temos até aqui pedido, menos ainda pediremos daqui em diante. O nosso tempo, a nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos pois formalmente que nenhuma parte dos recursos, de que dispuser a comissão, será desviada para o nosso proveito. Levar-lhe-emos, pelo contrário, a nossa quota:

1.° — Pela cessão do produto das nossas obras feitas e por fazer;

2.° — Pela transmissão de bens móveis e imóveis.

Quando a Doutrina estiver organizada pela constituição da comissão central, as nossas obras passarão à propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa comissão, que terá a gerência e fará o necessário para a sua publicacão e divulgação. Ela deverá igualmente ocupar-se da sua tradução nas principais línguas estrangeiras.

A Revista tem sido e não podia ser até hoje senão uma obra pessoal, visto que faz parte das nossas obras doutrinárias, servindo de anais do Espiritismo. É por ela que todos os nossos princípios são elaborados e sujeitos a estudo. Era pois necessário que conservasse o seu caráter individual para fundar a unidade. Muitas vezes nos reclamaram mais assídua publicação; mas não pudemos aceder a esse desejo, por mais lisonjeiro que fosse; não só porque nos faltava o tempo para esse aumento de trabalho, como porque a Revista não devia perder o seu caráter essencial, que não é o de uma revista propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra individual se aproxima do termo, as necessidades já não são as mesmas.

A Revista tornar-se-á, como as outras nossas obras feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior utilidade do Espiritismo, sem que, por isso, lhe retiremos a nossa colaboração.

Para completar o trabalho doutrinal ainda nos falta publicar muitas obras que não são a parte menos difícil e penosa. Conquanto já possuamos todos os elementos, e lhes tenhamos traçado o programa até ao último capítulo, não podemos aplicar-lhe toda a nossa atividade e assíduos cuidados, enquanto a instituição da comissão central nos não libertar de minudências, que nos roubam parte do tempo.

O primeiro período do Espiritismo foi consagrado ao estudo dos princípios e das leis, cujo conjunto deveria constituir a Doutrina; em uma palavra, à preparação dos materiais; e ao mesmo tempo à vulgarização da ideia. Esta, à semelhança da semente do Evangelho, não frutificará por igual em toda parte.

A criança cresceu; está feita e o momento é chegado em que, sustentada por adeptos sinceros e devotados, deve caminhar para o destino, que lhe foi marcado, sem que a tolham os retardatários. Como porém fazer distinções? Quem ousaria tomar a responsabilidade de um juízo sobre as consequências individuais? Seria melhor evitar juízos temerários e que a doutrina se impusesse por si própria. Erguida a bandeira, segui-la-iam aqueles que adotassem a Doutrina.

Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum o que tem todo homem de completar, como entender, a obra que começou, de ser juiz da oportunidade. Desde que todos têm seu livre-arbítrio para aderir ou não, ninguém pode queixar-se de sofrer pressão arbitrária.

Criamos a palavra Espiritismo([133]) para as necessidades da causa e temos o direito de determinar-lhe as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita (Revista de abril de 1866 pág. 111).(·).

Se a constituição tem por efeito diminuir, momentaneamente, o número aparente de espíritas, terá por inevitável consequência dar mais força aos que caminharem de comum acordo para a realização do grande fim humanitário, que o Espiritismo procura alcançar. Eles se reconhecerão e poderão estender-se as mãos de uma a outra extremidade do mundo. Terá além disso por efeito opor barreira às ambições que, impondo-se, tentassem explorá-la em seu proveito e desviá-la do seu caminho.

Tudo está calculado de modo a suprimir-se qualquer autocracia ou supremacia pessoal.([134])

Credo Espírita. Preâmbulo

Os males da humanidade vêm da imperfeição dos homens; é pelos seus vícios que prejudicam uns aos outros. Enquanto os homens forem viciosos, serão infelizes, porque a luta dos interesses produzirá incessantemente misérias.

Boas leis contribuem, sem dúvida, para o melhoramento do estado social, mas são impotentes para assegurar a felicidade da humanidade, porque apenas comprimem as más paixões, mas não as aniquilam; são antes repreensivas do que moralizadoras; reprimem atos maus, que se tornam mais salientes, sem lhes destruir as causas. Além disso a bondade das leis está em relação com a bondade dos homens; enquanto estes estiverem dominados pelo orgulho e egoísmo, farão leis, que aproveitem às ambições pessoais.

A lei civil não modifica senão a superfície; a lei moral é que penetra no foro íntimo da consciência e o reforma.

Sendo pois admitido que o atrito causado ao contato dos vícios torna os homens desgraçados, está em seu melhoramento moral o único remédio para seus males. Pois que as imperfeições são a origem dos males, a felicidade aumentará, à medida que diminuírem as imperfeições. Por melhor que seja uma instituição social, se os homens forem maus, hão de falsificá-la e desnaturá-la para que a explorem em seu particular proveito.

Quando os homens forem bons, farão boas instituições que serão duráveis, porque todos têm interesse em sua conservação.

A questão social não tem pois seu ponto de partida na forma desta ou daquela instituição; ela está inteira no melhoramento moral dos indivíduos e das massas. Aí está o princípio, a verdadeira chave da felicidade humana, porque os homens não pensarão mais em fazer o mal uns aos outros. Não basta cobrir de verniz a corrupção; é preciso extirpá-la. O princípio do melhoramento está na natureza das crenças, porque estas são o móvel também nas ideias bebidas desde a infância e identificadas com o espírito, e nas ideias, que o desenvolvimento ulterior da inteligência e da razão pode fortificar e não destruir. É pela educação, mais ainda do que pela instrução, que se transformará a humanidade.([135])

O homem, que trabalha seriamente em seu melhoramento, assegura sua felicidade desde esta vida; além da satisfação da sua consciência, está livre das misérias materiais e morais, que são as consequências forçadas de suas imperfeições. Terá calma, porque as vicissitudes não o afetarão senão de leve: terá saúde, porque não esgotará o corpo com excessos; será rico, porque o é quem se satisfaz com o necessário; terá a paz da alma, porque não terá necessidades impossíveis: não será atormentado pela sede de honras e do supérfluo, pela febre de ambição, da inveja e do ciúme.

Indulgente para com as imperfeições dos outros, menos sofrerá com isto; elas lhe excitarão piedade em vez da cólera. Evitando o que possa ser nocivo ao próximo, quer por palavras, quer por obras, procurando tudo o que pode ser útil e agradável aos outros, ninguém sofrerá com as suas relações; assegura a sua felicidade na vida futura, porque quanto mais se apura aqui, mais se elevará na hierarquia dos seres inteligentes, e bem cedo deixará esta de provas pelos mundos superiores, porque o mal que tiver reparado nesta vida, não reclama outras existências reparadoras e porque, na erraticidade, não encontrará senão amigos e simpatizantes e não será atormentado pela visão constante dos que teriam razão para clamar contra ele.

Vivam os homens animados destes sentimentos e serão tão felizes quanto se pode na Terra; e quando a pouco e pouco esses sentimentos ganhem um povo, uma raça, toda a humanidade, o nosso globo passará à ordem dos mundos felizes. Será isto uma quimera, uma utopia? Sim, para quem não crê no progresso da alma; não, para quem acredita na perfectibilidade indefinida.

O progresso geral é a resultante de todos os indivíduos; mas o progresso individual não consiste somente no desenvolvimento da inteligência e na aquisição de alguns conhecimentos. Isto é uma parte do progresso, que nos conduz sempre ao bem; muitos fazem mau uso dos seus conhecimentos; o progresso consiste, principalmente, no melhoramento moral, na depuração do espírito, na extirpação dos maus germes existentes em nós. Este é o verdadeiro progresso, o único que assegura a felicidade da humanidade, porque é a negação do mal.

O homem mais elevado intelectualmente pode fazer muito mal; o que é elevado moralmente só faz o bem; interessa pois a todos o progresso moral da humanidade.

Que importa o melhoramento e a felicidade das gerações futuras a quem crê que tudo acaba com a vida? Que interesse pode este ter em se aperfeiçoar, em se constranger, em dominar as más paixões, em sofrer privações por amor de outros? Absolutamente nenhum. A lógica diz que o seu interesse é gozar da vida por todos os meios, pois que amanhã, talvez, ele não seja mais nada.

A doutrina do nada é a paralisia do progresso humano, porque circunscreve a vista do homem ao ponto imperceptível da presente vida e restringe as ideias, concentrando-as na vida material. Com essa doutrina, nada sendo o homem antes, nada depois, cessando com a vida todas as relações sociais, a solidariedade é palavra vã, a fraternidade, teoria sem base, a abnegação não passa de ridícula ilusão, o egoísmo, com sua máxima, cada um por si, constitui direito natural, a vingança, coisa racional, a felicidade, conquista do mais forte e mais esperto, o suicídio, o fim lógico do que sofre sem esperança.

Uma sociedade assente sobre esse fundamento traz em seu seio o germe de dissolução.

Muitos outros são os sentimentos de quem tem fé no futuro, de quem sabe que as suas aquisições, intelectuais e morais, não serão perdidas, que o trabalho de hoje dará frutos amanhã, que fará, ele mesmo, parte dessas gerações futuras mais adiantadas e mais felizes. Sabe que, trabalhando pelos outros, trabalha para si. As suas visitas não são circunscritas à Terra: abrangem o infinito dos mundos, que serão um dia as suas habitações, entrevê o lugar glorioso de que participará com todos os seres chegados à perfeição.

Com a fé na vida futura, alarga-se o círculo das ideias e o progresso pessoal tem um fim, uma utilidade efetiva. Da continuidade das relações entre os homens nasce a solidariedade. A fraternidade é fundada numa lei natural e no interesse de todos. A crença na vida futura é, portanto, o elemento do progresso, porque é o estimulante do espírito. Só ela pode dar a coragem nas provas, porque dá a sua razão de ser, a perseverança na luta contra o mal, porque mostra o resultado colhido.

É pois um dever gravar esta crença no espírito das massas e é um fato que essa crença é inata com o homem, pois todas as religiões a proclamam. Por que então não tem dado até hoje os resultados que se deviam esperar? É que, em geral, tem sido apresentada em condições, que a razão não pode aceitar.

Assim como a ensinam, ela rompe todas as relações com o presente; desde que a pessoa deixa a Terra, torna-se estranha à humanidade; nenhuma solidariedade existe entre os mortos e os vivos; o progresso é puramente individual; trabalhando para o futuro, não trabalha o homem senão para si, e isto mesmo com um fim vago, indefinido, sem um ponto, em que o pensamento possa repousar com segurança; é, enfim, porque ela é mais uma esperança do que uma certeza material.

Daí resulta, para uns, a indiferença, para outros, uma exaltação mística que, insulando o homem na Terra, é essencialmente prejudicial ao progresso real da humanidade, porque despreza os cuidados com o progresso material, para o qual a natureza lhe impõe o dever de concorrer.

Por mais deficientes, porém, que sejam os resultados, não são eles menos reais. Quantos têm sido encorajados e sustentados nas vias do bem por esta vaga esperança? Quantos se têm firmado à beira do abismo do mal pelo receio de comprometer o futuro! Quão nobres virtudes tem esta crença desenvolvido!

Não desprezemos as crenças do passado, por mais imperfeitas que sejam, uma vez que conduzem ao bem. Elas estavam em relação com o atraso da humanidade; tendo esta, porém, progredido, reclama crenças que estejam em harmonia com as suas novas ideias.

Se ficarem estacionários os elementos da fé e distanciados do espírito perderão a sua influência e o bem que produziram no seu tempo, não o poderão mais produzir, porque já não estão mais à altura das circunstâncias.([136])

Para que a doutrina da vida futura produza, de ora em diante, os frutos que podemos esperar, é preciso, antes de tudo, que satisfaça completamente à razão e à ideia, que formamos da sabedoria, da justiça e da bondade de Deus, que não possa ser desmentida pela ciência, não deixe no espírito nem dúvida, nem incerteza; que a vida futura seja tão positiva como a presente, de que é a continuação, como o dia seguinte o é da véspera. É preciso que seja vista, compreendida, apalpada, por assim dizer, com a mão. É preciso enfim que a solidariedade do passado, do presente e do futuro seja evidente, através das diferentes existências.

Tal é a ideia que o Espiritismo dá da vida futura. O que constitui a sua força é não ser concepção humana, que não teria senão o mérito de ser mais racional, sem mais certeza, porém, que as outras.

É o resultado dos estudos feitos sobre os casos oferecidos pelas diferentes classes de Espíritos, que se apresentam em manifestações mediúnicas, que permitiu explorar a vida extracorporal, em todas as suas fases, desde o mais alto até o mais baixo grau da escala dos seres.(·) As peripécias da vida futura não são pois uma teoria, uma hipótese, mais ou menos provável, mas o resultado de observações.([137]) São os habitantes do mundo invisível que vêm para conceber a infinita variedade, que eles oferecem.

Dando a prova material da existência e da imortalidade da alma, iniciando-nos nos mistérios do nascimento, da morte, da vida futura, da vida universal, tornando palpáveis as consequências inevitáveis do bem e do mal, a doutrina espírita faz, melhor do que qualquer outra, ressaltar a necessidade do melhoramento individual. Por ela, o homem sabe donde vem e para onde vai, e por que está na Terra; o bem tem um fim, uma utilidade prática; ela não forma o homem somente para o futuro, forma-o também para o presente e para a sociedade. Pelo melhoramento moral os homens preparam na Terra o reino da paz e da fraternidade.

Princípios Fundamentais da Doutrina Espírita, Considerados como Verdades Adquiridas

A morte corporal de Allan Kardec interrompeu as obras deste eminente Espírito.

Termina pois, este volume, com um ponto de interrogação, que muitos leitores desejariam ver resolvido logicamente, como o sabia fazer — nem o podia deixar de ser assim — o douto professor em Espiritismo.

No congresso espírita e espiritualista internacional de 1890, declararam os delegados que, de 1869 para cá, estudos novos tinham revelado coisas novas, e que, segundo o ensino traçado por Allan Kardec, alguns dos princípios do Espiritismo, sobre os quais o mestre tinha baseado o seu ensino, deviam ser postos em relação com os progressos da ciência em geral realizados nos 20 anos.

Esta corrente de ideias, comuns aos delegados de todas as partes da Terra, provou que um novo volume devia ser escrito, para casar o ensino de Allan Kardec com o que constantemente nos dá a procura da verdade.

Será a obra da comissão de propaganda?

Nós contamos muito com os bons ofícios dos nossos irmãos F.S.I.,([138]) que provaram no congresso a sua competência para as altas questões filosóficas a fim de auxiliar a comissão na composição desse trabalho coletivo, constantemente progressivo.

Esse volume deverá ser feito quando um novo congresso o tiver decidido.([139])

"A ciência, disse Allan Kardec, é convidada a constituir a verdadeira gênese, segundo as leis da natureza. Os descobrimentos da ciência glorificam a Deus, em vez de o rebaixarem, e não destroem senão o que os homens edificaram sobre as ideias falsas, que fizeram de Deus.

"O Espiritismo, caminhando com o progresso, nunca ficará na retaguarda, porque se novos descobrimentos demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ele se modificará nesse ponto. Se uma nova verdade surgir, ele a deverá acolher". (A Gênese, cap. I, item 55).

P.G. Leymarie

 

Fim



[1] Kardec teve de realizar sozinho a Codificação e sozinho fundar, dirigir e redigir a Revista Espírita durante doze anos. Essa solidão não era voluntária, mas obrigatória. Faltavam-lhe colaboradores capazes de compreender a importância da obra e até mesmo o seu significado cultural e histórico. O próprio Camille Flammarion, o grande astrônomo, confirmou, ainda no discurso de despedida ao mestre, junto ao túmulo, a sua incompreensão a respeito, fazendo restrições indevidas ao trabalho de Kardec. O Espírito da Verdade e demais colaboradores espirituais da obra advertiam sempre a Kardec de que devia zelar pela linha doutrinária. Após a sua morte a Revista Espírita se manteve na mesma linha durante alguns anos, mas logo entrou num processo de desvio doutrinário que atingiu em nossos dias as proporções de um desastre. Isso revela a dificuldade que os homens ainda encontram na assimilação verdadeira do Espiritismo. (N. de J. Herculano Pires).

 

[2] Este princípio está hoje confirmado pela Ciência, graças às pesquisas da Parapsicologia. O Prof. Rhine e todos os cientistas da sua escola sustentam que a mente e o pensamento não são físicos, mas extrafísicos. Há no homem um elemento não material, que é a alma. Também na Física já se descobriu a antimatéria. (N. do Rev.)

[3] A situação atual do mundo, dominado pelo materialismo teórico e prático, é a mais absoluta confirmação desse princípio. Neste volume o leitor encontrará mensagens espirituais dirigidas a Kardec prevendo essa situação e anunciando grandes catástrofes morais. A passagem do religiosismo dogmático para o materialismo dogmático equivale ao salto de um extremo a outro. O Espiritismo aparece como a síntese histórica dessa contradição, oferecendo aos homens a solução cultural do impasse a que chegaram. (N. do Rev.)

 

[4] Richet assinalou, no Tratado de Metapsíquica, a vocação experimental de Kardec e a importância da sua contribuição para o desenvolvimento das Ciências Psíquicas. Todos os princípios do Espiritismo foram submetidos por ele a experiências científicas e a rigorosos processos de análise lógica. A operação referida acima decorre de experiências realizadas milhares e milhares de vezes na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, bem como pelos grandes cientistas franceses, ingleses, alemães, italianos, russos e de outros países que se dedicaram à pesquisa nesse campo. Hoje, os parapsicólogos repetem com êxito essas experiências, confirmando a veracidade dos princípios fundamentais do Espiritismo. Ver Parapsicologia Hoje e Amanhã, de J. Herculano Pires, especialmente o capítulo intitulado Espiritismo e Parapsicologia. (N. do Rev.)

 

[5] As pesquisas atuais já resultaram na admissão da sobrevivência por vários psicólogos dos mais eminentes. Whately Carington, de Cambridge, Inglaterra, chegou mesmo a elaborar uma teoria da sobrevivência da mente após a morte. Soal, da Universidade de Londres; Harry Price, de Oxford; Rudolph Tischner, de Berlim e numerosos norte-americanos chegaram a conclusões semelhantes. Rhine e sua esposa, a profª Louise Rhine, chegaram também a essa conclusão, como se pode ver pelo livro Canais Ocultos da Mente, desta última. A admissão geral da sobrevivência já se impõe ao mundo das Ciências. A primeira a demonstrar essa verdade através da experimentação foi a Ciência Espírita. (N. do Rev.)

 

[6] As pesquisas espíritas confirmaram cientificamente os princípios fundamentais das religiões. O problema das penas e recompensas de após morte é amplamente analisado por Kardec no livro O Céu e o Inferno. Veja-se na Revista Espírita, particularmente na seção intitulada Palestras Familiares de Além Túmulo, o método rigoroso seguido por Kardec na investigação das condições do Espírito após a morte. Assim, os grandes princípios religiosos foram submetidos à prova científica no campo da pesquisa psíquica. (N. do Rev.)

 

[7] A existência de Deus se prova pelo princípio espírita de que não há efeito inteligente sem uma causa inteligente. As Ciências provam que o Universo é uma estrutura de leis e não um caos produzido pelo acaso. Do grão de areia e da folha de relva até os grandes sistemas estelares, tudo denuncia a existência de uma inteligência criadora e diretora do Universo. Kardec mostra, no tópico acima, que as teorias materialistas, as doutrinas satânicas e outras que negam algum dos atributos de Deus são necessariamente falsas, pois se opõem à necessidade lógica da existência de Deus e dos seus atributos. (N. do Rev.)

 

[8] A matéria não se constitui apenas das formas materiais que conhecemos. Veja-se o item 22 de O Livro dos Espíritos. Matéria e espírito são os dois elementos fundamentais do Universo. Essa a razão porque Kardec acentua a natureza temporária das transformações da matéria. (N. do Rev.)

 

[9] A palavra alma, no Espiritismo, quer dizer espírito encarnado. O homem tem uma alma, que é o seu espírito animando o corpo. Mas a alma liberta do corpo é espírito. Ver a explicação do problema na introdução de O Livro dos Espíritos. (N. do Rev.)

 

[10] Os Espíritos errantes são os que ainda não se fixaram no plano espiritual, estando sujeitos à reencarnação. A expressão errantes não quer dizer que eles estejam perdidos no espaço, mas tão somente que continuam a errar entre a Terra e o Espaço, entre a vida material e a vida espiritual, como a alma viajora da filosofia de Plotino. (N. do Rev.)

[11] Não há possibilidade, como se vê, de se determinar o período de estágio do espírito como desencarnado, nem de se determinar o número de suas encarnações. Quanto à expressão mensageiros encontramos a sua confirmação no apóstolo Paulo, que considera os anjos como mensageiros de Deus e os portadores naturais da revelação. (N. do Rev.)

 

[12] Várias escolas espiritualistas acusam o Espiritismo de só admitir espíritos humanos. Não é verdade. O Espiritismo é evolucionista e entende a evolução como um encadeamento universal de todas as coisas e todos os seres no progresso constante. O que ele sustenta é que o espírito humano representa na Terra o elo superior da evolução espiritual. Assim, os espíritos que nos rodeiam no plano invisível do planeta e se comunicam conosco são humanos. Os espíritos de outra natureza são sub-humanos ou divinos. Os primeiros pertencem às espécies animais e à classe dos em transição para a Humanidade e não estão ainda em condições de comunicar-se inteligentemente. Os segundos são guias e protetores, mas por isso mesmo já passaram pela Humanidade e são também humanos. (N. do Rev.)

[13] As Ciências vêm provando através de pesquisas que os fenômenos chamados sobrenaturais são, na verdade, naturais. O Espiritismo é a Ciência que liquida os últimos resquícios do sobrenatural, provando a naturalidade dos fenômenos psíquicos inabituais. Hoje, a Parapsicologia endossa inteiramente a tese espírita, dando razão a Kardec, tão combatido pelos cientistas materialistas ou religiosos. Os chamados fenômenos sobrenaturais do passado são hoje classificados como paranormais, o que vale dizer paralelos aos normais. (N. do Rev.)

 

[14] Os milagres dos Evangelhos são estudados por Kardec na segunda parte do livro "A Gênese". A Bíblia, desde o Gênesis até suas últimas páginas, é um grande repositório de fatos espíritas. Isso não diminui o seu valor. Os milagres ali apresentados não são violações da lei de Deus, mas intervenções dos Espíritos (chamados anjos, arcanjos, ou santos) realizadas dentro da própria lei divina. (N. do Rev.)

 

[15] Kardec se refere ao dogma religioso que é um princípio de fé, de crença cega, sobre o qual o crente não pode discutir, pois não tem o direito de pô-lo em dúvida. No Espiritismo, como na Ciência e na Filosofia, só existem dogmas de razão, princípios resultantes de pesquisas e análises, susceptíveis de discussão. (N. do Rev.)

 

[16] Atenção para esta mecânica das sensações que representa verdadeira revolução nos conceitos psicológicos e constitui um dos princípios básicos da Psicologia Espírita. (N. do Rev.)

[17] A Parapsicologia e a Medicina Psicossomática estão hoje comprovando esta verdade espírita. (N. do Rev.)

 

[18] A Parapsicologia demonstra hoje a mesma coisa ao afirmar, como o faz Rhine; a mente, que não é física, age sobre a matéria por vias não físicas. O Espiritismo, entretanto, graças à descoberta do perispírito, mostra que essas vias são psicofísicas. (N. do Rev.)

[19] A penetrabilidade da matéria, que no tempo de Kardec era dogmaticamente considerada impossível, já não o é em nossos dias. O avanço da Física provou que a densidade da matéria é apenas aparente. Nas pesquisas parapsicológicas a escola de Rhine provou que nenhuma barreira material impede a transmissão do pensamento, o que levou Rhine a afirmar que a mente não é física e o pensamento não é gerado pelo cérebro. Consulte-se Parapsicologia Hoje e Amanhã de J. Herculano Pires. (N. do Rev.)

[20] As visões ocorridas durante o sono tiveram a sua realidade provada pelas pesquisas parapsicológicas. O mesmo acontece com as aparições em estado de vigília. Veja-se a obra acima citada e o livro da profª Louise Rhine, Canais Ocultos da Mente (ou do Espírito na tradução brasileira.) (N. do Rev.)

 

[21] Kardec deu a estas entidades o nome de agêneres, que quer dizer não-gerados, como se pode ver em O Livro dos Médiuns. Contam-se por milhões as ocorrências desse tipo de fenômenos em todo o mundo e o livro da Profª Louise Rhine, Os Canais Ocultos da Mente, ou o livro de Tyrrel, As Aparições, obras recentes do campo da Parapsicologia, relatam casos verificados atualmente. Na Revista Espírita Kardec relata vários casos e propõe uma teoria dos agêneres que explica o fenômeno. Neste mundo de imperfeições em que vivemos a perfeição dos agêneres constitui obstáculo para a aceitação da realidade do fenômeno entre cientistas. O mesmo acontece com as materializações completas. Charles Richet, fisiologista francês, Prêmio Nobel de Fisiologia de 1913, conseguiu tomar a pulsação, auscultar o coração e verificar quimicamente a respiração de um Espírito materializado. Os seus adversários disseram que ele havia sido iludido por um trapaceiro, pois não era possível que um Espírito manifestasse esses sintomas da criatura viva. Veja-se o Tratado de Metapsíquica, de Richet. (N. do Rev.)

[22] As aparições no momento da morte são hoje objeto de pesquisas parapsicológicas e deram origem a um novo tipo de fenômeno paranormal acrescido ao quadro da fenomenologia científica do gênero: o fenômeno téta, designado simplesmente por essa letra, que é a oitava do alfabeto grego e com a qual se escreve a palavra morte. O Grupo Téta de Pesquisas é dirigido na Duke University, Estados Unidos, pelo prof. Prat, companheiro de Rhine. Este fenômeno foi reconhecido pelos parapsicólogos com a mesma dualidade com que o Espiritismo o apresentou e explicou há mais de um século: é psigama ou subjetivo quando não apresenta características materiais, e é psikapa ou objetivo quando a aparição se torna tangível ou quando, ao invés da aparição, o aviso de morte é dado pela queda de um objeto, o estalido de um relógio que para exatamente na hora em que a pessoa morreu e assim por diante. Ver Parapsicologia Hoje e Amanhã de J. H. Pires. (N. do Rev.)

 

[23] O fenômeno de transfiguração aparece nos Evangelhos e nas escrituras sagradas de quase todas as religiões. A explicação espírita foi julgada anticientífica por fazê-lo depender do fluido, conceito que se considerava superado pela Ciência moderna. Atualmente o conceito de fluido voltou a impor-se no campo científico. Já existe mesmo uma ciência chamada Fluídica, embora referente apenas ao campo dos fluidos materiais utilizados como combustível. Na Física nuclear o fluido é substituído pelo conceito de campo de forças, de elétrons livres e assim por diante. Para Dirac os elétrons livres substituiriam o éter da Física anterior, constituindo uma espécie de oceano universal em que os sistemas solares estariam mergulhados. Como Kardec acentua incessantemente, as estranhezas provocadas pela explicação espírita decorriam apenas da ignorância de leis naturais ainda não descobertas pela Ciência. Com as descobertas recentes a Ciência Espírita vem sendo revalidada pelas Ciências que a combateram até agora. (N. do Rev.)

 

[24] A Psicologia e a Parapsicologia atribuem ao inconsciente as faculdades da alma em seus momentos de libertação. O conceito de inconsciente apareceu primeiramente no Espiritismo (Ver o livro Silva Mello e os Seus Mistérios, de Sérgio Vale - Lake) mas não é uma instância da personalidade e sim um campo de funções que escapa aos limites sensoriais. Kardec oferece aqui a explicação desse problema. E o faz com base nas numerosas experiências realizadas por ele na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e cujos relatos minuciosos podem ser lidos na Revista Espírita. Como se vê, Kardec admite dois tipos de percepção extra-sensorial: 1) o que provém da emancipação da alma, ou seja, dos momentos em que a alma se afasta do corpo; 2) o decorrente dos estados de ausência psíquica no estado de vigília, momentos de distração, de sonolência passageira e assim por diante. Assim, toda a fenomenologia paranormal que a Parapsicologia se empenha em explicar atualmente se reduz, para a Ciência Espírita, na capacidade permanente que a alma possui de se afastar do corpo, de se libertar da prisão sensorial orgânica. É a alma que vê e sente fora do corpo. Ver em O Livro dos Espíritos o capítulo intitulado Ensaio Sobre as Sensações nos Espíritos. (N. do Rev.)

 

[25] Temos neste tópico a explicação espírita da ação das drogas anestésicas e alucinógenas nos processos de percepção extra-sensorial. Essas drogas não possuem nenhum poder maravilhoso, não dão aos pacientes nenhum aumento de percepção orgânica. Agem apenas como o sono e os estados hipnóticos, bloqueando as vias comuns da percepção sensorial, o que permite ao espírito libertar-se da prisão do sensório. A palavra alma, no Espiritismo corresponde a espírito encarnado. Enquanto estamos vivos na Terra somos almas, espíritos revestidos de perispíritos animando um corpo animal. Depois da morte não somos mais almas, somos espíritos. (N. do Rev.)

[26] O Espiritismo prefere a comunicação mediúnica aos processos de desprendimento espiritual, no trato com o mundo invisível, porque a comunicação oferece maior segurança no exame dos fatos. O problema do condicionamento à crença, levantado por Richet e tratado por Ricardo Musso em seu livro En los limites de la Psicologia já havia sido colocado por Kardec de maneira precisa e esclarecedora, como se vê nesse tópico. (N. do Rev.)

 

[27] Todos são médiuns, à peu de chose près, como escreveu Kardec, ou seja, todos são mais ou menos médiuns. Compreende-se isso quando sabemos que a mediunidade não é mais do que a capacidade da alma se libertar do corpo e se pôr em comunicação com os Espíritos. A Parapsicologia atual reconheceu que as faculdades psi (nome parapsicológico da mediunidade) são naturais e por isso mesmo comuns a toda a espécie humana, havendo entretanto os chamados sujeitos paranormais, nos quais elas se manifestam de maneira mais intensa. Os sujeitos paranormais nada mais são que os médiuns. (N. do Rev.)

 

[28]  A mediunidade depende do organismo ou da organização do corpo humano. Elle tient à l'organisation, como escreveu Kardec. Mas é preciso lembrar, o que se vê claramente no texto acima, que a organização depende do perispírito. Kardec não se refere ao organismo humano em termos materialistas, mas em termos espíritas. São as relações do perispírito com o corpo, formando um organismo de dupla natureza, espiritual e material, que condicionam a existência em maior ou menor grau da mediunidade e suas possibilidades de desenvolvimento. Por isso ele afirma: o fluido perispiritual é o agente de todos os fenômenos espíritas. Não se pode atribuir a mediunidade ao corpo, pois ela depende essencialmente do perispírito. Podemos dizer que a sua sede é o perispírito. Da maior ou menor possibilidade de emissão de fluidos e de assimilar os seus fluidos com os dos Espíritos é que depende a capacidade do médium. (N. do Rev.)

[29] Muitas pessoas põem em dúvida as manifestações mediúnicas que não modificam a expressão e a voz do médium. Não obstante, as manifestações puramente subjetivas ou mentais são às vezes mais válidas e mais exatas que as outras. A mediunidade mais refinada, mais pura, é a intuitiva, na qual a relação do Espírito com o médium é inteiramente oculta, passando-se apenas no plano mental, à ligação direta de mente a mente. Mas isto exige, acima de tudo, evolução espiritual do médium. A veracidade das comunicações não se afere por sinais exteriores mas pelas ideias, pelo conteúdo das mensagens. (N. do Rev.)

 

[30] Generalizaram-se entre nós as designações de médiuns inconscientes e médiuns conscientes. Estes últimos são os que Kardec chama de facultativos, pois podem ou não usar as suas faculdades, embora estejam sujeitos a perturbações quando se recusam. (N. do Rev.)

 

[31] Faz-se muito alarde contra a evocação dos espíritos. Como se vê nesse trecho, a evocação é um processo natural, sem nenhum sentido mágico. Sempre que pensamos num espírito o evocamos, mas ele virá atender-nos se o quiser e puder. (N. do Rev.)

 

 

[32] Há muita confusão no meio espírita entre passe magnético e passe espiritual. Esse último é o que Kardec, seguindo a tradição cristã, chama de imposição das mãos. O passe magnético está sujeito a técnicas de aplicação mas o passe mediúnico (portanto espiritual) não comporta nenhuma técnica. Faz-se a imposição das mãos sob a ação dos Espíritos curadores e só eles sabem como dirigir os fluidos. O médium age, no caso, como simples instrumento. O que vale é a sua fé e a sua intenção de servir. O passe magnético é de origem orgânica, como se vê nesse trecho de Kardec, mas o passe mediúnico é de origem espiritual. (N. do Rev.)

 

[33] A barreira do materialismo começou a cair por si mesma no momento em que a Física conseguiu penetrar na estrutura da matéria. A descoberta do átomo e de sua divisibilidade abriu para a Ciência a possibilidade de avançar além da matéria. Einstein chegou a declarar: o materialismo morreu por falta de matéria. Arthur Compton declarou que, por trás da energia que se condensa na matéria parece haver pensamento. De outro lado, a Parapsicologia, como escreveu o prof. Rhine, devolveu à Psicologia o seu objeto perdido, que é a alma. Assim, a barreira intransponível de um século atrás foi abaixo. Não há mais lugar para o materialismo no campo da cultura. A hora é do Espiritismo. (N. do Rev.)

 

[34] Todo o grave problema da obsessão está resumido neste trecho de Kardec, neste item 59. Até mesmo a questão do mais forte, hoje muito comum, fica bem esclarecida. A força do Espírito não é material, mas moral. E a força do médium é a mesma do Espírito. Enganam-se, pois, as pessoas que procuram trabalhos fortes em terreiros de Umbanda etc., sob a alegação de que os obsessores precisam ser afastados por meio da força. A única força que os pode realmente afastar é a força moral. O tratamento da obsessão é antes de tudo uma evangelização. O perispírito do obsedado, como diz Kardec, foi penetrado pelo do obsessor como a umidade penetra a roupa, e só a doutrinação paciente e caridosa conseguirá livrá-lo dessa impregnação viciosa. (N. do Rev.)

[35] Esta afirmação de Kardec vem sendo confirmada pelos depoimentos de numerosos clérigos e teólogos que se entregaram à pesquisa psíquica. De especial importância o livro do Rev. Haraldur Nielsson, professor de teologia da Universidade da Islândia, tradutor da Bíblia para o islandês por incumbência da Sociedade Bíblica Inglesa, intitulado O Espiritismo e a Igreja. A Edicel lançou uma tradução de Francisco Klors Werneck, autorizada pela viúva do autor, Senhora Adalbjorg Nielsson. Não menos interessante é o livro do Rev. Othoniel Motta, "Temas Espirituais", em que o saudoso pastor e escritor, embora acusando o Espiritismo, revela os resultados positivos de suas experiências mediúnicas. O Rev. Nielsson é mais claro nas suas conclusões e chega mesmo a declarar que os fenômenos mediúnicos lhe permitiram melhor compreensão de muitas passagens da Bíblia e dos Evangelhos. (N. do Rev.)

 

[36] Todos estes fatos foram comprovados em numerosas outras publicações do tempo de Kardec e posteriores a ele. As experiências científicas de materialização e de desdobramento psíquico representam a sua prova experimental. Atualmente as ocorrências continuam a confirmá-los. O cientista norte-americano Andrew Puharich, em seu livro O Cogumelo Sagrado, relatou recentemente um caso de desdobramento ocorrido com ele próprio, após experiências com a produção de uma nova droga. Ver o relato em Parapsicologia Hoje e Amanhã, de J. Herculano Pires. Nos casos em que a pessoa se vê a si mesma como outro espírito, estando portanto acordada, não há desdobramento, mas aparição de um espírito que a imita. (N. do Rev.)

 

· OBSERVAÇÃO: Esta explicação do fenômeno da lucidez antecedeu de um século as teorias hipnóticas e parapsicológicas em controvérsia no nosso tempo. Os mais argutos e ilustres negadores da existência da alma não conseguiram elucidar a questão. A lógica de Kardec, como se vê, é impecável e as pesquisas atuais se encaminham nitidamente no sentido de aprová-la. Já na fase metapsíquica, por exemplo, o Prof. Ernesto Bozzano sustentava que a percepção extra-sensorial prova, por si mesma, a existência da alma. Confirmava assim, no campo das teorias científicas, a afirmação de Kardec neste trabalho, de que a lucidez sonambúlica prova até a evidência que a alma existe. Agora, na Parapsicologia, Rhine, Soal, Carington, Broad e outros concluem que os fenômenos psigama (dos quais a clarividência foi o primeiro a ser provado cientificamente) não são de natureza material e provam a existência no homem de um conteúdo extrafísico.

Devemos ainda lembrar que a conclusão de Kardec resultou de suas experimentações com numerosos médiuns. Dessas experimentações encontramos os relatos minuciosos na Revista Espírita. Já em O Livro dos Espíritos, Kardec havia publicado o Ensaio Sobre as Sensações nos Espíritos, de que o trabalho acima é uma espécie de prolongamento. Inegável o pioneirismo da Ciência Espírita na investigação dos fenômenos paranormais e também o seu pioneirismo nas conclusões de tipo rigorosamente científico. Esse pioneirismo, por sinal, foi reconhecido por Richet no Tratado de Metapsíquica. Notemos ainda a felicidade da comparação da alma com o fósforo. Esse elemento químico deriva o seu nome do grego: phos, luz e phoros, que tem ou que porta. (N. do Rev.)

 

· OBSERVAÇAO: A precognição foi um dos fenômenos provados cientificamente pelas pesquisas parapsicológicas na Universidade norte-americana de Duke, Carolina do Sul. Mas a primeira prova se deu na Universidade de Cambridge, Inglaterra, através das famosas experiências do Prof. Whately Carington. Na Universidade de Londres o Prof. Soal confirmou essas provas, posteriormente confirmadas também por numerosos outros investigadores em diversas Universidades europeias e americanas. A teoria de Kardec, formulada neste capítulo, nada fica a dever às teorias atuais. Pelo contrário, mostra-se mesmo inegavelmente mais lógica do que muitas proposições recentes. Precognição é o nome científico dos fenômenos de previsão ou de profecia. (N. do Rev.)

 

[37] O problema da fotografia do pensamento está novamente na ordem do dia das investigações científicas. Experiências recentes realizadas nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Rússia mostram que Kardec tinha razão ao tratar deste assunto, sobre o qual, como vemos pelo título deste trabalho, pretendia realizar estudos mais profundos. As pesquisas atuais do Prof. Eisenbud com o médium Ted Serios, nos Estados Unidos, demonstraram cientificamente a possibilidade de fotografar-se o pensamento, e mais do que isso, obter-se, por esse meio, informações de locais ou de acontecimentos que ocorrem à distância. A fotografia do pensamento está assim ligada a outros tipos de fenômenos paranormais, incluindo a telegrafia do pensamento, de que trata Kardec neste livro e no O Livro dos Médiuns, além de suas referências a respeito no O Livro dos Espíritos. As pesquisas de Eisenbud foram objeto de curiosa reportagem publicada pela Revista Internacional de Espiritismo (Matão, 1970) e de conferências e exposição em programas de televisão do Canal 11, em São Paulo (1970) pelo Prof. Flávio Pereira. Há um curioso livro do Prof. Imoda, italiano, intitulado Fotografias de Fantasmas, em colaboração com Richet e Fontenay, sobre experiências de ideoplastias realizadas com a médium Linda Gazzera. As ideoplastias, formas plásticas de pensamentos, constituem elementos valiosos para o estudo científico do processo pelo qual o pensamento (que não é físico) torna-se acessível às impressões físicas e pode impressionar o filme fotográfico. (N. do Rev.)

 

[38] Temos aqui um exemplo da maneira porque Allan Kardec, graças à sua compreensão global dos problemas, passava facilmente da teoria à prática, dando aplicação moral às suas conclusões científicas. Da técnica da fotografia do pensamento ele passa naturalmente, por necessidade lógica, sem nenhum esforço ou artifício, às consequências morais e espirituais das novas leis descobertas. Por outro lado, devemos observar a segurança de Kardec ao afirmar: "A teoria das criações fluídicas, e por conseguinte da fotografia do pensamento, é uma conquista do Espiritismo moderno e pode, de agora em diante, considerar-se estabelecida em princípio, salvo as aplicações de pormenores resultantes da observação". Trechos como esse nos mostram que Kardec estava plenamente seguro do que afirmava, seguro de suas conquistas científicas no campo da investigação psíquica. Os que hoje o consideram superado, sem sequer se darem ao esforço de estudar as suas obras, têm aqui uma excelente oportunidade de reflexão a respeito da seriedade e da importância atual dos seus trabalhos. (N. do Rev.)

 

[39] O critério histórico de Kardec nesta tomada de posição é legítimo, verdadeiro e constitui mais uma prova da sua objetividade no exame dos problemas espíritas, seja no campo científico, filosófico ou religioso. O acordo dos Santos Padres em matéria dogmática era necessária e inevitavelmente forçado. O caso de Orígenes, muito bem lembrado, que poderíamos acrescer com o de Tertuliano, é prova inegável disso. Quem discordava dos dogmas aceitos pela maioria era considerado herege. A própria Igreja reconhece hoje os seus erros nesse sentido e inicia, como todos sabem, uma fase nova de sua história, renovando profundamente sua posição e suas atitudes para ajustar-se à atualidade. (N. do Rev.)

[40] As palavras do Cristo poderiam ser postas em dúvida pelos que consideram os Evangelhos como documentos duvidosos. Entretanto, as investigações realizadas sobre as fontes evangélicas por pesquisadores altamente qualificados, no campo cultural, sem ligações eclesiásticas, chegaram a conclusões incontestáveis a respeito da sua validade. As afirmações de Renan, de que os Evangelhos nasceram no próprio círculo dos familiares de Jesus, é hoje confirmada por Charles Guignebert, professor de História do Cristianismo na Sorbonne, como podemos ver em seus monumentais estudos Jésus e Le Christ editados por Albin Michel, Paris, 1947 e 1948, respectivamente. Assim, a confiança de Kardec nos textos se confirma pelos estudos e as pesquisas não comprometidas com setores religiosos. A descoberta dos chamados Manuscritos do Mar Morto, a partir de 1947, embora representando importante contribuição para o esclarecimento histórico dos inícios do Cristianismo, não chegou a afetar a situação do problema específico dos textos evangélicos. Por tudo isso, a posição de Kardec é válida. (N. do Rev.)

 

· Para o desenvolvimento completo da questão dos milagres, vide A Gênese _ Os Milagres e as Previsões segundo o Espiritismo, capítulo XIII e seguintes, onde são explicados todos os milagres do Evangelho, de acordo com as leis naturais. (N. de Kardec)

[41] A colocação deste problema está perfeitamente atualizada. Até mesmo a lista de milagres referidos por Kardec corresponde aos fenômenos atualmente comprovados pela pesquisa parapsicológica. Os milagres do Evangelho, como os de todas as escrituras religiosas do mundo, não são invalidados pelo Espiritismo, que apenas lhes tira o caráter de ocorrências sobrenaturais, enquadrando-os na concepção natural do Universo e do homem que as ciências vêm elaborando. Se, de um lado, a prova da divindade do Cristo pelos milagres é negada, de outro lado a prova da sua humanidade é confirmada. O Filho de Deus toma o seu lugar de Filho do Homem, por ele mesmo afirmado, integrando-se na Humanidade. Mas nem assim desaparece a sua divindade, como veremos adiante, pois ela se reafirma num sentido mais amplo, sem o particularismo exclusivista que lhe quiseram dar. Este pequeno estudo de Kardec é de uma profundidade ainda não percebida pela maioria dos próprios espíritas. (N. do Rev.)

 

[42] Esta comparação da posição de Jesus em relação a Deus e da posição dos Apóstolos em relação a Jesus é um verdadeiro achado de Kardec. Com base nas próprias palavras evangélicas o dogma absurdo da unidade pessoal desaparece. É essa forma de divindade que o Espiritismo não reconhece nem pode reconhecer em Jesus. Fazer do enviado o próprio Deus é hoje, mais do que nunca, inaceitável. Nossa concepção atual de uma inteligência suprema, Deus, criadora e mantenedora do Universo, não pode aprovar a confusão que pretende fazer de Jesus uma encarnação de Deus, uma manifestação integral do infinito no finito. A divindade de Jesus está em sua superioridade espiritual em relação aos homens, na condição sobre-humana do seu espírito e não do seu corpo, da sua encarnação. (N. do Rev.)

 

· Peças, em linguagem forense, são documentos que fazem parte do processo. (N. do T.)

[43] A divindade de Jesus, segundo o dogma católico-romano, provém exatamente de uma polêmica sobre a natureza abstrata do Verbo. A afirmação de João, no seu Evangelho: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus originou a polêmica teológico-filosófica. A palavra grega Logos, empregada por João, só pode encontrar na tradução latina (a Vulgata de São Jerônimo) o correspondente Verbum. Esta palavra não tem, entretanto, a amplitude e a profundidade de significado da palavra grega, que segundo a tradição filosófica não corresponde apenas ao discurso, mas também à inteligência, à razão, à mente divina e ao pensamento divino. Só a partir da Vulgata a palavra Verbo começou a adquirir o sentido grego que hoje lhe damos. O versículo 14 do cap. I de João começa assim: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Jesus foi por isso tomado como a personificação do pensamento de Deus, representando a segunda pessoa da Trindade. Podemos aceitar a alegoria no seu primeiro tema, embora apenas como alegoria: Jesus é a mensagem de Deus, o seu Verbo enviado à Terra, mas não o segundo tema que implica a confusão pessoal de Jesus com Deus. Kardec coloca o problema nos seus devidos termos e o localiza historicamente: foi no começo do século IV da Era Cristã que a influência grega se acentuou no pensamento cristão, originando as controvérsias sobre o Logos. (Ver La Philosophie au Moyen Âge, de Êtienne Gilson, primeiros capítulos.) (N. do Rev.)

 

 

 

[44] A clareza e a segurança do raciocínio de Kardec revela-se aqui em sua plenitude. Nada de divagações inúteis. O pensamento vai direto ao alvo, esquadrinha todos os ângulos do assunto e põe as contradições em evidência. Isto é o que René Hubert chama hoje, na própria França e na mesma posição de Kardec — a de pedagogo — de uma questão pensada à francesa. Bastaria este tópico sobre a dupla natureza de Jesus para refutar, em poucas linhas, toda a confusa literatura teológica que fez de Jesus um novo mito religioso. (N. do Rev.)

 

[45] Esta afirmação de Kardec: Não foi entre os Apóstolos que nasceu a crença na divindade de Jesus é hoje confirmada pela pesquisa histórica. Em seu livro inacabado, Le Christ, com o espírito minucioso que o caracteriza, Charles Guignebert demonstra como os judeus-helenizados transformaram o messias judeu no Cristo grego, distanciando-se pouco a pouco da figura humana de Jesus e da Igreja de Jerusalém. O processo grego do sincretismo transforma o homem Jesus no mito do Cristo. Escreve Guignebert: A pequena semente judia lançada em solo grego encontrou nele, para se enraizar, uma substância rica e fecunda. E outra passagem: evidentemente, essa dupla eliminação, a do Jesus histórico e da autêntica fé apostólica, era necessária para que o Cristianismo pudesse constituir-se em religião independente. (N. do Rev.)

 

[46] Estas palavras finais de Kardec não são apenas uma advertência, pois foram também proféticas. Basta vermos as transformações atuais da Igreja, empenhada em superar uma crise determinada pela evolução cultural do mundo, para compreendermos o sinal dos tempos a que ele se refere. A tendência para voltar aos princípios verdadeiros do Cristianismo e aos seus fundamentos morais acentua-se rapidamente nestes últimos anos. A tese do esvaziamento da Igreja, sustentada por alguns teólogos, corresponde aos anseios da Reforma e às diretrizes do Espiritismo. Esvaziar a Igreja é tirar-lhe os elementos acessórios com que a enfeitaram indevidamente. Os excessos litúrgicos que devem desaparecer abrangem também o mistério grego da Paixão em forma de mito, com a morte de um Deus e não de um homem. A divindade de Jesus está implícita na frase que ele mesmo citou: Vós sois deuses, referindo-se a todas as criaturas humanas. É a divindade do espírito evoluído, que superou a condição humana em espírito e não em forma ou condição corporal. — Para uma informação geral sobre a revolução teológica de hoje leia-se O Movimento da Morte de Deus, de Charles Bent, Moraes Editores, Lisboa, 1968, e A Morte de Deus, de Thomas Altizer e William Hamilton, Editora Paz e Terra, S. Paulo, 1967. (N. do Rev.)

 

[47] Kardec assinala com precisão as características das fases de transição no campo das artes. A substituição de princípios filosóficos e conceitos estéticos é tanto mais lenta quanto mais longa for a fase. Muda-se a concepção do mundo e consequentemente mudam-se as formas de expressão. De meados do século passado aos nossos dias esse processo vem crescendo. Veja-se a confusão reinante nos meios artísticos dos nossos dias. Dessa confusão, entretanto, vai nascendo uma nova Arte, em sentido geral, que se equilibrará no futuro. (N. do Rev.)

[48] Veja-se o famoso Prefácio de Cromwell, de Victor Hugo, considerado como o manifesto do Romantismo. O caráter grandioso e sublime da arte medieval foi determinado pela concepção cristã. O Renascimento determinou uma volta ao Paganismo, mas numa assimilação renovada dos valores antigos sob a influência cristã. O mundo moderno não ofereceu elementos para uma renovação profunda das artes porque não trazia ainda uma cosmovisão nova. As artes modernas são o prelúdio de uma nova fase que só o Espiritismo, a concepção espírita do mundo irá definir. É o que Kardec viu com clareza neste trabalho. (N. do Rev.)

 

[49] A Arte Espírita já é uma realidade nascente. A Pintura Espírita começou no tempo de Kardec e ainda há pouco surgiu em São Paulo o Grupo Nova Visão, liderado pelo pintor Nelson Alquezare e orientado pelo espírito de Portinari. (Veja-se Anuário Espírita de 1969). A Poesia Espírita é uma realidade que já mereceu antologia (Antologia de Poetas Espíritas, Clovis Ramos, Pongetti Editores, Rio, 1959). A ficção literária espírita impõe-se no mundo e a influência espírita no Cinema, na Música, no Rádio, na Televisão, no Teatro é visivelmente crescente. (N. do Rev.)

 

 

[50] Kardec toca, neste momento, ao comentar rapidamente o notável artigo de Charles Richard, o ponto central da Estética Espírita: a relação essencial da beleza com a perfectibilidade moral. Os teóricos da Estética contemporânea, orientados pelo superficialismo materialista, chegaram a formular um conceito estético inteiramente livre de qualquer implicação moral. Se esse conceito pode sustentar-se mal ou bem no plano teórico, através dos sofismas da Lógica formal, já o mesmo não acontece quando apelamos à prática da investigação histórica. A beleza humana, servindo de objeto para essa investigação, revela um processo vital de relação estético-moral no desenvolvimento da espécie. O mesmo acontece em todo o plano biológico, tomando-se o conceito de perfectibilidade moral como expressão do processo de desenvolvimento do princípio inteligente. Moral como aperfeiçoamento da essência resulta em beleza como aperfeiçoamento da forma. Mesmo um esteta materialista, dotado de acuidade espiritual, como Georg Lukács, reconhece essa relação. Veja-se Introdução a Uma Estética Marxista, G. Lukács. Civilização Brasileira Editora, Rio de Janeiro, 1968. (N. do Rev.)

[51] Esta observação de Kardec explica o engano dos que pretendem a separação absoluta de ética e estética. As irregularidades da forma, decorrentes das imperfeições da matéria, não permitem a manifestação plena da perfeição do espírito. Mas essa perfeição se reflete na delicadeza dos traços. A pureza do conceito, segundo a estética idealista alemã, transparece na impureza do objeto. (N. do Rev.)

 

[52] O problema do feio e do belo é colocado aqui em termos de relação. Os povos mais apegados aos instintos não podem ter o mesmo senso estético dos mais evoluídos. Relativamente, porém, a beleza se define na proporção do desenvolvimento moral. Mesmo entre as tribos africanas mais atrasadas a beleza humana de um rosto depende das qualidades da alma. Mas esse absolutismo do universal não exclui a marca estética do particular. E é precisamente nesse campo da Estética, o do particular, que se desenvolve a arte sensorial dos nossos dias. (N. do Rev.)

 

[53] As duas comunicações mediúnicas que completam o trabalho de Kardec esclarecem outros problemas estéticos à luz do Espiritismo. Neste trecho temos o problema dialético do belo-feio colocado em termos de harmonia orgânica: a harmonia, mesmo no mal, produz o belo. Assim, nas formas grosseiras (humanas ou não) também encontramos beleza. Encarado o problema na perspectiva da evolução é fácil compreendê-lo. Cada etapa do desenvolvimento do ser tem os seus graus típicos de harmonia, nos limites daquela perfectibilidade possível referida por Kant. Um negro típico da sua raça, da sua tribo, é um exemplar de beleza humana, por mais grosseiros que sejam os seus traços. A harmonia é então o elemento estético básico e serve de fio de Ariadne no imenso labirinto das formas em evolução. Mas harmonia não quer dizer esquematismo e sim combinação inteligente de efeitos, revelando causa inteligente. (N. do Rev.)

 

[54] Os bons médiuns são sempre atenciosamente amparados. Mas se começam de repente a faltar aos seus deveres, desviando-se para interesses mundanos, explorando suas faculdades ou envaidecendo-se com elas, os Espíritos protetores, depois de tentarem abnegadamente impedir que eles se lancem no erro, afastam-se deles. Dá-se então uma troca de companhias. O médium que se transviou fica entregue aos Espíritos mistificadores com os quais se afinou. O mesmo acontece com os pregadores, os doutrinadores, os presidentes de Centros. Todos temos as nossas testemunhas, como dizia o apóstolo Paulo, os nossos anjos guardiães. Mas os Espíritos protetores não podem interferir no nosso livre-arbítrio, sem o qual não poderíamos evoluir. (N. do Rev.)

 

[55] O Espiritismo veio abrir na Terra uma nova era. Todas as atividades humanas serão influenciadas pelos seus princípios, pela visão nova do mundo e da vida que ele nos oferece. Assim como o Cristianismo reformou o mundo em todos os sentidos e criou uma nova arte, uma nova estética, assim também fará o Espiritismo, continuando a revolução cristã segundo a promessa de Jesus sobre a vinda do Espírito da Verdade. Sob a influência do Cristianismo nascente surgiu no mundo uma nova Música. Ao Espiritismo cabe a segunda fase da renovação cristã da Música. Rossini assinala bem a importância e a complexidade desse fenômeno cultural e adverte que ainda era "cedo demais", no tempo de Kardec, para tratar-se do problema com a devida eficiência. Podemos acentuar que ainda hoje é cedo, pois a era espírita se encontra apenas no início do seu segundo século. Mas já vemos por toda parte os sinais de uma renovação artística que só poderá completar-se nos próximos séculos. (N. do Rev.)

 

[56] Às três virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade — Rossini acrescenta a tríade cultural: Harmonia, Ciência, Virtude. Mas o curioso é que essa tríade druídica se resolve dialeticamente numa síntese superior: a Pureza. Não há dúvida que essa proposição corresponde à linha conceptual da Doutrina Espírita. Se no Paganismo a pureza era de natureza física e no Cristianismo se tornou espiritual, no Espiritismo aparece como evolutiva, ou seja, o resultado do processo de desenvolvimento do Espírito, abrangendo todo o campo da consciência, onde se refletem as experiências da mente, da afetividade e da volição. Grifamos esse trecho pela sua inegável importância teórica e para ele chamamos especialmente a atenção dos leitores. (N. do Rev.)

[57] Este trecho é uma das mais precisas colocações do problema da imperfeição da matéria e consequentemente do nosso mundo. Essa imperfeição é relativa, sempre em confronto com a perfeição do espírito. Mas seria difícil explicá-la mais claramente do que o faz o Espírito através das comparações estabelecidas no plano da música. Podemos assim compreender, de maneira mais profunda, porque a música espiritual tem de ser naturalmente muito mais perfeita que a terrena. As pessoas que criticam a banalidade das comunicações espíritas, considerando apenas as mensagens de Espíritos pouco evoluídos, certamente desconhecem as grandes mensagens que, como estas de Rossini, abrem novas perspectivas ao conhecimento. (N. do Rev.)

 

[58] A propósito da Música Espírita em sua forma transcendente, ou seja, puramente espiritual, o leitor poderá consultar a importante monografia do prof. Ernesto Bozzano: Música Transcendental (Edizioni L'Albero, Verona, 1943). Neste livro o autor teve o cuidado de fazer a classificação das várias modalidades de manifestação da música transcendente, segundo os episódios que pode coletar e analisar. É a seguinte a sua classificação: 1) música de origem telepática; 2) música de origem perturbadora ou infestatória (casos de assombramento); 3) música percebida sem nenhuma ligação com casos de morte; 4) música ouvida no leito mortuário; 5) música ouvida após um caso de morte.

O primeiro capítulo trata da mediunidade musical. O número 3 da classificação acima é o que se refere ao caso da médium citada por Kardec. Na mediunidade musical enquadra-se o caso dos trechos de música de Mozart e outros recebidos na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e referidos com minúcias na Revista Espírita. Como se vê, há dois tipos fundamentais de música espírita: a que Bozzano chama de música transcendental e que tem a sua origem no mundo dos Espíritos, só se tornando acessível a nós através da mediunidade, e a que pertence ao mundo dos homens e é produzida por músicos espíritas.

Essa divisão fundamental é importante, pois existe em todos os campos da atividade espírita e geralmente não é compreendida pelos que desconhecem a doutrina. Tratando de Literatura Espírita, há alguns anos uma escritora paulista louvou um colega espírita que havia "assinado suas obras ao invés de atribuí-las aos espíritos". Isso levou os espíritas a promoverem um breve Curso de Literatura Espírita na Biblioteca Municipal, a fim de esclarecerem que existe a literatura mediúnica, feita pelos Espíritos através dos médiuns, mas existe também a literatura espírita feita por escritores espíritas. (N. do Rev.)

 

[59] Este princípio da memória espiritual está hoje suficientemente provado pelas pesquisas científicas e pelas práticas terapêuticas. A Psicologia Profunda e a Parapsicologia revelaram as profundezas do nosso inconsciente, a memória subliminar de que trata Frederic Myers em sua famosa obra Human Personality. Hoje, os trabalhos científicos sobre a reencarnação mostraram que essa memória profunda exorbita da existência atual e prova a reencarnação. Veja-se o livro do Prof. Ian Stevenson: 20 Casos Sugestivos de Reencarnação (Universidade de Virgínia, EUA) e os trabalhos do Prof. Hamendras Nat Barnejee (Universidade de Jaipur, Índia). Há também as pesquisas do Cel. Albert de Rochas: As Vidas Sucessivas, servindo-se do processo hipnótico de regressão da memória. As pesquisas atuais utilizam-se desse método em conjugação com a análise das lembranças espontâneas de outras vidas em crianças e adultos. Psiquiatras e neurologistas da América, da Europa e da Ásia já reconhecem que os traumas psíquicos não provêm, apenas de recalques desta existência. (Veja-se Karl Wilkland, da Univ. de Chicago; Trinta Anos entre os Mortos; o próprio Stevenson, que é professor de Psiquiatria e Neurologia em Virgínia; o Dr. Canon, em Londres: Psiquiatria e Reencarnação; o Dr. Inácio Ferreira, de Uberaba, livro com esse mesmo título; o Dr. Lauro Neiva, especializado pelo Instituto de Psiquiatria da Columbia University, EUA, ex-assistente do Prof. Henrique Roxo, no Rio de Janeiro: O Psiquiatra e o Invisível. Vemos assim que as lembranças das vidas anteriores não são apagadas da nossa memória, permanecendo vivas em nosso inconsciente e podendo ser trazidas à luz da memória atual. (N. do Rev.)

 

[60] Esta imagem das florestas sucessivas é um recurso didático de Kardec servindo-se da sua experiência de professor. Assim como o mito do véu no O Livro dos Espíritos (item 222) lembra o mito da caverna em A República de Platão, esta imagem das florestas lembra a selva oscura de Dante logo no início da Divina Comédia: Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / chi la diritta via era smarrita. Ou seja: Em meio ao caminho da nossa vida / encontrei-me numa selva escura / que perdida ficara a via certa. Note-se o dogma da perdição em perfeita consonância nos dois trechos, mas em Kardec explicado como perdição temporária.

Certamente este trabalho de Kardec havia sido escrito para posterior publicação da Revista ou numa dessas brochuras didáticas de que ele se servia para divulgar os princípios doutrinários entre o povo. Válido hoje e sempre, um trabalho como este deve ser melhor aproveitado em pequenos livros ilustrados. Note-se a feliz representação das religiões tradicionais no homem que, em meio de uma floresta, adverte o caminhante quanto à existência do abismo de perdição eterna. O aviso é oportuno, mas contém um erro que só posteriormente vai ser esclarecido. (N. do Rev.)

 

[61] Apesar de todas as inovações culturais e avanços científicos verificados depois de Kardec até os nossos dias, a tese das cinco alternativas não foi alterada. Mudaram-se alguns rótulos, mas as posições continuam as mesmas: materialismo, panteísmo, deísmo, dogmatismo ou espiritismo. Nesta última incluem-se as grandes doutrinas reencarnacionistas já existentes no tempo de Kardec e escolas que surgiram posteriormente, inspiradas nos princípios espíritas, como os vários ramos teosóficos. (N. do Rev.)

[62] Hoje a expressão de Kardec: pequena minoria parece inadequada. O materialismo expandiu-se como ideologia política e domina mais de metade do globo. Por outro lado, a generalização de Kardec sobre a irresponsabilidade e o comodismo dos materialistas não se justifica, diante das lutas e dos sacrifícios destes para a implantação de uma nova ordem social no mundo. Há mesmo, como assinala Annie Besant em suas memórias, inegável abnegação de parte daqueles que estoicamente se sacrificam, sem nada esperar após a morte, pela construção de um mundo melhor para as gerações futuras. Mas, apesar disso, a ambição e o imediatismo solapam os movimentos ideológicos do materialismo e ameaçam destruir as suas conquistas logo após as primeiras vitórias. Kardec, embora não tivesse podido examinar a fundo o problema, percebeu a fragilidade dessa posição, motivada por um desvio de visão da natureza espiritual do homem. Por outro lado, a maioria numérica não corresponde à realidade ideológica. Mesmo nos países dominados pelo materialismo a grande maioria continua espiritualista. (N. do Rev.)

 

[63] O extremismo é um fenômeno psicológico determinado pelo imediatismo, pelo desejo de solução imediata dos problemas. É comum no homem a passagem de um extremo ao outro. Karl Marx, opondo-se ao extremismo religioso, passou para o outro extremo, o do materialismo. Augusto Comte cai no positivismo materialista para fugir às abstrações da metafísica. Sigmund Freud, para combater os exageros do psiquismo afunda-se no pansexualismo. Kardec teve o mérito de não cair em nenhum extremismo, dando ao Espiritismo o equilíbrio que o conserva como doutrina coerente, baseada na tolerância, na fraternidade e na compreensão profunda da natureza evolutiva do homem. (N. do Rev.)

[64] Essa teoria da conservação da individualidade nos estágios inferiores da evolução aparece na Teosofia com a doutrina da alma grupo dos animais. Cada espécie animal constituiria uma alma grupo, para a qual voltaria a alma individual do animal após a morte, enriquecendo com suas experiências o psiquismo da espécie. O Espiritismo considera a individualização como objetivo da evolução do princípio inteligente (essência da alma) para o desenvolvimento da consciência em direção a Deus, que é a consciência suprema, mas não para fundir-se nesta e sim para conviver com ela. Essa teoria panteísta confunde a individualidade com o egoísmo. Este, que é uma deformação do indivíduo, é que desaparece com a evolução. (N. do Rev.)

 

[65] A revolução teológica da atualidade procura eliminar, tanto no Catolicismo como no Protestantismo, estes pontos negativos da Teologia clássica. Veja-se o esforço gigantesco de Teilhard de Chardin para dar uma orientação evolucionista ao Catolicismo. No Protestantismo a revolução teológica chegou ao extremo do Cristianismo Ateu. Todas as soluções apresentadas até agora são insuficientes e padecem às vezes de gritante incoerência. Enquanto as religiões dogmáticas não substituírem os seus dogmas de fé (que sustentam a fé cega) pelo dogma racional da reencarnação (fundamento bíblico e evangélico do Cristianismo) não escaparão do absurdo, do ilogismo em que se afundaram. (N. do Rev.)

 

[66] As experiências parapsicológicas atuais comprovaram cientificamente esta verdade espírita, demonstrando que os retardados e deficientes mentais, no plano extra-sensorial (libertos da rede dos sentidos orgânicos) equiparam-se às criaturas normais e não raro as superam. Débeis mentais exercem funções psi competindo com indivíduos normais. Kardec, em suas experiências na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (Ver Revista Espírita) já havia comprovado que os espíritos de idiotas manifestavam-se com plena lucidez e podiam comentar as suas dificuldades do estado de vigília, quando sofriam o constrangimento das imperfeições orgânicas. (N. do Rev.)

 

· O grifo é nosso. A ordem social adiantada é o resultado do progresso geral que se realiza a partir da evolução individual. Nos mundos inferiores o deslocamento de classe a que alude Kardec é prova para o Espírito em evolução, que ao mesmo tempo sofre com o seu desajuste e corrige os seus defeitos. (N. do Rev.)

 

[67] A ideia da morte espiritual como destruição do Espírito subsiste ainda em algumas correntes espiritualistas. O Espiritismo não a admite, explicando a sua origem como simples confusão com a perda ou destruição do perispírito. Este, que é o corpo espiritual, organismo energético, de natureza semi-material (composto de energias espirituais e materiais, elo de ligação entre o corpo físico e a alma) pode ser destruído por abusos ou acidentes, como acontece com o corpo orgânico. É também abandonado pelo Espírito que vai encarnar-se em outro planeta, onde terá de revestir-se de perispírito apropriado às condições do novo mundo. Mas em nenhum desses casos o Espírito morre, pois é independente do seu corpo espiritual como o era do corpo material. Ver o tópico a respeito no O Livro dos Espíritos. (N. do Rev.)

 

[68] Além da comprovação racional e do testemunho quase unânime dos homens existem hoje as comprovações científicas, obtidas pelos métodos de investigação objetiva. A alma tornou-se objeto de experimentações em laboratório: primeiramente na Psicologia Experimental, depois na Psicologia Profunda e afinal na Parapsicologia. Antes desta, porém, houve a série de importantes pesquisas da Metapsíquica. Além disso, a própria evolução das Ciências, em todos os setores, e particularmente na Física, já superou o estágio materialista (e portanto superficial) dos conhecimentos da Terra. No momento em que se constata a existência da antimatéria e do antiuniverso (Ver O Universo, de Isaac Asimov, Edições Bloch, Rio, 1969) e em que a reencarnação se transforma em problema de pesquisa científica (Ver Vinte Casos Sugestivos de Reencarnação, de Ian Stevenson, Difusora Cultural, S. Paulo, 1971) é evidente o reconhecimento da verdade espírita. (N. do Rev.)

 

[69] O paralelismo desse desenvolvimento: o intelectual, o moral e o da concepção racional da supervivência resulta da observação histórica e da pesquisa sociológica. Kardec acrescenta uma contribuição importante: a influência dessa concepção na ordem social depende do seu aprimoramento e da sua melhor compreensão através do tempo. (N. do Rev.)

 

[70] A expressão: não apenas um alvo, mas um meio, pode parecer estranha, pois o alvo é evidentemente mais importante que o meio. Kardec refere-se ao fato de, nas religiões antigas, a vida futura ser apresentada dogmaticamente como um fim definitivo para a alma. No Espiritismo, com o princípio da evolução e consequentemente da reencarnação, a vida futura se desdobra em numerosas fases, em sucessivos estágios de encarnação e vida espiritual. Deixa assim de ser um alvo definitivo e passa a ser apenas o meio para se atingir o alvo. Mas o alvo, por sua vez, se engrandece e passa a exercer influência maior sobre os homens e a sociedade. (N. do Rev.)

 

[71] Os três caracteres do indivíduo, referidos por Kardec, correspondem às três dimensões do homem estudadas por Denis de Rougemont em seu famoso ensaio L'Aventure Occidental de l'Homme e também à tríade dialética de Sartre em L'Être et le Néant: o em-si, o para-si e o em-si-para-si. Isso revela perfeita harmonia da interpretação kardeciana com as interpretações mais recentes do homem e suas relações no plano social. As responsabilidades morais em cada uma dessas dimensões são específicas mas também solidárias, implicando os tipos de expiações individuais, familiais ou grupais e sociais. (N. do Rev.)

 

[72] A lei da reencarnação no Espiritismo não é a mesma de outras doutrinas. Há profundas diferenças entre as várias doutrinas reencarnacionistas. Certos críticos mal informados e pouco perspicazes confundem a reencarnação espírita com as de algumas doutrinas da Índia e da Antiguidade, inclusive com a Metempsicose dos egípcios e dos pitagóricos. Kardec não tirou essa lei de nenhuma doutrina ou tradição espiritualista. Foram os Espíritos Superiores que lhe revelaram e ele a confirmou através de pesquisas e observações. Das concepções antigas, a que mais se aproxima da espírita é a dos Druidas, ou seja, dos celtas ou gauleses. Veja-se na Revista Espírita o estudo O Espiritismo Entre os Druidas (Revista de Abril de 1858) e consulte-se também o livro de Léon Denis O Gênio Celta e o Mundo Invisível. (N. do Rev.)

 

[73] A sede de justiça é inata no Espírito, corresponde às exigências da consciência de que trata René Hubert em Esquisse d'une Philosophie de l'Esprit (Pedagogie Générale, III Parte). Nas fases inferiores da evolução o Espírito encarnado, não sabendo precisamente o que deseja nem como consegui-lo, apela para a revolta e a violência. Com isso comete injustiças e complica o seu futuro ao invés de melhorá-lo. O Espiritismo vem esclarecer esse problema e indicar o caminho certo para a sua solução: o da transformação moral do homem e da sociedade. Esse o grande trabalho do Espiritismo em nosso mundo. Os problemas sociais, na essência, são problemas morais. Querer criar uma ordem moral, e portanto de verdadeira justiça, através de violências e injustiças é um contra-senso. A transformação social da Terra só pode alicerçar-se e realizar-se na transformação moral do homem, pela qual trabalha o Espiritismo. (N. do Rev.)

 

[74] Não é o Espiritismo como organização, como instituição humana que vai transformar o mundo. Sua ação é indireta: ele age na consciência dos homens, esclarecendo-os e orientando-os. Por isso Kardec acentua que ele "... só teria a perder ao se transformar em poder temporal". Neste trabalho, como se vê, o problema social do Espiritismo é colocado por Kardec de maneira clara e precisa. Toda tentativa de institucionalização social, política ou religiosa do Espiritismo em esquema fechado e rígido atenta contra a doutrina e sua finalidade. (N. do Rev.)

 

[75] O problema da reencarnação foi colocado por Kardec, desde o início, em termos científicos. Por isso ele assinala nos trechos acima que além da experimentação propriamente dita (por ele largamente realizada) dispomos da indução, o processo lógico de atingir a causa através dos efeitos. A indução é também método científico amplamente usado, como se vê nos exemplos dados acima. Curioso que os cientistas considerem válidas as suas induções no campo das pesquisas físicas (e até mesmo psíquicas, no campo das ciências psicológicas) e neguem essa validade na pesquisa espírita. Mas hoje as coisas estão mudadas e os cientistas de mente arejada já enfrentam o problema espírita. Mas, de outro lado, desenvolve-se hoje a tendência antievolucionista. Substitui-se a palavra evolução por mudança. A última guerra mundial e suas consequências levaram a essa dúvida. O Espiritismo, porém, já preveniu essa dúvida ao afirmar, desde o princípio, que a evolução não se faz em linha reta, mas num processo complexo de avanços e recuos. As crises de crescimento ou de desenvolvimento não negam que esses processos existem. Pelo contrário, servem para provar que as coisas e os seres crescem e se desenvolvem. (N. do Rev.)

 

[76] Desde O Livro dos Espíritos Kardec insiste nessa tese da educação como instrumento básico de transformação do mundo. Felizmente a Educação Espírita já surgiu no Brasil e vem se desenvolvendo de maneira auspiciosa através de uma rede escolar que vai do grau pré-primário ao grau superior de ensino. No final de 1970 (Ano Internacional da Educação decretado pela UNESCO, órgão cultural da ONU, e Ano Nacional da Educação decretado pelo Governo Brasileiro) foi lançada em São Paulo a revista Educação Espírita, primeira revista pedagógica do Espiritismo no mundo. Lançamento da Edicel, essa publicação especializada abriu uma nova frente na batalha da cultura, iniciando a elaboração da Pedagogia Espírita. Dessa elaboração depende o que Kardec prevê para o futuro: uma geração inteira educada e fortalecida pelos princípios racionais do Espiritismo. (N. do Rev.)

 

[77] A lógica e a perfeição formal e conceptual deste trabalho de Kardec exigem estudo atencioso para a sua completa compreensão. Como vemos no trecho acima, confirmando tópicos da codificação e deste mesmo volume, os espíritas são os trabalhadores do alicerce da nova ordem social. Possuindo o esclarecimento doutrinário, não podem iludir-se com teorias e movimentos políticos e sociais de superfície, com ideologias que ignoram a essência da estrutura social, ou seja a condição evolutiva do homem, do espírito humano em seu estágio atual. Impossível criar um mundo de cultura com uma população obtusa e analfabeta, sem antes educá-la. Assim também é impossível estabelecer na Terra o reino da justiça com uma humanidade egoísta, orgulhosa e escravizada aos preconceitos da ignorância, sem antes esclarecê-la. (N. do Rev.)

 

[78] Esse cálculo de Kardec é um recurso didático para tornar bem claro o problema e evidenciar a influência do meio sobre os indivíduos. Graças a esta influência a moralização progressiva irá dominando o meio social e criando condições para um mundo melhor. (N. do Rev.)

 

[79] Os críticos de Kardec, que geralmente o acusam de misticismo, ingenuidade, alienação — sem jamais o haverem lido e muito menos estudado — ficariam surpresos se acaso se dessem ao trabalho de ler um ensaio como este, em que os problemas sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais da Humanidade são expostos numa síntese precisa, resultado de uma análise objetiva da realidade existencial. O mesmo se daria com a leitura do ensaio anterior sobre a trilogia liberdade, igualdade e fraternidade. A tese das aristocracias, como se vê, restabelece o sentido etimológico do termo colocando o problema em sua exata perspectiva histórica e social. O império da aristocracia da inteligência é inegável na era tecnológica, mas é também evidente o clamor geral contra a falta de moralidade em nosso tempo. Esse clamor, que em grande parte se traduz na reivindicação da justiça social, confirma a previsão de Kardec sobre o advento inevitável da futura aristocracia intelecto-moral. Leia-se, a propósito, O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização de Humberto Mariotti. (N. do Rev.)

 

[80] Desde 1857 o Espiritismo já havia comprovado, através de métodos científicos, a realidade da telepatia e sua importante função nas relações humanas. A prova aí está, nessa referência de Kardec. Somente em meados deste século a Ciência fez a mesma comprovação. — É nosso o grifo do trecho acima, para chamar a atenção do leitor em virtude de sua significação doutrinária. (N. do Rev.)

 

[81] O grifo é nosso. Como se vê, Kardec tinha plena consciência do cumprimento da sua missão. Os livros que deixou, inclusive este volume de trabalhos que não havia publicado, constituem a base sólida, o fundamento inabalável da Doutrina Espírita, exigindo estudo constante dos adeptos. (N. do Rev.)

 

[82] O grifo é nosso. Esta afirmação de Kardec é comprovada histórica e textualmente. Todos os princípios espíritas resultam da experiência. Daí a natureza científica da Doutrina. Richet, o fisiologista francês, Prêmio Nobel de 1913, em seu Tratado de Metapsíquica reconhece esse fato e louva Kardec por isso. (N. do Rev.)

 

[83] O Brasil é exemplo disso. Os primeiros núcleos espíritas surgiram em Salvador, na Bahia, e no Rio de Janeiro, formados por intelectuais. Porque o Espiritismo é uma doutrina, exige estudos e seus livros fundamentais vinham da França, escritos em francês. Os que contestam este fato o fazem por ignorância, por confundirem o Espiritismo com formas populares de sincretismo religioso, como a Macumba, a Umbanda etc. O grifo é nosso. (N. do Rev.)

· Adepto da doutrina social de Charles Fourier, (1772-1837), sociólogo francês, fundador da escola falansteriana. (N. T.)

·· Seguidor da doutrina socialista do Conde de Saint-Simon, (1700-1825). (N. T.)

··· O grifo é nosso. (N. do Rev.)

 

· Dizeres constantes da primeira edição desta obra.

 

[84] Tupia é a vernaculização do francês toupie; significa pião, pitorra, carapeta.

A forma tupia é já conhecida de alguns autores em língua portuguesa. Talvez Allan Kardec tenha dado o nome de tupia à cesta por analogia com o movimento de rotação dos piões — movimento esse que a cesta naturalmente fazia — e faz — quando debaixo da ação de Espíritos.

A tupia, em marcenaria, é — segundo um técnico escolar — uma máquina, com mais ou menos um metro de quadro, para moldurar.

Os espíritas em língua portuguesa nunca falam em tupia, mas sempre em cesta. Não há razão plausível para a preferência. O desconhecimento da forma tupia se deve naturalmente aos primeiros tradutores das obras de Kardec, os quais preferiram cesta à tupia vernaculizada. Nota do tradutor.

 

[85] O casamento das meninas Baudin pôs termo à grande missão mediúnica que elas deviam desempenhar na codificação da Doutrina Espírita. Deve-se a elas todo o trabalho, longo e exaustivo, de manter os diálogos escritos entre Kardec e os Espíritos. (N. do Rev.)

 

[86] O texto francês diz: Pour toi, je m'appellerai La Verité... O artigo definido la não aparece nas nossas traduções e por esse motivo damos aqui a frase original. (N. do Rev.)

[87] Neste trecho o texto francês elimina o artigo. (N. do Rev.)

 

[88] Volta o artigo la na frase ditada pelo Espírito. Esse artigo indicava que era a própria verdade que se manifestava por ele. Mais tarde virá a ligação do nome com o texto evangélico. (N. do Rev.)

 

[89] Mensagem tipicamente profética, simbólica e alusiva a acontecimentos distantes, mas de sentido profundo. O Sr. M. representava os revoltados que lutam por subversões imediatas. Kardec era o obreiro paciente que preparava os alicerces morais e espirituais de um novo mundo. (N. de Rev.)

 

[90] A chamada Guerra da Itália, entre o Piemonte e a França, de um lado, os Austríacos de outro (1859-1860), foi a primeira centelha prevista pelo Espírito a 12 de maio de 1856. Numerosas guerras parciais eclodiram a seguir, num verdadeiro encadeamento de causas e efeitos ou interligações históricas, durante um período de 56 anos, até a deflagração da I Guerra Mundial (1914-1918) chamada Grande Guerra, e depois num período de 21 anos até a II Guerra Mundial (1939-1945). Nesse segundo intervalo ocorreram as convulsões sociais da Rússia, abrangendo quase todo o mundo eslavo e repercutindo em todo o Globo, verificando-se a implantação do Fascismo na Itália e do Nazismo na Alemanha. Nesse caso também a primeira centelha partiu da Itália, pois Mussolini serviu de modelo a Hitler. Houve ainda a Guerra Civil Espanhola, além de outras catástrofes guerreiras que seria longo citar. Depois de 1945 o velho mundo desmoronou, as instituições decrépitas mergulharam em vagas de sangue. Uma nova era se iniciou, mas flagelos de toda espécie devastam as nações, particularmente os de ordem moral a que alude a comunicação seguinte. Como se vê neste ligeiro apanhado, as previsões dessa breve comunicação mediúnica abrangiam mais de um século de transformações mundiais que continuam aceleradamente em nossos dias. (N. do Rev.)

[91] Vemos aqui a confirmação do que assinalamos na nota da página anterior. Nada aconteceu bruscamente, mas através dos anos e dos acontecimentos parciais, guerras locais e revoluções sociais que precederam as grandes conflagrações. O grifo é nosso. (N. do Rev.)

 

[92] A transformação atual da Terra não é física, mas essencialmente moral. O mundo se transforma para atingir um plano mais elevado. Não são os elementos naturais, mas os homens os agentes dos grandes cataclismos. (N. do Rev.)

[93] Kardec entendia, como se vê no O Livro dos Médiuns, que a evocação direta de um Espírito evitava que qualquer entidade desejosa de manifestar-se utilizasse o médium. O Espírito orientador, que no caso era Hahnemann (o criador da Homeopatia) confirma a opinião de Kardec mas lembra a lei de afinidade ao dizer: ...nesse caso o médium ajuda o Espírito..." Vemos na nota explicativa de Kardec que o médium e Aristo, o Espírito orgulhoso, realmente acabaram mal. Este episódio, se bem compreendido pelos leitores, serviria de explicação e também de prevenção para milhares de casos semelhantes que hoje, mais do que nunca, se verificam por toda parte. É bom nunca se esquecer do aviso de Hahnemann: a verdade não pode ser interpretada pela mentira. O método de evocação de Kardec, o melhor para o caso de pesquisas, derivou com Léon Denis para o de livre manifestação, hoje dominante nas práticas espíritas. Denis, discípulo e sucessor de Kardec, já se apoiava nas pesquisas do mestre e podia, por isso mesmo, dar mais liberdade à prática mediúnica. (N. do Rev.)

 

[94] Note-se o absoluto respeito dos Espíritos superiores pelo livre-arbítrio individual. Mesmo no caso das grandes missões, cada Espírito encarnado pode cumpri-las ou não. (N. do Rev.)

 

[95] "Vários recuaram..." E continuam recuando. Mas Kardec venceu e deixou-nos sua obra monumental, que é o alicerce de um novo mundo, do mundo da regeneração que será a Terra do futuro. (N. do Rev.)

[96] Esta é uma prece histórica, para sempre inscrita na História Espiritual da Humanidade. Assinala o momento em que um grande Espírito confirma, encarnado na Terra, e com a mais perfeita humildade, o compromisso assumido no Mundo Espiritual. (N. do Rev.)

 

[97] Note-se a diferença: os Espíritos Superiores advertem contra as dificuldades e os perigos, e só os inferiores prometem facilidades e glórias àqueles que desejam iludir. (N. do Rev.)

[98] Confirmação de Kardec à nota nº 90, em que mostramos que as previsões abrangiam mais de um século das transformações em causa. (N. do Rev.)

 

[99] Veja-se o engano dos que sustentam a tese de que O Livro dos Espíritos é obra acabada e independente, nada tendo a ver com os demais volumes da Codificação. O próprio Kardec nos mostra que os Espíritos o advertiam, já em junho de 1856, muito antes da publicação da obra básica (só publicada a 18 de abril de 1857) de que essa obra teria de se desdobrar em várias outras. E antecipavam ainda o aparecimento de O Evangelho Segundo o Espiritismo, posterior a O Livro dos Médiuns, considerado como o coroamento do edifício e contendo os capítulos mais espinhosos, pois que afetavam o campo religioso. Confira-se o que dizemos aqui com a comunicação, publicada mais adiante (págs. 251) com o título de Imitação do Evangelho, datada de 9 de Agosto de 1863, em Segur, completada pela de Paris, datada de 14 de setembro de 1863. Como se vê, a Codificação é uma obra só, lançada em volumes sucessivos e de acordo com o plano dos Espíritos, de que o próprio Kardec não tinha conhecimento. (N. do Rev.)

 

[100] Esta atitude positiva de Kardec se confirma em toda a sua obra e em toda a sua vida. E dizer que até hoje o acusam de místico, não no bom mas no mau sentido! Leia-se, a propósito: Vida e Obra de Allan Kardec, de André Moreil. (N. do Rev.)

 

[101] Estas considerações sobre a Quiromancia provam mais uma vez o espírito positivo desse homem que tinha a paixão da pesquisa, segundo Richet reconheceu. Sua explicação do fenômeno da predição pela leitura das mãos é a que hoje sustenta a Parapsicologia. (N. do Rev.)

[102] O problema da interpretação ou tradução consciente da percepção inconsciente é colocado nesta passagem nos termos exatos da conclusão parapsicológica atual. Kardec antecipou, há mais de um século, a posição a que chegariam os cientistas de hoje. (N. do Rev.)

 

[103] Z. ou Zéfiro era protetor da família Baudin e estava naturalmente ligado ao trabalho de Kardec. Como se vê pela carta acima e pela nota do codificador, devia pertencer à falange do Espírito de Verdade. As meninas Baudin tiveram a missão mediúnica de receber O Livro dos Espíritos. Bastaria para isso mostrar que Z. estava encarregado de trabalho bastante sério. Mas daí a confundi-lo com o próprio Espírito de Verdade, como pretendem alguns, vai grande distância. O fato de haver ele desaparecido com a dispersão da família Baudin mostra o contrário. O Espírito de Verdade presidiu a todo o trabalho de Kardec, permanecendo com ele até o final de sua missão, como se vê pelas suas comunicações e pelas notas do codificador neste livro. Quanto à nova encarnação de Kardec, embora existam muitos candidatos ao posto em nossos dias, é evidente que é ainda muito cedo. Zéfiro anunciou que ele voltaria para completar o que havia começado. Mas a verdade é que só agora a obra de Kardec começa a ser estudada a sério e tem ainda muito a nos dar, para depois, só depois, poder ser completada. (N. do Rev.)

 

[104] A coleção total da Revista Espírita, em doze volumes, hoje publicada em português pela Edicel e pela IDE, revela-nos o cuidado com que Kardec seguiu essas instruções obtendo o êxito previsto. Essa coleção é indispensável aos que desejam realmente estudar o Espiritismo. (N. do Rev.)

[105] Kardec redigiu sozinho a Revista Espírita (que é o jornal acima referido) desde 1º de janeiro de 1858 até abril de 1869. Ao desencarnar, a 31 de março desse ano, já deixara preparado o número do mês seguinte. Foi um trabalho exaustivo, ao qual se dedicou com verdadeira abnegação. (N. do Rev.)

 

[106] Esta breve informação, confirmada historicamente e documentada pela Revista Espírita, não tem apenas importância social. Vale muito mais no plano cultural, como prova de dois fatos que os adversários gratuitos do Espiritismo (e principalmente os interesseiros) fazem questão de ignorar: 1º) O Espiritismo surgiu, no centro da cultura mundial dos meados do século passado, como um fato cultural que despertou a atenção e provocou o interesse das altas rodas e da intelectualidade em todos os continentes; 2º) Kardec se tornou uma das personalidades em maior evidência, procurada e consultada por cabeças coroadas, altas figuras da administração mundial, sábios e artistas de todos os países. — Apesar disso, Kardec jamais se serviu dessas considerações para fazer valer tamanho prestígio em seu benefício pessoal. Tudo o que fez foi esclarecer e orientar os que o procuravam a respeito da nova ciência que fundava: a Ciência do Espírito, que vinha desdobrar o Conhecimento, auxiliar as Ciências da Matéria e auxiliar a Filosofia e a Religião a repelirem, no campo da razão e da pesquisa, as investidas cada vez mais violentas do Materialismo e do Niilismo. (N. do Rev.)

[107] Como em todas as associações, a heterogeneidade do meio facilitou a influenciação de Espíritos perturbadores. Mas apesar disso a obra da Sociedade foi grandiosa. Com os maiores sacrifícios pessoais, Kardec conseguiu dar-lhe orientação eficiente, como se vê pela Revista Espírita. (N. do Rev.)

 

[108] Kardec ainda não percebera a extensão das previsões, que demandariam muito mais tempo, como vimos na nota nº 104. Mas calculou bem o tempo de que necessitava, pois apressou o trabalho e o concluiu em princípios de 1869, quando desencarnou. (N. do Rev.)

 

[109] Nova alusão à primeira centelha que deflagraria as grandes transformações mundiais: a Guerra da Itália, a que nos referimos na nota nº 90. (N. do Rev.)

[110] Difícil colocar de maneira mais expressiva a importância da missão de Kardec. A mensagem não vem assinada, mas os seus termos e a sua essência revelam a grandeza intelectual e moral do autor. Note-se o jogo de imagens com a sombra da missão e a força de expressão que dele resulta. (N. do Rev.)

 

[111] Já vimos, como na previsão das transformações do mundo, que os Espíritos falam do tempo em medida diferente da nossa. Kardec fez seus cálculos em termos humanos. Mas é evidente que a sua volta seria inútil em prazo tão curto. O país do mundo em que o Espiritismo se desenvolveu mais foi o Brasil, e na verdade só agora começamos a conhecer a sua obra. De que adiantaria vir ele aumentá-la? Correrá ainda muito tempo antes do seu retorno. (N. do Rev.)

 

· É grande a curiosidade no meio espirítico para saber quem foi esse famigerado bispo de Barcelona. Vamos satisfazer à natural curiosidade dos estimáveis Confrades: o bispo de Barcelona que, desrespeitando os comezinhos princípios democráticos, apregoados pela própria Igreja e tão bem caracterizados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, foi DON ANTÔNIO PALAÚ Y TERMENS, desencarnado no dia 8 de julho de 1862. (Nota do tradutor)

 

· A Livraria Espírita as conserva sempre. (N. de Kardec)

 

[112] O sucessor natural de Kardec foi Léon Denis, o grande divulgador, conferencista que percorreu a Europa e consolidou a obra do mestre. Leia-se Vida e Obra de Léon Denis, de Gaston Luce, lançado em português pela Edicel na coleção Vidas Missionárias. Homem de província, vivendo em Tours, ninguém pensava no seu nome para a sucessão de Kardec. E esta se verificou naturalmente, por força do mérito e não por qualquer espécie de escolha em assembleias ou coisa semelhante. (N. do Rev.)

 

[113] Esta mensagem mostra sem rebuços, numa hora histórica do Espiritismo, que a natureza da doutrina é essencialmente religiosa. Por outro lado, reafirma a ligação do Espiritismo com o Cristianismo, já revelada por Kardec desde O Livro dos Espíritos. Veja-se com atenção o pequeno trecho que grifamos acima. (N. do Rev.)

[114] O texto francês diz: l'Esprit de Verité. É a primeira vez nas notas de Kardec que o nome desse Espírito se define de perfeito acordo com a tradição evangélica. Chegara a hora. (N. do Rev.)

 

[115] A evolução se realiza através de uma engrenagem de ações e reações combinadas. A obra de Renan, não somente nesse livro, representou um esforço paralelo ao Espiritismo, no campo religioso, contribuindo poderosamente para arejar o clima mental da época. (N. do Rev.)

 

[116] Mensagem pessoal ao Dr. Golovine, mas que interessou a Kardec pelas referências ao Espiritismo e às transformações do mundo. Vê-se na referência à Alemanha uma antecipação da doutrina do espaço vital de Hitler, que se completa com a menção dos espaços vazios da Rússia, onde o problema das nacionalidades realmente iria ser um motivo de lutas e dificuldades internas. (N. do Rev.)

 

[117] O Dr. Demeure havia sido, como médico, ativo colaborador de Kardec no trato dos casos de mediunidade curadora. Na Revista Espírita encontram-se várias notícias a seu respeito e trabalhos seus enviados ao codificador. Como se vê, os companheiros do mestre continuavam, depois da morte, a ajudá-lo com a mesma dedicação. (N. do Rev.)

 

[118] Grifamos este quadro da modificação da Terra, que se opera dia a dia aos nossos olhos, para que o leitor possa compará-lo mais facilmente com as falsas profecias de médiuns e Espíritos mistificadores. Há mais de cem anos já Kardec era advertido de que tudo se passaria de maneira natural. (N. do Rev.)

 

[119] As lutas terríveis mencionadas acima abalaram e enodoaram o século XX, que não é somente das luzes, mas também das explosões assassinas e da maldade sem freios. Os casos de loucura aumentam dia a dia, exigindo a multiplicação de sanatórios e trabalhos espíritas de desobsessão. (N. do Rev.)

 

[120] Muitos lamentam esse processo de uniformização, hoje bem mais visível que no tempo de Kardec. Mas não se trata de padronização e sim de superação de características exteriores. A individualização das criaturas e dos povos permanece e melhor se define em seus atributos essenciais. É ela que produz a harmonia do conjunto e prepara a grande fraternidade da nova era. (N. do Rev.)

 

[121] A influência do Espiritismo nas artes é hoje evidente. Ele tem influído inclusive nas artes mais recentes, como o cinema e a televisão. Essa influência está num processo de rápido crescimento e universalização. O grifo é nosso. (N. do Rev.)

· Teredem, gênero de molusco acéfalo que vive em madeiras submergidas; esse molusco é popularmente conhecido como gusano de naus. (Nota do tradutor)

 

[122] No original: ...il s'eloigne de tous les partis pris, il s'occupe de ceux qu'il laisse en chemin. O grupo iniciador, com Kardec à frente, era o núcleo do movimento espírita, o grupo pensante que sabia discernir e se preocupava com a orientação geral. (N. do Rev.)

 

[123] Esta e a anterior comunicação do Dr. Demeure mostram o carinho com que o antigo companheiro de Kardec o amparou do outro lado. Note-se também a constante preocupação de Kardec com a aproximação de fim dos seus dias. Faltava pouco mais de um ano para a sua desencarnação. (N. do Rev.)

 

[124] O grifo é nosso. Note-se o absurdo das falsas hipóteses de que Kardec ficou sozinho em seu trabalho depois da publicação de O Livro dos Espíritos. Como vemos, o Espírito da Verdade o orientou até o fim, segundo havia prometido, chegando mesmo a minúcias no tocante à própria impressão e venda dos livros. (N. do Rev.)

[125] De apenas três meses disporia Kardec no ano novo de 1869, pois desencarnou a 31 de março. Vê-se que os Espíritos, sem lhe dizer o que aconteceria, o levavam a concluir os seus trabalhos e ficar em condições de partir. (N. do Rev.)

 

[126] A preocupação de Kardec com a organização do movimento espírita se concretiza hoje através de várias instituições. No Brasil temos o chamado Movimento de Unificação, no continente a Confederação Espírita Panamericana e no mundo a Federação Internacional de Espiritismo. Esses organismos e vários outros de âmbitos nacionais vão aos poucos se entrosando numa grande organização mundial. (N. do Rev.)

 

[127] Veja-se o projeto de criação das Escolas de Espiritismo, organismos de ensino de tipo universitário, aprovado pelo IV Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas realizado em Curitiba, Paraná, em 1968, e publicado pela revista Educação Espírita, nº 1, de dezembro de 1970. (N. do Rev.)

 

· Para maiores esclarecimentos da questão das instituições espíritas ver a Revista Espírita de julho de 1866, pág. 193. (Nota de Kardec)

 

[128] O estudioso da Doutrina deve examinar atentamente esse trecho, pois a afirmação necessária de Kardec sobre a natureza evolutiva do Espiritismo tem sido aproveitada para confusões. O Espiritismo só pode evoluir de maneira positiva, acompanhando a evolução dos conhecimentos e nunca aceitando ideias utópicas. Na verdade, ele está balizando o progresso atual. (N. do Rev.)

 

· O grifo é nosso. (N. do Rev.)

[129] Kardec reafirma, neste trabalho, todas as posições fundamentais da Doutrina Espírita que a caracterizaram desde o início: uma doutrina aberta, estruturada sobre a tríade científica da observação, da experimentação e da pesquisa, avessa ao dogmatismo e ao misticismo e portanto à estagnação, confiante na capacidade humana sempre crescente de conhecer e por isso mesmo infensa também ao dogmatismo materialista. De sonda na mão e consultando os ventos, ou seja, pela investigação humana e a consulta aos Espíritos (pneuma em grego e ruach em hebraico, ambos significando sopro) o Espiritismo avança com a segurança de um navegante experimentado. (N. do Rev.)

 

· O grifo é nosso. (N. do Rev.)

 

· O grifo é nosso. (N. do Rev.)

 

[130] O grifo é nosso. Cada instituição espírita é uma entidade independente, responsável pelo seu trabalho. Federações, Uniões, Alianças etc. nada mais são do que pontos de unificação fraterna, de colaboração mútua. Autoritarismo e sujeição administrativa são incompatíveis com os princípios de liberdade e responsabilidade individual do Espiritismo. (N. do Rev.)

 

[131] O credo proposto nunca foi adotado. O Espiritismo é uma convicção pessoal, uma mundividência e portanto uma tomada de consciência que independe e rejeita profissões de fé. A Constituição do Espiritismo é uma prova eloquente do zelo de Kardec pela Doutrina, mas não passa de um documento histórico no tocante à institucionalização da Doutrina. Fora das pretensões institucionais contém, como vimos, trechos valiosos e elevados ensinamentos, formulados com a clareza e a lógica que sempre foram a marca de Kardec. (N. do Rev.)

 

[132] Como se vê, o texto de Kardec aqui apresentado foi incluído pelos organizadores de Obras Póstumas neste local. É um documento histórico de elevada importância e que esclarece problemas suscitados pelos adversários a respeito do codificador. Uma prova eloquente do caráter e da conduta ilibada do homem que enfrentou o mundo para lhe oferecer a graça do Espiritismo. (N. do Rev.)

 

· Naquela época aquelas somas elevavam-se a 14.100 francos, cujo emprego, em proveito exclusivo da Doutrina, foi justificado pela prestação de contas.

 

[133] A palavra Espiritismo foi criada por Kardec para designar a doutrina por ele codificada. Qualquer outro uso que lhe deem é abusivo. Os sociólogos passaram a usá-la para designar crenças, religiões e práticas mediúnicas primitivas e os adversários do Espiritismo serviram-se disso para confundir a opinião pública. (N. do Rev.)

· De tudo o que precede se compreende facilmente que teria sido impossível e prematura estabelecer, no princípio, a constituição. Se a Doutrina Espírita tivesse sido formada em todas as suas peças como qualquer concepção pessoal, seria completa, desde o primeiro dia, e então nada mais simples do que constitui-la logo; mas como foi feita gradualmente, por aquisições sucessivas, a constituição teria ligado realmente todos os amantes de novidades; seria porém abandonada pelos que não aceitassem todas as consequências. Dirão talvez: não será isto criar cisão entre os objetos? Estabelecer dois campos não é enfraquecer a falange?

Todos os que se dizem espíritas não pensam uniformemente sobre todos os pontos; a divisão existe pois de fato e é muito mais prejudicial, porque pode acontecer que não saibamos se, dirigindo-nos a um, que se intitula espírita, encontraremos um aliado ou um antagonista. O que faz a força é o inverso; a união franca não poderia existir entre pessoas interessadas, moral ou materialmente, em seguir diversos caminhos, que não tendem ao mesmo fim. Dez homens, sinceramente ligados por um pensamento comum, são mais fortes do que cem, que não se entendem. Neste caso a mescla de ideias divergentes tira força da coesão entre as que querem juntos, exatamente como um líquido que, infiltrando-se num corpo, perturba a agregação das moléculas.

[134] Desde o tempo de Kardec até hoje não cessam de surgir novos apóstolos que fundam ramificações do Espiritismo com base em suas opiniões e ambições pessoais. Trata-se de pessoas que na verdade não conhecem a doutrina e nem estão à altura de compreender a obra de Kardec. Outras pretendem completar essas obras com enxertos e adendos impróprios ou ridículos. Tudo isso decorre do estágio evolutivo ainda inferior da maioria da Humanidade. As criaturas dotadas de bom senso e humildade, capazes de compreender a expressão: Terceira Revelação, não se deixarão iludir por essas bolhas de sabão e não se desviarão do caminho. (N. do Rev.)

 

[135] A elaboração da Pedagogia Espírita, em que ora se empenha o grupo da revista Educação Espírita, formado de professores espíritas de todo o país, é o passo mais decisivo para a verdadeira transformação social. A educação é a alavanca que elevará a Terra. (N. do Rev.)

 

[136] O princípio espírita da tolerância, como se vê neste trecho, decorre de uma compreensão ampla do problema da evolução humana. A fé cega do passado teve a sua razão de ser e produziu os seus frutos de acordo com o seu tempo. Não podemos maldizê-la, mas apenas mostrar que para hoje ela não serve mais, pois estamos na época da razão. O grifo é nosso. (N. do Rev.)

 

· O grifo é nosso. (N. do Rev.)

[137] Os que ainda hoje rejeitam os estudos e as pesquisas de Kardec, que provaram a supervivência espiritual do homem, estão apegados a preconceitos ou atrasados culturalmente. As pesquisas atuais no campo do paranormal comprovam inteiramente a legitimidade dos princípios espíritas. (N. do Rev.)

 

[138] F.S.I. é a sigla da Féderation Spirite Internationale e a frase alude aos seus delegados. (N. do Rev.)

[139] A obra revisionista não saiu, mas León Denis publicou o seu primeiro livro, intitulado Depois da Morte, para atender aos membros do Congresso. O livro, que teve grande repercussão, inclusive na imprensa leiga, recolocou o Espiritismo em seu lugar, demonstrando que seus princípios continuavam inteiramente válidos. A pesquisa da verdade, no período entre a morte de Kardec e a instalação do Congresso (1869-1890) nada havia descoberto que pudesse abalar um só dos princípios espíritas. Hoje, cento e tantos anos depois, a situação é a mesma. Os revisionistas ainda se manifestam, mas sempre revelando desconhecer Kardec ou interpretá-lo mal. As revisões incessantes e indispensáveis se realizam no campo das Ciências, em favor dos conceitos e princípios espíritas. — Veja-se O Espiritismo perante a Ciência de nossos Dias, do Prof. Jethro Vaz de Toledo; O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, do Prof. Humberto Mariotti; e Parapsicologia Hoje e Amanhã, do Prof. J. Herculano Pires. (N. do Rev.)