A Gênese
Allan Kardec
Tradução Victor Tollendal Pacheco
Apresentação e notas de J. Herculano Pires
LAKE — Livraria Allan Kardec Editora
A Revelação do Mundo
O Mundo vem se revelando aos homens lentamente, através dos milênios em que as gerações se sucedem. Mas a verdade é que, somente neste século, graças a um extraordinário aceleramento das Ciências, a sua realidade começa a desvendar-se aos nossos olhos. Quando o homem apareceu na Terra o Mundo já era velho de muitos milhões de anos. Esse animal curioso, dotado de inteligência indagadora, começou por conhecer apenas a epiderme do mundo, assim mesmo em reduzida extensão. Vivendo e se multiplicando entre mistérios e assombros, as gerações humanas formaram uma imagem do Mundo que hoje nos aparece como um quadro fantástico de pintor paranormal. Revelações simbólicas foram feitas aos homens sobre as origens do mundo, sua natureza e sua finalidade. As mais complexas e significativas permaneceram nas tradições dos povos e nas suas Escrituras Sagradas. Entre elas se destaca a do livro bíblico Gênese, atribuído a Moisés e adotado nas igrejas judaicas e cristãs como verdade indiscutível. De outro lado, graças à espantosa capacidade intuitiva dos gregos, surgiram as primeiras explicações humanas e racionais das origens. Com Leucipo e Demócrito, por exemplo, surgiu em Atenas a ideia do átomo, que seria uma partícula infinitesimal e indivisível, da qual todas as coisas seriam feitas. À ideia judaica de que Deus tirara o Mundo do nada apenas com sua voz, com o seu verbo, os gregos opunham a ideia do átomo, da água, do fogo, do ar, e a notável concepção matemática de Pitágoras, segundo a qual Deus era o número Um, que pairava solitário no Inefável e, de repente, por um estremecimento, produzira o número três e desencadeara a década, a seqüência de números de um a dez formando o Mundo.
Essas ideias conflitivas reduziram-se, com o avanço cultural, a duas concepções opostas: a religiosa, considerada definitiva e a única verdadeira, e a científica, baseada em hipóteses que exigiam longas pesquisas para a sua comprovação. No século XIX o problema continuava num impasse. A Igreja sustentava a verdade da revelação feita a Moisés pelo próprio Deus, e as Ciências se empenhavam nas investigações possíveis da verdade oculta. A maioria das pessoas cultas rejeitava a explicação bíblica ou a tomava apenas como simbólica, aguardando uma futura explicação dos símbolos. A massa popular flutuava entre uma posição e outra, tendendo cada vez mais para a descrença em Deus e a aceitação das ideias materialistas. Nesse tempo desencadearam-se as manifestações espíritas espontâneas, nos Estados Unidos e na Europa, chamando a atenção dos cientistas para esses fatos estranhos. O professor Denizard Rivail, bacharel em ciência e pedagogo, discípulo de Pestalozzi, diretor de estudos da Universidade de França, na qual suas obras pedagógicas haviam sido adotadas, interessou-se pelo assunto, por insistência de amigos, e acabou se empolgando com o assunto. Dedicou-se primeiramente à observação dos fenômenos, sobre os quais formulou várias hipóteses materialistas. Verificou depois, nas famosas experiências com as meninas Boudin, uma de 14 e outra de 16 anos, que era inegável a intervenção de uma inteligência estranha ao ambiente. Entregou-se então a sérias pesquisas científicas e conseguiu demonstrar que a inteligência produtora dos fenômenos era humana. A continuidade das pesquisas provou que os manifestantes eram Espíritos de pessoas falecidas. Fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, para dar regularidade e maior precisão às pesquisas. Em 1857, lançou O Livro dos Espíritos, obra com a qual fundava o Espiritismo. Estava iniciada uma fase nova e difícil no campo das Ciências. A posição materialista das Ciências, voltadas para a realidade exclusivamente sensorial, levou-as a rejeitar a Ciência Espírita e condená-la como destituída de bases científicas. Mas Kardec declarou a incompetência das Ciências materialistas para opinar sobre o assunto e prosseguiu nas pesquisas e na divulgação de seus resultados através da Revista Espírita, que fundou para esse fim. Grandes cientistas e renomados escritores, expoentes da cultura francesa, interessaram-se pelos fenômenos e o apoiaram individualmente. Na Sociedade Parisiense, Camille Flammarion, o grande e famoso astrônomo, diretor do Observatório de Jouvisy, que se revelara médium psicógrafo, recebeu numerosas mensagens de Galileu sobre questões de Astronomia. O famoso teatrólogo Victorien Sardou, que não era e nunca fora desenhista, ilustrava com desenhos mediúnicos as informações dos Espíritos sobre os mundos do espaço sideral.
Foi nesse ambiente de entusiasmo pela pesquisa espírita e seus resultados positivos, que o professor Denizard Rivail, já então conhecido pelo pseudônimo de Allan Kardec, resolveu elaborar uma obra sobre a Gênese, a criação da Terra e não o livro bíblico. Não obstante, tratava do livro em comparação com a nova concepção da origem planetária que surgia das pesquisas e da Doutrina Espírita. Em janeiro de 1868 lançava o livro nas livrarias de Paris, levantando celeumas e críticas, mas também colhendo aplausos e louvores. A Gênese foi a obra que encerrou a Codificação do Espiritismo. Um ano depois, Kardec falecia, deixando seu corpo sepultado no Cemitério de Père-Lachaise e retornando ao Mundo Espiritual, que revelara cientificamente aos homens. Seu túmulo, até hoje, é o único do famoso cemitério que se mantém permanentemente coberto de flores, pela devoção de franceses, belgas e pessoas de outros países vizinhos da França. Os seus admiradores recompensam, assim, com as generosas e permanentes ofertas de flores, os espinhos que teve de enfrentar na Terra, como homem pobre e dedicado aos estudos e pesquisas dos fenômenos espíritas. O Espiritismo deu origem às hoje chamadas pesquisas do paranormal. A antiga Parapsicologia alemã, a Ciência Psíquica inglesa, a Metapsíquica de Richet, na própria França, e a Parapsicologia atual nasceram das entranhas da Ciência Espírita e confirmam em nosso século a plena validade dessa Ciência.
A Descoberta do Outro Mundo
Este livro de Kardec — A Gênese — revelou a existência de um outro mundo na Terra. Não se trata de um mundo distante no espaço, mas de um mundo que interpenetra o nosso e com ele se confunde. Constituído por matéria em outra dimensão, não deixa de ser também material e abriga, por assim dizer, a população dos que chamamos mortos. Esses mortos, que estão mais vivos do que nós, comunicam-se conosco e eles mesmos fornecem informações sobre o seu novo habitat. Uma descoberta assombrosa, que a Ciência rejeitou por mais de um século, mas agora reconhece e proclama como real. Todos os fenômenos espíritas estão confirmados pela Parapsicologia atual, referendando as provas anteriores da Metapsíquica e da Ciência inglesa. De 1930 para cá, dois novos referendos da mais alta importância foram dados à Física e à Biofísica, com a descoberta da antimatéria, seguida da descoberta, pelos físicos e biofísicos soviéticos, do chamado corpo-bioplásmico do homem, que sobrevive à morte do corpo físico. A concepção espírita da Gênese, exposta neste livro é, portanto, da mais elevada importância científica. Alegam alguns críticos que este livro está ultrapassado, pois tem mais de cem anos de sua primeira edição e as Ciências evoluíram muito no decurso desse tempo. Outros o criticam por não haver superado os conhecimentos científicos da época. Mas a verdade é que este livro, como veremos, representa um marco histórico no campo científico, abrindo as perspectivas da Ciência para a Era Cósmica. Os dados espíritas dão uma nova dimensão e um novo sentido à concepção da gênese.
Não há nenhuma afirmação dogmática ou exposição de coisas fantásticas nas páginas deste livro. O que há é raciocínio, proposições lógicas induzidas da natureza e coincidência dos fenômenos, hipóteses corajosas que as ciências confirmaram e que já são realidades científicas, explicação de leis físicas, mentais e psíquicas descobertas na pesquisa espírita de fenômenos concretos e uma visão no campo místico dos milagres do fenomenismo paranormal. Essa objetividade do Espiritismo, que não caracteriza apenas a Ciência Espírita propriamente dita, mas também a Filosofia e a Religião Espíritas, reflete-se naturalmente nestas páginas, dando ao leitor uma ideia geral dos seus processos de investigação da realidade em que vivemos.
A Mordida no Real
Tratando de Filosofia, Camus referiu-se à necessidade do filósofo morder o real, para não pairar somente no plano das elaborações mentais. Essa exigência de morder o real, muito antes de Camus nascer, já havia sido aplicada no Espiritismo por Kardec. Logo no início deste livro ele expõe o problema da Revelação Espírita, assinalando que não se trata de uma entidade misteriosa, mas de um processo de investigação. Ninguém pode revelar o que não sabe ou o que não descobriu. Uma revelação deve desvendar os segredos de um mistério para que este se torne um fato. Se a revelação não coincidir com o real, não passa de uma elaboração humana. Se for atribuída a Deus, fica provado que essa atribuição foi gratuita. Kardec propõe a tese de revelação contínua, permanente, lembrando que todas as ciências são processos de revelação dos segredos na Natureza. O Espiritismo se insere nesse processo com uma contribuição tanto mais valiosa, quanto o seu objeto não havia sido tratado por nenhuma outra ciência. Todas as ciências conhecidas até então se aplicam às pesquisas materiais. O problema espiritual ficara a cargo das religiões, que falharam totalmente nesse sentido, nada acrescentando ao conhecimento real. A Ciência Espírita veio suprir essa grave deficiência cultural, mostrando a possibilidade da investigação científica do plano espiritual.
A posição científica de Kardec era irrefutável, mas isso não impediu que a contestassem e até mesmo que a ridicularizassem. A resposta de Kardec foi simples e clara: se há fenômenos espirituais, o Espírito é acessível à pesquisa científica. A realidade dos fenômenos foi completamente comprovada. Os negativistas apelaram então para os sofismas: os fenômenos são materiais, decorrem das funções sensoriais e da imaginação da criatura humana. Kardec mostrou que o fenômeno espiritual fala, não é mudo como os demais, e pode explicar-se a si mesmo, revelando inclusive a identidade do espírito que o produz. Apelaram então para os limites das ciências, que só se aplicam à matéria. Kardec lembrou que os limites da Ciência estão na revelação da realidade total do Universo. Não há limites para a busca do conhecimento, que por isso mesmo não pode limitar-se convencionalmente a determinado plano ou recorte do real. Até hoje se apela para a divisão kantiana do conhecimento, com a qual o filósofo pretendeu mostrar a impossibilidade do homem saltar além do plano sensorial, pois entrava então no absoluto, onde a falta das oposições não permitiria a aplicação do processo dialético. Kardec lembrou que o Absoluto é uma abstração e ninguém possui a prova de que ele seja o que supomos.
Apesar de tudo isso, o Espiritismo, e particularmente a Ciência Espírita, foram considerados ilusórios. Mas o tempo correu e hoje as Ciências integram em seus quadros as pesquisas do paranormal, comprovando objetivamente a existência real do Espírito e toda a grandiosa fenomenologia espírita.
A leitura e o estudo de A Gênese são de importância fundamental para a compreensão do Espiritismo. Neste livro Kardec deixa o campo exclusivamente doutrinário para a faixa de relações da Ciência com as demais Ciências, revelando de maneira prática as contribuições do Espiritismo para o desdobramento da nossa cultura. A aplicação dos dados na pesquisa espírita na solução de numerosos problemas insolúveis das ciências materiais é uma exigência do nosso século. Kardec não se limitou a prever essa necessidade, antecipou-se à evolução cultural do Século XX, sem tentar romper os limites da cultura da sua época. Esse admirável equilíbrio intelectual revela o gênio de Kardec. Os dados espíritas lhe serviram para colocar o problema da origem planetária em termos científicos, sem os exageros do apego às concepções exclusivistas do materialismo. Na explicação dos milagres do Cristo e das predições ele contribuiu para a desmistificação do Cristo e do Cristianismo e revelou, com antecipação de um século, as leis básicas do fenomenismo paranormal. Kardec não acusa as ciências por sua posição materialista. Explica que a pesquisa das leis naturais só poderia começar no plano físico, como o fizeram os fisiólogos gregos, pois é a realidade material a que primeiro toca os nossos sentidos de percepção exterior. Por isso mesmo, e como exigência metodológica, a investigação da realidade espiritual teria de iniciar-se pela investigação das manifestações dessa realidade no plano fenomênico.
Religião e Ciência
O interesse de Kardec por uma explicação espírita da gênese planetária decorre também de uma questão de método. Muita gente se impressiona com o fato de todos os relatos da Gênese, que nos chegaram de eras arcaicas, como o relato bíblico, através de obras orais ou escritas, sejam de natureza religiosa. Tem-se a impressão de que, na verdade, o próprio Criador quis dar aos homens as primeiras notícias do seu feito. Mas isso se explica pelo fato da natureza religiosa do homem lhe haver dado as primeiras concepções do mundo. Ainda hoje, as tribos selvagens do Brasil, como de todo o mundo, mesmo depois de contatos demorados com os civilizados, continuam sustentando suas lendas curiosas sobre a formação do mundo e a criação do homem. A relação do ato criador com as forças telúricas é também constante. O homem sempre nasce da terra ou das águas, de uma fonte misteriosa na mata, ou de uma cachoeira, cujas rochas se mostram fundidas ou furadas pelas águas. Daquelas fendas e daqueles furos, sustentam os indígenas, saíram os homens de todas as raças. É do animismo primitivo, da ligação genésica existente entre a alma do homem e a Natureza que o cerca de mistérios e espantos, que nascem essas concepções. Kardec, que se formara no Instituto de Pestalozzi em Yverdun, na Suíça, em relação constante com a Natureza, conhecia bem esse problema e o experimentara nas sugestões que recebera da Educação Natural de Rousseau, através dos métodos pestalozzianos de ensino. Conhecendo os relatos bíblicos da Gênese em sua formação católica na França, e os reencontrando no ambiente protestante suíço, impregnou-se de um naturalismo autêntico, haurido nas fontes naturais, que orientou os seus trabalhos pedagógicos e deu às suas pesquisas e à sua formulação da Doutrina Espírita uma orientação essencialmente naturalista. Experimentara em si mesmo a necessidade da fusão de religião e ciência, que mais tarde encontraria nas revelações dos Espíritos Superiores e desenvolveria na elaboração dos princípios da Doutrina Espírita. Elaborados os livros fundamentais do edifício doutrinário, Kardec partiu para as aplicações da nova mundividência na cultura do tempo, começando pelos problemas da gênese planetária. Todo o seu trabalho segue uma linha de raciocínio metódico, visando a renovação cultural na base de uma concepção unitária do Conhecimento. O saber é um todo, que vai das experiências primitivas da magia às primeiras formulações religiosas, ao desenvolvimento do pensamento filosófico no despertar da razão, até as pesquisas científicas, o aprimoramento das manifestações estéticas e aos progressos tecnológicos. Nessa visão global da evolução humana, hoje confirmada pela Teoria do Conhecimento, o Espiritismo aparece como a cúpula de gigantesco edifício da Cultura.
Os espíritos superficiais ou sectários, que ainda hoje encaram o Espiritismo como um agregado de antigas superstições, uma falsa doutrina marginalizada no plano cultural, ignoram a verdadeira posição epistemológica do Espiritismo. Colocam-se diante da Doutrina Espírita na mesma atitude negativa e insensata dos gregos e romanos que só viam no Cristianismo uma seita judaica seguida por pescadores ignorantes. Mas com isso revelam a sua incapacidade mental e insuficiência intelectual para compreender a grandeza de uma concepção gestáltica. São aqueles que se apegam à sua vida rotineira, às suas ideias superadas e aos preconceitos de uma era que morreu nas atrocidades e horrores da última conflagração mundial. Quem ler este livro com atenção e espírito livre de preconceitos antiquados, perceberá assustado que Kardec, já em meados do século passado, antecipava uma compreensão do mundo que nos coloca no limiar da Era Cósmica.
Evolução do Espiritismo
Para esses problemas é que os espíritas devem voltar a sua atenção, se quiserem compreender o que Kardec dizia ao referir-se à natureza evolutiva da Doutrina. Não é através de pretensas revelações mediúnicas de espíritos e médiuns invigilantes e vaidosos, nem de percepções de videntes convencidos de suposta investidura missionária, e muito menos de reformas idealizadas por cientistas improvisados, que revelam ignorar o próprio sentido da doutrina, que se fará o progresso do Espiritismo. Esse progresso só será possível depois que os adeptos sensatos consigam compreender a posição do Espiritismo no panorama geral da Cultura. Os adeptos demasiado entusiastas, como advertiu Kardec, são mais perniciosos ao Espiritismo do que os seus adversários. Estão sujeitos a cair facilmente nas armadilhas da sua própria vaidade e desfigurar a doutrina com proposições ridicularizantes. Precisamos acordar para esta desoladora verdade: o Espiritismo é ainda o Grande Desconhecido, até mesmo dos espíritas que pensam havê-lo dominado completamente. Por isso, os espíritas dotados de humildade suficiente para reconhecer a sua incompetência espiritual e intelectual para tanto, servem melhor à doutrina e a preservam das deturpações dos invigilantes. O Espiritismo é o alicerce de uma nova Civilização, a plataforma das futuras conquistas da Humanidade. Precisamos estudá-lo com o respeito devido às obras-primas do saber humano, todas elas sempre orientadas por gênios da cultura, sob a assistência constante dos Espíritos Superiores que velam pela evolução planetária. Quem se julga capaz de reformular uma dessas obras acaba sempre cometendo uma profanação. Tratemos de aprofundar o nosso precário conhecimento espírita e nunca nos atreveremos a profanar a obra genial de Allan Kardec.
À 1ª edição publicada em janeiro de 1868
Esta nova obra constitui um passo à frente, nas consequências e aplicações do Espiritismo. Conforme indica o seu título, ela tem por objeto o estudo de pontos até hoje interpretados de modos divergentes: A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo, em suas relações com as novas leis que decorrem da observação dos fenômenos espíritas.
Dois elementos ou, se o preferem, duas forças regem o universo: o elemento espiritual e o elemento material; da ação simultânea desses dois princípios nascem fenômenos especiais que são naturalmente inexplicáveis, se se faz abstração de um dos dois, da mesma forma que a formação da água seria impossível se fossem abstraídos um de seus dois elementos constitutivos: o oxigênio e o hidrogênio.
O Espiritismo, demonstrando a existência do mundo espiritual e suas relações com o mundo material, nos dá a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos e considerados, por isso mesmo, inadmissíveis por uma certa classe de pensadores. Esses fatos são abundantes nas Escrituras e é pela falta de conhecimento das leis que os regem, que os comentadores dos dois campos opostos, movendo-se sem cessar no mesmo ciclo de ideias, uns fazendo abstração dos dados positivos da Ciência, os outros, do princípio espiritual, não puderam atingir uma solução racional.
Esta solução está na ação recíproca do espírito e da matéria. Ela tira, é verdade, à maior parte desses fatos, seu caráter sobrenatural; mas, o que será melhor: admiti-los como derivados das leis da Natureza ou rejeitá-los completamente? Sua rejeição absoluta arrasta a da própria base do edifício, ao passo que a sua admissão a tal título, não suprimindo senão os acessórios, deixa a base intacta. Eis porque o Espiritismo atrai tantas pessoas à crença de verdades até então consideradas utopias.
Esta obra é, portanto, conforme temos dito, um complemento das aplicações do Espiritismo, segundo um ponto de vista especial. Seu material estava pronto ou pelo menos elaborado há muito tempo; mas o momento de publicá-la não tinha chegado ainda. Era necessário, antes de mais nada, que as ideias constitutivas de sua base tivessem chegado à maturidade e, de outro lado, atentar para a oportunidade das circunstâncias. O Espiritismo não tem mistérios nem teorias secretas; tudo nele é revelado com clareza, para que cada um possa julgá-lo com conhecimento de causa; mas, cada coisa deve vir a seu tempo para vir com segurança. Uma solução dada superficialmente, antes da elucidação completa da interrogação, seria uma causa de retardamento, ao invés de realizar o progresso. A importância do assunto aqui tratado impunha-nos o dever de evitar qualquer precipitação.
Antes de entrar na matéria, pareceu-nos ser necessário definir nitidamente o papel respectivo dos Espíritos e dos homens na fundação da nova doutrina; essas considerações preliminares, que afastam qualquer ideia de misticismo, foram objeto do primeiro capítulo, intitulado: Caracteres da revelação espírita; chamamos para este ponto toda a atenção, porque nele se encontra, de certo modo, o nó da questão.
Apesar da parte que cabe à atividade humana na elaboração desta doutrina, a sua iniciativa pertence aos Espíritos mas não é constituída pela opinião pessoal de cada um deles; ela não é, nem pode ser, senão o resultado de seu ensinamento coletivo e concorde. Somente por essa condição, ela pode dizer-se a doutrina dos Espíritos, senão seria apenas a doutrina de um Espírito e não teria mais valor que o de uma opinião pessoal.
Generalidade e concordância no ensino, tal é o caráter essencial da doutrina, a própria condição de sua existência; do que resulta que todo princípio que não recebeu a consagração do assentimento da generalidade não pode ser considerado parte integrante desta doutrina, mas simples opinião isolada da qual o Espiritismo não pode assumir a responsabilidade.
É esta coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, além disso, pelo cadinho da lógica, que faz a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade. Para que ela mudasse seria necessário que a universalidade dos Espíritos mudasse de opinião e viesse um dia afirmar o contrário do que disseram; desde que a sua origem vem do ensinamento dos Espíritos para que ela desaparecesse seria preciso que os Espíritos deixassem de existir. É também isto que a fará prevalecer sobre os sistemas pessoais que não têm, conforme ela, suas raízes em toda parte.
O Livro dos Espíritos viu seu crédito se consolidar porque é a expressão de um pensamento coletivo genérico; no mês de abril de 1867 realizou-se o seu primeiro decênio; nesse período, os princípios fundamentais dos quais ele lançou as bases foram sucessivamente completados e desenvolvidos pela continuação do ensino progressivo dos Espíritos sem qualquer desmentido da experiência; todos, sem exceção, permaneceram de pé, mais vivos que nunca, ao passo que, de todas as ideias contraditórias a que tentaram opor-se, nenhuma prevaleceu, precisamente porque, de todas as partes, era ensinado o contrário. Isto é um resultado característico que podemos proclamar sem vaidade, porque jamais atribuímos a nós mesmos esse mérito.
Os mesmos escrúpulos presidiram à redação de nossas outras obras de tal forma que podemos dizê-las segundo o Espiritismo, porque estamos certos de sua conformidade ao ensino geral dos Espíritos. Acontece com esta a mesma coisa, e assim podemos, por motivos semelhantes, dá-la como complemento às precedentes, com exceção, todavia, de algumas teorias hipotéticas, que tivemos o cuidado de indicar como tais, e que não devem ser consideradas senão como opiniões pessoais até que sejam confirmadas ou contraditadas a fim de não fazer pesar sua responsabilidade sobre a doutrina.
Ademais, os leitores assíduos da Revue Spirite terão ali encontrado, em esboço, a maior parte das ideias desenvolvidas nesta última obra como o fizemos nas precedentes. A Revue representa para nós, muitas vezes, um terreno de ensaio destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos a respeito de certos princípios antes de admiti-los como partes constitutivas da doutrina.
1. Pode o Espiritismo ser considerado como uma revelação? Neste caso, qual é o seu caráter? Sobre o que está fundada a sua autenticidade? A quem, e de que maneira ela foi feita? A doutrina espírita é uma revelação no sentido teológico da palavra ou, por outra, é no seu todo o produto de um ensino oculto vindo do Alto? Ela é absoluta ou suscetível de modificações? Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria como efeito impedi-los de fazer uso de suas faculdades, desde que lhes pouparia o trabalho de investigações? Qual pode ser a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis nem superiores à humanidade? Qual a utilidade da moral que eles pregam, se essa moral não é outra senão a do Cristo, já conhecida? Quais são as verdades novas que eles nos trazem? O homem tem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si mesmo e em sua consciência tudo o que lhe é necessário para se conduzir? Tais são as questões sobre as quais importa nos fixarmos.
2. Definamos primeiramente o sentido da palavra revelação. Revelar, do latim ‘revelare’ cuja raiz é ‘velum’, véu, significa literalmente sair de sob o véu, figuradamente, descobrir, fazer conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua acepção vulgar, a mais geral, é empregada no sentido de qualquer coisa ignorada que é esclarecida, de qualquer ideia nova que nos põe a par daquilo que não sabíamos.
Sob esse ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações, e se pode dizer que há para nós uma revelação incessante; a Astronomia nos revelou o mundo sideral que não conhecíamos; a Geologia, a formação da Terra; a Química, a lei das afinidades; a Fisiologia, as funções do organismo, etc. Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier são reveladores.
3. O caráter essencial de qualquer revelação deve ser a verdade. Revelar um segredo, é fazer conhecido um fato; se é falso, não é mais um fato e, por consequência, não há revelação. Toda revelação desmentida pelos fatos deixa de o ser; se é atribuída a Deus, Deus não podendo mentir nem enganar-se, ela não pode emanar Dele; deve ser considerada como um produto da concepção humana.
4. Qual é o papel do professor diante de seus alunos senão o de um revelador? Ele lhes ensina aquilo que não sabem, o que não teriam tempo nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a ciência é a obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trouxeram, cada um, o seu contingente de observações, e das quais se aproveitam aqueles que vêm depois. O ensino é, assim, na realidade, a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feita por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que permaneceriam ignoradas, se assim não fosse.
5. Mas o professor ensina só aquilo que aprendeu; é um revelador de segunda ordem; o homem de gênio ensina aquilo que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; ele traz a luz que pouco a pouco se vulgariza. Onde estaria a humanidade sem a revelação dos homens de gênio que surgem de tempos em tempos?
Mas, o que constitui os homens de gênio? Por que são homens de gênio? De onde vieram? O que é feito deles? Notemos que a maior parte deles denota, ao nascer, faculdades transcendentes e conhecimentos inatos que apenas um pouco de trabalho é suficiente para desenvolver. Eles pertencem realmente à humanidade, pois que nascem, vivem e morrem como nós. Onde, porém, adquiriram esses conhecimentos que não puderam aprender durante a vida? Dir-se-á, como os materialistas, que o acaso lhes proporcionou matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Nesse caso, eles não possuiriam mais mérito do que um legume maior e mais saboroso que outro.
Dir-se-á, com certos espiritualistas, que Deus os dotou com uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição também sem lógica, pois assim se atribuiria parcialidade a Deus. A única solução racional desse problema está na preexistência da alma e na pluralidade das existências. O homem de gênio é um Espírito que viveu por mais tempo, e por conseguinte, tem mais aquisições e mais progresso que aqueles que se acham menos adiantados. Encarnando-se, ele traz o que sabe, e como sabe mais que os outros, sem ter de aprender, é o que se chama um homem de gênio. Mas o que ele sabe não é outra coisa senão o fruto de um trabalho anterior, não é o resultado de um privilégio. Antes de renascer, portanto, era um Espírito adiantado; ele se reencarna, seja para que outros se aproveitem do que já sabe, seja para adquirir progresso.
Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelos esforços de sua inteligência; mas, entregues às suas próprias forças, esse progresso seria muito lento se não fossem ajudados pelos homens mais adiantados como o escolar o é pelos seus professores. Todos os povos têm tido seus homens de gênio, que surgem, em épocas diversas, para impulsioná-los e tirá-los da inércia.
6. Desde que se admita a solicitude de Deus para com as suas criaturas, por que não admitir que Espíritos capazes, pela energia e superioridade de seus conhecimentos, de fazer avançar a humanidade, se encarnem pela vontade de Deus com o fim de ajudá-la a progredir num sentido determinado, que recebam uma missão, como um embaixador a recebe de seu soberano? Tal é o papel dos grandes gênios. Que vêm eles fazer senão ensinar aos homens as verdades que estes ignoram, as quais permaneceriam ignoradas durante longos períodos, a fim de lhes dar um ponto de apoio por meio do qual possam progredir mais rapidamente? Esses gênios, que surgem através dos séculos como estrelas brilhantes deixam atrás de si um longo traço luminoso sobre a humanidade; são missionários ou, se quiserem, os messias. As coisas novas que eles ensinam aos homens, seja de natureza física ou de ordem filosófica, são revelações.
Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, Ele pode, com mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais que são um dos elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessaram os séculos.
7. No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz mais particularmente das coisas espirituais, que o homem não pode conhecer por si mesmo, que não pode descobrir por meio dos seus sentidos e cujo conhecimento lhe é dado por Deus ou por seus mensageiros, seja por meio da palavra direta, seja pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a homens privilegiados, designados como profetas ou messias, isto é, enviados, missionários, com a missão de transmiti-la aos homens. Considerada sob esse ponto de vista, a revelação implica passividade absoluta; é aceita sem controle, sem exame, sem discussão.
8. Todas as religiões têm tido seus reveladores, e todos eles, embora longe do conhecimento total da verdade, tinham a sua razão de ser providencial; porque eles foram apropriados ao tempo e ao meio em que viveram, ao gênio particular dos povos a que falavam e aos quais eram superiores. Apesar dos erros de suas doutrinas, não deixaram de agitar os espíritos e, mesmo por isso, de semear os germes do progresso que mais tarde deviam alastrar-se como se alastraram um dia, ao sol do cristianismo. Dessa forma, é injusto lançar-lhes o anátema em nome da ortodoxia, mas dia virá em que todas essas crenças, tão diversas na forma, mas que na realidade repousam num mesmo princípio fundamental. Deus e a imortalidade da alma se fundirão numa grande e vasta unidade, quando a razão triunfar dos preconceitos.
Infelizmente, as religiões têm sido, de tempos em tempos, instrumentos de dominação; o papel de profeta tem tentado as ambições secundárias e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias, que em favor do prestígio desse nome têm explorado a credulidade em proveito de seu orgulho, da sua cupidez ou de sua indolência, os quais acham mais cômodo viver à custa dos iludidos. A religião cristã não pode livrar-se desses parasitas. Neste sentido, chamamos a atenção seriamente, para o capítulo XXI do "O Evangelho Segundo o Espiritismo": Haverá falsos Cristos e falsos profetas.
9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? Esta é uma questão que não ousaríamos resolver, nem afirmativa nem negativamente, de maneira absoluta. Isto não é radicalmente impossível mas nada o prova com certeza. O que não seria duvidoso é que os Espíritos mais aproximados de Deus pela perfeição se compenetram do seu pensamento e possam transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica à qual pertencem e o grau de seu saber pessoal, eles podem haurir instruções em seus próprios conhecimentos ou recebê-las dos Espíritos mais elevados, e também dos mensageiros diretos de Deus. Estes, falando em nome de Deus, muitas vezes têm sido tomados como o próprio Deus.
Estas espécies de comunicações nada têm de estranho para quem conheça os fenômenos espíritas e a maneira pela qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: pela inspiração pura e simples, pela audição da palavra, pela apresentação visual dos Espíritos instrutores nas visões e aparições, seja durante os sonhos, seja em vigília, como na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. Assim, é rigorosamente certo dizer que a maior parte dos reveladores são médiuns inspirados, auditivos ou videntes; entretanto, não se deve concluir daí que todos os médiuns sejam reveladores e, muito menos, intermediários diretos da Divindade ou de seus mensageiros.
10. Somente os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de transmiti-la; mas agora se sabe que nem todos os Espíritos estão próximos à perfeição e que dentre eles muitos se apresentam sob falsas aparências; é o que fez São João dizer: "Não creiais em todos os Espíritos, mas vede antes se os Espíritos são de Deus" (I Ep. S. João, 4.4).
É possível, pois, haver revelações sérias e verdadeiras, como as há apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação eivada de erros ou sujeita a modificação não pode emanar de Deus. É assim que a lei do Decálogo possui todos os caracteres de sua origem, ao passo que as outras leis mosaicas, essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Os costumes do povo abrandando-se, essas leis, por si mesmas caíram em desuso, enquanto que o Decálogo permanece como farol da humanidade. O Cristo fez dele a base de seu edifício, ao passo que aboliu as outras leis. Se elas tivessem sido obra de Deus, ele teria evitado tocá-las. O Cristo e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo e aí está a prova de sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria tal poder.
11. Uma importante revelação se está operando na época atual: é aquela que nos mostra a possibilidade de comunicação com os seres do mundo espiritual. Este conhecimento não é novo, sem dúvida, mas permaneceu até os nossos dias, de certo modo, como letra morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações achava-se abafada pela superstição; o homem era incapaz de tirar delas qualquer dedução salutar; estava reservado à nossa época desembaraçá-las de seus acessórios ridículos, compreender-lhe o significado e dela fazer surgir a luz destinada a aclarar o caminho do futuro.
12. O Espiritismo, fazendo-nos conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem saber as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte, constituem verdadeira revelação, na acepção científica da palavra.
13. Por sua natureza, a revelação espírita possui um duplo caráter: ela participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira porque seu aparecimento foi providencial e não o resultado da iniciativa e do desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensinamento dado pelos Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens sobre as coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje que se acham amadurecidos para compreendê-las. Participa da segunda, porque tal ensinamento não constitui privilégio de nenhum indivíduo mas é proporcionado a todo mundo pela mesma forma; pelo fato de que, tanto aqueles que o transmitem como os que o recebem não serem seres passivos, dispensados do trabalho de observação e pesquisa; por não renunciarem ao seu próprio julgamento e livre-arbítrio; porque o exame não lhes é interdito, mas ao contrário recomendado; enfim, a doutrina não foi ditada completa nem imposta à crença cega; porque ela é deduzida do trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhes põem sob os olhos pelas instruções que a ele dão, instruções estas que o homem estuda, compara e das quais tira ele mesmo as suas conclusões e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é que sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos Espíritos e que a sua elaboração é o resultado do trabalho do homem.
14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, isto é, aplica o método experimental. Fatos de ordem nova se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele as observa, compara, analisa e, partindo dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois deduz as consequências e busca as aplicações úteis. O Espiritismo não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não se apresentam como hipótese nem a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; conclui-se pela existência dos Espíritos porque essa existência resultou como evidência da observação dos fatos; e assim os demais princípios. Não foram os fatos que vieram posteriormente confirmar a teoria, mas foi a teoria que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É rigorosamente exato, portanto, dizer que o Espiritismo é uma ciência da observação e não o produto da imaginação. As ciências não fizeram progressos sérios senão depois que os seus estudos se basearam no método experimental; mas, acreditava-se que esse método não poderia ser aplicado senão à matéria ao passo que o é igualmente às coisas metafísicas.
15. Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular e que seguramente ninguém suspeitava: o dos Espíritos que não creem estar mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem perfeitamente o fato, não vieram dizer antecipadamente: "Há espíritos que crêem viver a vida terrestre; que conservam seus gostos, seus hábitos e seus instintos;" mas eles provocaram a manifestação de Espíritos dessa categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando que ainda estavam neste mundo, crendo-se aplicados às suas ocupações ordinárias, do exemplo se concluiu a regra. A multidão de fatos análogos provou que isto não constituía uma exceção, mas umas das fases da vida espiritual; ela permitiu estudar todas as variedades e as causas desta singular ilusão; permitiu reconhecer que esta situação é sobretudo própria dos Espíritos pouco adiantados moralmente e que ela é peculiar a certos gêneros de morte; que não é senão temporária, mas pode durar dias, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação. O mesmo se dá com todos os demais princípios da doutrina.
16. Do mesmo modo que a ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual; ora, como esse último é uma das forças da Natureza que reage incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, disto resulta que o conhecimento de um não pode ser completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a ciência se completam um pelo outro; a ciência, sem o Espiritismo, se acha impossibilitada de explicar certos fenômenos, unicamente pelas leis da matéria; o Espiritismo, sem a ciência, ficaria sem apoio e exame. O estudo das leis materiais deveria preceder o da espiritualidade, porque é a matéria que primeiramente fere os sentidos. Se o Espiritismo tivesse aparecido antes das descobertas científicas, teria abortado, como tudo quanto vem antes do tempo.
17. Todas as ciências se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; elas nascem umas das outras, à medida que encontram um ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores. A Astronomia, uma das primeiras que foram cultivadas, permaneceu nos erros de sua infância até o momento em que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a Química, nada podendo sem a Física, tinha que sucedê-la de perto, para em seguida marcharem ambas de acordo e se apoiando uma na outra. A Anatomia, a Fisiologia, a Zoologia, a Botânica, a Mineralogia, não se tornaram ciências sérias senão depois do auxílio das luzes que lhes trouxeram a Física, a Química e todas as outras; faltariam seus verdadeiros elementos de vitalidade; ela não poderia surgir senão depois.
18. A ciência moderna abandonou os quatro elementos primitivos dos antigos e de observação em observação chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria: mas esta, por si mesma, é inerte; ela não tem vida, nem pensamento, nem sentimento; é-lhe necessária sua união com o princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu nem inventou esse princípio, mas foi o primeiro a demonstrá-lo por meio de provas irrecusáveis; estudou-o, analisou-o e tornou evidente a sua ação. Ao elemento material ajuntou o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, eis os dois princípios, as duas forças vivas da Natureza. Pela união indispensável desses dois elementos, explica-se, sem dificuldade, um sem número de fatos até agora sem explicação. ([1])
O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos dois elementos constitutivos do universo, mantém forçosamente pontos de contato com a maior parte das ciências; só poderia vir após a elaboração das mesmas, e nasceu, pela força das coisas, da impossibilidade de tudo explicar, unicamente com o auxílio das leis da matéria.
19. O Espiritismo é acusado de parentesco com a magia e a feitiçaria; mas esquecem que a Astronomia tem, como irmã mais velha, a Astrologia judiciária, que não se acha tão distante de nós; que a Química é filha da Alquimia, da qual nenhum homem sensato ousaria ocupar-se hoje. Ninguém nega, porém, que houvesse na Astrologia e na Alquimia o germe das verdades de onde surgiram as ciências atuais. Malgrado suas fórmulas ridículas, a Alquimia contribuiu para que fossem descobertos os corpos simples e a lei das afinidades; a Astrologia apoiava-se sobre a posição e o movimento dos astros, que ela havia estudado; mas, na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do universo, os astros eram, para o vulgo, seres misteriosos aos quais a superstição emprestava uma influência moral e um sentido revelador. Quando Galileu, Newton, Kepler, tornaram conhecidas essas leis, quando o telescópio descerrou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que muitos consideraram indiscreto, os planetas nos apareceram como simples mundos semelhantes ao nosso, e todo o castelo do maravilhoso se desmoronou.
A mesma coisa se deu com o Espiritismo, em relação com a magia e a feitiçaria; estas se apoiavam também na manifestação dos Espíritos, como a Astrologia no movimento dos astros; mas, na ignorância das leis que regem o mundo espiritual, elas mesclavam nessas relações, práticas e crenças ridículas que o Espiritismo moderno, fruto da experiência da observação, abandonou. Seguramente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior que a existente entre a Astronomia e a Astrologia, entre a Química e a Alquimia; querer confundi-las é provar que nem a primeira palavra é conhecida a respeito no assunto.
20. Só o fato da possibilidade de comunicação com os seres do mundo espiritual tem consequências incalculáveis do mais alto valor; é todo um mundo novo que se nos revela e que assume tanto mais importância quanto mais atinge todos os homens, sem exceção. Com sua generalização, este conhecimento não pode deixar de causar uma profunda modificação nos costumes, no caráter, nos hábitos e nas crenças, que têm tão grande influência nas relações sociais. É uma revolução total que se opera nas ideias, revolução esta tanto maior, tanto mais poderosa, quanto não se acha circunscrita a um povo, a uma casta, mas atinge simultaneamente, pelo coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.
É com razão, portanto, que o Espiritismo é considerado como a terceira das grandes revelações. Vejamos em que se diferenciam essas revelações e por que laço elas se ligam umas às outras.
21. Moisés, como profeta, revelou aos homens o conhecimento de um Deus único, soberano Senhor e Criador de todas as coisas; ele promulgou a lei do Sinai e lançou os fundamentos da verdadeira fé; como homem, foi o legislador do povo pelo qual esta fé primitiva, purificando-se, deveria um dia espalhar-se por toda a terra.
22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino e rejeitando o que não era senão transitório, puramente disciplinar e de concepção humana, ajuntou a revelação da vida futura, da qual Moisés não havia falado, bem como das penas e recompensas que esperam o homem depois da morte (Ver a ‘Revue Spirite', 1861, págs. 90 e 280).
23. A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido de que ela é a fonte primitiva, a pedra angular de toda a sua doutrina, é o ponto de vista inteiramente novo pelo qual ele faz encarar a Divindade. Não é mais o Deus terrível, zeloso e vingativo de Moisés, o Deus cruel e impiedoso que rega a terra com o sangue humano, que ordena o massacre e extermínio dos povos, sem exceção das mulheres, das crianças e dos velhos; que castiga aqueles que poupam as vítimas; não é mais o Deus injusto que pune um povo inteiro pela falta de seu chefe; que se vinga do culpado na pessoa do inocente; que fere os filhos pela falta dos pais; mas, sim, um Deus clemente, soberanamente bom, cheio de mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um segundo as suas obras; não é mais o Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa contra os deuses dos outros povos, mas o Pai comum do gênero humano, que estende a sua proteção sobre todos os seus filhos e os chama a si; não é mais o Deus que recompensa e pune só pelos bens da terra, que faz consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas que diz aos homens: "A vossa verdadeira pátria não é este mundo; ela está no reino celestial; lá, onde os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados". Não é mais o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena e retribua olho por olho, dente por dente; mas, sim, o Deus de misericórdia que diz: "Perdoai as ofensas, se quereis ser perdoados; retribuí o mal com o bem; não façais a outrem o que não quereis que vos façam". Não é mais o Deus mesquinho e meticuloso que impõe, sob as mais severas penas, a maneira pela qual quer ser adorado; que se ofende pela inobservância de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento e que não se honra com a forma. Enfim, não é mais o Deus que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.
24. Sendo Deus o centro de todas as crenças religiosas e o objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões está conforme à ideia que elas dão de Deus. As religiões que fazem de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com atos de crueldade, com as fogueiras e torturas; aquelas que têm um Deus parcial e zeloso são intolerantes e mais ou menos meticulosas na forma, segundo creem, mais ou menos contaminadas das fraquezas e mesquinharias humanas.
25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e misericordioso, ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a condição expressa da salvação, dizendo: "Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos; nisto se resume toda a lei e os profetas; não existe outra." Somente esta crença assentou o princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da fraternidade universal. Mas, seria possível amar esse Deus de Moisés? Não. Não se poderia senão temê-lo.
Esta revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, juntamente com a imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações mútuas entre os homens, impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida presente sob outro aspecto; devia, por isso mesmo, agir contra os costumes e as relações sociais. Incontestavelmente, por suas consequências, este é o ponto capital da revelação do Cristo, e da qual não foi suficientemente compreendida a importância; e, constrange dizê-lo, é o ponto de que mais nos temos afastado, o ponto mais desconhecido na interpretação de seus ensinos.
26. Entretanto, o Cristo acrescenta: "Muitas das coisas que vos digo, vós não as podeis ainda compreender, e eu tenho muitas outras a vos dizer, que não compreenderíeis; por isso é que vos falo em parábolas; mais tarde, porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito da Verdade, que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará" (Jo 14.16; Mt 17).
Se o Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é que ele acreditava deveria deixar certas verdades na sombra até que os homens estivessem em estado de compreendê-las. Ele mesmo disse que o seu ensinamento era incompleto, pois anunciou a vinda daquele que deveria completá-lo; previa, assim, que a suas palavras não seriam bem interpretadas, que o seu ensino seria desviado; numa palavra, que seria desfeito o que ele fizera, desde que todas as coisas deveriam ser restabelecidas; ora, não se restabelece senão aquilo que foi desfeito.
27. Por que denomina ele Consolador ao novo Messias? Este nome significativo e sem ambiguidades é toda uma revelação. Assim, ele previa que os homens teriam necessidade de consolo, o que implica a insuficiência das consolações que encontrariam na crença que estavam formulando. Jamais o Cristo poderia ser mais claro e mais explícito como nestas últimas palavras, às quais poucos deram a atenção necessária, talvez porque evitaram mesmo esclarecê-las e aprofundar-lhes o sentido profético.
28. Se o Cristo não pode desenvolver o seu ensino de maneira completa, é porque faltava aos homens o conhecimento que eles não poderiam adquirir senão com o tempo e sem o qual não o poderiam compreender; há coisas que teriam parecido sem sentido, de acordo com os conhecimentos de então. Completar o seu ensinamento deve ser interpretado no sentido de explicar e de desenvolver e não o de adicionar verdades novas, porque ali tudo se encontra em germe; somente faltava a chave para abrir o sentido de suas palavras.
29. Mas, quem ousará interpretar as Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as luzes necessárias, senão os teólogos?
Quem o ousa? Primeiramente a ciência, que a ninguém pede permissão para fazer conhecer as leis da Natureza e que salta por cima dos erros e dos preconceitos. — Quem tem esse direito? Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todo mundo e as Escrituras não são a Arca Santa, na qual ninguém ousava encostar o dedo sem o risco de cair fulminado. Quanto às luzes especiais necessárias, sem contestar a dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média, e em particular os padres da Igreja, contudo eles não o foram bastante para não condenarem como heresia o movimento da Terra e a crença nos antípodas. Mesmo sem ir muito longe, os teólogos atuais não lançaram seu anátema aos períodos de formação da Terra?
Os homens não puderam explicar as Escrituras senão com o auxílio do que eles sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da Natureza, mais tarde reveladas pela ciência; eis porque os próprios teólogos, de muita boa fé se enganaram sobre o sentido de certas palavras e certos fatos do Evangelho. Querendo a todo custo ali encontrar a confirmação de um pensamento preconcebido, eles giravam sempre no mesmo círculo, sem abandonar seu ponto de vista, de tal maneira que não viram senão aquilo que queriam ver. Por muitos sábios que fossem os teólogos, não poderiam compreender as causas dependentes de leis que eles não conheciam.
Mas, quem será o juiz das interpretações diversas e muitas vezes contraditórias, dadas fora do campo da Teologia? O futuro, a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos à medida que novos fatos e novas leis se forem revelando, saberão separar os sistemas utópicos e a realidade; ora, a ciência faz conhecidas determinadas leis; o Espiritismo faz conhecer outras; umas e outras são indispensáveis à compreensão dos textos sagrados de todas as religiões, desde Confúcio e o Buda até o Cristianismo. Quanto à Teologia, esta não poderá judiciosamente alegar contradições da ciência, de vez que ela também nem sempre está de acordo consigo mesma.
30. O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo como este partiu das de Moisés, é uma consequência direta de sua doutrina.
À ideia vaga da vida futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos cerca e povoa o espaço e, para tanto, define a crença; dá-lhe um corpo, uma consistência, uma realidade à ideia.
Define os laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava os mistérios do nascimento e da morte.
Pelo Espiritismo, o homem sabe de onde vem e para onde vai, porque está na Terra, porque sofre temporariamente e vê por toda parte a justiça de Deus.
Sabe que a alma progride sem cessar, através de uma série de existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que pode aproximá-la de Deus.
Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais, com a mesma aptidão para progredir, em virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da mesma essência e que não há entre elas senão a diferença quanto ao progresso realizado; que todas têm o mesmo destino e atingirão o mesmo alvo, mais ou menos rapidamente, segundo seus trabalhos e sua boa vontade.
Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas que as outras; que Deus a nenhuma criou privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras para progredir, e que não há seres perpetuamente voltados ao mal e ao sofrimento; que os designados pelo nome de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no estado espiritual, como o praticavam na Terra, como homens, mas que se adiantarão e se aperfeiçoarão; que os anjos ou Espíritos puros não são seres à parte na criação, mas Espíritos que atingiram o alvo, depois de terem per corrido a estrada do progresso; que, por essa forma, não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande lei da unidade que rege o universo e que todos os seres gravitam para um fim comum que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos de suas próprias obras.
31. Pelas relações que agora pode estabelecer com aqueles que deixaram a Terra, ele possui não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como também compreende a solidariedade que liga os vivos e os mortos deste mundo, e os deste aos outros mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos; segue-os em suas migrações; é testemunha de suas alegrias e de suas penas; sabe porque são felizes ou infelizes e a sorte que lhes está reservada conforme o bem ou o mal que fizeram. Essas relações iniciam o homem na vida futura, que ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança: é um fato positivo, uma certeza matemática. Desde então, a morte nada mais tem de aterrador porque é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.
32. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição ou de imperfeição; que cada qual sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas; ou, por outra, que é punido por aquilo em que pecou; que essas consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; que, assim, o culpado sofreria eternamente se persistisse no mal, mas que o sofrimento cessa com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como o doente sofre pelos seus excessos enquanto não lhes põe termo.
33. Se a razão repele, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas, muitas vezes infligidas por uma única falta, as dos suplícios do inferno, que não podem ser minoradas nem sequer pelo arrependimento mais ardente e sincero, ela se inclina diante dessa justiça distributiva e imparcial que leva tudo em conta, que jamais fecha a porta de retorno e estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.
34. A pluralidade das existências, cujo princípio o Cristo estabeleceu no Evangelho, mas sem defini-lo mais que a muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, no sentido de demonstrar a realidade e a necessidade do progresso. Por essa lei, o homem explica todas as anomalias aparentes que a vida humana apresenta; as diferenças de posição social; as mortes prematuras, que sem a reencarnação tornariam inúteis para a alma as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões intelectuais e morais pela antiguidade do Espírito, que aprendeu mais ou menos e progrediu e que traz ao renascer a aquisição de suas existências anteriores. (Nº 5.)
35. Com a doutrina da criação da alma a cada nascimento, voltamos a cair no sistema das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os une, os laços da família são puramente carnais; eles não são solidários a um passado em que não existiam; com a crença no nada depois da morte, toda relação cessa com a vida; não são solidários no futuro. Pela reencarnação, são solidários no passado e no futuro; suas relações se perpetuam no mundo espiritual e no mundo corporal, a fraternidade tem por base as próprias leis da Natureza; o bem tem uma finalidade, o mal tem suas consequências inevitáveis.
36. Com a reencarnação, caem os preconceitos de raça e de casta, de vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, grão-senhor ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que saliente, pela lógica, o fato material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação fundamenta sobre uma lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.
37. Tirai ao homem o espírito livre, independente, sobrevivendo à matéria, e tereis feito dele uma máquina organizada, sem objetivo, sem responsabilidade, sem outro freio que a lei civil e boa para ser explorada como um animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada o impede de aumentar os gozos do presente; se sofre, não tem nenhuma perspectiva a não ser o desespero e o nada como refúgio. Com a certeza do futuro, de reencontrar aqueles a quem amou, o receio de rever aqueles a quem ofendeu, todas as suas ideias mudam. O Espiritismo, embora conseguisse apenas tirar do homem a dúvida com relação à vida futura, teria realizado mais pelo seu progresso moral do que todas as leis disciplinares, que algumas vezes o freiam, mas não o transformam.
38. Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado original não é somente irreconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pela falta de um só: seria um contra-senso e tanto menos justificável pelo fato de que, segundo essa doutrina, a alma não existia na época em que se pretende fazer remontar sua responsabilidade. Com a preexistência, o homem traz, ao renascer, o germe de suas imperfeições, os defeitos que ele não corrigiu e que se traduzem pelos seus instintos naturais, suas propensões a tal ou qual vício. Este é o seu verdadeiro pecado original, do qual sofre naturalmente as consequências, mas com a diferença capital de que sofre o castigo de suas próprias faltas e não das faltas alheias; e esta outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, encorajante e soberanamente equitativa, de cada existência, lhe oferece os meios de se redimir pela reparação e de progredir, seja se despojando de alguma imperfeição, seja pela aquisição de novos conhecimentos, até que, suficientemente purificado, ele não tem mais necessidade da vida corporal e pode viver exclusivamente da vida espiritual, eterna e bem-aventurada.
Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu intelectualmente traz ideias inatas; está identificado com o bem; pratica-o sem esforço, sem cálculo, por assim dizer, sem pensar. Aquele que é obrigado a combater suas más tendências ainda está na luta: o primeiro já venceu, o segundo procura vencer. Há, portanto, virtude original, como há saber original e pecado, ou melhor, vício original.
39. O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e sua ação sobre a matéria. Demonstrou a existência do perispírito, suspeitado desde a antiguidade e designado por São Paulo pelo nome de corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma, depois da destruição do corpo tangível. Sabemos hoje que esse invólucro é inseparável da alma, forma um dos elementos constitutivos do ser humano, é o veículo de transmissão do pensamento e durante a vida corporal serve de liame entre o Espírito e a matéria. O perispírito representa importantíssimo papel no organismo e num sem número de afecções, que se relacionam com a Fisiologia e a Psicologia.
40. O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos horizontes à ciência e fornece a chave para a compreensão de uma multidão de fenômenos até então incompreendidos pela falta do conhecimento da lei que os rege, fenômenos negados pelo materialismo por se ligarem à espiritualidade e qualificados como milagres ou sortilégios por outras crenças. Tais são, entre outros, os fenômenos da vista dupla, da visão à distância, do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos psíquicos, da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Demonstrando que esses fenômenos repousam em leis tão naturais como as dos fenômenos elétricos e as condições normais em que se podem reproduzir, o Espiritismo fez derrocar o império do maravilhoso e do sobrenatural e, consequentemente, a fonte da maior parte das superstições. Se faz crer na possibilidade de certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, também impede que se creia em muitas outras cuja impossibilidade e insensatez ele demonstra.
41. O Espiritismo, bem longe de negar ou destruir o Evangelho, vem ao contrário confirmar, explicar e desenvolver tudo aquilo que o Cristo disse e fez, pelas novas leis naturais que revela; lança luz sobre os pontos obscuros de seu ensinamento, de tal sorte que aqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem sem esforço com o auxílio do Espiritismo, e as admitem; compreendem melhor seu alcance, e podem distinguir a verdade da alegoria; o Cristo lhes parece maior; não é mais simplesmente um filósofo, é um Messias divino.
42. Além disso, se considerarmos o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que aponta a todas as ações da vida, por tornar quase tangíveis as consequências do bem e do mal; pela força moral, a coragem e a consolação que traz nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro; pela esperança de cada um ter perto de si os seres que amou; a certeza de tornar a vê-los, a possibilidade de confabular com eles; afinal, pela certeza de que tudo quanto se fez, tudo quanto se adquiriu em inteligência, sabedoria e moralidade até a última hora da vida não fica perdido, que tudo aproveita ao progresso, reconhece-se que o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo com referência ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside o grande movimento de regeneração, a promessa de sua vinda se acha por essa forma cumprida porque, realmente, é ele o verdadeiro Consolador. ([2])
43. Se a esses resultados adicionarmos a rapidez prodigiosa da propagação do Espiritismo, apesar de tudo quanto fazem para impedir esse progresso, não se poderá negar que a sua vinda seja providencial, pois que ele triunfa de todas as forças e de toda a má vontade dos homens. A facilidade com a qual é aceito por um tão grande número, e isto sem constrangimento, sem outros meios além do poder das ideias, prova que essa doutrina responde a uma necessidade, qual seja a de se crer em alguma coisa a fim de se preencher o vácuo aberto pela incredulidade e, por conseguinte, surgiu em tempo oportuno.
44. Os aflitos existem em grande número; não é de admirar, portanto, que tantas pessoas acolham uma doutrina que consola, de preferência às doutrinas que desesperam, porque é aos deserdados mais que aos felizes do mundo, que o Espiritismo se dirige. O doente vê chegar o médico com maior satisfação que aquele que tem saúde; ora, os doentes são os aflitos e o Consolador é o médico.
Vós, que combateis o Espiritismo, se quereis que o abandonemos para vos seguir, dai mais e melhor do que ele; curai com maior segurança as feridas da alma. Dai mais consolação, mais alegria ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; fazei do futuro um quadro mais racional, mais sedutor, mas não penseis em derrotá-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das chamas do inferno ou da beatitude inútil de uma contemplação perpétua.
45. A primeira revelação foi personificada em Moisés, a segunda no Cristo, a terceira em indivíduo nenhum. As duas primeiras foram individuais, a terceira coletiva; eis aí um caráter essencial de grande importância. Ela é coletiva, no sentido de n ão ser feita ou dada como privilégio a pessoa alguma; ninguém, portanto, pode inculcar-se como seu profeta exclusivo; foi espalhada, simultaneamente, sobre a Terra a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a mais alta escala, de acordo com esta predição registrada pelo autor do Atos dos Apóstolos: "Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei o meu espírito sobre toda a carne; os vossos filhos e filhas profetizarão, os mancebos terão visões e os velhos terão sonhos" (At. 2.17,18). Ela não proveio de nenhum culto especial, a fim de um dia servir de ponto de ligação a todos. ([3])
46. As duas primeiras revelações, como fruto que são do ensino pessoal, permaneceram forçosamente localizadas, isto é, surgiram num só ponto, em torno do qual a ideia pouco a pouco se propagou; entretanto, foram necessários muitos séculos para que alcançassem os extremos do mundo, sem o ocupar inteiramente. A terceira tem isso de particularidade, que não se achando personificada em um só indivíduo, produziu-se simultaneamente em milhares de pontos diferentes, os quais se tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como os círculos formados por um punhado de pedras lançadas na água, de tal maneira que, em determinado tempo, acabarão por cobrir toda a superfície do globo.
Esta é uma das causas da rápida propagação da doutrina. Tivesse ela surgido em um só ponto, tivesse sido obra exclusiva de um homem, teria formado uma seita em torno dele; porém, talvez meio século decorresse antes que tivesse atingido os limites do país no qual se houvesse iniciado; tal como é, depois de dez anos, ela tem suas balizas plantadas de um polo ao outro.
47. Esta circunstância, inaudita na história das doutrinas, proporciona-lhe uma força excepcional e um irresistível poder de ação; realmente, se a comprimirem num ponto, em determinado país, será materialmente impossível que a persigam em toda parte e em todos os países. Em compensação, para um lugar onde lhe embaracem a marcha, haverá mil outros em que florescerá. Mais ainda: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la nos Espíritos, que são a fonte de onde ela deriva. Ora, como os Espíritos estão em toda parte e existirão para sempre, se por um acaso inadmissível conseguissem sufocá-la em todo o globo, pouco tempo depois ela reapareceria porque repousa sobre um fato que está na Natureza e as leis da Natureza não podem ser suprimidas. Disso deveriam persuadir-se aqueles que sonham com o aniquilamento do Espiritismo. (`Revue Spirite', fev. de 1865, pág. 38, Perpetuidade do Espiritismo.)
48. Disseminados os centros, poderiam entretanto permanecer ainda muito tempo isolados uns dos outros, confinados como alguns se acham, em países longínquos. Faltava entre eles um traço de união que os pusesse em comunhão de pensamentos com os seus irmãos de crença, para informá-los do que algures se fazia. Esse traço de união, que na antiguidade teria faltado ao Espiritismo, existe hoje nas publicações que vão por toda parte, condensando, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensino proporcionado universalmente sob formas múltiplas em diversas línguas.
49. As duas primeiras revelações podiam resultar de um ensino direto; como os homens ainda não estivessem bastante adiantados a fim de concorrerem para a sua elaboração, elas teriam que ser impostas pela fé sob a autoridade da palavra do Mestre.
Notemos, entretanto, que há entre elas uma diferença bastante sensível, resultante do progresso dos costumes e das ideias, embora feitas entre o mesmo povo e no mesmo meio, porém com dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; ela não admite discussão e se impõe pela força a todo o povo. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceita e não se impõe senão pela persuasão; é controvertida, desde o tempo mesmo do seu fundador, que não desdenhava discutir com os seus adversários.
50. A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e de maturidade intelectual, quando a inteligência desenvolvida não se conforma a um papel passivo, quando o homem não aceita nada às cegas, mas quer saber aonde o conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa — teria ela que ser ao mesmo tempo o resultado de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre exame. Os Espíritos não ensinam senão apenas o que é necessário para guiar no caminho da verdade, mas eles se abstêm de revelar o que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais; a ele cabe aproveitá-los e pô-los a funcionar (Nº 15).
51. Como os elementos da revelação espírita foram ministrados simultaneamente em muitos pontos, a homens de todas as condições sociais e de vários graus de instrução, é evidente que as observações não podiam ser feitas em toda parte com os mesmos frutos; que as consequências a tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos, numa palavra, a conclusão sobre a qual deviam firmar-se as ideias, não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, circunscrito dentro de um círculo restrito, não vendo muitas vezes senão uma ordem particular de fatos, não raro contraditórios na aparência, geralmente provindo de uma única categoria de Espíritos e, além disso, embaraçados por influências locais e pelo espírito partidário, achava-se na impossibilidade material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz de conjugar as observações isoladas a um princípio comum. Apreciando cada um deles os fatos sob o ponto de vista dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião especial dos Espíritos que se manifestassem, logo teriam surgido tantas teorias e sistemas quantos fossem os centros, todos incompletos por falta de elementos de comparação e de exame. Resumindo, cada qual se teria imobilizado na sua revelação parcial, julgando estar de posse de toda a verdade, ignorando que em cem outros locais se obtinha mais ou melhor.
52. Convém notar, além disso, que em nenhuma parte o ensino espírita foi ministrado de maneira completa; ele diz respeito a tão grande número de observações, a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas tão especiais, que seria impossível se achassem reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e de observação, como se faz em algumas fábricas, onde a feitura de um mesmo artigo é dividida em partes por diversos operários.
A revelação foi, assim, feita parcialmente, em diversos lugares e por uma multidão de intermediários; é por essa maneira que ainda prossegue, pois nem tudo foi revelado; cada centro encontra nos demais centros o complemento do que obtém; e foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a doutrina espírita.
Era, portanto, necessário agrupar os fatos espalhados, para se lhes apreender a correlação, reunir os diversos documentos, as instruções dadas pelos Espíritos acerca de todos os pontos e de todos os assuntos, para as comparar, analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. Surgindo as comunicações de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era necessário apreciar o grau de confiança que a razão lhes permitia conceder, distinguir as ideias sistemáticas individuais ou isoladas, das que tinham a sanção do ensino generalizado dos Espíritos; as utopias, das ideias práticas, afastar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica sã, utilizar da mesma forma os erros, as informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo aqueles da mais baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo invisível e formar com tudo isto um todo homogêneo.
Era necessário, em suma, um centro de elaboração, independente de qualquer ideia preconcebida, de todo preconceito sectário, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, embora contrária às opiniões pessoais. Tal centro foi formado por si mesmo, pela força das coisas e sem desígnio premeditado. ([4])
53. Deste estado de coisas originou-se uma dupla corrente de ideias: umas, dirigindo-se das extremidades para o centro; as outras, encaminhando-se do centro para a circunferência. Desta maneira, a doutrina caminhou rapidamente para a unidade, apesar da diversidade das fontes de onde derivou; os sistemas divergentes ruíram aos poucos, devido ao isolamento em que ficaram, diante da ascensão da opinião da maioria, na qual não encontraram simpática repercussão. Desde então, estabeleceu-se uma comunhão de ideias entre os diferentes centros parciais; falando a mesma linguagem espiritual, eles se compreendem e simpatizam de um extremo a outro do mundo.
Os Espíritas sentiram-se assim mais fortes, lutaram com mais coragem, marcharam com um passo mais seguro, de vez que não se acharam mais insulados, por terem sentido um ponto de apoio, um liame a prendê-los à grande família; os fenômenos de que foram testemunhas não mais lhe pareceram estranhos, anormais, contraditórios, pois puderam conjugá-los às leis gerais da harmonia, descobrindo de um golpe de vista todo o edifício e ver em todo esse conjunto uma finalidade elevada e humanitária. ([5])
Mas, como saber se um princípio é ensinado em toda parte, ou se não é o resultado de uma opinião individual? Os grupos isolados, não podendo saber o que se dizia alhures, era necessário que um centro reunisse todas as instruções, para fazer uma espécie de apuro das vozes e levar ao conhecimento de todos a opinião da maioria. ([6])
54. Não há nenhuma ciência que tenha surgido completa, do cérebro do homem; todas, sem exceção, são o produto de observações sucessivas, apoiando-se nas observações precedentes, como de um ponto conhecido para chegar ao desconhecido. Foi assim que os Espíritos procederam com o Espiritismo, porque seu ensino foi gradual; eles não abordam as questões senão à medida que os princípios sobre os quais eles devem se apoiar se acham suficientemente elaborados, e que a opinião esteja amadurecida para os assimilar. É mesmo notável que todas as vezes que os centros particulares têm procurado abordar as questões prematuras, não têm obtido senão respostas contraditórias e não concludentes. Quando, ao contrário, o momento favorável chega, o ensinamento generaliza-se e se unifica na quase totalidade dos centros.
Há entretanto, entre a marcha do Espiritismo e a das ciências, uma diferença capital; isto é, que estas não atingiram o ponto a que chegaram senão após longos intervalos, ao passo que ao Espiritismo foram suficientes alguns anos, senão para atingir o ponto culminante, pelo menos para recolher uma soma de observações assaz grande para constituir uma doutrina. Disso decorre que há uma inumerável multidão de Espíritos que, pela vontade de Deus, se manifestam simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus conhecimentos. É em resultado disso que todas as partes da doutrina, ao invés de serem elaboradas sucessivamente durante muitos séculos, o têm sido quase simultaneamente em alguns anos, o que foi suficiente para agrupá-las e assim formar um todo.
Deus quis que fosse assim, primeiramente para que o edifício chegasse mais prontamente ao cume, em segundo lugar, para que fosse possível, pela comparação, um controle por assim dizer imediato e permanente, na universalidade do ensino, cada parte não tendo valor e autoridade, a não ser pela conexão com o conjunto, todas se harmonizando, encontrando seu devido lugar e chegando cada uma a seu tempo.
Não confiando a um só Espírito o cuidado de promulgação da doutrina, Deus quis que tanto o menor como o maior entre os Espíritos, como entre os homens, trouxesse a sua pedra para o edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperadora, o que faltou a todas as doutrinas oriundas de uma fonte única.
De outro lado, cada Espírito assim como cada homem, não possuindo senão uma soma limitada de conhecimentos, individualmente, seria incapaz de tratar ex professo das inumeráveis questões referentes ao Espiritismo; eis, igualmente, porque a doutrina, para cumprir a vontade do Criador, não poderia ser obra de um só Espírito nem de um só médium; ela não poderia surgir senão da coletividade dos trabalhos controlados uns pelos outros. ([7])
55. Um outro caráter da revelação espírita e que ressalta as condições mesmas nas quais ela se produz, é que, apoiando-se sobre os fatos, ela é e não pode deixar de ser senão essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Por sua essência, ela contrai aliança com a ciência, a qual, sendo a exposição das leis da Natureza numa certa ordem de fatos, não pode ser contrária à vontade de Deus, o autor dessas leis. As descobertas da ciência glorificam Deus, em lugar de o rebaixar; elas não destroem senão o que os homens edificaram sobre ideias falsas que eles fizeram de Deus.
O Espiritismo não estabelece, portanto, como princípio absoluto, senão aquilo que está demonstrando com evidência, ou que ressalta logicamente da observação. Ligado a todos os ramos da economia social, aos quais empresta apoio de suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que elas sejam, elevadas ao estado de verdades práticas e saídas do domínio da utopia sem o que ele se suicidaria; deixando de ser o que é, desmentiria sua origem e sua finalidade providencial. O Espiritismo, marchando com o progresso, jamais será ultrapassado porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro sobre um certo ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade se revelar, ele a aceitará. ([8])
56. Qual é a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, uma vez que ela não é senão a moral do Cristo? O homem tem necessidade de uma revelação, e não pode encontrar em si mesmo tudo o que lhe é necessário para se conduzir?
Do ponto de vista moral, Deus, sem dúvida, deu ao homem um guia em sua consciência, que lhe diz: "Não faças a outrem aquilo que não queres que te façam." A moral natural está certamente inscrita no coração dos homens, mas todos a sabem ler? Não têm eles jamais desprezado seus sábios preceitos? Que fizeram eles da moral do Cristo? Como a praticam aqueles mesmos que a ensinam? Não se tornou ela uma letra morta, uma bela teoria, boa para os outros e não para si? Reprovareis a um pai o fato de repetir dez vezes, cem vezes, as mesmas instruções aos seus filhos se eles não as aproveitam? Por que haveria Deus de fazer menos que um pai de família? Por que não enviaria, de tempos em tempos, mensageiros especiais aos homens, encarregados de chamá-los aos seus deveres e levá-los ao bom caminho, quando deste se afastam, de abrir os olhos da inteligência àqueles que os têm fechados, como os homens adiantados enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?
Os Espíritos não ensinam outra moral senão a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor. Mas, então, por que o seu ensinamento, se ensinam aquilo que já sabemos? Poder-se-ia dizer o mesmo da moral do Cristo, que foi ensinada quinhentos anos antes, por Sócrates e Platão em termos quase idênticos; assim como de todos os moralistas que repetem a mesma coisa em todos os tons e em todas as formas. Pois bem! Os Espíritos vêm muito simplesmente aumentar o número dos moralistas, com a diferença de que, manifestando-se em toda parte, eles se fazem ouvir tanto na choupana como no palácio, tanto aos ignorantes como às pessoas instruídas.
O que o ensinamento dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que unem os mortos e os vivos, os quais completam as noções vagas sobre a alma, seu passado e seu futuro, com o que, por sanção à sua doutrina, são as próprias leis da Natureza. Com o auxílio das novas luzes trazidas pelo Espiritismo e pelos Espíritos, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que não fazia senão por dever, e o faz melhor.
Agora que os homens praticarão a moral do Cristo, de agora em diante somente eles poderão dizer se não necessitarão mais de moralistas, encarnados ou desencarnados; entretanto, Deus também não enviará mais agentes com essa finalidade.
57. Uma das perguntas mais importantes entre as que são formuladas no rosto deste capítulo é esta: qual a autoridade da revelação espírita, pois que ela emana de seres cujas luzes são limitadas e que não são infalíveis?
A objeção seria válida, se essa revelação não consistisse senão no ensino dos Espíritos, se devêssemos obtê-la exclusivamente através deles e aceitá-la de olhos fechados; ela seria sem valor desde o instante em que o homem lhe traz o concurso de sua inteligência e de sua opinião; que os Espíritos se limitam a apresentar, por via de deduções, o mesmo que ele pode extrair da observação dos fatos. Ou, de outro modo, as manifestações e suas inumeráveis variedades são fatos; o homem as estuda e pesquisa a lei que as rege; neste trabalho é ajudado pelos Espíritos de todas as ordens, os quais são antes colaboradores que reveladores no sentido comum da palavra; ele submete suas expressões ao controle da lógica e do bom senso; por esta maneira, ele se beneficia com os conhecimentos especiais que tem, devido à sua posição, sem abdicar do uso de sua própria razão.
Sendo os Espíritos apenas as almas dos homens, ao nos comunicarmos com eles nós não saímos da humanidade, o que constitui uma circunstância capital a ser considerada. Por conseguinte, os homens de gênio, que têm sido as bandeiras da humanidade, saíram do mundo dos Espíritos, tal como ali reentraram, ao deixar a terra. Desde que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, estes mesmos gênios lhes podem dar instruções sob a forma espiritual, como faziam sob a forma corporal; eles podem nos instruir após sua morte, como o faziam enquanto viviam; são invisíveis em vez de visíveis; eis toda a diferença. A experiência e o saber que possuíam não devem ser menores, e se a palavra deles, enquanto eram homens, tinha autoridade, essa não deve ser menor, pelo fato de se acharem no mundo dos Espíritos.
58. Porém, não são somente os Espíritos superiores que se manifestam; fazem-no também os Espíritos de todas as ordens, e tal era necessário para nos iniciar no conhecimento verdadeiro do mundo espiritual, que assim nos era revelado sob todas as suas facetas; por este meio, as relações entre o mundo visível e o mundo invisível são mais íntimas e sua conexão é mais evidente; vemos, de maneira mais clara, de onde viemos e para onde vamos: tal é a finalidade essencial dessas manifestações. Todos os Espíritos, qualquer que seja o grau que atingiram, nos ensinam, pois, qualquer coisa; mas, como eles são mais ou menos esclarecidos, toca-nos discernir o que há neles, de bom ou de mau, e extrair a vantagem que possam ter seus ensinamentos; todos, quaisquer que sejam, podem ensinar-nos ou nos revelar coisas que ignorávamos e que sem eles não saberíamos.
59. Os grandes Espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem contradita; mas a ação deles é restrita, e necessariamente lenta a propagação de seus ensinamentos. Se um só dentre eles, mesmo que fosse Elias, ou Moisés, Sócrates ou Platão, que tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade de suas afirmativas, nestes tempos de ceticismo? Não teria ele sido considerado como um sonhador, ou um utopista? E mesmo admitindo que ele tivesse sido verdadeiro, de forma absoluta, séculos teriam transcorrido antes que suas ideias fossem aceitas pelas massas. Deus, em sua sabedoria, não quis que assim acontecesse; quis que o ensinamento fosse dado pelos próprios Espíritos, e não pelos encarnados, a fim de convencê-los de sua existência, e que tal tivesse lugar simultaneamente por toda a terra, seja para propagar estes ensinamentos mais rapidamente, seja para que se encontrasse na coincidência dos ensinamentos uma prova da verdade, uma vez que cada um tivesse assim os meios de se convencer a si mesmo.
60. Os Espíritos não vieram livrar o homem, do trabalho, do estudo e das pesquisas; não lhe trazem nenhuma ciência integralmente formulada; deixam-no entregue a seus próprios esforços, naquilo que ele pode encontrar por si mesmo; tal é o que hoje os espíritas sabem perfeitamente. Já de há muito tempo, a experiência tem demonstrado o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o saber e toda a sabedoria, e que bastaria dirigir-se ao primeiro Espírito comunicante para conhecer todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma de suas faces; tal como sobre a terra, entre eles há superiores e vulgares; muitos deles, pois, científica e filosoficamente, sabem menos que certos homens; eles dizem o que sabem, nem menos, nem mais; tal como entre os homens, os mais adiantados nos podem ensinar acerca de maior número de assuntos, podem dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é dirigir-se a potências sobrenaturais, mas sim a seus iguais, àquelas mesmas pessoas a quem nos teríamos dirigido em vida; a seus pais, a seus amigos, ou a indivíduos mais esclarecidos que nós. Eis, pois, o que é importante de persuadir-se, sendo este um ponto ignorado por aqueles que, não havendo estudado o Espiritismo, fazem para si mesmos uma ideia completamente falsa sobre a natureza do mundo dos Espíritos e das relações de além-túmulo.
61. Qual é, pois, a utilidade dessas manifestações, ou se assim quisermos, desta revelação, se é que os Espíritos não sabem mais que nós, ou se não nos dizem tudo o que sabem?
Em primeiro lugar, como já dissemos, eles se abstêm de nos dar aquilo que podemos adquirir pelo trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque nosso grau de adiantamento não o comporta. Porém, à parte disso, as condições de sua nova existência ampliam o círculo de suas percepções, eles veem o que não viam, quando estavam sobre a terra; libertados dos entraves da matéria, dispensados dos cuidados da vida corporal, julgam as coisas de um ponto de vista mais elevado, e por isso mesmo, de modo mais são; sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; compreendem seus erros, retificam suas ideias e se livram dos preconceitos humanos.
É nisso que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal, e que seus conselhos podem ser mais judiciosos e mais desinteressados que o dos encarnados, na proporção de seu grau de adiantamento. Por outro lado, o meio no qual eles se encontram, lhes permite iniciar-nos nas coisas da vida futura, as quais ignoramos, e que não podemos aprender no lugar em que estamos. Até esta data, o homem não havia criado senão hipóteses sobre o futuro; eis o motivo pelo qual suas crenças a respeito de tal assunto foram divididas em sistemas tão numerosos e tão divergentes, desde o negativismo até às fantásticas concepções do inferno e do paraíso. Hoje, são as testemunhas oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo, que nos veem dizer o que há ali, e isso só eles o poderiam fazer. Portanto, estas manifestações serviram para nos fazer conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do qual não suspeitávamos; e mesmo este conhecimento isolado seria de uma importância capital, se quiséssemos admitir que os Espíritos fossem incapazes de nos ensinar mais alguma coisa.
Se fordes a um país que seja novo para vós, recusareis as informações do mais humilde camponês que encontrardes? Deixareis de interrogá-lo sobre o estado dos caminhos, simplesmente por ser ele um campônio? Certamente não esperareis dele esclarecimentos de alcance muito elevado, porém, do que esteja em sua esfera, ele poderá, sob certos pontos, vos ensinar melhor do que um sábio, que não conhecesse de perto o terreno. Podereis deduzir, de suas indicações, consequências que ele mesmo não poderia alcançar; porém ele não terá sido menos um instrumento útil para vossas observações, mesmo que não houvesse servido senão para vos fazer conhecer os costumes dos camponeses. O mesmo se dá com as nossas relações com os Espíritos, entre os quais mesmo o menor deles pode servir para nos ensinar alguma coisa.
62. Uma comparação vulgar ilustrará ainda melhor a compreensão do assunto.
Um navio carregado de emigrantes parte para um país longínquo; conduz homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vem-se a saber que tal navio naufragou; nenhum traço ficou, nenhuma notícia sobre sua sorte é distribuída; conclui-se que todos os viajantes pereceram, e o luto se estende a todas as famílias. Entretanto, a equipagem toda, sem exceção de um homem sequer, aportou a uma terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes sob um céu clemente; porém, isto é ignorado pelos que ficaram. Eis que certo dia outro navio aborda a mesma terra; ali encontra todos os supostos náufragos, sãos e salvos. A feliz notícia se propaga com a rapidez do relâmpago; cada um diz: "Nossos amigos não estão perdidos!" e eles rendem graças a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam provas de afeto, e eis que a alegria sucede à tristeza.
Tal é a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna; esta, tal como o segundo navio, nos traz a boa nova da sobrevivência dos que nos são caros, e a certeza de nos reunirmos um dia; a dúvida quanto a seu destino e quanto ao nosso, não existe mais; o desencorajamento se desfaz ante a esperança.
Entretanto, outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus permitiu que se erguesse o véu que separava o mundo visível do invisível; considerando que a humanidade está amadurecida para penetrar no mistério de seu destino e para contemplar a sangue-frio novas maravilhas. O fato das manifestações não tem nada de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal, e lhe dizer:
"Nós existimos, logo o nada não existe; eis o que somos e o que sereis; o futuro vos pertence, assim como a nós. Vosso caminho estava nas trevas, e viemos clareá-lo, e vos abrir as vistas; não tínheis direção, indo ao acaso, e nós vos apontamos o objetivo. A vida terrestre era tudo para vós, porque nada era por vós percebido, do lado de lá; nós viemos informar-vos, mostrando-vos a vida espiritual: a vida terrestre nada é. Vossa visão parava no túmulo, nós vos mostramos, além dele, um horizonte esplêndido. Ignoráveis porque sofríeis sobre a terra; agora, no sofrimento, enxergais a justiça de Deus; o bem parecia não produzir frutos, e de agora em diante terá um objetivo e será uma necessidade; a fraternidade não era senão uma bela teoria, e agora assenta-se sobre uma lei da Natureza. Sob o império da crença de que tudo acaba com a morte, a imensidade é vazia, o egoísmo reina entre vós como senhor, e sua palavra de ordem é: "Cada um por si". Com a certeza do futuro, os espaços se povoam ao infinito, o vácuo e a solidão não existem em parte alguma, a solidariedade liga todos os seres, de um lado e de outro do túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Um por todos e todos por um". Enfim, alcançado o termo da vida, dizíeis um eterno adeus aos que vos são caros, enquanto que agora lhes direis: "Até à vista!"
Tais são, em resumo, os resultados da nova revelação; ela veio preencher o vácuo aberto pela incredulidade; reerguer os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva do aniquilamento e dar a todas as coisas a sua razão de ser. Será este um resultado sem importância, porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes, e aos preguiçosos, o meio de enriquecer sem esforço? Entretanto, nem só para a vida futura serão os frutos que o homem deve retirar daí; ele os fruirá na terra, pela transformação que estas novas crenças necessariamente operarão sobre seu caráter, seus gostos, suas tendências e, por consequência, sobre os seus hábitos e relações sociais. Pondo um fim ao reinado do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, elas preparam o reinado do bem, que é o reino de Deus, anunciado pelo Cristo. ([9])
Existência de Deus
1. Sendo Deus a causa primária de todas as coisas, o ponto de partida de tudo, o eixo sobre que repousa o edifício da criação, é o ponto que importa considerar antes de tudo.
2. Constitui princípio elementar que se julgue uma causa pelos seus efeitos, mesmo quando não se veja a causa.
Se um pássaro que corta os ares for atingido por um projétil mortal, deduz-se que um hábil atirador o atingiu, mesmo que não se veja o atirador. Portanto, nem sempre é necessário ter visto uma coisa para saber que ela existe. Em tudo, é observando os efeitos que se chega ao conhecimento das causas.
3. Outro princípio igualmente elementar, tão verdadeiro que é admitido como axioma, é que todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.
Se perguntassem quem é o construtor de um mecanismo engenhoso, que pensaríamos daquele que respondesse que ele se fez a si mesmo? Quando se contempla uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que ela deve ter sido produzida por um homem de gênio, porque só uma alta inteligência poderia concebê-la. Reconhece-se, no entanto, que terá sido obra de um homem, porque se sabe que a coisa não está acima da capacidade humana; mas ninguém dirá que ela saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante, e menos ainda que ela seja o trabalho de um animal, ou o produto do acaso.
4. Por toda parte se reconhece a presença do homem em suas obras. A existência dos homens antediluvianos não seria provada somente pelos fósseis humanos, mas também, e com tanto mais certeza, pela presença nos terrenos da sua época, de objetos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, bastarão para atestar sua presença. Pela grosseria ou pela perfeição do trabalho, se reconhecerá o grau de inteligência e de aperfeiçoamento daqueles que a realizaram. Se, pois, caso vos encontrásseis num país habitado exclusivamente por selvagens e descobrísseis uma estátua digna de Fídias, não hesitaríeis em dizer que ela deverá ter sido obra de uma inteligência superior à dos selvagens, pois estes seriam incapazes de havê-la produzido.
5. Pois bem! Lançando o olhar em torno de si, sobre as obras da Natureza, observando a previdência, a sabedoria, a harmonia que preside a todas as coisas, reconhecemos que nenhuma há que não ultrapasse o mais alto alcance da inteligência humana. Ora, desde que o homem não a pode produzir, é que elas são o produto de uma inteligência superior à humanidade, a não ser que admitamos haver efeito sem causa.
6. A isto, alguns opõem o seguinte raciocínio.
As obras ditas da Natureza são o produto de forças materiais que atuam mecanicamente, como consequência das leis de atração e repulsão; as moléculas dos corpos inertes se agregam e desagregam sob o império dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma em sua espécie, por força dessas mesmas leis; cada indivíduo é semelhante àquele de onde ele saiu; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração, são subordinados a causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. O mesmo sucede com os animais. Os astros se formam pela atração molecular, e se movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da lei da gravitação. Esta regularidade mecânica no emprego das forças naturais não indica uma inteligência autônoma. O homem movimenta seu braço quando quer e como quer; aquele, porém, que o movesse no mesmo sentido, desde seu nascimento até sua morte, seria um autômato; ora, as forças orgânicas da Natureza são puramente automáticas.
Tudo isso é verdadeiro; porém essas forças são efeitos que devem ter uma causa, e ninguém pretende que estas constituam a Divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são inteligentes por si mesmas, o que ainda é verdadeiro; mas são postas em funcionamento, distribuídas, adequadas às necessidades de cada coisa, por uma inteligência que não é a do homem. A aplicação útil destas forças é um efeito inteligente que denota uma causa inteligente. Um pêndulo move-se com regularidade automática, e esta regularidade é que constitui seu mérito. A força que o faz agir é toda material e de nenhum modo inteligente; porém, que seria deste pêndulo se uma inteligência não houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego dessa força, para o fazer funcionar com precisão? Pelo fato de que a inteligência não está no mecanismo do pêndulo, e pelo fato de que ela não é visível, seria racional concluir que ela não existe? Ela é conhecida pelos seus efeitos.
A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o saber do relojoeiro. Quando um relógio vos dá, no momento necessário, a indicação da qual temos necessidade, algum dia terá vindo ao pensamento de alguém, dizer: aí está um relógio bem inteligente?
Assim é com o mecanismo do Universo: Deus não se mostra, mas afirma-se mediante suas obras.
7. A existência de Deus é pois, um fato assente, não só pela revelação, mas também pela evidência material dos fatos. Os povos selvagens não tiveram revelação, e no entanto creem instintivamente na existência de um poder sobre-humano. Eles veem coisas que estão acima do poder humano, e por isso concluem que elas são provenientes de um ente superior à humanidade. Não são eles mais lógicos do que os que pretendem que tais coisas se fizeram a si mesmas?
Da Natureza Divina
8. Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreender Deus ainda nos falta o sentido que não se adquire senão pela completa depuração do Espírito. Mas, se o homem não pode penetrar o conhecimento de sua essência, desde que aceite sua existência como premissa, pode pelo raciocínio chegar ao conhecimento de seus atributos necessários pois, vendo o que ele absolutamente não pode deixar de ser, sem cessar de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser.
Sem o conhecimento dos atributos de Deus seria impossível conhecer a obra de sua criação; esse é o ponto de partida de todas as crenças religiosas e é pelo motivo de que elas não se hajam referido a tais atributos, como ao farol que as poderia dirigir, que a maior parte das religiões tem errado em seus dogmas. As que não têm atribuído a Deus a onipotência, imaginaram muitos deuses; as que não lhe atribuíram soberana bondade, formularam um deus ciumento, colérico, parcial e vingativo.
9. Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, pois não pode fazer nem compreender tudo o que existe. A de Deus, abrangendo o infinito, tem que ser infinita. Se a supuséssemos limitada num ponto qualquer, seria possível conceber um ente ainda mais inteligente, capaz de compreender e de fazer o que o outro não faria, e assim por diante até o infinito.
10. Deus é eterno, o que equivale a dizer que não teve começo, e não terá fim. Tivesse tido um começo, teria saído do nada. Ora, não sendo o nada coisa alguma, coisa nenhuma pode produzir. Ou então, teria sido criado por outro ser anterior; nesse caso, este ser é que seria Deus. Se lhe supuséssemos um começo ou um fim, poderíamos conceber um ser que teria existido antes dele, ou o qual poderia existir depois dele, e assim por diante, até o infinito.
11. Deus é imutável. Caso fosse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam estabilidade alguma.
12. Deus é imaterial, isto é, sua natureza difere de tudo o que denominamos matéria; de outra forma ele não seria imutável, pois seria sujeito às transformações da matéria.
Deus não tem forma perceptível pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, que não conhece senão a si mesmo, toma a si por termo de comparação de tudo o que não compreende. Estas imagens nas quais Deus é representado pela figura de um velho, com barbas compridas, são ridículas; elas têm o inconveniente de rebaixar o Ser supremo às mesquinhas proporções da humanidade; daí vai um passo, o emprestar-lhe as paixões da humanidade, o conceber um Deus colérico e ciumento.
13. Deus é todo-poderoso. Não tivesse a onipotência, seria possível conceber um ser mais poderoso, e assim por diante até que se encontrasse o ente que nenhum outro pudesse ultrapassar em poder e este é que seria Deus.
14. Deus é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se revela nas menores coisas, assim como nas maiores, e essa sabedoria não permite duvidar de sua justiça ou de sua bondade.
O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuísse ou anulasse. Um ente infinitamente bom não poderia conter a mínima parcela de maldade, assim como um ser infinitamente mau não poderia ter a menor parcela de bondade; do mesmo modo, um objeto não pode ser de um negro absoluto, se tiver a mais ligeira nuança de branco, assim como não pode ser de um branco absoluto com a menor mancha preta.
Deus não poderia ser ao mesmo tempo bom e mau, pois então, não possuindo nenhuma de tais qualidades no grau máximo, não seria Deus; todas as coisas seriam submetidas ao seu capricho, e não haveria estabilidade para nada. Ele não poderia ser senão infinitamente bom, ou infinitamente mau; ora, como suas obras testemunham sua sabedoria, sua bondade e sua solicitude, necessariamente se conclui que, não podendo ao mesmo tempo ser bom e mau, sem cessar de ser Deus, deve ser infinitamente bom.
A soberana bondade implica na soberana justiça; pois se ele agisse injustamente ou com parcialidade numa só circunstância, ou em relação a uma só de suas criaturas, não seria soberanamente justo, e, por consequência, não seria soberanamente bom.
15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber Deus sem o infinito das perfeições, sem o que ele não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ente que possuísse aquilo que lhe faltasse. Para que algum ser não lhe possa ultrapassar, é necessário que ele seja infinito em tudo.
Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são suscetíveis de aumento nem de diminuição, sem o que não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se retirássemos a menor parcela de um só de seus atributos, já não teríamos Deus, pois seria possível existir um ser mais perfeito.
16. Deus é único. A unidade de Deus é a consequência do infinito absoluto de suas perfeições. Um outro Deus não poderia existir senão com a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas; pois se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado a seu poder, e não seria Deus. Se houvesse entre eles igualdade absoluta, isto equivaleria a existir, por toda a eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder; assim confundidos em sua identidade, isso não resultaria, na realidade, senão um só Deus. Caso eles tivessem atribuições especiais, um faria o que o outro não fizesse, e portanto não haveria entre eles igualdade perfeita, pois nem um nem o outro teria a soberana autoridade.
17. A ignorância do princípio das perfeições de Deus é que engendrou o politeísmo, culto de todos os povos primitivos; eles atribuíram divindade a todo poder que lhes pareceu estar acima da humanidade; mais tarde, a razão os conduziu a confundir estes diversos poderes num só. Depois, à medida que os homens compreenderam a essência dos atributos divinos, retiraram dos símbolos, que haviam criado, a crença que implicava na negação desses atributos.
18. Em resumo, Deus não pode ser Deus senão com a condição de não ser ultrapassado em nada por outro ente; pois, então, o verdadeiro Deus seria aquele que o ultrapassasse em qualquer assunto mesmo que não excedesse da espessura de um cabelo; para que tal não se dê, é preciso que ele seja infinito em todas as coisas.
É por esta forma que, constatando-se a existência de Deus pelas suas obras, chega-se a determinar os atributos que o caracterizam, mediante simples dedução lógica.
19. Deus é, pois, a suprema e soberana inteligência; é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições, e não pode deixar de ser assim.
Tal é o eixo sobre o qual repousa o edifício universal; é o farol do qual os raios se estendem sobre o universo inteiro, o único que pode guiar o homem em sua pesquisa da verdade; ao segui-lo, não se extraviará nunca; e se tem se desencaminhado com tanta frequência, é por não ter seguido o caminho que lhe é indicado.
Tal é também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas; para julgá-las, o homem tem um padrão rigorosamente exato nos atributos de Deus, e ele pode afirmar a si mesmo, com certeza, que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática, que esteja em contradição com um só destes atributos, que tenda não só a anulá-los, mas simplesmente a enfraquecê-los, não pode estar com a verdade.
Em Filosofia, em Psicologia, em moral, em religião, nada há de verdadeiro que não esteja conforme às qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita seria aquela da qual nenhum artigo de fé estivesse em oposição com estas qualidades, da qual todos os dogmas possam suportar a prova deste controle, sem dele receber nenhuma contradita.
A Providência
A providência é a solicitude de Deus pelas suas criaturas. Deus está em toda parte, tudo vê, a tudo preside, mesmo às menores coisas: é nisto que consiste sua ação providencial.
"Como é que Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, pode imiscuir-se em detalhes ínfimos, preocupar-se com os menores atos e com os menores pensamentos de cada indivíduo? Essa é a pergunta que a si mesmo faz o incrédulo, de onde ele conclui que ao admitir a existência de Deus, sua ação não deve estender-se senão às leis gerais do universo; que o universo funciona por toda a eternidade em virtude destas leis às quais cada criatura está submetida em sua esfera de atividade, sem que seja necessário o incessante concurso da Providência."
21. Em seu estado atual de inferioridade, os homens não podem compreender o Deus infinito, senão com enorme dificuldade, pois que eles mesmos são restritos e limitados e, portanto, eles o consideram restrito e limitado como eles mesmos. A representação que dele fazem é a de um ente circunscrito, e fazem dele uma imagem à sua própria semelhança. Nos quadros que o pintam, sob traços humanos, não contribuem pouco à fomentação deste erro no espírito das massas, que nele adoram mais a forma que o pensamento. No conceito do maior número, é um soberano poderoso, sobre um trono inacessível, perdido na imensidão dos céus, e devido ao fato de que suas faculdades e suas percepções são restritas não compreendem que Deus possa ou ouse intervir diretamente nas pequenas coisas.
21. Na impotência em que se encontra o homem, de compreender a própria essência da Divindade, não pode fazer dela senão uma ideia aproximativa, com o auxílio de comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que pelo menos podem mostrar-lhe a possibilidade daquilo que, à primeira tentativa, lhe parece impossível.
Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos; este fluido, sendo não inteligente, age mecanicamente, seguindo unicamente as leis materiais; mas se supusermos que este fluido seja dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, agirá, não mais cegamente, mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, ouvirá e sentirá.
23. As propriedades do fluido perispiritual podem dar-nos uma ideia. Por si mesmo, não é inteligente, eis que é matéria; mas é o veículo do pensamento, das sensações e das percepções do Espírito.
O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas sim o agente e o intermediário desse pensamento; como é ele que o transmite, de alguma forma está impregnado pelo pensamento, e dada a impossibilidade em que estamos de o isolar, parece-nos ser íntegro com o ar, de modo que podemos, por assim dizer, materializá-lo. Da mesma forma pela qual dizemos que o ar torna-se sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.
24. Quer seja assim, ou não, com o pensamento de Deus, isto é, quer ele atue diretamente, ou pelo intermediário de um fluido, para facilidade de nossa inteligência, nós o representamos sob a forma concreta de um fluido inteligente, que enche o universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está imersa no fluido divino; ou, segundo o princípio de que as partes de um todo são da sua mesma natureza, e têm as mesmas propriedades que o todo, cada átomo desse fluido, se assim podemos exprimir-nos, possui o pensamento, isto é, os atributos essenciais da Divindade, e já que tal fluido está em toda a parte, tudo é submetido à sua ação inteligente, à sua previsão, à sua solicitude; não há um ser, ínfimo que o possamos supor, que não seja saturado por ele, de alguma forma. Estamos assim constantemente na presença da Divindade; não há sequer uma de nossas ações que possamos subtrair à sua consideração; nosso pensamento está em incessante contato com seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus jaz nas mais profundas dobras de nosso coração. Estamos nele, como ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.
Para estender sua solicitude a todas as suas criaturas, Deus não tem, pois, necessidade de mergulhar seu olhar, do alto de sua imensidade; nossas orações, para serem ouvidas por ele, não têm necessidade de atravessar o espaço, nem serem proferidas com voz ressoante, pois sem cessar a nosso lado, nossos pensamentos repercutem nele. Nossos pensamentos são como os sons de um sino que faz vibrar todas as moléculas do ar ambiente.
25. Longe de nós o pensamento de materializar a Divindade; a imagem de um fluido universal não é evidentemente senão uma comparação, apenas adequada a dar uma ideia mais justa de Deus, que os quadros que o representam sob uma figura humana; ela tem por objeto fazer compreender a possibilidade de estar Deus em toda parte e de se ocupar de tudo.
26. Temos incessantemente sob nossos olhos um exemplo que pode dar-nos uma ideia pela qual a ação de Deus pode exercer-se sobre as partes mais íntimas de todos os seres, e por conseguinte, como as impressões mais sutis de nossa alma chegam a ele. Extraímo-la de uma instrução dada por um Espírito, acerca desse assunto.
27. "O homem é o corpo. Neste universo, o corpo representará uma criação da qual o Espírito seria Deus. (Deveis compreender que aqui não se trata de uma questão de identidade, mas sim de analogia.) Os membros desse corpo, os diversos órgãos que o compõem, seus músculos, seus nervos, suas articulações, são outras tantas individualidades materiais, se assim o podemos dizer, localizadas num recanto especial do corpo; embora seja considerável o número de suas partes constitutivas, tão variadas e tão diversas em sua natureza, entretanto, ninguém duvida que o corpo não pode por si produzir movimentos, assim como uma impressão qualquer não pode ocorrer numa parte qualquer, sem que o Espírito tenha consciência de tal movimento ou de tal impressão. Há sensações diversas, simultâneas, em diversos lugares? O Espírito as registra todas, distingue-as, atribui a cada uma sua causa e seu lugar de ação, por intermédio do fluido perispiritual.
"Um fenômeno análogo ocorre entre a criação de Deus. Deus está em toda parte, na Natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo; todos os elementos da criação estão em constante relação com ele, como todas as células do corpo humano estão em contato imediato com o ser espiritual; não há, pois, nenhuma razão para que os fenômenos da mesma ordem não se produzam pela mesma forma, num e noutro caso.
"Um membro se agita; o Espírito o sente; uma criatura pensa; Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diversos órgãos são postos em vibração; o Espírito registra cada manifestação, as distingue e as localiza. As diversas criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem de modos diversos e Deus sabe tudo o que se passa, designa a cada um só o que lhe é particular.
"Igualmente se pode deduzir a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade de todos os entes de um mundo entre si, a solidariedade de todos os mundos, e a solidariedade enfim, das criações e do Criador." (Quinemant, Societé de Paris, 1867).
28. Compreendemos o efeito, já é muito; do efeito remontamos à causa, e avaliamos sua grandeza pela grandeza do efeito; porém sua essência íntima nos escapa, assim como acontece com a causa de uma quantidade de fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; chegamos a calculá-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. Será pois, mais racional, negar o princípio divino, porque não o compreendemos?
29. Nada impede que se admita, pelo princípio de soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal que irradia sem cessar, inundando o universo com seus eflúvios, tal como o sol faz com sua luz. Porém, onde está este foco? É o que ninguém pode dizer. É provável que ele não se encontre fixado sobre um ponto determinado, assim como sua ação não é também fixada, e que ele percorra incessantemente as regiões do espaço sem limites. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, esta faculdade, em Deus, deve ser sem limites. Se Deus enche o Universo, poder-se-ia admitir, ainda, a título de hipótese, que tal foco não tem necessidade de se transportar, e que ele se forma sobre todos os pontos onde a soberana vontade julga ser seu propósito ali produzir-se, com o que se poderia dizer que ele está em toda parte, e em parte alguma.
30. Diante de tais problemas insondáveis, nossa razão deve humilhar-se. Deus existe; disso, não saberíamos duvidar; é infinitamente justo e bom; isso é sua essência; sua solicitude se estende a todos; nós o compreendemos; ele não pode, pois, querer senão o nosso bem, e por isso devemos ter confiança nele; é o essencial; quanto ao mais, procuremos ser dignos de compreendê-lo.
A Visão de Deus
31. Já que Deus está em toda parte, por que não o vemos? Será que o veremos quando deixarmos a terra? Tais são as interrogações que diariamente se nos defrontam.
A primeira, é fácil de ser respondida; nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam impróprios à visão de certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa visão e a nossos instrumentos de análise e mesmo assim não duvidamos de sua existência. Vemos os efeitos da peste, e não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos se moverem sob a influência da força da gravitação e não vemos essa força.
32. As coisas de essência espiritual não podem ser percebidas por órgãos materiais; não é senão pela visão espiritual que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; unicamente, pois nossa alma pode ter a percepção de Deus. Ela o vê imediatamente após a morte? É assunto que somente nos pode ser ensinado pelas comunicações de além-túmulo. Por elas, sabemos que a visão de Deus não é privilégio senão das almas mais purificadas, e também que ao deixar o envoltório terrestre, poucas possuem o grau de desmaterialização para isso necessário. Uma comparação vulgar tornará o assunto facilmente compreensível.
33. Quem estiver no fundo de um vale, imerso numa bruma espessa, não vê o sol; entretanto, pela luz difusa, avalia a presença do sol. Se escala a montanha, à medida que sobe, a névoa se esclarece, a luz torna-se cada vez mais viva, porém ainda ele não vê o sol. Não é senão depois que o observador se elevou completamente acima da camada brumosa, que, ao se encontrar no ar perfeitamente puro, ele o vê em todo o seu esplendor.
Assim acontece com a alma. O envoltório perispiritual, se bem que seja invisível e impalpável aos nossos sentidos, é para a alma uma verdadeira matéria, ainda demasiado grosseira para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como camadas brumosas que obscurecem sua visão; cada imperfeição de que ela se desfaz é uma mancha a menos; porém, não é senão depois que ela se haja purificado completamente que goza da plenitude de suas faculdades.
34. Deus, sendo a essência divina por excelência, não pode ser percebido em todo o seu esplendor, senão pelos Espíritos que hajam alcançado o mais elevado grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o veem, não é que estejam mais afastados dele que os outros; tal como eles, como todos os seres da Natureza, estão mergulhados no fluido divino, como o estamos na luz; apenas, suas imperfeições são como vapores que o furtam à sua visão; quando a névoa se houver dissipado, eles o verão resplandecer; para tal alcançar, não terão necessidade nem de subir, nem de ir buscá-lo nas profundezas do infinito; estando a visão espiritual desembaraçada das membranas morais que a obscurecem, eles o verão em qualquer lugar em que se encontram, mesmo que seja sobre a terra, pois ele está em toda parte.
35. O Espírito não se purifica senão com vagar e as diversas encarnações são os alambiques em cujo fundo ele deixa, de cada vez, algumas de suas impurezas. Ao deixar seu envoltório corporal, não se despoja instantaneamente de suas imperfeições; é por isso que há muitos que, após a morte, não veem Deus, tanto quanto não o viam enquanto eram vivos; porém, à medida que se depurem, têm dele uma intuição mais nítida; se eles não o veem, já o compreendem melhor: a luz é menos difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus os proíbe de responder a tal pergunta, não é que Deus lhes apareça, ou lhes dirija a palavra para lhes proibir algo ou para lhes interditar de fazer tal ou qual coisa; porém eles o sentem; recebem os eflúvios de seu pensamento tal como a nós sucede com relação aos Espíritos que nos rodeiam com seus fluidos, embora não os vejamos.
36. Certo, pois, que nenhum homem pode ver Deus, com os olhos da carne. Se tal favor fosse concedido a alguns, isso não se daria senão num estado de êxtase, no qual a alma estará tão desligada dos laços da matéria quanto possível durante a encarnação. Aliás, um tal privilégio não será concedido senão às almas de eleição, encarnadas em missão e não em expiação. Porém, como os Espíritos da ordem mais elevada resplendem com um brilho deslumbrante, pode ocorrer que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, impressionados com o esplendor que os rodeia, tenham acreditado ver o próprio Deus. O mesmo sucede quando um ministro é considerado em lugar do seu soberano.
37. Sob qual aparência Deus se apresenta aos que se hajam tornado dignos de tal favor? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um foco resplandecente de luz? Isso é algo em que a linguagem humana se revela impotente para descrever, porque para nós não existe nenhum ponto de comparação que nos possa dar dele uma ideia; somos como cegos a quem em vão se procuraria fazer compreender o brilho do sol. Nosso vocabulário é limitado às nossas necessidades e ao círculo de nossas ideias; a linguagem dos selvagens não poderia reproduzir as maravilhas da civilização; a dos povos mais civilizados é demasiado pobre para descrever os esplendores dos céus; nossa inteligência é demasiado limitada para os compreender, e nossa visão demasiado fraca seria por eles ofuscada.
Origem do Bem e do Mal — O Instinto e a Inteligência — Destruição dos Seres Vivos uns pelos Outros
Origem do Bem e do Mal
1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas, e sendo tal princípio todo sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo que dele provém deve participar de seus atributos, pois que aquilo que é infinitamente sábio, justo e bom, não pode produzir nada que seja desrazoável, mau e injusto. Portanto, o mal que observamos não pode ter sua origem nele.
2. Se o mal fosse atribuição de um ente especial, chamado Ahriman ou Satanás, de duas coisas uma ou tal entidade seria igual a Deus, e por conseguinte tão poderosa quanto ele e teria existido por toda a eternidade como ele, ou lhe seria inferior.
No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que a outra houvesse feito, contrariando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de visão que se revela na disposição do universo.
No segundo caso, sendo esta entidade inferior a Deus, ser-lhe-ia subordinada; não podendo ter existido, como ele, por toda a eternidade; sem ser seu igual, teria tido um começo; se ele foi criado, não o pode ter sido, senão por Deus; Deus teria assim criado o Espírito do mal, o que seria a negação da infinita bondade. (Vide `O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo', Cap. X, `Os Demônios'.)
3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa.
Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a humanidade, apresentam duas categorias que é necessário distinguir: tais são os males que o homem pode evitar, e os que são independentes de sua vontade. Entre estes últimos, colocam-se os flagelos naturais.
O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abarcar o conjunto das finalidades do Criador; julga as coisas do ponto de vista de sua personalidade, dos interesses de grupos e das convenções que para si criaram, as quais não existem na ordem da Natureza; é por isso que ele frequentemente encontra coisas más e injustas, as quais consideraria justas e admiráveis, se percebesse suas causas, sua finalidade e o resultado final. Procurando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz o sinal da sabedoria infinita e ele se inclinará diante de tal sabedoria, mesmo em relação às coisas que não compreende.
4. O homem recebeu como partilha uma inteligência com cujo auxílio pode anular, ou pelo menos em grande parte atenuar, os efeitos de todos os flagelos naturais; quanto mais saber adquire e mais avança em civilização, menos são desastrosos tais flagelos; com uma organização social sabiamente previdente poderá mesmo neutralizar as suas s, uma vez que não as poderá evitar totalmente. Deus deu ao homem, pelas faculdades de que dotou o seu Espírito, os meios de paralisar no futuro até mesmo os efeitos daqueles flagelos que têm sua utilidade no quadro geral da Natureza, os quais, contudo, atualmente atingem os homens no presente.
É assim que ele saneia os terrenos insalubres, neutraliza os miasmas pestilentos, fertiliza os terrenos incultos e exerce seu engenho na preservação das inundações; edifica para si habitações mais sadias, mais sólidas, a fim de resistir aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera e coloca-se ao abrigo das intempéries; é assim, enfim, que pouco a pouco, a necessidade o estimula à criação das ciências, com cujo auxílio melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta a soma do seu bem-estar.
5. Como o homem deve progredir, os males os quais está exposto são um estimulante ao exercício de sua inteligência, de todas as faculdades físicas e morais, mediante o incitamento à pesquisa dos meios de se subtrair aos mesmos males. Se nada receasse, nenhuma necessidade o levaria à busca do que é melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria e nada descobriria. A dor é o aguilhão que empurra o homem para a frente na via do progresso.
6. Porém os males mais numerosos são aqueles que o homem criou para si, por seus próprios vícios, aqueles que provêm de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua cobiça, de seus excessos em todas as coisas; aí está a causa das guerras e das calamidades que elas geram, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo mais forte, enfim, da maior parte das moléstias.
Deus estabeleceu leis cheias de sabedoria, as quais não têm outra finalidade senão o bem; o homem encontra em si mesmo tudo o que é necessário para segui-las; seu caminho é traçado por sua consciência; a lei divina está gravada em seu coração; e além disso, Deus as faz lembrar sem cessar, por seus messias e seus profetas, por todos os Espíritos encarnados que receberam a missão de esclarecê-lo, moralizá-lo, aperfeiçoá-lo, e nestes últimos tempos, pela multidão de Espíritos desencarnados que se manifestam em todos os lugares. Se o homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas, não é duvidoso que evitaria os males mais amargos, e que viveria feliz sobre a terra. Se não o faz, é em virtude de seu livre-arbítrio, e disso ele sofre as consequências. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V, ns. 4, 5, e 6 e seguintes).
7. Deus, porém, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal, isto é, do próprio mal faz sair o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral torna-se intolerável e faz com que o homem sinta necessidade de mudar de caminho; instruído pela experiência, é compelido a procurar um remédio no bem, sempre por efeito de seu livre-arbítrio; quando penetra num caminho melhor, o faz por efeito de sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro traçado. A necessidade o obriga a se melhorar moralmente pelo desejo de ser mais feliz, assim como esta mesma necessidade o impeliu a melhorar as condições materiais de sua existência (nº 5).
8. Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a falta de calor. O mal não é um atributo distinto, assim como o frio não é um fluido especial; um é a negação do outro. Onde o bem não existe, forçosamente existe o mal; deixar de fazer o mal já é o começo do bem. Deus não quer senão o bem; o mal provém unicamente do homem. Se na criação houvesse um ser predisposto ao mal, ninguém o poderia evitar; porém, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, e tendo ao mesmo tempo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitará o mal quando quiser.
Tomemos para comparação um fato vulgar. Um proprietário sabe que a extremidade de seu campo é um lugar perigoso no qual poderia perecer ou machucar-se quem ali se aventurasse. Que faz ele para evitar os acidentes? Coloca nas proximidades de tal lugar, um aviso proibindo que prossigam os que por ali passem, devido ao perigo. Eis a lei; ela é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente não lhe dá atenção e ultrapassa tal lugar, e se assim chega a um mau resultado, a quem poderá ele responsabilizar, senão a si mesmo?
Assim sucede com todo o mal; o homem o evitaria se observasse as leis divinas; para exemplificar, Deus colocou um limite à satisfação de suas necessidades; o homem é advertido à saciedade; se ultrapassa esse limite, o faz voluntariamente. As moléstias, as enfermidades, a morte que delas podem resultar, são o resultado de sua imprevidência, e não de ato de Deus.
9. Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem, e sendo o homem criado por Deus, dir-se-ia, ter Deus criado senão o mal, pelo menos a causa do mal; tivesse ele feito o homem perfeito, o mal não existiria.
Se o homem tivesse sido criado perfeito, seria levado fatalmente ao bem; ora, em virtude de seu livre-arbítrio, ele não é fatalmente levado, nem ao bem, nem ao mal. Deus quis que ele fosse submetido à lei do progresso e que esse progresso fosse o fruto de seu próprio trabalho, a fim de que tivesse o mérito desse trabalho, do mesmo modo que carrega a responsabilidade do mal que é feito por sua vontade. Levanta-se, pois, a questão, de saber qual é no homem a fonte da propensão para o mal. ([10])
10. Se estudarmos todas as paixões, e assim também todos os vícios, veremos que ambos têm seu princípio no instinto de conservação. Tal instinto existe com toda sua força, nos animais e nos seres primitivos que se aproximam mais à animalidade; aí ele domina sozinho, porque em tais seres, ainda não tem o contrapeso do senso moral; o ser ainda não nasceu na vida intelectual. Ao contrário, o instinto se enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, pois que a inteligência domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual; porém, nas primeiras fases de sua existência corporal, apenas tem necessidades materiais a satisfazer, e com vistas a esta finalidade o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Entretanto, saindo desse período, tem outras necessidades; a princípio, necessidades semimorais e semimateriais, e depois, exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria; se ele abala o jugo da matéria, avança em sua estrada providencial, aproxima-se de seu destino final. Se, ao contrário, deixa dominar-se por ela, o Espírito se retarda, assemelhando-se ao bruto. Nesta situação, o que outrora era um bem, porque era uma necessidade de sua natureza, torna-se um mal, não somente porque não é mais uma necessidade, mas porque tal se torna nocivo à espiritualização do ser. De modo semelhante; o que é qualidade na criança torna-se defeito no adulto. Assim, o mal é relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de progresso.
Logo, todas as paixões têm sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito algo de inútil e de nocivo. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa em virtude de seu livre-arbítrio. Mais adiante, esclarecido por seu próprio interesse, ele escolhe livremente entre o bem e o mal.
O Instinto e a Inteligência
11. Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde termina um e começa a outra? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?
O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos à realização de atos espontâneos e involuntários, em vista à sua conservação. Nos atos instintivos, não há reflexão, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, gira em direção à luz, dirige suas raízes para a água e para a terra nutritiva; que a flor se abre e se fecha alternativamente, segundo sua necessidade; que as plantas trepadeiras se enrolam em torno de seu apoio; ou se enroscam com suas gavinhas. É pelo instinto que os animais são advertidos do que lhes é útil ou prejudicial; que, nas estações propícias, se movimentam em direção aos climas propícios; que, sem lições preliminares, constroem, com mais ou menos arte, segundo as espécies, acomodações macias e abrigos para sua descendência, ou armadilhas para prender a presa de que se nutrem; que manejam com habilidade as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam; que a mãe incuba seus filhotes e que estes procuram o seio materno. Quanto ao homem, o instinto domina com exclusividade, no começo da vida; é pelo instinto que o infante faz seus primeiros movimentos, que agarra seu sustento, que chora para exprimir suas necessidades, que imita o som da voz, que ensaia a fala e o andar. Mesmo no adulto, certos atos são instintivos: os movimentos espontâneos para evitar um perigo, para se livrar de um desastre, para manter o equilíbrio; tais são ainda, o piscar das pálpebras para diminuir o brilho da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.
12. A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. Incontestavelmente, isto é um atributo exclusivo da alma.
Todo ato maquinal é instintivo; o que denota reflexão, combinação, uma deliberação, é intelectivo; um é livre o outro não o é.
O instinto é um guia seguro, que jamais se engana; a inteligência, pelo fato de ser livre, é por vezes sujeita a erro.
Se o ato instintivo não tem o caráter do ato inteligente, não obstante, revela uma causa inteligente, essencialmente previsora. Admitindo que o instinto tem sua fonte na matéria será preciso admitir que a matéria é inteligente, e mesmo mais seguramente inteligente e previdente que a alma, eis que o instinto não se engana jamais, ao passo que a inteligência se engana.
Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar, como é que assim poderá ser, quando, em certos casos, ele se demonstra superior à inteligência racional? Como é que proporciona a possibilidade de executar coisa que a razão não pode produzir?
Se ele é o atributo de um princípio espiritual especial, o que é feito deste princípio? Depois que o instinto se apaga, esse princípio seria pois anulado? Se os animais apenas são dotados de instinto, seu futuro não tem saída; seus sofrimentos não teriam nenhuma compensação. Tal não seria conforme à justiça e à bondade de Deus. (Cap. II, Nº 19).
13. Segundo um outro sistema, o instinto e a inteligência teriam um único e mesmo princípio; chegado a um certo grau de desenvolvimento, este princípio, que começaria apenas com as qualidades do instinto, sofreria uma transformação que lhe conferiria as qualidades da inteligência livre.
Sendo assim, no homem inteligente que perde a razão, e apenas é guiado pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo; e, desde que recupere a razão, o instinto voltaria a ser inteligência, e assim alternativamente em cada acesso, o que não é admissível.
Além disso, a inteligência e o instinto se apresentam frequentemente ao mesmo tempo, no mesmo ato. Com o andar, por exemplo, as pernas se movem de modo instintivo; o homem coloca um pé adiante do outro, maquinalmente, sem nada considerar; porém, quando quer diminuir ou acelerar sua marcha, erguer o pé ou desviar-se para evitar um obstáculo, aí há cálculo, combinação; ele age de modo deliberado. O impulsionamento involuntário do movimento é o ato instintivo; a direção calculada do movimento é o ato inteligente. O animal carniceiro é impelido pelo instinto a nutrir-se de carne; porém, as precauções que ele toma, as quais variam segundo a circunstâncias, a fim de agarrar sua presa, sua previsão com relação às eventualidades, são atos de inteligência.
14. Uma outra hipótese que, por fim, alia-se perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previsor do instinto, e concorda com o que o Espiritismo nos ensina, a respeito das relações do mundo espiritual e do mundo corporal.
Atualmente, sabe-se que há Espíritos desencarnados que têm por missão velar sobre os encarnados, de quem são protetores e guias; que eles os rodeiam com seus eflúvios fluídicos; que o homem age de maneira inconsciente sob a ação de tais eflúvios.
Por outro lado, sabe-se que o instinto, que por si próprio produz atos inconscientes, predomina nas crianças, e em geral nas criaturas cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, mas sim, seria um efeito da ação direta dos protetores invisíveis que supririam a imperfeição da inteligência, provocando eles mesmos os atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria como os andadores com as quais se sustenta a criança que ainda não sabe andar. No entanto, da mesma forma que se suprime gradualmente o uso dos andadores, à medida que a criança se sustenta por si, os Espíritos protetores deixam seus protegidos entregues a si mesmos, à medida em que eles possam se guiar por sua própria inteligência.
Assim, o instinto, longe de ser o produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, seria o efeito de uma inteligência estranha na plenitude de sua força; seria uma inteligência protetora, que supriria a insuficiência, seja de uma inteligência mais jovem, que ela impediria à realização inconsciente de seu bem, que ainda seria incapaz de obter por si própria, seja de uma inteligência madura, mas momentaneamente entravada no uso de suas faculdades, o que ocorre no homem em sua infância, e no caso de idiotia, ou de afecções mentais.
Proverbialmente se diz que há um deus para as crianças, os loucos e os bêbados; este ditado é mais certo do que por vezes se crê; este deus não é senão o Espírito protetor que vela sobre o ser, incapaz de se proteger por sua própria razão.
15. Nesta ordem de ideias, pode-se ir mais longe. Esta teoria, embora seja racional, não resolve todas as dificuldades da questão.
Se observarmos os efeitos do instintivo, nota-se a princípio uma unidade de vista e de conjunto, uma segurança de resultados que não existem mais, desde que o instinto seja substituído pela inteligência livre; além disso, na adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento, e a unidade de pensamento é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; somente ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente harmonioso que se estende desde a origem dos tempos e em todos os climas, com regularidade e precisão matemáticas, sem falhar jamais. A uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um traço característico, que implica necessariamente na unicidade da causa; se esta causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instinto quantos indivíduos há, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante, deve ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que demonstra a sabedoria e a previdência deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente será necessariamente inteligente, e não pode ser exclusivamente material.
Não se encontrando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as qualidades necessárias para produzir tal resultado, é preciso subir mais alto, isto é, ao próprio Criador. Se nos reportarmos à explicação que foi dada sobre a maneira pela qual se pode conceber a ação providencial (Cap. II, nº 24), se figurarmos todos os seres como penetrados pelo fluido divino, soberanamente inteligente, logo se compreenderá a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Essa solicitude é tanto mais ativa quanto o indivíduo tenha menos recursos em si mesmo e em sua própria inteligência; é por isso que ela se mostra maior e mais absoluta com os animais e com os seres inferiores do que com o homem.
Conforme esta teoria, compreende-se que o instinto seja um guia certo e seguro. O instinto material, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, acha-se novamente elevado e enobrecido. Em razão de suas consequências, não seria preciso que ele fosse entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através do órgão da mãe, o próprio Deus vela sobre suas criaturas nascentes.
16. Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos Espíritos protetores, cujo concurso é um fato verificado e provado pela experiência; porém, deve-se notar que a ação deles é essencialmente individual, que ela se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido, e que não tem parte alguma na uniformidade e na generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz os cegos, mas confia à inteligência livre o cuidado de conduzir os que enxergam, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores é um dever que eles aceitam voluntariamente, e que para eles é um meio de progresso, segundo a maneira pela qual a executam.
17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas, e nenhuma delas tem um caráter suficiente de autenticidade para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente resolvida algum dia, quando se houver reunido os elementos de observação que agora ainda faltam; até então, é preciso que nos limitemos a apresentar as opiniões diversas ao cadinho da razão e da lógica e aguardar que se faça a luz; a solução que mais se aproxima da verdade será necessariamente aquela que melhor corresponda aos atributos de Deus, isto é, à sua soberana bondade e à sua soberana justiça (Cap. II, nº 19).
18. O instinto é o guia e as paixões são as molas das almas no primeiro período de seu desenvolvimento, e por isso são por vezes confundidos em seus efeitos. No entanto, há entre estes dois princípios diferenças que é preciso considerar.
O instinto é um guia seguro, sempre bom; num certo tempo, pode tornar-se inútil, porém jamais nocivo; enfraquece, pela predominância da inteligência.
As paixões, nas primeiras idades da alma, têm isso de comum com o instinto, que os seres são por elas solicitados por uma força igualmente inconsciente. Elas nascem mais particularmente das necessidades do corpo, e mais que o instinto, se prendem ao organismo. O que as distingue do instinto, sobretudo, é que são individuais e não produzem efeitos gerais e uniformes, como este; ao contrário, vemos que elas variam de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. Elas são úteis, como estimulantes, até que se dê a eclosão do senso moral, o qual, de um ente passivo, faz um ser razoável; nesse momento, elas se tornam não só inúteis, mas também prejudiciais ao progresso do Espírito de quem retardam a desmaterialização; elas se enfraquecem com o desenvolvimento da razão.
19. O homem que não agisse senão pelo instinto, de modo constante, poderia ser bom, mas deixaria dormir sua inteligência; seria como o menino que não abandonasse os andadores e não saberia servir-se de seus membros. Aquele que não se assenhoreia de suas paixões pode ser muito inteligente, mas ao mesmo tempo, poderá ser muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões não são domadas senão pelo esforço da vontade.
Destruição dos Seres Vivos uns Pelos Outros
20. A destruição recíproca dos seres vivos é uma das leis da Natureza, a qual, à primeira vista, menos parece conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se o porquê da necessidade de entredestruição, para que uns se nutram à custa dos outros.
Para aquele que não considera senão a matéria, que limita sua visão à vida presente, isso parecerá com efeito uma imperfeição na obra divina. É que em geral os homens julgam a perfeição de Deus por seu próprio ponto de vista; sua própria opinião é a medida de sua sabedoria, e pensam que Deus não poderia fazer melhor do que eles próprios o fariam. Sua visão curta não lhes permite julgar o conjunto, e eles não compreendem que um bem real pode resultar de um mal aparente. O conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e da grande lei de unidade que constitui a harmonia da criação é o único que pode dar ao homem a chave desse mistério e lhe mostrar a sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde ele não enxergava senão uma anomalia e uma contradição.
21. A verdadeira vida, do animal, tal como a do homem, não se encontra no envoltório corporal, como também não se encontra em seu vestuário; ela está no princípio inteligente, que preexiste, e que sobrevive ao corpo. Este princípio tem necessidade do corpo para se desenvolver pelo trabalho que deve realizar sobre a matéria bruta; o corpo se gasta neste trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, dele sai cada vez mais forte, mais lúcido e mais capaz. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos de envoltório! Nem por isso, ele será menos Espírito; é exatamente como se um homem renovasse cem vezes suas roupas no decurso de um ano; nem por isso, seria menos homem.
Pelo incessante espetáculo da destruição, Deus ensina aos homens o pouco apreço que devem dar a seu veículo material, e suscita neles a ideia da vida espiritual, fazendo com que eles a desejem como compensação.
Dir-se-á: e Deus não poderia chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem obrigar os seres vivos a se entredestruírem? Se tudo é sabedoria em sua obra, devemos supor que esta sabedoria não deve apresentar falha neste ponto, assim como nos demais; se não a compreendemos, devemos experimentar procurar a justificativa, tomando por bússola este princípio: Deus deve ser infinitamente justo e sábio; procuremos pois, em tudo, sua justiça e sua sabedoria, e inclinemo-nos diante do que ultrapassa nosso conhecimento.
22. Uma primeira utilidade que se apresenta nesta destruição, utilidade puramente física, certamente, é esta: os corpos orgânicos não se alimentam senão com a ajuda de matérias orgânicas, uma vez que estas matérias são as únicas que contêm os elementos nutritivos necessários à sua transformação. Os corpos, instrumentos de ação do princípio inteligente, têm necessidade de ser incessantemente renovados; a Providência os faz servir a seu mútuo alimento; é por isso que os seres se nutrem uns dos outros; então, é o corpo que se nutre do corpo, porém o Espírito não se aniquilou, nem se alterou; apenas, despojou-se de seu invólucro. ([11])
23. Além disso, há considerações morais de ordem mais elevada.
A luta é necessária ao desenvolvimento do Espírito; é na luta que ele exerce suas faculdades. Aquele que ataca a fim de obter seu alimento, e aquele que se defende para conservar sua vida, fazem uso da habilidade e da inteligência, e por isso mesmo, aumentam suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas o que é que, na realidade, o mais forte ou o mais hábil levou do mais fraco? Seu vestuário de carne, nada mais; o Espírito, que não morre, mais tarde retomará outra vestimenta.
Nos seres inferiores da criação, naqueles em que não existe o senso moral, nos quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não teria por móvel senão a satisfação de uma necessidade material; ora, uma das necessidades materiais mais imperiosas é a da nutrição; lutam, pois, unicamente para viver, isto é, para tomar ou defender uma presa, pois não seriam estimulados por um móvel mais elevado. É neste primeiro período que a alma se elabora e se ensaia na vida. No homem, há um período de transição no qual mal ele se distingue do bruto; nas primeiras idades, o instinto animal domina e a luta tem ainda por móvel, a satisfação das necessidades materiais; mais tarde, o instinto animal e o sentimento moral se contrabalançam, o homem então luta, não mais para se nutrir, mas para satisfazer sua ambição, seu orgulho, a necessidade de dominar; para isso, ainda lhe é necessário destruir. Porém, à medida que o senso moral predomina, a sensibilidade se desenvolve, a necessidade da destruição diminui; termina mesmo por se extinguir e por tornar-se odiosa; então, o homem passa a ter horror ao sangue.
Entretanto, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegado a este ponto que nos parece culminante, está longe de ser perfeito; não é senão à custa de sua atividade que ele adquire conhecimentos, experiência e que se despoja dos derradeiros vestígios da animalidade; mas a partir desse momento, a luta, que era sangrenta e brutal, torna-se puramente intelectual; o homem luta contra as dificuldades e não mais contra seus semelhantes. ([12])
1. A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a de sua religião — é por isso que seus primeiros livros foram livros religiosos; e, como todas as religiões se ligam ao princípio das coisas, que é também o princípio da humanidade, ao tratar da formação e da disposição do universo, elas deram explicações que mantêm relação com o estado dos conhecimentos ao tempo em que seus fundadores registraram seus conceitos. Daí resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, assim como durante muito tempo foram também o único código de leis civis.
2. Nos tempos primitivos, os meios de observação eram necessariamente muito imperfeitos, e as primeiras teorias acerca do sistema do mundo deviam ser eivadas de erros grosseiros; ocorre, porém, que se tais meios houvessem sido tão completos como o são hoje, os homens não teriam sabido usar deles; além disso, tais livros não poderiam ser senão o fruto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da Natureza. À medida que o homem se adiantou no conhecimento de tais leis, penetrou nos mistérios da criação e retificou as ideia que havia formado sobre a origem das coisas.
3. O homem foi impotente para resolver o problema da criação, até que a ciência lhe deu a chave. Foi preciso que a Astrologia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse que aí mergulhasse suas vistas, que, pelo poder de cálculo, determinasse com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe ensinasse as transformações da matéria e a Mineralogia lhe revelasse os materiais de que se compõe a crosta terrestre; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres, a formação gradual do próprio globo. A Botânica, a Zoologia, a Paleontologia, a Antropologia, deviam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a Arqueologia, ele foi capaz de seguir os traços da humanidade através das idades; todas as ciências, numa palavra, se completam umas às outras, e assim lhe trazem seu contingente indispensável ao conhecimento da história do mundo; caso elas não existissem, o homem não teria por guia outra coisa senão suas primeiras hipóteses.
Igualmente, antes que o homem se apoderasse destes elementos de apreciação, todos os comentadores da Gênese, cuja razão se entrechocava com impossibilidades materiais, giravam num mesmo círculo do qual não poderiam sair; somente o conseguiram desde que a ciência abriu a rota, fazendo brechas no velho edifício das crenças, e então tudo mudou de aspecto; uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram prontamente aplainadas; em vez de uma Gênese imaginária, tivemos uma Gênese positiva, e de alguma forma, experimental; o campo do universo estendeu-se até o infinito; viu-se a terra e os astros se formarem gradualmente, segundo leis eternas e imutáveis, as quais testemunham a grandeza e a sabedoria de Deus melhor que uma criação miraculosa, saída de um golpe do nada, como uma modificação operada à vista, por uma ideia súbita da Divindade após uma eternidade de inação.
Desde que é impossível conceber a Gênese sem os dados fornecidos pela ciência, é lícito dizer-se, de modo totalmente verdadeiro, que a ciência é convocada para constituir a verdadeira Gênese, conforme as leis da Natureza.
4. No ponto que a ciência alcançou, no século XIX, terá ela resolvido todas as dificuldades do problema da Gênese?
Não, com certeza, porém é incontestável que destruiu, sem possibilidade de retorno, todos os erros capitais, e que ela assentou os alicerces essenciais, sobre dados irrecusáveis; os pontos ainda incertos não são, para falar corretamente, senão questões de pormenores, cuja solução, qualquer que seja no futuro não pode prejudicar o conjunto. Além disso, apesar de todos os recursos dos quais ela tem podido dispor, tem-lhe faltado até hoje um elemento importante, sem o qual a obra não teria jamais sido completa.
5. De todas as Gêneses antigas, aquela que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que encerra e que hoje são demonstrados até se tornarem evidentes, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns de tais erros são mesmo mais aparentes do que reais, e provêm da falsa interpretação de certas palavras, cuja significação primitiva foi perdida ao passar de uma língua para outra pela tradução, ou cuja acepção mudou com os costumes dos povos, ou da forma alegórica característica do estilo oriental, e do qual se tomou o significado literal, em vez de procurar-se seu espírito.
6. A Bíblia contém evidentemente narrativas que a razão, desenvolvida pela ciência, não poderia aceitar hoje em dia; igualmente, contém fatos que parecem estranhos e repugnantes, porque se ligam a costumes que não são adotados. Porém, ao lado disso, haveria parcialidade se não reconhecêssemos que ela encerra grandes e belas coisas. A alegoria ali tem lugar considerável e sob tal véu ela esconde verdades sublimes que aparecerão, se a buscarmos no fundo do pensamento, pois, então, o absurdo desaparecerá.
Então, por que é que esse véu já não foi erguido mais cedo? Por um lado, é a falta de luzes que unicamente a ciência de uma sã filosofia poderia fornecer; por outro, o princípio da imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito por demais cego pela letra, segundo o qual a razão deveria inclinar-se e por conseguinte, o medo de comprometer a estrutura de crenças edificadas sobre o significado literal. Desde que essas crenças partiram de um ponto primitivo, subsistia o receio de que, se o primeiro anel da corrente viesse a romper-se, todas as malhas do tecido terminariam por se separar; é por isso que se conservaram os olhos fechados, apesar de tudo; porém, fechar os olhos ao perigo não é o meio de evitá-lo. Quando um alicerce cede, não será mais prudente substituir imediatamente as pedras ruins por outras boas, em lugar de esperar, por respeito à velhice do edifício, que o mal se torne sem remédio, e que seja necessário reconstruir tudo, de baixo até em cima?
7. A ciência, levando suas investigações até as entranhas da terra, e à profundeza dos céus, tem pois demonstrado de modo irrecusável os erros da Gênese mosaica tomada à letra, e a impossibilidade material de que as coisas se hajam passado tal como estão relatadas textualmente; por isso mesmo, ela desferiu um golpe profundo nas crenças seculares. A fé ortodoxa comoveu-se, porque julgou que lhe haviam arrancado sua pedra fundamental; porém, quem é que devia ter razão: a ciência caminhando de modo prudente e progressivo sobre o terreno sólido das cifras e da observação, sem nada afirmar sem ter a prova à mão, ou um relato escrito numa época na qual faltavam os meios de observação, de modo absoluto? No fim de contas quem há de levar a melhor? Aquele que diz que dois mais dois são cinco e recusa conferir sua adição, ou aquele que diz que dois mais dois são quatro, e o comprova?
8. Objetareis, então: se a Bíblia é uma revelação divina, Deus estará então errado? Se não é uma revelação divina, não tem mais autoridade, e a religião se esboroa, por falta de base.
De duas coisas persistirá uma: ou a ciência tem errado, ou ela tem razão; se ela tem razão, não poderá tornar verdadeira uma opinião que lhe seja contrária; não há revelação que possa prevalecer sobre a autoridade dos fatos verificados.
Incontestavelmente, Deus, que é todo verdade, não pode induzir os homens ao erro, nem consciente, nem inconscientemente, pois então não seria Deus. E, pois, se os fatos contradizem as palavras que a ele são atribuídas, necessário se torna concluir, logicamente, que ele não as pronunciou ou que elas foram tomadas em sentido diverso.
Se a religião sofre de tais contradições em algumas partes, o erro não é da ciência, que não pode transformar em fato aquilo que não o é, mas dos homens por terem fundado prematuramente dogmas absolutos, dos quais fizeram uma questão de vida ou morte sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.
Há coisas a cujo sacrifício é preciso que nos resignemos de boa ou de má vontade, quando não é possível proceder de outro modo. Quando o mundo marcha, a vontade de alguns se revela impotente para o deter; o mais sábio é segui-lo, conformando-se com o novo estado de coisas ao invés de se agarrar ao passado que se desintegra, com o risco de cair com ele.
9. Por respeito a textos considerados como sagrados, seria necessário impor silêncio à ciência? Isto é uma atitude tão impossível quanto a de impedir a terra de girar. As religiões, quaisquer que tenham sido, jamais ganharam nada por sustentar erros manifestos. A missão da ciência é a de descobrir as leis da Natureza; ora, como essas leis são obras de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas sobre a verdade. Lançar anátema ao progresso como inimigo da religião, é lançar anátema à própria obra de Deus; ademais, é isso completamente inútil, pois todos os anátemas do mundo não impedirão que a ciência caminhe, e que a verdade venha à luz do dia. Se a religião se recusar a caminhar com a ciência, a ciência prosseguirá sozinha.
10. Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; essas descobertas não são funestas senão aos que se distanciam das ideia progressivas, imobilizando-se no absolutismo de suas crenças; eles fazem em geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não compreendem que o fato de se assimilarem às leis da Natureza reveladas pela ciência, é glorificar Deus em suas obras; porém, em sua cegueira, preferem com isso prestar uma homenagem ao Espírito do mal. Uma religião que não estivesse em contradição com as leis da Natureza nada teria que temer do progresso, e seria invulnerável.
11. A Gênese compreende duas partes: a história da formação do mundo material, e a história da humanidade considerada em seu duplo princípio, corporal e espiritual. A ciência tem se limitado à pesquisa das leis que regem a matéria; no próprio homem, ela nada mais tem estudado senão o envoltório carnal. Sob esta relação, chegou a perceber, com incontestável precisão, as principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humano. Acerca desse ponto capital, ela pode, pois, completar a Gênese de Moisés e retificar suas partes defeituosas.
Porém, a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de ideia, que não constitui o domínio da ciência propriamente dita e por este motivo ela não tem feito dele objeto de suas investigações. A Filosofia, que inclui este gênero de estudos em suas atribuições não tem formulado, sobre este ponto, mais do que sistemas contraditórios, desde a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo a Deus, sem outras bases além das ideia pessoais de seus autores; e pois, ela tem deixado a questão indecisa, à falta de um controle adequado.
12. Entretanto, esta questão é a mais importante para o homem, pois constitui o problema de seu passado e de seu futuro; a do mundo material não o afeta senão indiretamente. O que lhe importa acima de tudo é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu e se viverá outra vez, e qual a sorte que lhe é reservada.
Acerca de todas essas questões, a ciência é muda. A Filosofia nada faz senão emitir opiniões em sentidos diametralmente opostos; porém, pelo menos ela permite discutir o assunto, o que faz com que muitas pessoas se coloquem a seu lado, afastando-se assim da religião, que não discute absolutamente.
13. Todas as religiões estão de acordo sobre o princípio da existência da alma sem todavia o demonstrar; porém elas não concordam nem a respeito de sua origem, nem sobre seu passado, nem sobre seu futuro, nem sobretudo, — o que é essencial — sobre as condições das quais depende seu destino futuro. Em sua maior parte, elas fazem do futuro, um quadro imposto à crença de seus adeptos, o que só pode ser aceito pela fé cega, mas não pode suportar um exame sério. O destino que elas atribuem à alma está ligado, em seus dogmas, às ideia que eram formuladas a respeito do mundo material e do mecanismo do Universo, nos tempos primitivos, o que é inconciliável com o estado dos conhecimentos atuais. Uma vez que só podem perder com o exame e a discussão do assunto, acham mais simples proibir um e outro.
14. A dúvida e a incredulidade nasceram dessas divergências relativas ao porvir do homem. Todavia, a incredulidade resulta numa vida penosa; o homem considera com ansiedade o desconhecido, onde fatalmente, cedo ou tarde deverá penetrar; a ideia do nada o faz gelar; sua consciência lhe diz que além do presente há alguma coisa para ele; porém, o que é? Sua razão desenvolvida não lhe permite mais aceitar as histórias que acalentaram sua infância e assim tomar a alegoria pela realidade. Qual é o sentido dessa alegoria? A ciência dilacerou um canto do véu, porém não lhe revelou aquilo que mais lhe importa saber. Ele interroga em vão, e nada lhe responde de maneira peremptória, adequada a acalmar suas apreensões; por toda parte ele encontra a afirmação em choque com a negação, sem provas mais positivas de um lado ou de outro; daí a incerteza, e a incerteza relativa às coisas da vida futura faz com que o homem se atire com uma espécie de frenesi sobre as coisas da vida material.
Tal é o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado se esboroa e o do futuro ainda não está levantado. O homem é como o adolescente, que não tem mais a crença ingênua de seus primeiros anos e não tem ainda os conhecimentos da idade madura; nada tem além de vagas aspirações que não sabe definir.
15. Se a questão do homem espiritual permaneceu até nossos dias no estado de teoria, é porque tem havido a falta de meios de observação direta, por outro lado existentes para constatar o estado do mundo material; e o campo tem estado aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e enquanto não pode aplicar o método experimental, andou a errar de sistema para sistema no que se refere ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Na ordem moral, tem-se dado o mesmo que na ordem física; a fim de fixar as ideia, tem faltado o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Este conhecimento estava reservado à nossa época, assim como o conhecimento das leis da matéria foi obra dos dois séculos anteriores.
16. Até o presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica havia sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo, é todo experimental. Com a ajuda da faculdade mediúnica, mais desenvolvida em nossos dias, e sobretudo generalizada e melhor estudada, encontrou-se o homem de posse de um novo instrumento de observação. Para o mundo espiritual, a mediunidade tem sido aquilo que o telescópio foi para o mundo sideral, e o microscópio para o mundo do infinitamente pequeno; permitiu explorar, estudar, por assim dizer `de visu', suas relações com o mundo corporal; isolar, no homem vivente, o ser inteligente do ser material, e vê-los atuar separadamente. Uma vez estabelecida a relação com os habitantes de tal mundo, foi possível seguir sua alma em sua marcha ascensional em suas migrações, em suas transformações; enfim, tornou-se possível estudar o elemento espiritual. Eis o que faltava aos anteriores comentadores da Gênese para compreendê-la e retificar seus erros.
17. Estando em contato incessante, o mundo espiritual e o mundo material são solidários um com o outro; todos os dois têm sua parte de ação na Gênese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro seria também impossível constituir uma Gênese completa, tanto quanto a um escultor é impossível dar vida a uma estátua. Unicamente hoje em dia, e apesar de que nem a ciência material nem a ciência espiritual hajam proferido suas derradeiras palavras, o homem possui os dois elementos adequados a lançar luz sobre este imenso problema. Eram de todo indispensáveis estas duas chaves, para se chegar a uma conclusão, mesmo aproximativa.(·)
1. A primeira ideia que os homens fizeram da terra, do movimento dos astros e da constituição do universo, deve ter sido baseada unicamente nos dados obtidos através do uso dos sentidos. Ignorando as leis mais elementares da Física e as forças da Natureza, tendo apenas sua vista limitada como meio de observação, somente poderiam julgar pelas aparências.
Vendo o sol aparecer de manhã de um lado do horizonte, e desaparecer de tarde do lado oposto, concluíram naturalmente que ele girava em redor da terra e que esta permanecia imóvel. Se disséssemos então aos homens que o contrário é que se dava, teriam respondido que isto não era possível, pois vemos o sol mudar de lugar e não sentimos a terra mover-se.
2. A pouca extensão das viagens, as quais raramente se prolongavam além dos limites do território da tribo, ou do vale onde moravam, não podia permitir a constatação da esfericidade da terra. Por que modo, então, poderiam supor que a terra pudesse ter o formato aproximado de uma bola? Se assim fosse, os homens não poderiam manter-se senão nos lugares mais altos e supondo-a habitada em toda a sua superfície, como poderiam eles viver no hemisfério oposto, com a cabeça para baixo e os pés para cima? Diminuiria mais a probabilidade da proposição, considerando o movimento de rotação. Ainda hoje, que já se conhece a lei de gravitação, encontram-se pessoas relativamente bem esclarecidas que não concebem este fenômeno; assim, não será de admirar que os homens das primeiras eras nem sequer hajam suspeitado da sua existência.
A terra era para eles uma superfície plana, circular como uma mó de moinho que se estendia a perder de vista na direção horizontal; é daí que provém a expressão ainda usual: ir ao fim do mundo. Seus limites, sua espessura, seu interior, o que havia por baixo dela era desconhecido. ([13])
O céu, aparecendo sob forma côncava, era, conforme a crença vulgar, uma abóbada real, cujas bordas inferiores se apoiavam sobre a terra e marcavam seus limites; vasta cúpula que o ar enchia em toda a sua capacidade. Sem nenhuma ideia do espaço infinito, incapazes mesmo de o conceber, os homens figuravam que tal cúpula seria formada de matéria sólida; daí o nome de firmamento, que sobreviveu à crença, e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus, e do grego herma, hermatos, firme, sustento, apoio, ponto de apoio).
4. As estrelas, de cuja natureza não podiam suspeitar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, presos à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas sobre uma superfície e, por conseguinte, todas situadas à mesma distância da Terra, da mesma maneira que as representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para representar o azul dos céus.
Embora hoje sejam diferentes as ideias, conservou-se o uso das antigas expressões; ainda se diz, por comparação, a abóbada estrelada sob a calota do céu.
5. A formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra, era então igualmente desconhecida; era inconcebível que a chuva que cai do céu tivesse sua origem sobre a Terra, de onde ninguém via a água subir. Daí derivava a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, de fontes celestes e de fontes terrestres, de reservatórios colocados em altas regiões, suposição essa que concordava plenamente com a ideia de uma abóbada capaz de mantê-las. As águas superiores, escapando pelas fendas da abóbada, caíam na forma de chuva e conforme fossem essas aberturas, menores ou maiores, a chuva era suave ou torrencial e até mesmo diluviana.
6. A ignorância completa do conjunto do universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e da destinação dos astros, que aliás pareciam ser tão pequenos, em comparação com a Terra, necessariamente fazia com que considerassem a esta como a coisa principal, o alvo único da criação, e os astros como acessórios criados unicamente para apreciação de seus habitantes. Este preconceito se perpetuou até nossos dias, apesar das descobertas da ciência, as quais para o homem, alteraram o aspecto do mundo. Quantas pessoas ainda acreditam que as estrelas são ornamentos do céu para recreio da vista dos habitantes da terra!
7. Não tardou, contudo, a percepção do movimento aparente das estrelas que se movem num conjunto, do oriente para ocidente, elevando-se de tarde e deitando pela manhã, e conservando suas respectivas posições. Entretanto durante muito tempo, esta observação não teve outro efeito senão confirmar a ideia de uma abóbada sólida que arrastava as estrelas em seu movimento de rotação.
Estas primeiras ideias, ingênuas, constituíram durante longos períodos seculares, o fundo das crenças religiosas e serviram de base a todas as cosmogonias antigas.
8. Mais tarde foi compreendido, pela direção do movimento das estrelas e seu retorno periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma meia-esfera colocada sobre a terra, mas sim uma esfera inteira, oca, no centro da qual se encontrava a terra, sempre plana, ou no máximo convexa e habitada somente em sua face superior. Já era um progresso.
Porém, sobre o que se apoiava a terra? Seria inútil relacionar todas as suposições ridículas, concebidas pela imaginação, exemplificando com a dos indianos, que diziam ser ela carregada por quatro elefantes brancos e estes eram levados sobre as asas de um imenso abutre. Os mais sábios adiantavam que nada sabiam.
9. Entretanto, uma opinião geralmente aceita nas teologias pagãs, colocava nos lugares baixos, que era um modo de se considerar as profundezas da terra, ou ali embaixo, do que nada se sabia com certeza, a região dos réprobos, denominada inferno, o que significa lugares inferiores; e nos lugares altos, além da região das estrelas, o recanto dos ditosos. A palavra inferno conservou-se até nossos dias, embora haja perdido sua significação etimológica, depois que a Geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da terra, e que a Astronomia demonstrou que no espaço infinito não há alto nem baixo.
10. Sob o céu puro da Caldéia, da Índia e do Egito, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanto era possível sem instrumentos especiais. A princípio, foi verificado que certas estrelas tinham movimento próprio independente de sua massa, o que não permitia supor que elas fossem fixadas à abóbada; foram denominadas estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Foram calculados seus movimentos e suas revoluções periódicas.
No movimento diurno da esfera estrelada, foi observada a imobilidade da estrela polar em redor da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos, maiores ou menores, conforme o seu afastamento da estrela central; foi esse o primeiro passo em direção ao conhecimento da obliquidade do eixo do mundo. Viagens mais extensas permitiram observar a diferença do aspecto dos céus, conforme as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar acima do horizonte, acompanhando a variação da latitude, levou o homem a descobrir a redondeza da terra; é assim que, pouco a pouco, foi-se fazendo uma ideia mais justa do sistema do mundo.
Aproximadamente no ano 600 antes de Cristo, Thales, de Mileto (Ásia Menor) conhecia a esfericidade da Terra, a obliquidade da eclíptica e a causa dos eclipses.
Um século depois, Pitágoras, de Samos, descobre o movimento diurno da terra em redor de seu eixo, seu movimento anual ao redor do sol e relaciona os planetas e cometas no sistema solar.
Cento e sessenta anos antes de Cristo, Hiparco, de Alexandria (Egito), inventa o astrolábio, calcula e prediz os eclipses, observa as manchas solares, determina o ano trópico e a duração das revoluções lunares.
Estas descobertas foram preciosas para o progresso da ciência e, contudo, levaram quase dois mil anos para serem divulgadas. As ideias novas, cujo único meio de propagação eram manuscritos raros, permaneciam no domínio de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que ninguém cogitava de esclarecer, não as aproveitavam de modo algum e continuavam a se nutrir com as velhas crenças.
11. Na altura do ano 140 da era cristã, Ptolomeu, um dos homens mais ilustres da escola de Alexandria, combinando suas próprias ideias com as crenças vulgares e algumas das mais recentes descobertas astronômicas, compôs um sistema que se pode denominar misto, o qual traz seu nome, e que, durante quase quinze séculos, foi o único adotado no mundo civilizado.
Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera situada no centro do Universo; ela se compunha dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Assim, era a primeira região denominada elemental. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus ou esferas concêntricas, girando em redor da Terra, a saber: o céu da Lua, o de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino (esfera sólida transparente); do segundo cristalino, e enfim, do primeiro móvel, que dava movimento a todos os céus inferiores e os fazia descrever uma volta em vinte e quatro horas. Além dos onze céus estava o Empíreo, mansão dos bem-aventurados, assim denominado segundo as palavras gregas pyr ou puro que significa fogo, pois se acreditava que essa região resplendia de luz como o fogo.
A crença em diversos céus superpostos prevaleceu durante muito tempo, com variações quanto ao número; o sétimo era geralmente considerado como o mais elevado, de onde vem a expressão: ser transportado ao sétimo céu. São Paulo disse que foi elevado ao terceiro céu.
Segundo Ptolomeu, os astros tinham movimentos próprios, independentemente do movimento comum a todos; estes movimentos seriam menores ou maiores, segundo seu afastamento do centro. As estrelas fixas faziam uma revolução em 25.816 anos. Esta derradeira avaliação denota o conhecimento da precessão dos equinócios, a qual se efetua em 25.860 anos.
12. No início do século XVI, Copérnico, célebre astrônomo, nascido em Thorn (Prússia) em 1472, falecido em 1543, retomou as ideias de Pitágoras; publicou um sistema que, confirmado a cada dia por novas observações, foi acolhido de modo favorável e não tardou a substituir o de Ptolomeu. Segundo este sistema, o Sol está no centro, os planetas descrevem órbitas circulares em redor deste astro; a Lua é um satélite da terra.
Um século depois, em 1609, Galileu, nascido em Florença, inventou o telescópio; em 1610 descobre os quatro satélites de Júpiter e calcula suas revoluções; reconhece que os planetas não têm luz própria como as estrelas e que eles são clareados pelo sol; que os planetas são esferas semelhantes à Terra; observa suas fases e determina a duração de suas rotações em volta de seus eixos; dá, assim, mediante provas materiais, sanção definitiva ao sistema de Copérnico.
Data daí o insucesso da fantasiosa edificação dos céus superpostos; os planetas foram reconhecidos como mundos semelhantes à Terra, e tal como ela, sem dúvida, habitados; as estrelas foram consideradas como sóis inumeráveis, centros prováveis de outros tantos sistemas planetários; e o próprio Sol foi reconhecido como uma estrela, centro de um turbilhão de planetas que lhe são agregados.
Já não se confinam as estrelas a uma zona da esfera celeste, reconhecendo-se que elas estão irregularmente disseminadas no espaço ilimitado; aquelas que parecem tocar-se, estão a distâncias incomensuráveis umas das outras; as menores, na aparência, são as mais afastadas de nós; as maiores, aquelas mais próximas, ainda assim, estão afastadas a centenas de milhares de léguas.
Os agrupamentos aos quais foi dado o nome de constelações, não são senão aparentes amontoados, causados pelo seu afastamento; suas figuras são efeito de perspectiva, semelhantes às figuras que se formam à vista de alguém que se coloca num ponto fixo e observa luzes dispersas numa vasta planície ou árvores numa floresta; porém esses aglomerados não existem na realidade; se fosse possível nos transportarmos à região de uma dessas constelações, à medida que nos aproximássemos, a forma desapareceria e novos agrupamentos se desenhariam à nossa visão.
Desde então tais grupos não existem senão na aparência, a significação que a crença vulgar e supersticiosa lhes atribui é ilusória e sua influência só existiria na imaginação.
Para se distinguirem as constelações, têm recebido nomes como: Leão, Touro, Gêmeos, Virgem, Balança, Capricórnio, Câncer, Órion, Hércules, Grande Ursa ou Carruagem de Davi, Pequena Ursa, Lira, etc.; elas têm sido representadas por figuras que fazem lembrar tais nomes, sendo na maior parte fantasiosos, mas que, em todos os casos, não têm nenhuma relação com a forma aparente do grupo de estrelas. Seria pois em vão procurar tais figuras no céu.
A crença na influência das constelações, sobretudo daquelas que constituem os doze signos do Zodíaco, provém da ideia associada aos nomes que elas receberam; se aquela que é denominada leão tivesse sido denominada jumento ou ovelha certamente lhe teria sido atribuída uma influência totalmente diversa.
13. A partir de Copérnico e de Galileu, as velhas cosmogonias não foram mais destruídas; a Astronomia não pode senão avançar, sem jamais recuar. A história relata as lutas que estes homens de gênio tiveram que sustentar contra os partidários dos preconceitos, e sobretudo contra o espírito vigente nos seus tempos, interessado na manutenção dos erros sobre os quais tinham fundado crenças que se lhes afiguravam assentes sobre uma base inquebrantável. Bastou a invenção de um instrumento de ótica para derribar uma edificação de vários milhares de anos. Porém, nada poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal. Graças à divulgação pelos meios tipográficos, o público, iniciado nas novas ideias, começou a não se acalentar com ilusões e tomou parte na luta; já não era mais contra certos indivíduos, que seria preciso opor-se, mas contra a opinião geral, que se alinhava com a verdade, apoiada nos fatos, e erigida à situação de verdadeira causa pública.
Como o Universo é grande, se considerado conforme as mesquinhas proporções que lhe atribuíam nossos ancestrais! Como a obra de Deus é sublime quando a vemos realizar-se segundo as leis eternas da Natureza! Porém, quanto tempo, quantos esforços de gênios, quantos devotamentos foram necessários para descerrar os olhos das criaturas, e arrancar por fim a venda da ignorância!
14. Estava, por fim, aberto o caminho no qual iam entrar ilustres e numerosos sábios, para completar a obra apenas esboçada. Kepler, na Alemanha, descobre as célebres leis que trazem seu nome, e com a ajuda das quais ele reconhece que os planetas descrevem órbitas não circulares, mas sim elípticas, das quais o sol ocupa um dos focos; Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravitação universal; Laplace, na França, cria a mecânica celeste; a Astronomia, enfim, não é mais um sistema fundado sobre conjeturas ou probabilidades, mas sim uma ciência estabelecida sobre as bases mais rigorosas, do cálculo e da Geometria. Assim se encontra lançada uma das pedras fundamentais da Gênese, decorridos aproximadamente três mil e trezentos anos depois de Moisés.
O espaço e o tempo — A matéria — As leis e as forças — A primeira criação — A criação universal — Os sóis e os planetas — Os satélites — Os cometas — A Via Láctea — As estrelas fixas — Os desertos do espaço — Sucessão eterna dos mundos — A vida universal — Diversidade dos mundos
O Espaço e o Tempo
Diversas definições do espaço foram dadas; a principal é esta: o espaço é a extensão que separa dois corpos. De tal enunciado, certos sofistas deduziram que onde não houvesse corpo, não haveria espaço; é com tal alicerce que doutores em Teologia se basearam para estabelecer que o espaço seria necessariamente finito, alegando que corpos limitados, em certo número, não poderiam formar uma série infinita; e que no local em que os corpos parassem, o espaço também se deteria. Outra definição do espaço: o lugar no qual se movem os mundos, o vazio no qual atua a matéria etc. Deixemos nos tratados todas essas definições, pois nada definem.
O espaço é uma dessas palavras que representam uma ideia primitiva e axiomática, evidente por si mesma, e que as diversas definições que lhes podem dar, não servem senão para obscurecer. Sabemos todos o que é o espaço e nada mais pretendo senão estabelecer que ele é infinito, a fim de que nossos estudos ulteriores não tenham nenhuma barreira, que se levante perante as investigações de nossa visão.
Ora, digo que o espaço é infinito, por esta razão: porque é impossível supor que tenha algum limite, e que, apesar da dificuldade que temos de conhecer o infinito, nos é entretanto mais fácil percorrer o espaço, eternamente, no pensamento, do que nos determos num lugar qualquer, depois do qual não encontraríamos mais extensão a percorrer.
Para representarmos a nós mesmos o infinito do espaço, embora tenhamos que fazê-lo com nossas faculdades limitadas, suponhamos que, partindo da terra, perdida no meio do infinito em direção a um ponto qualquer do Universo, e isso com a velocidade prodigiosa da faísca elétrica (que percorre milhares de léguas por segundo), mal tenhamos saído desse globo, já havendo percorrido milhões de léguas, nos encontremos num local de onde a terra aparece apenas como uma pálida estrela. Um instante depois, seguindo sempre a mesma direção, chegamos às estrelas longínquas, que mal nos é possível distinguir, em vossa estação terrestre; e daí não só a terra está inteiramente perdida em relação às nossas considerações, nas profundezas dos céus, mas ainda vosso sol, mesmo em seu esplendor, é eclipsado pela extensão que nos separa dele. Animados sempre com a mesma velocidade do relâmpago, franqueamos estes sistemas de mundos, a cada passo que avançamos pela extensão, ilhas de luz etérea, caminhos estelíferos, paragens suntuosas onde Deus semeou mundos com a mesma profusão com que semeou plantas nas planícies terrestres.
Ora, apenas alguns minutos estamos a caminho, e já nos separamos da terra, centenas de milhões e milhões de léguas; milhares de mundos passaram sob nossos olhos, e no entanto, escutai: na realidade, não avançamos um só passo pelo universo afora.
Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, durante milhões de períodos cem vezes seculares, e incessantemente com a mesma velocidade do relâmpago, nem assim teremos avançado! E isso será o mesmo, de todos os lados para os quais nos dirijamos, e em direção a qualquer ponto que busquemos, a partir deste grão invisível que deixamos, e que se chama — Terra!
Eis o que é o espaço!
2. O tempo, tal como o espaço, é uma palavra definida por si mesma; faremos uma ideia mais justa dele estabelecendo sua relação com o todo infinito.
O tempo é a sucessão das coisas; é ligado à eternidade da mesma maneira que essas coisas são ligadas ao infinito. Suponhamos estarmos na origem de nosso mundo, naquela época primitiva em que a terra ainda não se balançava sob o divino impulso; numa palavra, no começo da Gênese. Então, o tempo ainda não saíra do misterioso berço da natureza; e ninguém pode dizer em que época de séculos estamos, pois o pêndulo dos séculos ainda não está em movimento.
Porém, silêncio! A primeira hora de uma terra isolada soa no relógio da Eternidade, o planeta se move no espaço, e desde então existe tarde e manhã. Além da terra, a eternidade jaz impassível e imóvel, embora o tempo caminhe em outros mundos. Sobre a terra, o tempo a substitui, e durante uma série determinada de gerações serão contados os anos e os séculos.
Entretanto, transportemo-nos ao derradeiro dia do mundo, à hora em que, curvada sob o peso da sua velhice, a terra se apagará do livro da vida para ali não mais reaparecer: aqui se detém a sucessão dos acontecimentos; os movimentos terrestres que mediam o tempo se interrompem, e com eles termina o tempo.
Esta simples exposição das coisas naturais que dão nascimento ao tempo, o nutrem e o deixam estender-se, basta para mostrar que, considerado do ângulo em que devemos nos colocar para nossos estudos, o tempo é uma gota d'água que cai da nuvem no mar, cuja queda é medida.
Tantos mundos haja na vasta expansão, tantos tempos diversos haverão, e incompatíveis. Fora dos mundos, unicamente a eternidade substitui essas sucessões efêmeras, e tranquilamente preenche com sua luz imóvel a imensidão dos céus. Imensidade sem limites e eternidade sem restrições, tais são as duas grandes propriedades da natureza universal.
A vista do observador que atravessa, sem jamais encontrar obstáculo, as distâncias incomensuráveis do espaço, e a do geólogo que remonta além dos limites das idades, ou que desce às profundezas da eternidade, onde um dia se perderão, atuam em conjunto, cada um por seu lado, a fim de adquirir esta dupla noção do infinito: extensão e duração.
Ora, conservando esta ordem de ideias, ser-nos-á fácil conceber que não sendo o tempo senão a relação das coisas transitórias, e portanto, unicamente de coisas que se medem, assim, se tomarmos os séculos terrestres por unidade e os amontoarmos aos milhares e milhares, para com eles formar um número colossal, esse número não representará jamais senão um ponto na eternidade; de modo semelhante, as milhares de léguas reunidos aos milhares de léguas, não são senão um ponto na extensão.
Assim, por exemplo, os séculos sendo algo que se encontram fora da vida etérea da alma, poderíamos escrever um número tão extenso como o equador terrestre, e supor de nós mesmos que seríamos tão velhos quanto tal número de séculos, sem que na realidade nossa alma contasse um dia a mais; e acrescentando a este número indefinível dos séculos, uma série longa como daqui ao sol, de números semelhantes, ou ainda mais considerável, e imaginando que vivêssemos durante a prodigiosa sucessão de períodos seculares, representados pela soma de tais números, quando chegássemos ao termo final, a acumulação incomparável de séculos que pesaria sobre nossas cabeças seria como se não houvesse: permaneceria sempre diante de nós, toda a eternidade.
O tempo não é senão uma medida relativa de sucessão das coisas transitórias; a eternidade não é suscetível de nenhuma medida, do ponto de vista de sua duração; para ela, não há começo nem fim: para ela, tudo é o presente.
Se séculos e séculos são menos que um segundo em relação à eternidade, o que será então a duração da vida humana?
A Matéria
3. Ao primeiro contato, nada parece tão profundamente variado, tão essencialmente distinto como as diversas substâncias que compõem o mundo. Entre os objetos que a arte ou a Natureza fazem diariamente passar sob nossas vistas, haverá dois que acusem uma identidade perfeita, ou somente uma paridade de composição? Que dessemelhança do ponto de vista da solidez, da compressibilidade, do peso e das múltiplas propriedades dos corpos, entre os gases atmosféricos e o filete de ouro; entre a molécula aquosa da nuvem e a do mineral que forma a estrutura óssea do globo! Que diversidade entre o tecido químico das variadas plantas que enfeitam o reino vegetal e a dos representantes não menos numerosos da animalidade sobre a terra!
Entretanto, podemos considerar como princípio absoluto que todas as substâncias conhecidas, por mais dessemelhantes que pareçam, seja do ponto de vista de sua constituição íntima, seja sob a relação de sua ação recíproca, não são, de fato, senão modos diversos nos quais ela se transformou sob a direção das forças inumeráveis que a governam.
4. A Química, cujos progressos foram tão rápidos durante meu tempo, durante o qual mesmo os seus adeptos a relegavam ainda ao domínio secreto da magia, esta nova ciência que a justo título se pode considerar como filha do século observador e como baseada unicamente sobre o método experimental, muito mais solidamente que suas irmãs mais velhas; a Química, dizia, fez tábua rasa dos quatro elementos primitivos que os Antigos haviam concordado reconhecer na Natureza; ela mostrou que o elemento terrestre não é senão a combinação de substâncias diversas, variadas ao infinito; que o ar e a água são igualmente decomponíveis e são o produto de um certo número de equivalentes gasosos; que o fogo, longe de ser um elemento principal, não é senão um estado da matéria, resultante do movimento universal ao qual a matéria está submetida, e de uma combustão sensível ou latente.
Em compensação, ela fez surgir um número considerável de princípios até então desconhecidos, os quais, mediante suas combinações determinadas, lhe pareceram formar as diversas substâncias, os diversos corpos que ela tem estudado, e que agem simultaneamente segundo certas leis, e em certas proporções nos trabalhos realizados no grande laboratório da natureza. Esses princípios, ela o denominou corpos simples, indicando por tal denominação que os considera como primitivos e indecomponíveis, e que nenhuma operação, até a atualidade, poderia reduzi-los a partes relativamente mais simples que eles mesmos. ([15])
5. Porém, no mesmo lugar em que se detêm as apreciações do homem, mesmo ajudado por seus sentidos artificiais os mais impressionáveis, a obra da Natureza continua; onde o vulgo torna a aparência pela realidade, onde o prático suspende o véu e começa a distinguir o começo das coisas, a vista daquele que pode discernir o modo de ação da natureza não vê, nos materiais constitutivos do mundo, senão a matéria cósmica primitiva, simples e una, diversificada em certas regiões na época do seu nascimento, repartida em corpos solidários durante sua vida, materiais desmembrados um dia no receptáculo da imensidade, mediante sua decomposição.
6. Há questões como essas, as quais nós mesmos, Espíritos amorosos da ciência, não poderíamos aprofundar, e sobre as quais não poderíamos emitir senão opiniões pessoais, mais ou menos conjeturáveis; sobre tais questões, ou me calarei ou justificarei minha maneira de encará-las; porém esta não pertence a tal número. Àqueles, pois, que seriam tentados a não ver em minhas palavras senão uma teoria arriscada, direi: reuni, vós, se possível, num olhar investigador, a multiplicidade das operações da Natureza, e reconhecereis que, se não admitirmos a unidade da matéria, é impossível explicar, já não direi unicamente os sóis e as esferas, mas, sem ir mais longe, a germinação de um grão sob a terra, ou a produção de um inseto.
7. Se observarmos uma tal diversidade na matéria, é porque as forças que têm presidido as suas transformações, as condições nas quais elas são produzidas, sendo ilimitadas em número, não poderiam deixar de ser ilimitadas às próprias combinações variadas da matéria.
Daí decorre que, quer a substância que consideremos pertença aos fluidos propriamente ditos, isto é, aos corpos imponderáveis, ou que elas se achem revestidas dos caracteres e das propriedades ordinárias da matéria, — não há, em todo o universo, senão uma substância primitiva: o cosmos ou matéria cósmica dos uranógrafos.
As Leis e as Forças
8. Se um desses seres desconhecidos que consomem sua existência efêmera no fundo das regiões tenebrosas do Oceano; se um desses poligástricos, uma das nereidas, — miseráveis animálculos que não conhecem da Natureza outra coisa senão os peixes ictiófagos e as florestas submarinas —, recebesse de um só golpe o dom da inteligência, a faculdade de estudar seu mundo e de estabelecer sobre suas apreciações um raciocínio conjetural que abrangesse a universalidade das coisas, que ideia formaria da natureza vivente que se desenvolve em seu meio ambiente, e do mundo terrestre que não pertence ao campo de suas observações?
Enquanto isso, se por um efeito maravilhoso de seu novo poder, este mesmo ser conseguisse elevar-se acima de suas trevas eternas, à superfície do mar, não longe das bordas opulentas de uma ilha coberta de esplêndida vegetação, com solo fértil, onde houvesse um benéfico calor, que opinião teria a respeito de suas teorias antecipadamente formuladas a respeito da criação universal, teoria que seria logo eclipsada por uma apreciação mais extensa, embora também relativamente incompleta, tal como a primeira?
Tal é, oh homens, a imagem de vossa ciência que no seu todo ainda é especulativa. ([16])
9. Uma vez que venho tratar aqui da questão das leis e das forças que regem o universo, eu que não sou senão um ser relativamente ignorante frente à ciência verdadeira (e nisso somos idênticos), apesar da aparência de superioridade que me dá sobre meus irmãos da terra a possibilidade de estudar as questões naturais que lhes são interditas em vossa posição, minha finalidade é apenas a de vos expor a noção geral das leis universais sem explicar em pormenores, o modo de ação e natureza das forças especiais que dela dependem.
10. Há um fluído etéreo que enche o espaço e penetra os corpos; este fluido é o éter ou matéria cósmica primitiva, geratriz do mundo e dos seres. As forças que presidiram às metamorfoses da matéria são inerentes ao éter; trata-se de leis imutáveis e necessárias que regem o mundo. Estas formas múltiplas, indefinidamente variadas, segundo as combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas em seus modos de ação segundo as circunstâncias e os ambientes são conhecidas na terra sob os nomes de gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa; os movimentos vibratórios do agente são conhecidos sob os nomes de som, calor, luz, etc. Em outros mundos, tais efeitos se apresentam sob outros aspectos, oferecem características desses mundos e na imensa extensão dos céus, forças em número indefinido são desenvolvidas numa escala inimaginável, da qual somos tampouco capazes de avaliar a grandeza, como o crustáceo, no fundo do oceano tampouco o é de abarcar a universalidade dos fenômenos terrestres. ([17])
Ora, da mesma forma que não há senão uma só substância simples, primitiva, da mesma forma todas essas forças dependem de uma lei universal diversificada em seus efeitos, e que, através de decretos eternos foi soberanamente imposta à criação para nela constituir a harmonia e a estabilidade.
11. A natureza jamais se opôs a si mesma. O brasão do Universo tem apenas uma divisa: Unidade / Variedade. Ao rever a escala dos mundos, encontra-se a unidade de harmonia e de criação, ao mesmo tempo que se encontra uma variedade infinita neste imenso canteiro de estrelas; percorrendo os graus da vida, desde o último dos seres até Deus, faz-se reconhecer a grande lei da continuidade; considerando as forças em si próprias, pode-se formar uma série cuja resultante, confundindo-se com a geratriz, é a lei universal.
Vós não saberíeis apreciar esta lei em toda sua extensão, eis que as forças que a representam no campo de vossas observações, são restritas e limitadas; entretanto, a gravitação e a eletricidade podem ser consideradas como uma grande apreciação da lei primordial, que rege os céus por meio destas manifestações.
Todas essas forças são eternas — nós explicaremos essa palavra — e universais, tal como o é a criação; sendo inerentes ao fluido cósmico, elas agem necessariamente em tudo e em toda a parte, modificando sua ação pela sua simultaneidade ou sucessão; predominando aqui, atenuando-se ali; possantes e ativas em certos pontos, latentes ou secretas em outros; mas finalmente, preparando, dirigindo, conservando e destruindo os mundos em seus diversos períodos de vida, governando os trabalhos maravilhosos da natureza em qualquer lugar que eles atuem, assegurando para sempre o eterno esplendor da criação.
A Primeira Criação
12. Depois de haver considerado o universo sob os pontos de vista gerais de sua composição, de suas leis e de suas propriedades, podemos focalizar nossos estudos sobre o modo de formação que trouxe à luz os mundos e os seres; desceremos em seguida à criação da terra em particular e a seu estado atual na universalidade das coisas, e daí, tomando este globo por ponto de partida e por unidade relativa, prosseguiremos em nossos estudos planetários e siderais.
Se houvermos compreendido bem a relação, ou antes a oposição da eternidade com o tempo, se nos houvermos familiarizado com esta ideia de que o tempo nada mais é senão uma medida relativa de sucessão das coisas transitórias, ao passo que a eternidade é essencialmente una, imóvel e permanente, e que ela não é suscetível de nenhuma medida do ponto-de-vista de sua duração, compreenderemos que, para ela, não há começo nem fim.
Por outro lado, se concebermos uma ideia justa — embora necessariamente bem fraca — da infinitude do poder divino, compreenderemos como é possível que o universo haja sempre existido e exista sempre. Do momento em que Deus existiu, suas perfeições eternas falaram. Antes que os tempos nascessem, a eternidade incomensurável recebeu o verbo divino e fundou o espaço, eterno como ele.
14. Deus, existindo por sua natureza de toda a eternidade, criou de toda a eternidade e isso não podia ser de outro modo; pois, em qualquer época longínqua a que recuemos em imaginação os limites supostos da criação, sempre haverá além desse limite uma eternidade — considerai bem este pensamento — uma eternidade durante a qual as divinas hipóstases, as volições infinitas teriam estado amortalhadas numa muda letargia inativa e infecunda, uma eternidade de morte aparente para o Pai eterno que dá a vida aos seres, de mutismo indiferente para o Verbo que os governa, de esterilidade fria e egoísta para o Espírito de amor e de vivificação.
Compreendamos melhor a grandeza da ação divina e sua perpetuidade sob a mão do ser absoluto! Deus é o sol dos seres; é a luz do mundo. Ora, a aparição do sol dá instantaneamente nascimento a ondas de luz que vão se espalhando em todas as direções pela extensão; do mesmo modo o universo, nascido do Eterno, remonta aos períodos inimagináveis do infinito de duração, ao Fiat lux, do começo de todas as coisas.
15. O começo absoluto das coisas remonta pois a Deus; suas aparições sucessivas no domínio da existência constituem a ordem da criação perpétua.
Que mortal saberia narrar as magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades, que se desenvolveram em tais tempos antigos, nos quais não existia nenhuma das maravilhas do universo atual; época primitiva em que a voz do Senhor se tinha feito ouvir, e subitamente se encontraram no seio dos vácuos infinitos os materiais que no futuro deviam se agrupar simetricamente e por si mesmos, para formar o templo da Natureza; quanto a esta voz misteriosa, que cada criatura venera e acarinha como se fosse a de uma mãe, notas harmoniosamente variadas se produziram para vibrar juntas e modular o concerto dos vastos céus!
O mundo, em seu berço, não foi estabelecido na virilidade e na plenitude da vida; não: o poder criador não se contradiz jamais e, como todas as coisas, o universo nasceu menino. Revestida pelas leis mencionadas acima e do impulso inicial inerente à sua própria formação, a matéria cósmica primitiva deu sucessivamente nascimento a turbilhões, a aglomerações desse fluido difuso, a aglomerados de matéria nebulosa que se dividiram a si mesmos e se modificaram ao infinito, para produzir, nas regiões incomensuráveis da extensão, diversos centros de criações simultâneas ou sucessivas.
Em razão das forças que predominaram sobre um ou sobre outro, e segundo circunstâncias ulteriores que presidiram a seus desenvolvimentos, esses centros primitivos tornaram-se os focos de uma vida especial: uns, menos disseminados no espaço e mais ricos em princípios e forças atuantes, começaram desde logo sua vida sideral particular; outros, ocupantes de uma extensão ilimitada, não cresceram senão com extrema lentidão ou dividiram-se novamente em outros centros secundários.
16. Se nos reportarmos a alguns milhões de séculos somente, além da época atual, nossa terra ainda não existia, nosso sistema solar mesmo ainda não começara as evoluções da vida planetária; e entretanto já esplêndidos sóis iluminavam o éter; já planetas habitados dão vida e existência a uma multidão de seres que nos precederam na carreira humana; as produções opulentas de uma natureza desconhecida e os fenômenos maravilhosos do céu desenvolvem sob outros olhares os quadros da imensa criação. Que digo eu! Tais esplendores não existem mais, os quais outrora fizeram palpitar o coração de outros mortais sob o pensamento do infinito poder! E nós, pobres serezinhos que existimos depois de uma eternidade de vida, nós nos cremos contemporâneos da criação!
Ainda uma vez, compreendamos melhor a natureza. Saibamos que a eternidade está atrás de nós, assim como adiante; que o espaço é o teatro de uma sucessão e de uma simultaneidade inimaginável de criações. As nebulosas que mal distinguimos nas longínquas regiões dos céus, são aglomerações de sóis em vias de formação; outras, são vias lácteas de mundos habitados; outras, enfim, a sede de catástrofes ou de perecimento. Saibamos que mesmo estando nós colocados no meio de uma infinidade de mundos, ao mesmo tempo estamos no meio de uma dupla infinidade de durações anteriores e ulteriores; que a criação universal não é limitada a nós, e que não podemos aplicar essa palavra à formação isolada de nosso pequeno globo.
A Criação Universal
17. Depois de havermos remontado, tanto quanto está ao alcance de nossas forças, em direção à fonte escondida da qual emanaram os mundos como se fossem as gotas d'água de um rio, consideremos a marcha das criações sucessivas e de seus desenvolvimentos seriados.
A matéria cósmica primitiva encerrava os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os universos que desdobram suas magnificências perante a eternidade; ela é a mãe fecunda e primacial de toda as coisas, e o que é mais, a geratriz eterna. Ela não desapareceu, essa substância de onde provêm as esferas siderais; não está morto este poder, pois incessantemente ainda dá à luz novas criações e recebe incessantemente os princípios reconstituídos dos mundos que se apagam do livro eterno.
A massa etérea, mais ou menos rarefeita, que permeia os espaços interplanetários; esse fluido cósmico que enche o mundo, mais ou menos rarefeito nas regiões imensas, ricas em aglomerados de estrelas, mais ou menos condensado nos lugares em que ainda não brilha o céu sideral, mais ou menos modificado por diversas combinações segundo as localidades da extensão, não é outra coisa senão a substância primitiva na qual residem as forças universais, de onde a Natureza tem tirado todas as coisas. ([18])
18. Este fluido penetra nos corpos como um imenso oceano. É nele que reside o princípio vital que dá nascimento à vida dos seres, e a perpetua sobre cada globo segundo sua condição, a princípio no estado latente que dormita ali onde a voz de um ser não o chama. Cada criatura, mineral, vegetal, animal ou de outra espécie, — pois há outros reinos naturais dos quais nem mesmo suspeitamos a existência — por virtude desse princípio vital universal, sabe adequar as condições de sua existência e de sua duração.
As moléculas do mineral têm certa soma dessa vida, assim como a semente e o embrião, e agrupam-se, conforme o organismo, em figuras simétricas que constituem os indivíduos.
Muito importa que nos compenetremos dessa noção; que a matéria cósmica primitiva era revestida, não só das leis que asseguram a estabilidade dos mundos, mas ainda do princípio vital universal que forma gerações espontâneas sobre cada mundo à medida que se manifestam as condições da existência sucessiva dos seres, quando soa a hora da aparição dos filhos da vida, durante o período criador.
Assim se efetua a criação universal. Portanto, é verdadeiro dizer que, sendo as operações da Natureza a expressão da vontade divina, Deus sempre tem criado, cria sem cessar, e criará sempre.
19. Porém até aqui temos deixado em silêncio o mundo espiritual, o qual, ele também, faz parte da criação e realiza seus destinos segundo as augustas prescrições do Senhor.
Não posso dar senão uma informação bem restrita sobre o modo de criação dos Espíritos, devido à minha própria ignorância, e devo calar-me ainda sobre certas questões, embora já me haja sido permitido aprofundá-las.
Aos que estejam religiosamente desejosos de conhecer, e que sejam humildes diante de Deus, direi, rogando-lhes todavia que não baseiem nenhum sistema sobre as minhas palavras: o Espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, ao mesmo tempo, o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, nem de haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra de sua individualidade; é somente a partir do dia em que o Senhor imprime sobre sua fronte seu augusto sinal, que o Espírito toma lugar entre as humanidades.
Ainda uma vez vos digo: não edifiqueis sobre minhas palavras vossos raciocínios, tão tristemente célebres na história da metafísica; preferirei mil vezes calar-me a respeito de questões tão elevadas, tão acima de nossas meditações ordinárias, de preferência a vos arriscardes a desnaturar o sentido de minha informação e a vos afundar, por minha culpa, nos dédalos inextricáveis do deísmo ou do fatalismo.
Os Sóis e os Planetas
20. Ora, sucedeu que num ponto do Universo, perdido por entre miríades de mundos, a matéria cósmica se condensou sob a forma de uma imensa nebulosa. Esta nebulosa estava animada pelas leis universais que regem a matéria; em virtude dessas leis, e principalmente pela força molecular da atração, ela tomou a forma de um esferoide, a única que pode, de início, revestir uma massa de matéria isolada no espaço.
O movimento circular produzido pela gravitação rigorosamente igual de todas as zonas moleculares em direção ao centro, modificou bem depressa a esfera primitiva, para a conduzir, de movimento em movimento, em direção à forma lenticular. — Falamos do conjunto da nebulosa.
21. Novas forças surgiram em seguida a este movimento de rotação: a força centrípeta e a força centrífuga; a primeira tendente a reunir todas as partículas no centro, e a segunda, tendente a afastá-las. Ora, com o movimento em aceleração, à medida que a nebulosa se condensava, e com seu raio aumentando à medida que ela se aproximava da forma lenticular, a força centrífuga, incessantemente desenvolvida pelas duas causas, predominou logo sobre a atração central.
Da mesma forma que o movimento muito rápido da funda arrebenta sua corda e arremessa longe o projétil, assim a predominância da força centrífuga destacou o círculo equatorial da nebulosa e desse anel formou nova massa isolada da primeira, porém nem por isso menos submetida a seu influxo. Essa massa conservou seu movimento equatorial o qual, modificado, tornou-se o movimento de translação em redor do astro solar. Além disso, seu novo estado lhe dá um movimento de rotação em redor de seu próprio centro.
22. A nebulosa geratriz que deu nascimento a este novo mundo se condensou e retomou a forma esférica; mas o calor primitivo, desenvolvido por seus diversos movimentos, não se enfraquece senão com extrema lentidão e o fenômeno que acabamos de descrever se reproduzirá frequentemente e durante um longo período, até que essa nebulosa seja bastante densa, bastante sólida, para opor uma resistência eficaz às modificações de forma que lhe imprime sucessivamente seu movimento de rotação.
Ela não terá, pois, dado nascimento a um só astro, mas a centenas de mundos destacados do foco central, dele saídos pelo modo de formação acima mencionado. Ora, cada um desses globos, revestido como o mundo primitivo de forças naturais que presidem à criação dos universos, gerará sucessivamente novos mundos que de agora em diante gravitarão em redor dele, como ele em conjunto faz com seus irmãos em redor do foco de sua existência e de sua vida. Cada um desses mundos será um sol, centro de um turbilhão de planetas sucessivamente destacados de seu equador. Estes planetas receberão uma vida especial, particular, embora dependente de seu astro gerador.
23. Assim se formaram os planetas, com massas de matéria condensada, embora ainda não solidificada, destacadas da massa central mediante a ação da força centrífuga, e em virtude da leis do movimento, tomando a forma esferoidal mais ou menos elíptica, segundo o grau de fluidez que conservaram. Um desses planetas será a Terra, o qual antes que se esfriasse e fosse revestido de uma crosta sólida, daria nascimento à Lua, pelo modo de formação sideral ao qual ela deve sua própria existência; a Terra, desde agora inscrita no livro da vida, berço de criaturas cuja fraqueza é protegida sob as asas da Providência, corda nova na harpa do infinito, que deve vibrar em seu lugar no concerto universal dos mundos.
Os Satélites
24. Antes que as massas planetárias houvessem atingido um grau de resfriamento suficiente para operar sua solidificação, massas menores, verdadeiros globos líquidos, no qual a força centrífuga é maior, e em virtude das mesmas leis adquiriram um movimento de translação ao redor de seu planeta gerador, conforme sucedeu com aqueles em redor de seu astro central.
Foi assim que a Terra deu nascimento à Lua, cuja massa, menos considerável, pode sofrer um resfriamento mais rápido. Ora, as leis e as forças que presidiram a seu desatamento do equador terrestre e seu movimento de translação neste mesmo plano, agiram de tal sorte que este mundo, em lugar de revestir a forma esferóide, tomou a de um corpo ovoide, isto é, apresentando a forma alongada de um ovo, cujo centro de gravidade seria fixado em sua parte inferior.
25. As condições pelas quais se efetuou a desagregação da Lua lhe permitiram pouco afastar-se da Terra, e a constringiram a permanecer perpetuamente suspensa em seu céu, como uma figura ovoide cujas partes mais pesadas formaram a face interior voltada em direção à Terra, e cujas partes menos densas ocuparam o ponto mais alto, designando por este nome o lado oposto à Terra, que assim se conserva saliente, voltado para o céu. Isto é o que causa o fato de que este astro conserve sempre a mesma face voltada para nós. Para ser melhor compreendido seu estado geológico, pode ser considerado semelhante a um globo de cortiça cuja base voltada para a Terra seria formada de chumbo.
Daí derivam duas naturezas essencialmente distintas, existentes na superfície do mundo lunar: uma, sem nenhuma analogia possível com a de nosso planeta, pois os corpos fluidos e etéreos lhe são desconhecidos; a outra, leve em relação à Terra, pois que todas as substâncias menos densas se acumularam nesse hemisfério. A primeira, perpetuamente voltada para a terra, sem água e sem atmosfera, exceto talvez em seus limites deste hemisfério sub-terrestre; a outra, rica em fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo. ([19])
26. A quantidade e o estado dos satélites de cada planeta variaram segundo as condições especiais nas quais foram formados. Alguns não deram nascimento a nenhum astro secundário, tais como Mercúrio, Vênus e Marte, ao passo que outros formaram diversos, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc.
27. Além de seus satélites ou luas, o planeta Saturno apresenta o fenômeno especial do anel que, visto de longe, parece rodeá-lo como de uma branca auréola. Esta formação é para nós nova prova da universalidade das leis da natureza. Este anel é, com efeito, o resultado de uma separação que se operou nos tempos primitivos, no equador de Saturno, da mesma forma que uma zona equatorial se escapou da Terra para formar seu satélite. A diferença consiste em que o anel de Saturno se encontrou formado, em todas suas partes, de moléculas homogêneas, provavelmente já num certo grau de condensação, e dessa sorte, pode continuar seu movimento de rotação no mesmo sentido e num tempo quase igual ao que anima seu planeta. Se um dos pontos deste anel tivesse sido mais denso que outro, uma ou mais aglomerações da substância teriam sido subitamente operadas, e Saturno teria diversos satélites a mais. Depois de formado, este anel solidificou-se tal como os outros corpos planetários.
Os Cometas
28. Astros errantes, mais ainda que os planetas que conservaram a denominação etimológica, os cometas serão os guias que nos auxiliarão a franquear os limites do sistema ao qual pertence a Terra, para nos levar em direção às regiões distantes da extensão sideral.
Porém, antes de explorar os domínios celestes, com o auxílio deste viajores do universo, será bom fazer reconhecer, tanto quanto possível, sua natureza intrínseca e seu papel na economia planetária.
29. Muitas vezes se tem imaginado nos astros, mundos nascentes elaborando em seu caos primitivo as condições de vida e de existência que são dadas em partilha às terras habitadas; outras pessoas têm imaginado que estes corpos extraordinários eram mundos no estado de destruição, e sua aparência singular foi para muitos o tema de apreciações errôneas acerca de sua natureza; de tal maneira, que não houve, até mesmo na Astrologia judiciária, quem deles não houvesse extraído presságios de desastres enviados pelos decretos providenciais, à Terra estonteada e apavorada.
30. A lei da variedade é aplicada com tão grande profusão nos trabalhos da Natureza, que a gente se pergunta como os naturalistas, astrônomos ou filósofos têm construído tantos sistemas para assimilar os cometas aos astros planetários, e para não enxergar neles senão astros que se encontram num grau mais ou menos grande, de desenvolvimento ou de caducidade. No entanto, os quadros da Natureza deviam bastar amplamente para afastar do observador o cuidado de procurar relações que não existem e deixar aos cometas o papel modesto, porém útil, de astros errantes que servem de exploradores dos impérios solares. Pois os corpos celestes de que se trata são coisa muito diversa dos corpos planetários; eles não têm, tal como aqueles, o destino de servir de morada às humanidades. Eles vão sucessivamente de um sol para outro, enriquecendo-se por vezes no caminho com fragmentos planetários reduzidos ao estado de vapores, recebendo nos seus focos os princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos terrestres (Cap. IX, nº 12).
31. Quando um destes astros se aproxima de nosso pequeno globo, para atravessar sua órbita e voltar a seu apogeu situado a uma distância incomensurável do Sol, se o seguirmos pelo pensamento, para com ele visitar os países siderais, atravessaríamos esta extensão prodigiosa de massa etérea que separa o Sol das estrelas mais próximas e, observando os movimentos combinados desse astro que acreditávamos extraviado no deserto do infinito, encontraríamos aí mais uma prova eloquente da universalidade das leis da Natureza, as quais se exercem a distâncias inconcebíveis mesmo à imaginação mais ativa.
Ali, a forma elíptica toma a forma parabólica, e o andamento se retarda ao ponto de não percorrer senão alguns metros, no mesmo tempo em que no seu perigeu ele percorreria diversos milhares de léguas. Talvez um Sol mais poderoso, mais importante que aquele que o cometa deixou, exerça para com esse cometa uma atração preponderante, e o receberá no cortejo de seus próprios súditos, e então os filhos admirados de vossa pequena Terra aguardarão em vão a volta que tivessem prognosticado por observações incompletas. Neste caso, nós, cujo pensamento seguiu o cometa errante a estas regiões desconhecidas, reencontramos então uma nova nação impossível de ser encontrada pelas nossas vistas terrestres, inimaginável pelos Espíritos que habitam a Terra, inconcebível mesmo a seus pensamentos, pois ela seria teatro de maravilhas inexploradas.
Somos chegados ao mundo sideral, a este mundo deslumbrante dos vastos sóis que irradiam no espaço infinito, e que são as flores brilhantes do canteiro magnífico da criação. Ali chegados, é que saberemos o que é a Terra.
A Via Láctea
32. Durante as belas noites estreladas e sem lua, cada um de nós pode observar este luar branquicento que atravessa o céu de uma extremidade à outra, e que os antigos denominaram via láctea por causa de sua aparência leitosa. Esse luar difuso tem sido longamente explorado pelo olho do telescópio nos tempos modernos, e este caminho de pó de ouro ou este regato de leite da antiga mitologia, transformou-se num vasto campo de maravilhas desconhecidas. As pesquisas dos observadores têm conduzido ao conhecimento de sua natureza, e têm mostrado, lá onde o olhar errante apenas encontrava uma fraca claridade, milhões de sóis mais luminosos e mais importantes que aquele que nos ilumina.
33. Com efeito, a via láctea é um campo semeado de flores solares ou planetárias que brilham em sua vasta extensão. Nosso Sol e todos os corpos que o acompanham fazem parte desses globos radiantes, dos quais se compõe a via láctea; porém, apesar de suas dimensões gigantescas relativamente à Terra e à grandeza de seu império, não ocupa senão um lugar inapreciável nesta vasta criação. Podem-se contar uns trinta milhões de sóis semelhantes a ele, os quais gravitam nesta imensa região, afastados uns dos outros por mais de cem mil vezes do tamanho do raio da órbita terrestre. ([20])
34. Por este cálculo aproximativo, pode-se considerar a extensão desta região sideral e da relação que une nosso sistema à universalidade dos sistemas que o ocupam. Igualmente pode-se considerar a exiguidade do domínio solar e, a fortiori, da nulidade de nossa pequena Terra. Que seria, então, se se considerassem os seres que a povoam!
Digo — "da nulidade", pois nossas determinações se aplicam não só à extensão material, física, dos corpos que estudamos, — o que seria pouco —, mas ainda e sobretudo a seu estado moral de habitação, ao grau que ocupam na eterna hierarquia dos seres. A criação ali se mostra em toda sua majestade, criando e propagando tudo em redor do mundo solar, e em cada um dos sistemas que o rodeiam por todos os seus lados, as manifestações da vida e da inteligência.
35. Por esta maneira, conhecemos a posição que nosso Sol e a Terra ocupam no mundo das estrelas; estas considerações adquirirão ainda valor maior, se refletirmos sobre o estado mesmo da Via Láctea, que, na imensidade das criações siderais, não representa senão um ponto insensível e inapreciável, se visto de longe; pois ela não é outra coisa senão uma nebulosa estelar tal como existem milhares no espaço. Se ela nos parece ser mais vasta e mais rica que outras, é pela única razão de que ela nos rodeia e se desenvolve sob toda sua extensão, sob nossos olhos, enquanto que outras, perdidas nas profundezas insondáveis, mal se deixam entrever.
36. Ora, se sabemos que a Terra nada é, ou quase nada, no sistema solar; este nada, ou quase nada, na Via Láctea; este nada ou quase nada na universalidade das nebulosas, e esta universalidade, muito pouco no meio do imenso infinito, — começaremos a compreender o que é o globo terrestre.
As Estrelas Fixas
37. As estrelas que chamamos fixas, e que constelam os dois hemisférios do firmamento, não são isentas de toda atração exterior, como geralmente se supõe; longe disso, elas pertencem todas a uma mesma aglomeração de astros estelares. Esta aglomeração não é outra coisa senão a grande nebulosa da qual fazemos parte, e cujo plano equatorial que se projeta no céu, recebeu o nome de via láctea. Todos os sóis que a compõem são solidários; suas múltiplas influências reagem perpetuamente umas sobre as outras, e a gravitação universal as reúne todas numa mesma família.
38. Entre estes diversos sóis, a maior parte são, tal como o nosso, rodeados de mundos secundários, que eles iluminam e fecundam segundo as mesmas leis que presidem a vida de nosso sistema planetário. Uns, como Sírius, são milhares de vezes superiores em dimensões e em riquezas que o nosso, e seu papel no Universo é mais importante, assim como são rodeados por planetas em número maior, e muito mais importantes que os nossos. Assim é que uma certa quantidade de tais sóis, verdadeiros gêmeos da ordem sideral, são acompanhados pelos seus irmãos da mesma idade e formam, no espaço, sistemas binários aos quais a natureza deu funções inteiramente diversas das que são atribuídas ao nosso Sol. ([21]) Ali, os anos não se medem mais pelos mesmos períodos, nem os dias pelos mesmos sóis, e estes mundos clareados por um duplo facho, receberam em partilha condições de existência inimagináveis aos que ainda não saíram deste pequeno mundo terrestre.
Outros astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam os melhores elementos de habitabilidade que são dados a qualquer um. As leis da Natureza são diversificadas em sua imensidade, e se a unidade é a grande palavra do universo, a variedade infinita não deixa de ser por outro lado o eterno atributo.
39. Apesar do número prodigioso dessas estrelas e de seus sistemas, apesar das distâncias incomensuráveis que as separam, elas não deixam de pertencer, todas, à mesma nebulosa estelar que as distâncias alcançadas pelos mais pode rosos telescópios mal podem atravessar, e que as concepções mais ousadas da imaginação mal podem franquear; nebulosa essa que, não obstante, não é senão uma unidade na ordem das nebulosas que compõem o mundo sideral.
40. As estrelas que chamamos fixas não são imóveis na extensão. As constelações que figuramos na abóbada do firmamento não são criações reais. A distância da Terra e a perspectiva sob a qual é medido o Universo, a partir deste ponto, são as duas causas desta dupla ilusão de ótica. (Cap. V, nº 12)
41. Temos visto que a totalidade dos astros que cintilam na cúpula azulada é incluída numa mesma aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa que denominais Via Láctea; porém, pelo fato de pertencerem todos ao mesmo grupo, estes astros não deixam de ser animados cada um de um movimento de translação no espaço; o repouso absoluto não existe em parte alguma. São regidos pelas leis universais da gravitação, e rolam na imensidade sob o impulso incessante dessa força imensa; rolam, não seguindo caminhos traçados por acaso, mas seguindo órbitas fechadas, cujo centro é ocupado por um astro superior. A fim de tornar mais compreensíveis minhas palavras, falarei especialmente de vosso Sol.
42. Pelas observações modernas, sabe-se que não há ponto fixo ou central, conforme se acreditava nos primeiros dias da nova Astronomia; sabe-se, porém, que o Sol se move pelo espaço arrastando seu vasto sistema de planetas, satélites e cometas.
Ora, este caminho não é fortuito e não vai, errando nos vazios infinitos, se extraviar em algum lugar longe das regiões que lhe foram designadas. Não, sua órbita é medida, e de modo concorrente com outros sóis da mesma ordem que ele, cada um deles, rodeado de um certo número de terras habitadas, gravita em redor de um sol central. Seu movimento de gravitação, do mesmo modo que o dos sóis seus irmãos, é inapreciável a observações anuais, pois períodos seculares em grande número mal serviriam para marcar o tempo de um desses anos siderais.
43. O sol central de que acabamos de falar, é em si mesmo um globo secundário em relação a um outro mais importante ainda, em redor do qual ele perpetua uma marcha lenta e compassada, em companhia de outros sóis da mesma ordem.
Poderíamos constatar esta subordinação sucessiva de uns sóis para outros, até que nossa imaginação ficasse cansada de escalar uma tal hierarquia; pois, não nos esqueçamos, pode-se contar com aproximação uns trinta milhões de sóis na Via Láctea, subordinados uns aos outros como roldanas gigantescas de um imenso sistema.
44. E estes astros, em quantidades inumeráveis, vivem cada qual uma vida solidária; assim como nada está isolado na economia de vosso pequeno mundo terrestre, assim também nada está isolado no Universo incomensurável.
Estes sistemas de sistemas pareceriam de longe, ao olhar investigador do filósofo que pudesse abarcar o quadro desenvolvido pelo espaço e pelo tempo, uma poeira de pérolas de ouro levantada em turbilhão pelo sopro divino que faz voar os mundos siderais nos céus, como grãos de areia nas ondulações do deserto.
Não há imobilidade, nem silêncio, nem noite! O grande espetáculo que se desenvolvesse desta maneira sob nossas vistas seria a criação real, imensa e cheia da vida etérea que abraça no conjunto imenso a visão infinita do Criador.
Porém até agora apenas falamos de uma nebulosa; seus milhões de sóis, seus milhões de terras habitadas não formam, como já temos dito, senão uma ilha no infinito arquipélago.
Os Desertos do Espaço
45. Um deserto imenso, sem limites, estende-se para além da aglomeração de estrelas de que acabamos de falar, e a rodeia. Solidões sucedem a solidões, e as planícies incomensuráveis do vácuo se estendem ao longe. Os amontoados de matéria cósmica se encontram isolados no espaço como ilhas flutuantes num imenso arquipélago; se quisermos apreciar de alguma forma a ideia da enorme distância que separa os aglomerados de estrelas do qual fazemos parte, das aglomerações mais próximas, será necessário saber que essas ilhas estelares são disseminadas e raras, no vasto oceano dos céus, e que a extensão que as separa umas das outras é incomparavelmente maior que a que mede suas respectivas dimensões.
Ora, recordemos que a nebulosa estelar mede, em números redondos, mil vezes a distância das mais próximas estrelas tomadas como unidade, isto é, uns cem mil trilhões de léguas. Sendo muito mais vasta a distância que se estende entre elas, não poderia essa distância ser expressa por números acessíveis à compreensão de nosso espírito; unicamente a imaginação, em suas mais altas concepções, é capaz de franquear esta imensidade prodigiosa, essas solidões mudas e privadas de toda aparência de vida, e de encarar de alguma forma a ideia dessa infinidade relativa.
46. Entretanto, esse deserto celeste, que rodeia nosso universo sideral, e que parece estender-se como os confins recuados de nosso mundo astral, é abarcado pela vista e pela potência infinita do Altíssimo, que além dos céus de nossos céus, compôs a trama de sua criação ilimitada.
47. Com efeito, além dessas vastas solidões, há mundos que irradiam em sua magnificência, tão perfeitamente como nas regiões acessíveis às investigações humanas; além desses desertos, há esplêndidos oásis que vagam no límpido éter, e renovam incessantemente as cenas admiráveis da existência e da vida. Ali, desenvolvem-se os agregados longínquos de substância cósmica, que o olhar profundo do telescópio entrevê através das regiões transparentes de nosso céu; são essas nebulosas que são denominadas irresolúveis, e que aparecem como ligeiras nuvens de poeira branca, perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo. Ali se revelam e se desenvolvem mundos novos, cujas condições variadas e diferentes das de vosso globo, lhes dá uma vida que vossas concepções não podem imaginar, nem vossos estudos constatar. É lá que resplandece em toda sua plenitude o poder criador; para aquele que vem das regiões ocupadas por vosso sistema, outras leis aí existem em ação, cujas forças regem as manifestações da vida, e os caminhos novos que seguimos nestes países estranhos nos abrem perspectivas desconhecidas. ([22])
Sucessão Eterna dos Mundos
48. Temos visto que só uma lei primordial e geral foi dada ao Universo, para assegurar sua estabilidade eterna, e que esta lei geral é perceptível a nossos sentidos mediante diversas ações particulares, as quais chamamos forças dirigentes da Natureza. Hoje vamos mostrar que a harmonia do mundo inteiro, considerada sob o duplo aspecto da eternidade e do espaço, é assegurada por essa lei suprema.
49. Com efeito, se remontarmos à origem primeira das primitivas aglomerações de substância cósmica, observaremos que, sob o império dessa lei, a matéria já passou por transformações necessárias, que a conduzem do germe para o fruto maduro, e que sob o impulso das forças diversas, nascidas dessa lei, ela percorre a escala de suas revoluções periódicas; a princípio, centro fluídico dos movimentos, a seguir, gerador dos mundos, mais tarde, núcleo central e atrativo das esferas que tiveram nascimento em seu seio.
Sabíamos já que essas leis presidem à história do Cosmos; o que importa saber agora, é que elas presidem igualmente a destruição dos astros, pois a morte não é somente uma metamorfose do ser vivente, mas ainda uma transformação da matéria inanimada; e se é verdadeiro dizer-se, no sentido literal, que a vida só é acessível como contrafação da morte, também é justo acrescentar que a substância deve necessariamente suportar as transformações inerentes à sua constituição.
50. Suponhamos um mundo que, desde seu berço primitivo, percorreu toda a extensão dos anos que sua organização especial permitiu percorrer; o foco interior de sua existência se extinguiu, seus elementos próprios perderam a virtude inicial; os fenômenos da natureza, que para sua produção exigiam a presença e a ação das forças devolvidas a esse mundo, já não podem se apresentar, porque a alavanca de sua atividade já não tem mais o ponto de apoio que lhe dava toda sua força.
Ora, poder-se-á pensar que esse planeta extinto e sem vida vai continuar a gravitar nos espaços celestes, sem fim, e permanecer como cinza inútil no turbilhão dos céus? Poder-se-á pensar que ele continue inscrito no livro da vida universal, quando nada mais é senão uma letra morta e desvestida de sentido? Não; as mesmas leis que o elevaram acima do caos tenebroso, e que lhe gratificaram os esplendores da vida, as mesmas forças que o governaram durante os séculos de sua adolescência, que firmaram seus primeiros passos na existência e que o conduziram à idade madura e à velhice, vão presidir à desagregação de seus elementos constitutivos para entregá-los ao laboratório de onde a potência geratriz extrai sem cessar as condições da estabilidade geral. Estes elementos vão voltar a essa massa comum de éter, para se assimilar a outros corpos ou para regenerar outros sóis; e essa morte não será um acontecimento inútil a esta Terra, nem a suas irmãs: ela renovará, em outras regiões, outras criações de natureza diferente, e ali onde sistemas de mundos se tenham desvanecido, renascerá logo um novo canteiro de flores mais brilhantes e mais perfumadas.
51. Assim a eternidade real e efetiva do Universo é assegurada pelas mesmas leis que dirigem a operação dos tempos; assim os mundos se sucedem aos mundos, os sóis aos sóis, sem que o imenso mecanismo dos vastos céus jamais seja afetado em suas gigantescas molas.
Lá onde vossos olhares admiram esplêndidas estrelas, sob a abóbada das noites, lá onde vosso espírito contempla radiações magníficas que resplendem sob longínquos espaços, já de há muito tempo o dedo da morte extinguiu tais esplendores, já de há muito o vazio sucedeu a tais lampejos, e recebem mesmo novas criações ainda desconhecidas. O imenso afastamento de tais astros, pelo qual a luz que nos enviam leva milhares de anos para nos alcançar, faz com que somente hoje recebamos os raios que nos foram enviados há muito tempo, antes da criação da Terra, e que ainda os admiremos durante milhares de anos após a sua desaparição real. ([23])
Que são os seis mil anos da humanidade histórica, ante os períodos seculares? Segundos em vossos séculos? Que são vossas observações astronômicas ante o estado absoluto do mundo? Uma sombra eclipsada pelo Sol.
52. Logo, aqui como em nossos outros estudos, reconheçamos que a Terra e o homem são como nada, em confronto com aquilo que existe, e que as mais colossais operações de nosso pensamento não se estendem ainda senão por um campo imperceptível ao lado da imensidade e da eternidade de um Universo que não se extinguirá nunca.
E quando esses períodos de nossa imortalidade houverem passado sobre nossas cabeças, quando a história atual da Terra nos aparecer como uma sombra vaporosa, no fundo de nossa lembrança; depois que tivermos habitado durante séculos sem conta nestes diversos graus de nossa hierarquia cosmológica; depois que os mais distantes domínios das futuras idades tiverem sido percorridas por inumeráveis peregrinações, teremos diante de nós a sucessão ilimitada dos mundos e por perspectiva, a imobilidade eterna.
A Vida Universal
53. Esta imortalidade das almas, da qual é base o sistema do mundo físico, pareceu imaginária aos olhos de certos pensadores cheios de preconceitos; eles a qualificaram ironicamente de imortalidade viajora, e não compreenderam que somente ela era verdadeira diante do espetáculo da criação. Todavia, é possível fazer com que seja compreendida toda a sua grandeza; diria mesmo, quase toda a sua perfeição.
54. Que as obras de Deus sejam criadas para o pensamento e para a inteligência; que os mundos sejam a habitação de seres que as contemplam e descobrem sob seu véu, o poder e a sabedoria daquele que as formou, — esta questão já não é mais duvidosa para nós; porém, o que importa conhecer é que as almas que os povoam sejam solidárias.
55. Com efeito, a inteligência humana não se satisfaz em considerar estes globos radiosos, que cintilam na extensão, como simples massas de matéria inerte e sem vida; ela não se satisfaz em sonhar que haja, nessas regiões longínquas, magníficos crepúsculos e noites esplêndidas, sóis fecundos e dias cheios de luz, vales e montanhas nos quais as produções da Natureza desenvolveram toda a sua pompa luxuriante; ela não se satisfaz em imaginar, digo eu, que o espetáculo divino no qual a alma pode se retemperar como em sua própria vida, seja despojado de existência e privado de todo ser pensante, que pudesse conhecê-lo.
56. Porém, a esta ideia eminentemente justa da criação, é necessário acrescentar aquela da humanidade solidária e é nisso que consiste o mistério da eternidade futura.
Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos, e foram dados a estes mundos, laços de uma fraternidade ainda inapreciada por vossa parte. Se estes astros que se harmonizam em seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não o serão por seres desconhecidos uns dos outros, mas sim por seres marcados em suas frontes com o mesmo destino, os quais devem se encontrar momentaneamente segundo suas funções na vida, e se reencontrar segundo suas mútuas simpatias; é a grande família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é a grande irradiação do Espírito divino que abraça a extensão dos céus, e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual.
57. Por que estranha aberração ter-se-á chegado a pensar em recusar à imortalidade as vastas regiões do éter, fazendo-a ser encerrada num limite inadmissível, e numa dualidade absoluta? O verdadeiro sistema do mundo deveria pois preceder a verdadeira teoria dogmática, e a ciência da Teologia? Esta se afastaria tanto de sua base, que se colocaria apoiada na Metafísica? A resposta é fácil e nos mostra que a nova Filosofia se assentará triunfante sobre as ruínas da antiga, pois sua base se terá elevado vitoriosa, sobre os antigos erros.
Diversidade dos Mundos
58. Vós nos seguistes em nossas excursões celestes, e tendes visitado conosco as regiões imensas do espaço. Sob nossas vistas, os sóis têm sucedido aos sóis, os sistemas aos sistemas, as nebulosas às nebulosas; o panorama esplêndido da harmonia do Cosmos tem se desenvolvido diante de nossos passos, e antegozamos a ideia do infinito, a qual não pudemos compreender em toda sua extensão senão segundo nossa futura perfectibilidade. Os mistérios do éter desfizeram seu enigma, até aqui indecifrável, e pelo menos concebemos a ideia da universalidade das coisas. Agora, importa que detenhamos nossa marcha, para refletir.
59. Sem dúvida, é belo haver reconhecido a ínfima posição da Terra, e sua medíocre importância na hierarquia dos mundos; é belo ter abatido a presunção humana que nos é tão cara e termo-nos humilhado diante da grandeza absoluta, porém será ainda mais belo interpretar sob o senso moral, o espetáculo do qual fomos testemunha. Desejo falar da potência infinita da Natureza, e da ideia que devemos fazer de seu modo de ação nas diversas partes do vasto Universo.
60. Habituados, como estamos, a considerar as coisas pela nossa pobre e pequena habitação, imaginamos que a Natureza não tem podido ou não tem sabido agir sobre os outros mundos, senão conforme as regras que têm sido reconhecidas aqui em baixo. Ora, é precisamente nisso que importa reformar nosso julgamento.
Por um instante, lançai os olhos sobre uma região qualquer de vosso globo, e sobre um dos produtos de vossa natureza; não reconhecei aí o cunho de uma variedade infinita e a prova de uma atividade sem igual? Não enxergais sobre a asa de um pequeno pássaro das Canárias, sobre a pétala de um botão de rosa entreaberto, a prestimosa fecundidade dessa bela natureza?
Quer vossos estudos se apliquem aos seres que planam nos ares, quer desçam até à violeta dos prados, quer mergulhem sob as profundezas do Oceano, em tudo e por toda a parte haveis de ler esta verdade universal: a Natureza todo-poderosa age segundo os lugares, os tempos e as circunstâncias; ela é una, em sua harmonia geral, porém múltipla em suas produções; ela se compraz num sol, assim como numa gota d'água; ela povoa com seres viventes um mundo imenso com a mesma facilidade que faz eclodir o ovo depositado pela borboleta do outono.
61. Ora, se tal é a variedade que a Natureza pode nos descrever em todos os lugares sobre este pequeno mundo tão limitado, tão estreito, quanto mais deveis estender este modo de ação, ponderando nas perspectivas dos vastos mundos! Quanto mais deveis desenvolvê-la e reconhecer sua possante extensão, aplicando-a a estes mundos maravilhosos que, muito mais que a Terra, atestam sua imensa perfeição!
Não considereis, pois, em torno de cada um dos sóis do espaço, sistemas semelhantes ao vosso sistema planetário; não vede sobre estes planetas desconhecidos, os três reinos da Natureza que brilham em torno de vós; mas concebei a ideia de que, da mesma forma que um rosto humano não se assemelha a outro rosto em todo o gênero humano, assim também uma diversidade prodigiosa, inimaginável se acha espalhada pelas moradas etéreas que vogam no seio dos espaços.
Do fato de que vossa natureza animada começa no zoófito para terminar no homem, de que a atmosfera alimenta a vida terrestre, de que o elemento líquido a renova sem cessar, de que vossas estações fazem suceder nesta vida os fenômenos que as distinguem, não tireis a conclusão de que os milhões e milhões de planetas que vagam na extensão do espaço sejam semelhantes ao nosso; longe disso, eles diferem segundo as condições diversas que lhes foram designadas e segundo seu papel respectivo na cena do mundo; eles são as pedrarias variadas de um imenso mosaico, as flores diversificadas de um admirável jardim.(·)
Períodos Geológicos — Estado primitivo do globo — Período primário — Período de transição — Período secundário — Período terciário — Período diluviano — Período Pós-diluviano ou Atual — Aparecimento do Homem
Períodos Geológicos
1. A Terra conserva em si, traços evidentes de sua formação; podem-se seguir suas fases com precisão matemática, nos diversos solos que compõem sua estrutura. O conjunto de tais estudos constitui a ciência denominada Geologia, ciência nascida neste século, e que lançou luz sobre a questão tão controvertida de sua origem e da dos seres vivos que a habitam. Aqui, não há hipótese; é o resultado rigoroso da observação dos fatos e em presença dos fatos não se permite dúvida. A história da formação do globo está escrita nas camadas geológicas, de maneira muito mais certa que nos livros preconcebidos, pois aqui é a própria Natureza que fala, que se mostra a descoberto, e não a imaginação dos homens que cria sistemas. Onde se veem os sinais de fogo, com certeza se pode dizer que existiu o fogo; onde se veem sinais de água, com certeza não menos se afirma que a água aí esteve; onde se veem os sinais dos animais, afirma-se que aí viveram os animais.
A Geologia é, pois, uma ciência toda de observação; ela não deduz senão partindo daquilo que vê; sobre seus pontos duvidosos, ela nada afirma; não emite senão opiniões discutíveis cuja solução definitiva aguarda observações mais completas. Sem as descobertas da Geologia, como as da Astronomia, a Gênese do mundo estaria ainda nas trevas da lenda. Graças a ela, hoje o homem conhece a história de sua habitação, e a estrutura das fábulas que rodeavam seu berço ruíram para não mais se levantar.
2. Por toda parte, nos terrenos onde existam valas, escavações naturais ou abertas pelo homem, nota-se algo que se chamam estratificações, isto é, camadas superpostas. Os terrenos que apresentam esta disposição são chamados terrenos estratificados. Estas camadas, de espessura muito variável, desde alguns centímetros até 100 metros e mesmo mais, se distinguem entre si pela cor e natureza das substâncias das quais são compostas. Os trabalhos de arte, a perfuração de poços, a exploração de pedreiras e sobretudo das minas, têm permitido observá-las até profundidades bastante grandes.
3. As camadas são geralmente homogêneas, isto é, cada uma é formada duma mesma substância, ou de diversas substâncias que tenham existido em conjunto e hajam formado um todo compacto. A linha de separação que as isola umas das outras é sempre nitidamente traçada, como nas carreiras de tijolos de um alicerce; em parte alguma elas se apresentam misturadas e se perdem uma na outra nos locais de seus limites respectivos, como é o caso, por exemplo, nas cores do prisma e do arco-íris.
Com estes característicos, reconhece-se que elas se formaram sucessivamente, depositadas umas sobre as outras, sob condições e devido a causas diferentes; naturalmente as mais profundas foram formadas em primeiro lugar, e as mais superficiais, posteriormente. A última de todas, aquela que se encontra na superfície é a camada de terra vegetal que deve suas propriedades aos detritos das matérias orgânicas provenientes das plantas e dos animais.
4. As camadas inferiores, colocadas abaixo da camada vegetal, receberam na Geologia o nome de rochas, palavra que nesse significado, nem sempre implica a ideia de uma substância pedregosa, mas significa um leito ou banco, de uma substância mineral qualquer. Umas são formadas de areia, de argila ou greda, de marga, de seixos rolados; outras, de pedras propriamente ditas, mais ou menos duras, tais como o grés, os mármores, o giz, os calcários ou pedras de cal, as pedras para moinho, os carvões de pedra, os asfaltos, etc. Diz-se que uma rocha é mais ou menos poderosa, conforme sua espessura seja mais ou menos considerável.
Pela inspeção da natureza dessas rochas ou camadas, por certos sinais se reconhece que umas provêm de matérias fundidas e por vezes vitrificadas pela ação de fogo; outras, provêm de substâncias terrosas depositadas pelas águas; algumas dessas substâncias permanecem desagregadas, como as areias; outras, a princípio em estado pastoso, sob a ação de certos agentes químicos ou outras causas, tornaram-se endurecidas e por fim adquiriram a consistência da pedra. Os bancos de pedras superpostas anunciam os depósitos sucessivos. O fogo e a água tiveram, pois, sua parte de ação na formação dos materiais que compõem a estrutura sólida do globo.
5. A posição normal das camadas terrosas ou pedregosas, provenientes de depósitos aquosos, é a direção horizontal. Quando se veem essas imensas planícies que se estendem por vezes a perder de vista, unidas como se tivessem sido niveladas com rolos, ou estes fundos de vales tão planos como a superfície de um lago, pode-se ter certeza de que numa época mais ou menos recuada, tais lugares estiveram durante muito tempo cobertos por águas tranquilas, as quais em sua retirada, deixaram a seco as terras que haviam depositado durante sua longa permanência. Depois da retirada das águas, estas terras se cobriram de vegetação. Se em lugar de terras gordas, lamacentas, argilosas, próprias à assimilação dos princípios nutritivos, as águas depositaram apenas areias siliciosas, sem agregação, resultam essas planícies arenosas e estéreis, que constituem as charnecas e os desertos. Os depósitos deixados pelas inundações parciais, e os que formam os aterros nas embocaduras dos rios, podem dar em ponto pequeno uma ideia disso.
6. Se bem que a horizontalidade seja a posição normal e a mais generalizada das formações aquosas, frequentemente se encontram, em grandes extensões, nos países montanhosos, rochas duras, que sua natureza indica terem sido formadas pelas águas, estando em posição inclinada, e por vezes mesmo na vertical. Ora, como, segundo as leis de equilíbrio dos líquidos e da gravidade, os depósitos aquosos não se podem formar senão em planos horizontais, visto que aqueles que se formam em planos inclinados são arrastados para os lugares baixos pelas correntes e por seu próprio peso, torna-se evidente que esses depósitos deverão ter sido elevados por uma força qualquer, após sua solidificação ou sua transformação em pedras.
Destas considerações, pode-se concluir com certeza que todas as camadas pedregosas provenientes de depósitos aquosos numa posição perfeitamente horizontal, foram formadas no decorrer dos séculos, por águas tranquilas, e que todas as vezes em que elas têm posição inclinada, é que o solo foi deslocado posteriormente por convulsões generalizadas ou parciais, mais ou menos consideráveis.
7. Um fato característico da mais alta importância, pelo testemunho irrecusável que fornece, consiste nos restos fósseis de animais e vegetais que são encontrados em quantidades inumeráveis nas diferentes camadas; e como estes restos se encontram mesmo nas pedras mais duras, será necessário concluir que a existência desses seres é anterior à formação de tais pedras; ou, se considerarmos o número prodigioso de séculos que foi necessário, para que se operasse seu endurecimento, e conduzi-los ao estado em que estão, já há tempos imemoriais, chega-se a esta consequência forçosa, que a aparição dos seres orgânicos sobre a Terra se perde na noite dos tempos, e que é bem anterior, por conseguinte, à data designada pela Gênese. ([24])
8. Entre esses restos de vegetais e de animais, encontram-se uns que foram penetrados em todas as partes de sua substância, sem que sua forma se haja alterado por matérias siliciosas ou calcárias, que os transformaram em pedras; entre estas, algumas têm a dureza do mármore; estas são as petrificações propriamente ditas. Outros têm sido simplesmente envolvidos pela matéria, em estado pastoso; estes são encontrados intactos, e alguns inteiros, nas pedras as mais duras. Outros, enfim, apenas deixaram sua impressão, porém com uma nitidez e delicadeza perfeitas. No interior de certas pedras, tem-se encontrado até mesmo a impressão deixada por pegadas; observando a forma do pé, dos dedos e das unhas, tem-se deduzido de que espécie de animal ela provém.
9. Concebe-se que os fósseis dos animais não compreendem senão partes sólidas e resistentes, isto é, as partes ósseas, escamas e partes córneas; algumas vezes se encontram esqueletos completos; com maior frequência, trata-se de partes destacadas, porém das quais é fácil reconhecer sua proveniência. Pela inspeção de um maxilar, de um dente, em seguida se nota se pertenceu a um animal herbívoro, ou carnívoro. Como todas as partes do animal têm uma correlação necessária, a forma da cabeça, de uma omoplata, de um osso da perna, de um pé, bastam para determinar o porte, a forma geral, o gênero de vida do animal. ([25]) Os animais terrestres têm uma organização que não permite sejam confundidos com os animais aquáticos. Os peixes e conchas fósseis são excessivamente numerosos; encontram-se bancos inteiros de grande espessura compostos unicamente de conchas. É possível reconhecer-se, sem dificuldade, se são de animais marinhos, ou de água doce.
10. Os seixos rolados, que em certos lugares constituem rochas poderosas, são um índice inequívoco de sua origem. Apresentam-se arredondados como os calhaus da borda do mar, sinal certo da fricção que receberam como efeito do movimento das águas. As regiões nas quais são encontrados reunidos em massas consideráveis foram incontestavelmente ocupadas pelo Oceano ou por águas agitadas por muito tempo, ou com violência continuada.
11. Os terrenos das diversas formações são, além disso, caracterizados pela natureza mesma dos fósseis que encerram; os mais antigos contêm espécies animais ou vegetais já inteiramente desaparecidas da superfície do globo. Certas espécies mais recentes também desapareceram, porém, conservam-se seus análogos, os quais não diferem de seus sósias, senão pelo tamanho e por algumas variações de forma. Outras, enfim, das quais vemos os últimos representantes, tendem evidentemente a desaparecer num futuro mais ou menos próximo, tais como os elefantes, os rinocerontes, os hipopótamos, etc. Assim, à medida que as camadas terrestres se aproximam de nossa época, as espécies animais e vegetais também se aproximam daquelas que existem hoje.
As perturbações, os cataclismas que se deram sobre a Terra, desde sua origem, alteraram as condições de aptidão à sustentação da vida e fizeram desaparecer gerações inteiras de seres vivos.
12. Ao interrogar a natureza das camadas geológicas, sabe-se, da maneira mais positiva, se na época de sua formação a região que a encerra era ocupada pelo mar, por lagos, ou por florestas e planícies povoadas por animais terrestres. Se, pois, numa mesma região, se encontrarem camadas superpostas, que contenham alternativamente fósseis marinhos, terrestres e de água doce, repetidas diversas vezes, é uma prova irrecusável de que esta mesma região foi invadida diversas vezes pelo mar, coberta de lagos, ou posta a seco.
E que quantidade de séculos e séculos, certamente, talvez milhares de séculos foram necessários para que se realizasse cada período! Que força poderosa não foi necessária para deslocar o Oceano e fazê-lo voltar, e para soerguer as montanhas! Por quantas revoluções físicas e comoções violentas a Terra não teve que passar, antes de ser aquilo que a vemos, desde os tempos históricos! E haveríamos de pretender que essa obra se fizesse em menos tempo do que o necessário para fazer brotar uma planta!
13. O estudo das camadas geológicas atesta, conforme foi dito, formações sucessivas que mudaram o aspecto do globo, e dividem sua historia em diversas épocas. Essas épocas constituem o que se denominam os períodos geológicos, cujo conhecimento é essencial para o estabelecimento da gênese. Contam-se seis principais, designados pelos nomes de período primário, de transição, secundário, terciário, diluviano, pós-diluviano ou atual. Os terrenos formados durante cada período são também chamados: terrenos primitivos, de transição, secundários, etc. Assim se diz que tal ou qual camada ou rocha, tal ou qual fóssil se encontram nos terrenos de tal ou qual período.
14. É essencial notar que o número desses períodos não é absoluto, e que depende dos sistemas de classificação. Não se compreendem nos seis principais períodos, acima designados, senão aqueles que foram marcados por notáveis modificações gerais no estado do globo; porém a observação mostra que muitas formações sucessivas foram produzidas durante cada um desses períodos; é por isso que são divididos em subperíodos, caracterizados pela natureza dos terrenos, o que leva a vinte e seis o número das formações bem caracterizadas, sem contar as que provêm de modificações devidas a causas puramente locais.
Estado Primitivo do Globo
15. O achatamento dos polos e outros fatos concludentes são índices certos de que a Terra, em sua origem, deve ter apresentado um estado de fluidez ou de moleza. Tal estado podia ter por causa a matéria liquefeita pelo fogo, ou amolecida pela água.
Proverbialmente se diz: não há fumaça sem fogo. Esta proposição, rigorosamente verdadeira, é aplicação do princípio: não há efeito sem causa. Pela mesma razão, pode-se dizer: não há fogo sem lareira. Ora, pelos fatos que se produzem sob nossos olhos, não se trata somente de fumaça que se produz, mas, sim, de um fogo bem real, que deve ter uma lareira; este fogo provém do interior da Terra e não de cima; o fogo deve ser interior. E sendo permanente o fogo, igualmente deve ser permanente o lugar onde se produz.
O calor, que aumenta à medida que se penetra no interior da Terra, e que a uma certa distância da superfície atinge uma temperatura muito alta; as fontes termais, tanto mais quentes quanto maior a profundidade de sua proveniência; os fogos e as massas de matérias fundidas e em combustão, que escapam pelos vulcões, como por vastos respiradouros, ou pelas fendas produzidas em certos tremores de terra — não podem deixar dúvida quanto à existência de um fogo interior.
16. A experiência demonstra que a temperatura se eleva de 1 grau a cada 30 metros de profundidade; daí se deduz que a uma profundidade de 300 metros, o acréscimo é de 10 graus; a 3.000 metros, de 100 graus, temperatura da água fervente; a 30.000 metros, (ou 7 a 8 léguas), de 1.000 graus; a 25 léguas, acima de 3.300 graus, temperatura à qual nenhuma matéria resiste à fusão. Daí até o centro, ainda há um espaço de mais 1.400 léguas, digamos um diâmetro de 2.800 léguas, que seria ocupado por matérias mantidas em fusão.
Se bem que tal não seja senão uma conjetura, ao julgar a causa pelo efeito, ela tem todos os característicos de probabilidade, e chega-se a essa conclusão, de que a Terra ainda é uma massa incandescente, recoberta por uma crosta sólida de espessura máxima de 25 léguas, o que significa apenas a 120ª parte de seu diâmetro. Proporcionalmente, tal seria menor que a espessura da mais fina casca de uma laranja.
Ademais, a espessura da crosta terrestre é muito variável, pois há países, sobretudo nos terrenos vulcânicos, onde o calor e a flexibilidade do solo indicam que sua profundidade é muito pouco considerável. A alta temperatura das águas termais é igualmente índice da proximidade do fogo central.
17. Do que se expõe, torna-se evidente que o estado primitivo de fluidez ou de moleza da Terra deve ter tido como causa da ação de seu calor, e não da água. A Terra era, pois, em sua origem, uma massa incandescente. Em virtude da irradiação do calor deu-se o que se verifica com toda matéria em fusão: pouco a pouco ela se esfriou, e o resfriamento naturalmente começou pela superfície, que endureceu, enquanto que o interior continuou fluido. Pode-se assim comparar a Terra a um bloco de carvão, que sai da fornalha todo vermelho, e cuja superfície se apaga e se resfria ao contato do ar; se for quebrado, encontra-se seu interior ainda em brasa.
18. Na época em que o globo terrestre era uma massa incandescente, não continha um átomo a mais ou a menos que hoje; unicamente, sob a influência dessa alta temperatura, a maior parte das substâncias que o compõem, e que vemos sob a forma de líquidos ou de sólidos, de terras, de pedras, metais e cristais, encontravam-se num estado bem diferente; apenas passaram por um estado de transformação; em consequência do resfriamento, e de misturas, os elementos formaram novas combinações. O ar, consideravelmente dilatado, devia estender-se a uma distância imensa; toda a água, forçosamente reduzida ao estado de vapor, estava misturada com o ar; todas as matérias suscetíveis de se volatilizarem, tais como os metais, o enxofre, o carbono, se encontravam em estado de gases. O estado da atmosfera não tinha nada de comparável ao que é hoje; a densidade de todos esses vapores lhe dava uma opacidade que nenhum raio de sol podia atravessar. Se um ser vivente pudesse ter existido naquela época, na superfície do globo, não seria clareado senão pelo brilho sinistro da fornalha colocada sob seus pés, e pela atmosfera abrasada, e nem sequer teria suspeitado da existência do Sol.
Período Primário
19. O primeiro efeito do resfriamento foi solidificar a superfície exterior da massa em fusão, e ali formar uma crosta resistente, a qual, fina a princípio, pouco a pouco foi engrossando. Essa crosta constitui a rocha denominada granito, de extrema dureza, que recebe seu nome por seu aspecto granulado. Ali se distinguem três substâncias principais: o feldspato, o quartzo ou cristal de rocha, e a mica; esta última tem brilho metálico, embora não seja metal.
A camada granítica é, pois, a primeira que foi formada sobre o globo, que ela rodeia por inteiro, e do qual constitui de alguma forma a estrutura óssea; ela é o produto direto da matéria em fusão, consolidada. É sobre ela, e nas cavidades que apresentava sua superfície desordenada, que sucessivamente se depositaram as camadas dos outros terrenos, formados posteriormente. O que a distingue destes últimos é a ausência de toda estratificação, isto é, que ela forma uma massa compacta e uniforme em toda a sua espessura, e não é disposta em camadas. A efervescência da matéria incandescente devia ali produzir numerosas e profundas gretas, pelas quais essa matéria se derramava.
20. O segundo efeito do resfriamento foi o de liquefazer algumas das matérias contidas no ar, no estado de vapor, e que se precipitaram à superfície do solo. Houve então chuvas e lagos de enxofres e de betume, verdadeiros rios de ferro, de cobre, de chumbo, e de outros metais fundidos; essas matérias, infiltrando-se nas gretas, constituíram as veias e filões metálicos.
Sob a influência desses diversos agentes, a superfície granítica experimentou decomposições alternativas; fizeram-se misturas que formaram os terrenos primitivos propriamente ditos, distintos da rocha granítica, porém, em massas confusas, e sem estratificações regulares.
Vieram em seguida as águas que, caindo sobre um solo em fogo, novamente se vaporizaram, tornando a cair em chuvas torrenciais, e assim por diante, até que a temperatura permitiu que elas permanecessem sobre o solo no estado líquido.
É na formação dos terrenos graníticos que começa a série dos períodos geológicos, aos quais seria conveniente juntar o do estado primitivo de incandescência do globo.
21. Tal foi o aspecto desse primeiro período, verdadeiro caos de todos os elementos confundidos, procurando sua estabilização, e onde nenhum ser vivo poderia existir; também, um de seus caracteres distintivos em Geologia, é a ausência de todo traço de vida vegetal e animal.
É impossível determinar uma duração a este primeiro período, assim como aos seguintes; porém, segundo o tempo que leva uma bola de um volume dado, aquecida ao vermelho branco, para que sua superfície seja resfriada ao ponto em que uma gota d'água possa ali permanecer em estado líquido, tem-se calculado que se tal bola tivesse o tamanho da Terra levaria acima de um milhão de anos para que isto se desse.
Período de Transição
22. No começo do período de transição, a crosta sólida granítica ainda não tinha senão pequena espessura, e não oferecia senão uma resistência bastante fraca à efervescência das matérias abrasadas que ela cobria e comprimia. Ali se produziam dilatações devidas ao calor, rompimentos numerosos pelos quais se derramava a lava interior. O solo apenas apresentava desigualdades pouco consideráveis.
As águas, pouco profundas, cobriam aproximadamente toda a superfície do globo, exceção feita das partes soerguidas, que formavam terrenos baixos, frequentemente submersos.
O ar pouco a pouco era purgado das matérias mais pesadas, que atingiam momentaneamente o estado gasoso, e que, sendo condensadas por efeito do resfriamento, eram precipitadas à superfície do solo sendo depois arrastadas e dissolvidas pelas águas.
Quando se fala de um resfriamento naquela época, é preciso compreender tal palavra num sentido relativo, isto é, em comparação com o estado primitivo, pois a temperatura devia ainda ser ardente.
Os espessos vapores aquosos que se elevam de todas as partes da imensa superfície líquida, tornavam a cair como chuvas abundantes e quentes, e obscureciam o ar. Enquanto isso, os raios do Sol começavam a aparecer através dessa atmosfera brumosa.
Uma das últimas substâncias das quais o ar deve ter sido purgado, pois que ela está naturalmente no estado gasoso, é o ácido carbônico, que então formava uma das partes constitutivas da atmosfera.
23. Nesta época começaram a se formar as camadas de terrenos sedimentares, depositadas pelas águas carregadas de limo, e de matérias próprias à vida orgânica.
Aparecem então os primeiros seres viventes do reino vegetal e do reino animal; a princípio, em pequeno número, encontram-se seus sinais cada vez mais frequentes, à medida em que se sobe nas camadas dessa formação. É digno de nota que a vida se manifesta tão depressa quanto lhe sejam propícias as condições, e que cada espécie nasce logo que se produzem as condições adequadas à sua existência.
24. Os primeiros seres orgânicos que apareceram sobre a Terra são os vegetais de organização menos complicada, designados em Botânica pelos nomes de criptógamos, acotilédones, monocotilédones; isto inclui os liquens, os cogumelos, os musgos, os fetos, e as plantas herbáceas. Ainda não se encontram árvores de tronco lenhoso, mas sim as do gênero das palmeiras, cujo tronco esponjoso é análogo ao das ervas.
Os animais desse período, que apareceram depois dos primeiros vegetais, são exclusivamente marinhos: a princípio eram os polipeiros, radiários, zoófitos, animais cuja organização simples e por assim dizer rudimentar, mais se aproxima da dos vegetais; mais tarde surgiram crustáceos e peixes, cujas espécies já não existem hoje em dia.
25. Sob o império do calor e da umidade, e, por conseguinte, do excesso de gás carbônico disseminado no ar, o que é um gás impróprio à respiração dos animais terrestres, mas necessário às plantas, os terrenos descobertos rapidamente se cobriram com vegetação poderosa, enquanto que ao mesmo tempo plantas aquáticas se multiplicavam pelos charcos. Plantas cujos gêneros hoje se apresentam como simples ervas, de alguns centímetros, atingiam altura e grossura prodigiosas; assim é que havia florestas de fetos arborescentes de 8 a 10 metros de elevação e de grossura proporcional; licópodes (pé-de-lobo, gênero de musgo), de tamanho comparável ao das cavalinhas de 4 a 5 metros, que hoje dificilmente se encontram e uma infinidade de espécies que hoje não existem mais. Pelo fim do período começam a aparecer algumas árvores do gênero das coníferas, ou pinhos.
26. Como consequência do deslocamento das águas, os terrenos que produziam essas massas de vegetais foram submersos muitas vezes, cobertos de novos sedimentos terrosos, enquanto que os terrenos postos a seco cobriam-se por sua vez de vegetação semelhante. Houve, assim, diversas gerações de vegetais, alternadamente aniquiladas e renovadas. O mesmo não se deu com os animais, que, sendo todos aquáticos, não eram atingidos por essas alternativas.
Os resíduos, acumulados durante uma longa série de séculos, formaram uma camada de grande espessura. Sob a ação do calor, da umidade, da pressão exercida pelos depósitos terrosos posteriores, e sem dúvida pela ação de diversos agentes químicos, gases, ácidos e sais produzidos pela combinação dos elementos primitivos, essas matérias vegetais sofreram uma fermentação que as converteu em hulha ou carvão de pedra. As minas de hulha são pois produto direto da decomposição dos amontoados de vegetais acumulados durante o período de transição; por esta razão é que elas existem em quase todos os países. ([26])
27. Os restos fósseis da vegetação possante daquela época encontram-se hoje sob os gelos das terras polares, tal como na zona tórrida; necessariamente, daí se conclui que a temperatura do globo era uniforme. Os polos não eram então cobertos de gelo, como agora. Isso devido a que a Terra tirava seu calor do fogo central que aquecia por igual toda a camada sólida, ainda pouco espessa. Esse calor era bem superior ao que os raios solares podiam fornecer; aliás, os raios do sol eram enfraquecidos pela densidade da atmosfera. Somente mais tarde, quando o calor central não se podia exercer sobre a superfície exterior do globo senão de modo fraco ou nulo, é que o calor do Sol se tornou preponderante, e as regiões polares, que não recebiam senão seus raios oblíquos, os quais dão pouco calor, cobriram-se de gelo. Compreende-se que na época de que falamos, e ainda muito tempo depois, o gelo era desconhecido sobre a Terra.
Esse período deve ter sido muito longo, a julgar pelo número e pela espessura das conchas hulhíferas. ([27])
Período Secundário
28. Com o período de transição desaparecem a vegetação colossal e os animais que caracterizaram esta época, seja porque as condições atmosféricas já não fossem as mesmas, seja porque uma série de cataclismos hajam aniquilado tudo o que havia sobre a Terra. É provável que estas duas causas hajam contribuído para esta mudança, pois, de um lado, o estudo dos terrenos que marcam o fim deste período atesta grandes convulsões causadas por movimentos sísmicos, e assim também erupções que verteram sobre o solo grandes quantidades de lava, e de outro lado, notáveis mudanças se operaram nos três reinos da Natureza.
29. O período secundário é caracterizado, sob o ponto de vista mineral, por camadas numerosas e possantes que atestam sua formação lenta, no seio das águas, e marcam diferentes épocas bem caracterizadas.
A vegetação é menos rápida e menos colossal que no período precedente, sem dúvida, pela continuação da diminuição do calor e da umidade, e por modificações sobrevindas aos elementos constitutivos da atmosfera. Às plantas herbáceas e polposas se juntam as de troncos lenhosos, e as primeiras árvores propriamente ditas.
30. Os animais ainda são aquáticos, ou no máximo, anfíbios; a vida animal sobre a Terra faz poucos progressos. Uma prodigiosa quantidade de animais conchíferos se desenvolvem no seio dos mares, por efeito da formação das matérias calcárias; novos peixes se apresentam, com organização mais perfeita que no período anterior; aparecem os primeiros cetáceos. Os animais mais característicos dessa época são os répteis monstruosos entre os quais se notam:
O ictiossauro, espécie de peixe-lagarto que atingia até 10 metros de comprimento, e cujos maxilares, prodigiosamente alongados, eram armados com cento e vinte e quatro dentes. Sua forma geral lembra um pouco a do crocodilo, mas sem couraça escamosa; seus olhos tinham o volume da cabeça de um homem; tinha nadadeiras assim como a baleia, e tal como esta, expelia água por orifícios.
O plesiossauro, outro réptil marinho, tão grande como o ictiossauro; o pescoço, excessivamente comprido, dobrava-se como o do cisne, e dava-lhe a aparência de uma enorme serpente fixada a um corpo de tartaruga. Tinha cabeça de lagarto e dentes de crocodilo; sua pele seria lisa, como a do precedente, já que não se encontrou nenhum sinal de escamas ou de carapaça. ([28])
O teleossauro, aproxima-se bem dos atuais crocodilos, que parecem ser miniaturas daquele; como estes últimos, tinha couraça escamosa, e vivia ao mesmo tempo na água e sobre a terra; seu tamanho era aproximado de 10 metros, dos quais 3 ou 4 compunham sua cabeça; sua enorme garganta tinha 2 metros de abertura.
O megalossauro, grande lagarto, espécie de crocodilo com 14 a 15 metros de comprimento, essencialmente carnívoro, o qual se nutria de répteis, de pequenos crocodilos e de tartarugas. Seu formidável maxilar era armado de dentes em forma de lâmina de serrote, com dupla serrilha, curvados para trás, de tal sorte que uma vez agarrados à sua presa, era impossível que esta se desvencilhasse.
O iguanodonte, o maior dos lagartos jamais existentes sobre a Terra: tinha de 20 a 25 metros, da cabeça à extremidade da cauda. Seu focinho era ornado com um chifre ósseo semelhante ao da iguana de nossos dias, do qual apenas difere no tamanho, pois este último tem apenas 1 metro de comprimento. A forma dos dentes prova que era herbívoro; a forma dos pés mostra que era animal terrestre.
O pterodáctilo, animal bizarro, do tamanho de um cisne, semelhante a um réptil pelo corpo, a um pássaro, pela cabeça, e ao morcego, pela membrana carnuda que unia seus dedos, os quais eram de prodigioso comprimento; essa membrana lhe servia de paraquedas quando se precipitava sobre sua presa do alto de uma árvore ou de um rochedo. Não tinha bico, como os pássaros, mas sim, ossos de maxilares, tão compridos como a metade do corpo, os quais eram guarnecidos de dentes, e terminava em ponta como um bico.
31. Durante esse período, que deve ter sido muito longo, tal como o atestam o número e a espessura das camadas geológicas, a vida animal tomou um imenso desenvolvimento no seio das águas como no período anterior o havia tomado na vegetação. O ar, mais depurado e mais limpo para a respiração começa a permitir que alguns animais vivam sobre a terra. O mar foi deslocado diversas vezes, mas sem abalos violentos. Com este período desaparecem, por sua vez essas raças de gigantescos animais aquáticos, substituídos mais tarde por espécies análogas de formas menos desproporcionadas e de tamanho menor.
32. O orgulho tem feito o homem dizer que todos os animais foram criados em sua intenção e para suas necessidades. Porém, qual é o número daqueles que o servem diretamente, que ele pode amansar, comparado com o número incalculável dos que com ele jamais tiveram nem sequer puderam ter qualquer relação? Como defender tal tese, na presença dessas inumeráveis espécies, as únicas que povoaram a Terra durante milhares e milhares de séculos, e que desapareceram antes que o homem ali surgisse? Pode-se dizer que elas foram criadas para sua vantagem? Todavia, essas espécies tinham sua utilidade. Deus não as criou por um capricho de sua vontade, e para dar a si mesmo o prazer de as extinguir; pois todas tinham vida, instintos, o sentimento da dor e do bem-estar. Com que finalidade ele os fez? Isto ainda não compreendemos. Talvez um dia seja dado ao homem conhecer tal, para confundir seu orgulho; enquanto esperamos, como crescem as ideias na presença desses horizontes novos, nos quais lhe é permitido mergulhar suas vistas, diante do espetáculo imponente dessa criação, tão majestosa em sua lentidão, tão admirável em sua previdência, tão pontual, tão precisa e tão invariável em seus resultados!
Período Terciário
33. Com o período terciário começa, para a Terra, nova ordem de coisas; o estado de sua superfície muda completamente de aspecto; as condições de vitalidade são profundamente modificadas e se aproximam do estado atual. Os primeiros tempos deste período são assinalados por uma parada na produção vegetal e animal; tudo apresenta sinais de uma destruição quase geral dos seres viventes, e então surgem sucessivamente espécies novas, cuja organização, mais perfeita, é adaptada à natureza do meio onde são chamadas a viver.
34. Durante os períodos precedentes, a crosta sólida do globo, em razão de sua pequena espessura, apresentava, como já foi dito, resistência bastante fraca à ação do fogo interior; este envoltório, facilmente desfeito, permitia que as matérias em fusão se espalhassem livremente na superfície do solo. Já não sucedeu o mesmo quando ela adquiriu uma certa espessura; as matérias abrasadas, comprimidas por todas as partes, como a água em ebulição numa vasilha fechada, acabaram por fazer uma espécie de explosão; a massa granítica, violentamente rompida numa multidão de pontos, foi estriada com fendas como um vaso rachado. Por cima do percurso dessas fendas a crosta sólida, sublevada e remendada, formou os picos, as cadeias de montanhas e suas ramificações. Certas partes do envoltório, não rompidas, foram simplesmente erguidas, enquanto que em outros pontos, produziam-se abaixamentos e escavações.
A superfície do solo tornou-se então muito desigual; as águas que até esse momento o cobriam de maneira quase uniforme, sobre a maior parte da extensão, foram represadas nas partes mais baixas, deixando a seco vastos continentes, onde os picos de montanhas isoladas formaram ilhas.
Tal o grande fenômeno que se realizou no período terciário e que transformou o aspecto do globo. Ele não se produziu instantaneamente, nem simultaneamente em todos os seus pontos, mas sucessivamente e em épocas mais ou menos afastadas.
35. Uma das primeiras consequências de tais erguimentos, conforme já foi dito, foi a inclinação das camadas de sedimento, primitivamente horizontais, as quais assim permaneceram por toda a parte onde o solo não foi revolvido. É, pois, nos flancos e na vizinhança das montanhas, que essas inclinações são mais pronunciadas.
36. Nas regiões em que as camadas de sedimentos conservaram sua horizontalidade, para se alcançar as da primeira formação, será preciso atravessar todas as outras, frequentemente até uma profundidade considerável, ao fim da qual inevitavelmente se encontra a rocha granítica. Mas quando estas camadas se elevaram em montanhas, foram trazidas acima de seu nível normal, e às vezes a grandes alturas, de tal sorte que, se se faz um corte vertical no flanco da montanha, elas se apresentam à luz em toda a sua espessura, superpostas, como as fileiras dos tijolos de um alicerce.
É assim que se encontram em grandes elevações, bancos consideráveis de conchas, primitivamente formadas no fundo dos mares. Hoje é perfeitamente conhecido que em alguma época o mar não pode atingir tal altura, pois todas as águas que existiam sobre a Terra não seriam bastantes para isso, mesmo que elas fossem em volume cem vezes maior. Seria então necessário perguntar que, se a água diminuiu, onde foi parar a água desaparecida? Os soerguimentos, que hoje são fatos incontestáveis, explicam de maneira tão lógica quanto rigorosa os depósitos marinhos encontrados sobre certas montanhas. ([29])
Nos lugares onde o soerguimento das rochas primitivas produziu completo rompimento do solo, seja por sua rapidez, seja pela forma, altura e volume das massas projetadas para cima, o granito se mostra descoberto, como um dente que perfura a gengiva. As camadas que o cobriam, soerguidas, quebradas, emendadas, foram colocadas a nu; é assim que terrenos pertencentes a formações das mais antigas, e que se encontravam em sua posição primitiva a uma grande profundidade, formam hoje o solo de certas regiões.
38. A massa granítica, deslocada pelo efeito dos soerguimentos, deixou em alguns lugares certas fendas, pelas quais escapa o fogo interior, e pela quais escorrem os materiais em estado de fusão: são os vulcões. Os vulcões são como as chaminés desta imensa fornalha, ou, melhor dito, são válvulas de segurança, as quais, permitindo uma saída ao excesso das matérias ígneas, evitam perturbações por outro modo terríveis; daí se poder afirmar que o número dos vulcões em atividade é causa de segurança para o conjunto da superfície do solo.
É possível fazer-se uma ideia da intensidade de tal fogo, admitindo que alguns vulcões se abrem no próprio seio do mar, e que a massa de água que os cobre e ali penetra, não é suficiente para os apagar.
39. Os levantamentos operados na massa sólida necessariamente deslocaram as águas, que se coletaram nas partes deprimidas, tornadas mais profundas pelo alteamento dos terrenos emergidos, e pelos descaimentos. Porém, também esses lugares mais baixos, por sua vez erguidos, ora num lugar ora noutro, empurraram as águas que dali refluíram, e assim por diante até que estas puderam tomar um lugar mais estável.
Os deslocamentos sucessivos dessa massa líquida forçosamente trabalharam e modificaram a superfície do solo. As águas, ao se recolherem, arrastaram uma parte dos terrenos das formações anteriores, postas a nu pelos soerguimentos; desnudaram certas montanhas que estavam cobertas por tais camadas, e trouxeram à luz do dia sua base granítica ou calcária; profundos vales foram assim cortados e outros foram nivelados.
Há, pois, montanhas formadas diretamente pela ação do fogo central: estas são principalmente as montanhas graníticas; outras são devidas à ação das águas, que, transportando as terras móveis e as matérias solúveis, cavaram vales ao redor de uma base resistente, calcária ou de outra espécie.
As matérias arrastadas pela corrente das águas formaram as camadas do período terciário, as quais são facilmente distinguidas das precedentes, não tanto por sua composição, que é a mesma, como por sua disposição.
As camadas dos períodos primário, de transição, e secundário, formadas sobre uma superfície pouco acidentada, são quase uniformes em toda a Terra; as do período terciário, ao contrário, formadas sobre uma base muito desigual, e mediante o arrastamento das águas, têm características mais locais. Por toda a parte, quando se perfura a uma certa profundidade, encontram-se todas as camadas anteriores na ordem de sua formação, enquanto que não se encontra em qualquer lugar o terreno terciário, nem sequer todas as suas camadas.
40. Durante as convulsões do solo que se realizaram no início de tal período, é fácil conceber que a vida orgânica teve que sofrer um tempo de parada, o que logo se reconhece pela inspeção de terrenos privados de fósseis. Porém, logo que surgiu um estado mais calmo, os vegetais e os animais reapareceram. As condições de vitalidade eram modificadas, a atmosfera mais purificada; viu-se a formação de novas espécies, que apresentavam organização mais perfeita. As plantas, sob o ponto de vista de sua estrutura, pouco diferem das atuais.
41. Durante os dois períodos precedentes, os terrenos não cobertos pelas águas apresentavam pouca extensão; uma parte deles era pantanosa, e freqüentemente eram submersos; é por isso que só havia, então, animais aquáticos ou anfíbios. O período terciário, que viu a formação de vastos continentes, é caracterizado pelo aparecimento dos animais terrestres.
Assim como o período de transição viu uma vegetação colossal e o período secundário os répteis monstruosos, neste apareceram os mamíferos gigantes, tais como o elefante, o rinoceronte, o hipopótamo, o paleotério, o megatério, o dinotério, o mastodonte, o mamute, etc. Estes dois últimos, variantes do elefante, tinham de 5 a 6 metros de altura, e suas presas atingiam até 4 metros de comprimento. Este período viu também surgirem os pássaros, cuja maior parte vive até nossos dias. Algumas das espécies dessa época sobreviveram aos cataclismos posteriores; outras, que são designadas pela qualificação genérica de animais antediluvianos, desapareceram por completo, ou foram substituídas por espécies análogas, de formas menos pesadas e menos maciças, das quais os primeiros tipos foram como que os esboços; tais são o felis speloea, animal carnívoro, do tamanho de um touro, com os caracteres anatômicos do tigre e do leão; o `cervus megaceronte', variedade de cervo ou veado, cujas galhaduras, de 3 metros de comprimento, apresentavam entre suas pontas separação até de 3 a 4 metros.
Período Diluviano
42. Este período é assinalado por um dos maiores cataclismos que transformaram o globo, mudaram mais uma vez o aspecto de sua superfície, e destruíram, sem que fosse possível sua volta, uma multidão de espécies vivas, das quais apenas encontramos os restos. Por toda a parte, deixou sinais que atestam sua generalidade. As águas, violentamente arrancadas de seus leitos, invadiram os continentes, arrastando com elas as terras e os rochedos, desnudando as montanhas, desenraizando as florestas seculares. Os novos depósitos que formaram são designados, em Geologia, sob o nome de terrenos diluvianos.
43. Um dos traços mais característicos deste grande desastre são as rochas denominadas blocos erráticos. Assim são chamados os rochedos de granito que são encontrados isolados nas planícies, repousando sobre terrenos terciários e no meio de terrenos diluvianos, algumas vezes a diversas centenas de quilômetros das montanhas, das quais foram arrancados. É evidente que não puderam ter sido transportados a distâncias tão grandes, senão pela violência das correntes. ([30])
44. Um fato não menos característico, e do qual ainda não foi explicada a causa, é que nos terrenos diluvianos são encontrados os primeiros aerólitos; desde que somente nesta época é que eles começaram a cair, a causa que os produziu não existia antes.
45. É ainda nesta época que os polos começam a se cobrir de gelos, e que formam as geleiras nas montanhas, o que indica notável mudança na temperatura do globo. Esta mudança deve ter sido súbita, pois, se houvesse sido produzida gradualmente, os animais, tais como os elefantes, que hoje somente vivem nos climas quentes, onde apenas são encontrados, e que no estado de fósseis se nos deparam em tão grande quantidade nas terras polares, teriam tido tempo de se retirar pouco a pouco em direção às regiões mais temperadas. Tudo prova, ao contrário, que foram subitamente presos pelo grande frio e sepultados nos gelos. ([31])
46. Esse foi, pois, o verdadeiro dilúvio universal. Dividem-se as opiniões quanto às causas que o produziram; quaisquer que elas sejam, o fato não é alterado.
Supõe-se de modo bastante geral, que uma brusca mudança se operou na posição do eixo e dos polos da Terra; daí resultou uma projeção geral das águas sobre a superfície do globo. Se tal mudança houvesse sido produzida com lentidão, as águas teriam sido deslocadas gradualmente sem abalo, ao passo que tudo indica ter havido uma comoção violenta e súbita. Na ignorância de qual seja a verdadeira causa, apenas poderemos emitir hipóteses.
O súbito deslocamento das águas pode igualmente ter sido causado pelo soerguimento de certas partes da crosta sólida e da formação de novas montanhas, no seio dos mares, tal como se deu no começo do período terciário; porém, dessa forma, o cataclismo não teria sido geral, e também isso não explicaria a súbita mudança da temperatura dos polos.
47. Na tormenta causada pela agitação das águas, inúmeros animais pereceram; outros, a fim de escapar à inundação, retiraram-se para as alturas, assim como para cavernas e fendas, onde pereceram em grandes quantidades, seja pela fome, seja por se entredevorarem, seja também pela irrupção das águas nos locais onde se haviam refugiado, e de onde não podiam escapar. Assim se explica a grande quantidade de esqueletos de animais diversos, carnívoros e outros, encontrados em grande mistura em certas cavernas, por essa razão denominadas brechas ou cavernas de ossos. São encontradas com mais frequência sob os estalagmites. Em alguns desses achados, os esqueletos parecem ter sido aí arrastados pela corrente das águas. ([32])
Período Pós-Diluviano ou Atual — Aparecimento do Homem.
48. Uma vez restabelecido o equilíbrio na superfície do globo, a vida animal e vegetal prontamente retomou seu curso. O solo, consolidado, assumira base mais estável; o ar, mais puro, era conveniente a órgãos mais delicados. O sol, que brilhava com todo seu esplendor, através de uma atmosfera límpida, com sua luz espalhava um calor menos sufocante e mais vivificante que o da fornalha interior. A Terra se povoava de animais menos ferozes e mais sociáveis; os vegetais, mais suculentos, ofereciam alimentação menos grosseira; tudo enfim estava preparado sobre a terra para o novo hóspede que devia habitá-la. É então que aparece o homem, o último ser da criação, aquele cuja inteligência, de agora em diante, devia contribuir para o progresso geral, ao mesmo tempo em que também progredia.
49. Será que realmente o homem não existiu sobre a Terra senão depois do período diluviano, ou haveria ele surgido antes de tal época? Hoje esta questão é muito controvertida; porém, sua solução, qualquer que seja, não mudaria em nada o conjunto dos fatos estabelecidos, e a aparição da espécie humana não apresentaria variação de mais que alguns milhares de anos antes da data designada pela Gênese bíblica.
O que fizera pensar que a aparição dos homens é posterior ao dilúvio é que nenhum traço autêntico de sua existência foi jamais encontrado, durante o período anterior. Os esqueletos descobertos em diversos lugares, e que fizeram crer na existência de uma pretendida raça de gigantes antediluvianos, foram reconhecidos como pertencentes a elefantes.
O que não é duvidoso é que o homem não existia no período primário, nem no de transição, nem no período secundário; não só porque não se encontra nenhum sinal ou traço dele, mas porque as condições de vida não eram condizentes com sua organização. Se surgiu no período terciário, tal não pode ter-se dado senão pelo seu fim, e mesmo assim deveria ter-se multiplicado pouco.
Quanto ao mais, o período diluviano, tendo sido curto, não trouxe mudanças notáveis nas condições atmosféricas; os animais, e os vegetais, eram quase os mesmos, antes ou depois; não é pois impossível que o homem haja surgido antes do grande cataclismo; a presença do macaco naquela época já é coisa contestada hoje em dia, e descobertas recentes parecem ter confirmado a do homem. ([33])
Qualquer que seja a realidade, que o homem haja ou não aparecido antes do grande dilúvio universal, é certo que seu papel hominal não começou realmente a se desenhar senão no período pós-diluviano; pode-se, pois, considerar tal período como caracterizado por sua presença.
Teoria da Projeção — Teoria da Condensação — Teoria da Incrustação — Alma da Terra
Teoria da Projeção
1. De todas as teorias relativas à origem da Terra, a que teve mais crédito nos últimos tempos foi a de Buffon, seja devido à posição de seu autor entre os sábios, seja porque nada mais era conhecido naquela época.
Vendo todos os planetas movimentando-se na mesma direção, do ocidente para o oriente, e no mesmo plano, percorrendo órbitas cuja inclinação não excede 7 graus e meio, Buffon concluiu dessa uniformidade que eles foram colocados em movimento pela mesma causa.
Segundo ele, o Sol era uma massa incandescente em fusão; supunha Buffon que um cometa o atingiu obliquamente, raspando sua superfície, e dali destacando uma porção que, projetada no espaço pela violência do choque, dividiu-se em diversos fragmentos. Estes fragmentos formaram os planetas, os quais continuaram a se mover em círculo, pela combinação da força centrípeta e da força centrífuga, no sentido imprimido pela direção do choque primitivo, isto é, no plano da eclíptica.
Os planetas seriam assim partes da substância incandescente em sua origem. Resfriaram-se e consolidaram-se num tempo proporcional a seus volumes, e quando a temperatura o permitiu, a vida teve nascimento sobre sua superfície.
Como consequência do abaixamento gradual do calor central, a Terra chegaria, num tempo dado, a um estado completo de resfriamento; a massa líquida seria inteiramente congelada, e o ar, cada vez mais condensado, terminaria por desaparecer. O abaixamento da temperatura, tornando a vida impossível, conduziria à diminuição, e depois ao desaparecimento de todos os seres orgânicos. O resfriamento, que começou pelos polos, alcançaria sucessivamente todas as regiões até o equador.
Tal é, segundo Buffon, o estado atual da Lua, que sendo menor que a Terra, seria hoje um mundo extinto, do qual a vida é inteiramente excluída. O próprio Sol teria a mesma sorte, algum dia. Segundo seus cálculos, a Terra teria levado aproximadamente uns 74.000 anos para atingir sua temperatura atual, e em 93.000 anos ela veria o fim da existência de sua natureza organizada.
2. A teoria de Buffon, contraditada pelas novas descobertas da ciência, está hoje quase completamente abandonada, pelos motivos seguintes:
1º — Durante muito tempo se acreditava que os cometas fossem corpos sólidos, cujo encontro com um planeta pudesse causar a sua destruição. Com tal hipótese, a suposição de Buffon nada tinha de improvável. Porém, atualmente é sabido que os cometas são formados de matéria gasosa condensada, e todavia bastante rarefeita para que se possam perceber estrelas de média grandeza através de seus núcleos. Nesse estado, oferecendo menos resistência que o Sol, um choque violento, capaz de projetar ao longe uma porção de sua massa, é coisa impossível.
2º — A natureza incandescente do Sol é igualmente uma hipótese que até o presente nada vem confirmar, e que as observações, ao contrário, parecem desmentir. Se bem que ainda não existam dados fixados acerca de sua natureza, o alcance dos atuais meios de observação tem permitido um melhor estudo de sua superfície. Atualmente, admite-se de modo geral, pela ciência, que o Sol é um globo composto de matéria sólida, rodeado de atmosfera luminosa ou fotosfera, a qual não está em contato com sua superfície. ([34])
3º — No tempo de Buffon, apenas se conheciam os seis planetas já conhecidos na Antiguidade: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Posteriormente, foi descoberto maior número, dos quais, principalmente três têm sua órbita inclinada a 13, 10 e 34 graus, o que não concorda com a hipótese de um movimento de projeção única; são eles, Juno, Ceres e Palas.
4º — Os cálculos de Buffon a respeito do resfriamento são reconhecidos como sendo completamente sem exatidão, desde a descoberta da lei do decréscimo do calor, pelo Sr. Fourier. Não foram os 74 mil anos o tempo necessário para que a Terra chegasse à sua atual temperatura, mas sim, milhões de anos.
5º — Buffon não considerou senão o calor central do globo, sem levar em conta o dos raios solares; ora, hoje se reconhece, por dados científicos de rigorosa precisão, fundados sob experiências, que em razão da espessura da crosta terrestre, o calor interno do globo não tem, já de há muito tempo, senão parte insignificante na temperatura da superfície exterior; as variações que esta atmosfera sofre são periódicas e devidas à ação preponderante do calor solar (cap. VII, nº 25). O efeito desta causa é permanente, ao passo que o efeito do calor central é nulo, ou quase nulo; a diminuição desse fator não pode trazer à superfície da Terra modificações sensíveis. Para que a Terra se tornasse inabitável pelo resfriamento geral seria necessária a extinção do Sol. ([35])
Teoria da Condensação
3. A teoria da formação da Terra pela condensação da matéria cósmica é aquela que prevalece hoje na ciência, como sendo a que melhor se justifica pela observação, a que resolve o maior número de dificuldades, e que, mais que todas as outras, se apóia sobre o grande princípio da unidade universal. É aquela que anteriormente descrevemos, no cap. VI, sob o título Uranografia geral.
Como se vê, estas duas teorias alcançam o mesmo resultado: o estado primitivo de incandescência do globo, a existência do fogo central, e a aparição da vida orgânica, logo que a temperatura a tornou possível. Não obstante, elas diferem em pontos essenciais, e é provável que se Buffon tivesse vivido até nossos dias teria reformulado suas concepções.
A Geologia toma a Terra no ponto em que seja possível sua observação direta. Seu estado anterior, que escapa à experimentação, só pode ser conjetural; ou, entre duas hipóteses, o bom senso nos indica que será preciso escolher aquela que seja sancionada pela lógica e que melhor concorde com os fatos observados.
Teoria da Incrustação
4. Mencionamos essa teoria unicamente por memória, já que nada tem de científica; e o fazemos apenas porque ela teve alguma repercussão nos últimos tempos e porque não deixou de seduzir algumas pessoas. A carta a seguir transcrita resume-a:
"Deus, segundo a Bíblia, criou o mundo em seis dias, quatro mil anos antes da era cristã. Isso é contestado pelos geólogos pelo estudo dos fósseis e pelos milhares de caracteres incontestáveis de ancianidade que fazem remontar a origem da Terra a milhões de anos, e portanto as Escrituras dizem a verdade, e assim igualmente os geólogos; e um simples campônio ([36]) foi quem os fez ficarem de acordo, quando nos ensinou que nossa Terra apenas é um planeta incrustativo, bastante moderno, composto de materiais bastante antigos.
"Depois do arrebatamento do planeta desconhecido, chegado à maturidade ou em harmonia com aquilo que existia no lugar que hoje ocupamos, a alma da Terra recebeu ordem de reunir seus satélites para formar nosso globo atual segundo as regras do progresso em tudo e por tudo. Somente quatro desses astros consentiram na associação que lhes era proposta; apenas a Lua persistiu em sua autonomia, eis que também os globos têm livre-arbítrio. Para proceder a essa fusão, a alma da Terra lançou em direção aos satélites um raio magnético atrativo, que colocou em estado cataléptico todos os seres, vegetais, animais e humanos, trazidos para a comunidade. Tal operação apenas teve por testemunhas, a alma da Terra e os grandes mensageiros celestes que a ajudaram nesta grande obra, abrindo os globos para tornar comuns suas entranhas. Operada a soldadura, as águas escorreram para os vazios deixados pela ausência da Lua. As atmosferas se confundiram, e começou o despertar, ou a ressurreição dos germes cataleptizados; o homem foi tirado de seu estado de hipnotismo, por último, e viu-se rodeado pela vegetação luxuriante do paraíso terrestre, e pelos animais que em paz pastejavam ao seu redor. Tudo isso pode ser feito em seis dias, com o auxílio de trabalhadores tão poderosos, como os que Deus havia encarregado de tal realização. O planeta Ásia nos trouxe a raça amarela, a de civilização mais antiga; com o planeta África veio a raça negra; a Europa trouxe a raça branca, e o planeta América, a raça vermelha. A Lua talvez nos trouxesse a raça verde, ou azul.
"Assim, certos animais, dos quais apenas encontramos os restos, jamais teriam vivido em nossa Terra atual, mas foram trazidos de outros mundos deslocados pela velhice. Os fósseis que encontramos em climas onde não poderiam viver neste mundo, viviam sem dúvida em zonas muito diferentes, nos globos em que se originaram. Tais restos, por exemplo se encontram nos polos de nossa Terra, quando viviam no equador de seus globos primitivos.
5. Esta teoria tem contra si os dados mais positivos da ciência experimental; por outro lado, ela olvida por completo, a questão da origem, que pretendeu resolver. Ela descreve bem o modo porque teria sido formada a Terra, mas não diz como se formaram os quatro mundos que teriam sido reunidos para a constituir.
Se as coisas se houvessem desenrolado daquela forma, por que é que em parte alguma se encontram os traços dessas imensas soldaduras que deveriam alcançar até as entranhas do globo? Cada um de tais globos, trazendo seus materiais próprios, a Ásia, a África, a Europa e a América, teriam cada uma sua Geologia particular diferente, o que não se dá. Ao contrário, e para principiar, vê-se o núcleo granítico uniforme, de composição homogênea em todas as partes do globo, sem solução de continuidade. Ademais, as camadas geológicas de formações idênticas, em sua constituição, por toda a parte superpostas na mesma ordem, continuam homogêneas, sem interrupção de um lado para o outro dos mares, da Europa até a Ásia, à África, à América e reciprocamente. Tais camadas, testemunhas das transformações do globo, atestam que essas transformações se realizaram sobre toda a superfície e não sobre uma parte apenas; elas nos mostram os períodos de aparecimento, de existência e de desaparecimento das mesmas espécies animais e vegetais, igualmente, nas diversas partes do mundo; a fauna e a flora desses períodos afastados, por toda parte caminham simultaneamente, sob a influência de uma temperatura uniforme, a qual muda de caráter em toda parte, à medida que a temperatura se modifica. Um tal estado de coisas é inconciliável com a formação da Terra pela junção de diversos mundos diferentes.
Além disso, pergunta-se o que teria sido feito do mar, que ocupa o vazio deixado pela Lua, se esta não tivesse recusado juntar-se às suas irmãs, por má vontade? O que sucederia à Terra atual, se um dia a Lua tivesse a fantasia de vir retomar seu lugar e assim expulsar o mar?
6. Este sistema seduziu algumas pessoas porque parecia explicar a presença das diversas raças de homens sobre a Terra, assim como sua localização; porém, já que tais raças puderam germinar em mundos separados, por que não teriam elas podido fazê-lo em pontos diferentes do mesmo globo? É querer resolver uma dificuldade por outra dificuldade muito maior. Com efeito, qualquer que tivesse sido a rapidez e a destreza com que houvesse sido feita a operação, tal junção não teria sido possível, sem abalos violentos; tanto mais rápida mais teriam sido desastrosos os cataclismos. Parece também impossível que seres simplesmente adormecidos num sono cataléptico tivessem podido resistir a tais abalos para acordar em seguida, tranquilamente. Se não se tratasse senão de germes, em que consistia? Por que maneira, seres inteiramente formados teriam sido reduzidos ao estado de germes? Sempre permaneceria a questão de saber por que modo tais germes se teriam novamente desenvolvido. Teríamos ainda a Terra formada por via de milagre; apenas, por outro, menos poético e menos grandioso que o da Gênese bíblica, ao passo que as leis naturais dão de sua formação uma explicação muito completa, e sobretudo mais racional, deduzida da observação. ([37])
Alma da Terra
7. A alma da Terra desempenha papel principal na teoria da incrustação; vejamos se esta ideia tem melhor fundamento.
O desenvolvimento orgânico está sempre em relação ao desenvolvimento do princípio intelectual; o organismo se completa à medida que as dificuldades da alma se multiplicam; a escala orgânica segue constantemente, em todos os seres, a progressão da inteligência, desde o pólipo até o homem; nem poderia ser de outro modo, pois que a alma necessita de um instrumento apropriado à importância das funções que deve executar. De que serviria à ostra ter a inteligência do macaco, sem os órgãos necessários à sua manifestação? Se, pois, a Terra fosse um ser animado, servindo de corpo a uma alma especial em razão mesmo de sua constituição, sua alma deveria ser ainda mais rudimentar que a do pólipo, pois que a Terra não tem a mesma vitalidade da planta, enquanto que, conforme o papel que se atribui a tal alma, se faz dela um ser dotado de razão e do mais completo livre-arbítrio, numa palavra, um Espírito superior, o que não é racional, pois jamais um Espírito teria assim sido mais mal repartido e mais aprisionado. A ideia da alma da Terra, compreendida em tal sentido, deve pois ser classificada entre as concepções sistemáticas e quiméricas.
Mais racionalmente, poder-se-á entender por alma da Terra a coletividade dos Espíritos encarregados de elaborar e dirigir seus elementos constitutivos, o que supõe já um certo grau de desenvolvimento intelectual; ou, melhor ainda: o Espírito ao qual está confiada a alta direção dos destinos morais e do progresso de seus habitantes, missão essa que não pode ser desenvolvida senão por um ser eminentemente superior em sabedoria e conhecimentos. Neste caso, este Espírito não é propriamente a alma da Terra, pois não é nela encarnado, nem subordinado a seu estado material; será um chefe preposto à sua direção como um general é preposto à direção de um exército.
Um Espírito, encarregado de uma missão tão importante como a do governo de um mundo, não poderia ter caprichos, ou Deus seria muito imprevidente em confiar a execução de suas leis a seres capazes de as contrariar por sua má vontade; ou, segundo a doutrina da incrustação, seria a má vontade da alma da Lua que se atribui a causa de estar a Terra incompleta. Há ideias que são refutadas por si mesmas (Revue Spirite, de setembro de 1868, pág. 261).
Revoluções Gerais ou Parciais — Idade das Montanhas — Dilúvio Bíblico — Revoluções Periódicas — Cataclismos Futuros — Acréscimo ou Diminuição do Volume da Terra
Revoluções Gerais ou Parciais
1. Os períodos geológicos marcam as fases do aspecto geral do globo, por efeito de suas transformações; porém, exceção feita do período diluviano, que traz os sinais de uma súbita transformação, todos os outros se cumpriram lentamente e sem transição brusca. Durante todo o tempo que os elementos constitutivos do globo levaram para tomar seu lugar, as mudanças deviam ter sido gerais; uma vez consolidada a base, não havia a produzir senão modificações parciais na superfície.
2. Além das revoluções gerais, a Terra passou por um grande número de perturbações locais que mudaram o aspecto de certas regiões. Tal como para as outras, duas causas contribuíram para tanto: o fogo e a água.
O fogo, seja por erupções vulcânicas que sepultaram sob espessas camadas de cinzas e de lavas os terrenos circunvizinhos, fazendo desaparecer as cidades e seus habitantes; seja por tremores de terra, seja por levantamentos da crosta sólida, represando as águas nas regiões mais baixas; seja pela inclinação dessa mesma crosta, em certos lugares, por sobre uma extensão mais ou menos grande, onde as águas se precipitaram deixando outros terrenos a descoberto. Foi assim que surgiram as ilhas no seio do Oceano, enquanto que outras desapareceram; que porções de continentes se separaram da terra firme e formaram ilhas, que braços de mar postos a seco reuniram ilhas aos continentes.
A água, seja por invasão ou retorno do mar em certas costas, seja por represamentos que, ao deter os cursos de água, formaram os lagos; seja por cheias e inundações; seja enfim por aterros formados na embocadura dos rios. Esses aterros, fazendo o mar recuar, criaram numerosas regiões: tal é a origem do delta do Nilo ou Baixo-Egito, do delta do Ródano ou Camarga.
Idade das Montanhas
3. Pode-se determinar a idade geológica mediante a inspeção dos terrenos rasgados pelo levantamento das montanhas e das camadas que lhe formam os contrafortes. Por idade geológica das montanhas não se deve compreender o número de anos de sua existência, mas o período durante o qual elas foram formadas, e por conseguinte sua velhice relativa. Seria um erro acreditar que essa velhice estivesse relacionada com sua altura ou sua natureza exclusivamente granítica, considerado que a massa de granito, ao elevar-se, pode ter perfurado e separado as camadas superpostas.
Tem-se assim constatado, pela observação, que as montanhas dos Vosges, da Bretanha e da Côte-d'Or, na França, que não são muito altas, pertencem às formações mais antigas; datam do período de transição e são anteriores aos depósitos hulhíferos. O Jura se formou pelo meio do período secundário; é contemporâneo dos répteis gigantescos. Os Pireneus se formaram mais tarde, pelo começo do período terciário. O Monte Branco e o grupo dos Alpes ocidentais são posteriores aos Pireneus e datam do meio do período terciário. Os Alpes orientais, que compreendem as montanhas do Tirol, são ainda mais recentes, pois não estavam ainda formados senão pelo fim do período terciário. Algumas montanhas da Ásia são mesmo posteriores ao período diluviano ou lhe são contemporâneos.
Estes levantamentos deverão ocasionar grandes perturbações locais e inundações mais ou menos consideráveis, pelo deslocamento das águas, pela interrupção e mudança de curso de rios. ([38])
Dilúvio Bíblico
4. O dilúvio bíblico, designado também sob o nome de grande dilúvio asiático, é um fato cuja existência não pode ser contestada. Deve ter sido ocasionado pelo soerguimento de uma parte das montanhas dessa região, como aconteceu no México. O que vem em apoio a esta opinião é a existência de um mar interior que se estendia outrora, do Mar Negro ao Oceano Boreal, confirmado por observações geológicas. O Mar de Azov, o Mar Cáspio, cujas águas são salgadas, embora não se comuniquem com nenhum outro mar; o Lago Aral e os inúmeros lagos espalhados nas imensas planícies da Tartária e as estepes da Rússia parecem ser os restos desse antigo mar. Por ocasião do erguimento das montanhas do Cáucaso, posterior ao dilúvio universal, uma parte dessas águas foi recalcada para o norte, em direção ao Oceano Boreal; a outra, no meio, em direção ao Oceano Índico. Estas inundaram e devastaram precisamente a Mesopotâmia e toda a região habitada pelos antepassados do povo hebreu. Embora esse dilúvio se haja estendido sobre uma superfície bastante grande, um ponto verificado, hoje em dia, é que não foi senão local; que não pode ser causado pela chuva, pois, embora fosse ela abundante e contínua, embora pudesse durar quarenta dias, o cálculo prova que a quantidade de água assim caída não podia ser bastante grande para cobrir toda a Terra, até por cima das mais altas montanhas.
Para os homens de então, que não conheciam senão uma extensão muito limitada da superfície do globo e que não tinham nenhuma ideia de sua configuração, desde o instante que a inundação tinha invadido os países conhecidos, para eles isso devia ser toda a Terra. Se a essa crença acrescentarmos a forma imaginosa e hiperbólica, particular ao estilo oriental, não nos daremos por surpresos com os exageros do relato bíblico.
5. O dilúvio asiático é evidentemente posterior à aparição do homem sobre a Terra, pois que sua memória foi conservada pela tradição de todos os povos dessa parte do mundo, que o consagraram em suas teorias. ([39])
O dilúvio asiático também é posterior ao grande dilúvio universal, que marcou o período geológico atual; e quando se fala de homens e animais antediluvianos, isso se entende relacionado com este primeiro cataclismo.
Revoluções Periódicas
6. Além de seu movimento anual em redor do Sol, que produz as estações, de seu movimento de rotação sobre si mesma em 24 horas, que produz o dia e a noite, a Terra tem um terceiro movimento que se realiza aproximadamente a 25.000 anos de intervalo, mais exatamente, 25.868 anos, e que produz o fenômeno designado em Astronomia por precessão dos equinócios (Cap. V, nº 11).
Este movimento, que seria impossível explicar em poucas palavras, consiste numa espécie de balanço circular que tem sido comparado com o de um pião ao desacelerar seu giro; por consequência de tal movimento, o eixo da Terra, mudando de inclinação, descreve um duplo cone cujo vértice é o centro da Terra, e as bases abarcam a superfície circunscrita pelos círculos polares; isto é, uma amplitude de raio de 23 graus e meio.
7. O equinócio é o instante em que o Sol, passando de um hemisfério para o outro, se encontra perpendicularmente sobre o equador, o que sucede duas vezes por ano, perto do dia 21 de março, quando o Sol volta para o hemisfério boreal ou do norte, e perto do dia 22 de setembro, quando volta para o hemisfério austral ou do sul.
Porém, em consequência da mudança gradual na obliquidade do eixo, o que resulta na obliquidade do equador sobre a eclíptica, o instante do equinócio se encontra a cada ano adiantado de alguns minutos (25 minutos e 7 segundos). É este avanço que se denomina precessão dos equinócios (do latim praecedere, andar adiante, composto de prae antes, e cedere, ir).
Estes poucos minutos, em conjunto, formam horas, dias, meses e anos; daí resulta que o equinócio da primavera, que atualmente chega em março, num tempo dado chegará em fevereiro, depois em janeiro, depois em dezembro, e então o mês de dezembro terá a temperatura do mês de março, enquanto que março terá a de junho, e assim por diante, até que voltando ao mês de março, as coisas se encontrarão novamente no estado atual, o que terá lugar em 25.868 anos, para recomeçar indefinidamente a mesma revolução. ([40])
8. De tal movimento cônico do eixo, resulta que os polos da Terra não olham constantemente os mesmos pontos do céu; que a estrela polar não será sempre estrela polar; que os polos são gradualmente mais ou menos inclinados em direção ao Sol e dele recebem raios mais ou menos diretos; do que se conclui que a Islândia ou a Lapônia, por exemplo, que estão sob o círculo polar, poderão, num tempo dado, receber os raios solares como se estivessem na latitude da Espanha e da Itália, e que na posição oposta, extrema, a Espanha e a Itália poderão ter a temperatura da Islândia e da Lapônia, e assim por diante, a cada renovação do período de 25.868 anos. ([41])
9. As consequências desse movimento não puderam ainda ser determinadas com precisão, pois que não tem sido possível observar senão uma parte muito pequena de sua revolução; com relação a tal assunto, pois, não há senão presunções, das quais algumas têm certa probabilidade.
Essas consequências são:
1º — O aquecimento e o resfriamento alternativo dos polos e, por conseguinte, a fusão dos gelos polares durante a metade do período de 25.868 anos, e sua nova formação durante a outra metade desse período. Daí resultará que os polos não serão votados a uma esterilidade perpétua, mas gozarão por sua vez os benefícios da fertilidade.
2º — O deslocamento gradual do mar, que pouco a pouco invade as terras, enquanto que descobre outras, para as abandonar de novo e reentrar em seu antigo leito. Este movimento periódico, renovado indefinidamente, constituiria verdadeira maré universal de 25.868 anos.
A lentidão com a qual se opera este movimento do mar torna-o quase imperceptível a cada geração; porém é sensível ao fim de alguns séculos. Não pode causar nenhum cataclismo súbito, pois que os homens se retiram, de geração em geração, à medida que o mar avança, e eles avançam sobre as terras de onde o mar se retira. É a esta causa, mais que provável, que alguns sábios atribuíam a retirada do mar, em certas costas, e sua invasão em outras.
10. O deslocamento lento, gradual e periódico do mar é um fato adquirido pela experiência, e atestado por numerosos exemplos sobre todos os pontos do globo. Tem como consequência a manutenção das forças produtivas sobre a Terra. Esta longa imersão é um tempo de repouso durante o qual as terras submersas recuperam os princípios vitais esgotados por uma produção não menos longa. Os imensos depósitos de matérias orgânicas, formados pela permanência das águas durante séculos, são adubações naturais periodicamente renovadas, e as gerações se sucedem sem perceber tais mudanças. ([42])
Cataclismos Futuros
11. As grandes comoções da Terra tiveram lugar na época em que a crosta sólida, por sua pequena espessura, apenas oferecia fraca resistência à efervescência das matérias incandescentes do interior; vimos que diminuíram de intensidade e de generalidade à medida que a crosta se consolidou. Numerosos vulcões estão extintos; outros foram cobertos pelos terrenos de formação posterior.
Certamente ainda será possível haver perturbações locais, como consequência de erupções vulcânicas, do surgimento de alguns novos vulcões, de inundações súbitas em certas regiões; algumas ilhas poderão sair do mar, e outras se afundarem; porém já passou o tempo dos cataclismos gerais como aqueles que marcaram os grandes períodos geológicos. A Terra adquiriu uma estabilidade que, sem ser absolutamente invariável, já coloca o gênero humano ao abrigo das perturbações gerais, a não ser que surjam causas desconhecidas, estranhas ao nosso globo, e que nada possa prevenir.
12. Quanto aos cometas, hoje estamos plenamente tranquilos sobre sua influência, mais salutar que nociva, pois eles parecem ser destinados a revitalizar os mundos, se assim se pode exprimir, trazendo-lhes os princípios vitais que armazenaram durante sua trajetória através do espaço, e na vizinhança dos sóis. Ele seriam assim fontes de prosperidade, ao invés de mensageiros de desgraça.
Por sua natureza fluídica, hoje bem constatada, (cap. VI, nº 28 e seguintes), não é de se temer um choque violento: pois, no caso em que um deles encontrasse a Terra, seria esta que passaria através do cometa, como através de um nevoeiro.
A cauda dos cometas não é tampouco algo a ser temido; ela é apenas a reflexão da luz solar na imensa atmosfera que os rodeia, pois que ela está constantemente dirigida do lado oposto ao sol, e muda de direção conforme a posição daquele astro. Esta matéria gasosa também bem poderia, devido à rapidez de sua marcha, formar uma espécie de cabeleira como a esteira que segue um navio, ou a fumaça de uma locomotiva. Aliás, muitos deles já se aproximaram da Terra sem lhe causar nenhum dano; e, em razão de sua densidade respectiva, a Terra exerceria sobre o cometa, uma atração maior que este sobre a Terra. Unicamente um resto de velhos preconceitos pode inspirar receios quanto à sua presença. ([43])
13. O encontro da Terra com um outro planeta, na mesma forma, deve ser relegado ao terreno das hipóteses quiméricas; a regularidade e a invariabilidade das leis que presidem aos movimentos dos corpos celestes, tira a tal encontro toda a possibilidade.
Todavia, a Terra terá um fim; e como será? É o que está no domínio das conjeturas; porém, como ela ainda está longe da perfeição que pode atingir, e da velhice que seria sinal de declínio, seus atuais habitantes estão seguros de que tal fim não será para seu tempo. (Cap. VI, nº 48 e seguintes).
14. Fisicamente, a Terra já teve as convulsões de sua infância; ela entrou agora num período de estabilidade relativa: no período do progresso pacífico, que se realiza pela reprodução regular dos mesmos fenômenos físicos, e pelo concurso inteligente do homem. Porém ela ainda está em pleno trabalho de gestação do progresso moral. Aí residirá a causa de suas maiores comoções. Até que a humanidade haja crescido suficientemente em perfeição pela inteligência, e pela prática das leis divinas, as maiores perturbações serão causadas pelo homem, e não pela natureza, isto é, serão mais morais e sociais que físicas.
Acréscimo ou Diminuição do Volume da Terra
15. O volume da Terra aumenta, diminui, ou é estacionário?
A fim de sustentar o acréscimo do volume da Terra, algumas pessoas se fundam no raciocínio de que as plantas trazem para o solo, mais do que dele retiram, o que num certo sentido é certo, e noutro não o é. As plantas se nutrem tanto das substâncias gasosas que retiram da atmosfera, como das que aspiram por suas raízes — de fato, mais dos gases que da terra; ora, a atmosfera faz parte integrante do globo; os gases que a constituem provém da decomposição dos corpos sólidos, e estes, ao se recomporem, lhe retomam aquilo que já lhes haviam dado. É uma troca, ou por outra, uma transformação perpétua, de tal sorte que o acréscimo dos vegetais e dos animais se opera com o auxílio dos elementos constitutivos do globo, com seus restos, embora sejam consideráveis, não acrescentando à massa nem um átomo. Se a parte sólida do globo aumentasse por esta causa, de maneira permanente, isto se daria à custa da atmosfera, que diminuiria proporcionalmente, e terminaria por ser imprópria à vida, se ela não recuperasse, pela decomposição dos corpos sólidos, o que perdera por sua composição.
Na origem da Terra, as primeiras camadas geológicas foram formadas por matérias sólidas momentaneamente volatilizadas por efeito da alta temperatura e que, mais tarde, condensadas pelo resfriamento, foram precipitadas. Incontestavelmente, elas elevaram um pouco a superfície do solo, porém, sem nada ajuntar à massa total, pois o que ocorria, não passava de uma mudança de lugar da matéria. Quando a atmosfera, purgada dos elementos estranhos que mantinha em suspensão, se encontrou em seu estado normal, as coisas seguiram o caminho natural e regular, que depois tomaram. Hoje, a menor modificação na constituição da atmosfera arrastaria forçosamente a destruição dos atuais habitantes; porém, provavelmente também formaria novas raças, em outras condições.
Considerada sob este ponto de vista, a massa do globo, isto é, a soma das moléculas que compõem o conjunto de suas partes sólidas, líquidas e gasosas, é incontestavelmente a mesma desde sua origem; se ela experimentasse uma dilatação ou uma condensação, seu volume aumentaria ou diminuiria sem que a massa sofresse qualquer alteração. E pois, se a Terra aumentasse de massa, isto seria por efeito de alguma causa estranha, pois que ela não poderia extrair de si mesma, os elementos necessários a tal acréscimo.
Segundo certa opinião, o globo aumentaria de massa e de volume pelo afluxo de matéria cósmica interplanetária. Esta ideia nada tem de irracional, porém é muito hipotética para ser admitida em princípio. Não passa de um sistema combatido por sistemas contrários, sobre os quais a ciência não se fixou de modo nenhum. Sobre este assunto, aqui está a opinião do eminente Espírito que ditou os sábios estudos uranográficos aqui transcritos, no Cap. VI:
"Os mundos se esgotam pelo envelhecimento, e tendem a se dissolver para servir de elemento de formação a outros universos. Pouco a pouco, eles entregam ao fluido universal do espaço, aquilo que dele tiraram para se formar. Além disso, todos os corpos se gastam pelo atrito; o movimento rápido e incessante do globo através do fluido cósmico tem por efeito diminuir constantemente sua massa, se bem que isto se dê numa quantidade inapreciável num dado tempo. ([44])
Segundo penso, a existência dos mundos pode se dividir em três períodos. — Primeiro período: contração, solidificação da crosta; eclosão de germes, desenvolvimento da vida até o aparecimento do tipo mais perfectível. Nesse segundo momento, o globo está em toda sua plenitude, é a época da virilidade; perde, embora muito pouco, alguns de seus elementos constitutivos. Terceiro período: à medida que seus habitantes progridem espiritualmente, ele passa ao período de decrescimento material; perde substância, não somente devido à fricção, mas também pela desagregação de suas moléculas como uma pedra dura que, corroída pelo tempo, termina em poeira. Em seu duplo movimento de rotação e de translação, deixa no espaço parcelas fluídicas de sua substância, até o momento em que sua dissolução será total.
Mas então, como o poder de atração está na razão da massa, não do volume, a massa do globo diminuindo, suas condições de equilíbrio no espaço são modificadas; dominado por globos mais poderosos aos quais não pode fazer contrapeso, daí resultará desvio de seus movimentos, e por conseguinte, também mudanças nas condições da vida em sua superfície. Assim: nascimento, vida e morte; ou infância, virilidade, decrepitude, tais são as três fases pelas quais passa toda aglomeração de matéria orgânica ou inorgânica; unicamente o Espírito, que não é matéria, é indestrutível." (GALILEU, `Societé de Paris', 1868).
Primeira formação dos seres vivos — Princípio Vital — Geração espontânea — Escala dos seres orgânicos — O homem
Primeira Formação dos Seres Vivos
1. Houve um tempo em que os animais não existiam, e portanto tiveram começo. Vimos cada espécie aparecer à medida que o globo adquiriu as condições necessárias à sua existência: eis o que é positivo. Como é que se formaram os primeiros indivíduos de cada espécie? Compreende-se que a partir de um primeiro casal, os indivíduos se multiplicassem; mas, este primeiro casal, de onde saiu? Este é um dos mistérios que se entrosam com o princípio das coisas, e a cujo respeito somente se podem formular hipóteses. Se a ciência ainda não pode resolver completamente o problema, pelo menos pode examiná-lo.
2. Uma primeira questão que se apresenta é esta: Cada espécie animal deriva de um primeiro casal, ou de diversos casais criados, ou se assim o preferirmos, germinados simultaneamente em diversos lugares?
Esta última suposição é a mais provável; poder-se-ia mesmo dizer que ela deriva da observação. Com efeito, o estudo das camadas geológicas atesta a presença, em terrenos da mesma formação, e isso em proporções enormes, da mesma espécie, sobre os pontos mais afastados do globo. Esta multiplicação tão geral, e de alguma forma contemporânea, teria sido impossível com um tipo primitivo único.
Por outro lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, é sujeita a tantas eventualidades, que toda uma criação poderia ser comprometida, sem a pluralidade dos tipos, o que implicaria numa imprevidência inadmissível da parte do soberano Criador. Aliás, se num ponto pode formar-se certo tipo, o mesmo tipo pode ser formado em diversos pontos, pela mesma causa.
Tudo concorre, pois, para provar que houve criação simultânea e múltipla dos primeiros casais de cada espécie animal e vegetal.
3. A formação dos primeiros seres vivos pode se deduzir, por analogia, da mesma lei segundo a qual os corpos inorgânicos foram formados, e ainda são formados todos os dias. À medida que aprofundamos o conhecimento das leis da natureza, percebem-se os meios que, à primeira vista parecem tão complicados, simplificarem-se e se confundirem na grande lei de unidade que preside a toda obra da criação. Ela será melhor compreendida quando houvermos tomado conhecimento da formação dos corpos inorgânicos, de que ela é o primeiro grau.
4. A Química considera como elementares certo número de substâncias, tais como: o oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o carbono, o cloro, o iodo, o flúor, o enxofre, o fósforo e todos os metais. Mediante sua combinação, formam os corpos compostos: os óxidos, os álcalis, os sais e as inumeráveis variedades que resultam da combinação destes.
A combinação de dois corpos para formar um terceiro exige o concurso particular de circunstâncias: seja um grau determinado de calor, de secura ou de umidade, seja o movimento, ou o repouso, seja uma corrente elétrica, etc. Se tais condições não existirem, a combinação não se realiza.
5. Quando há combinação, os corpos componentes perdem suas propriedades características, ao passo que o composto que daí resulta possui qualidades novas, diferentes das primeiras. É assim, por exemplo, que o oxigênio e o hidrogênio, que são gases invisíveis sendo combinados quimicamente, formam a água, que é líquida, sólida ou em vapor, segundo as variações da temperatura. Falando de modo adequado, na água não há mais oxigênio e hidrogênio, mas sim um novo corpo; esta água sendo decomposta, os dois gases, voltando a ser livres, recuperam suas propriedades, e não há mais água. A mesma quantidade de água pode assim ser alternadamente decomposta e recomposta, de modo infinito.
6. A composição e a decomposição dos corpos se realizam em conseqüência do grau de afinidade que os princípios elementares têm uns pelos outros. A formação da água, por exemplo, resulta da afinidade recíproca do oxigênio e do hidrogênio; porém se colocarmos em contato com a água um corpo que tenha pelo oxigênio afinidade maior que a afinidade do hidrogênio por este, a água se decompõe; o oxigênio é absorvido, o hidrogênio torna-se livre, e a água não existe mais.
7. Os corpos compostos se formam sempre em proporções definidas, isto é, pela combinação de uma quantidade determinada dos princípios constituintes. Assim, para formar a água, é necessária uma parte de oxigênio e duas de hidrogênio. Se duas partes de oxigênio são combinadas com duas de hidrogênio, ao invés de água, obteremos o deutóxido de hidrogênio, líquido corrosivo, formado no entanto com os mesmos elementos da água, porém numa outra proporção.
8. Tal é, em poucas palavras, a lei que preside à formação de todos os corpos da Natureza. A inumerável variedade de tais corpos resulta de um número pequeno de princípios elementares, combinados em proporções diferentes.
Assim é que o oxigênio, combinado em certas proporções com o carbono, o enxofre, o fósforo, forma os ácidos carbônico, sulfúrico, fosfórico; o oxigênio e o ferro formam o óxido de ferro, ou ferrugem; o oxigênio e o chumbo, todos os dois inofensivos, dão lugar aos óxidos de chumbo, tais como o litargírio, o alvaiade, o mínio, que são venenosos. O oxigênio, com as matérias chamadas cálcio, sódio, potássio, forma a cal, a soda, a potassa. A cal, unida ao ácido carbônico, forma os carbonatos de cálcio ou pedras calcárias, tais como o mármore, o giz, a grés, as estalactites das grutas; unida a cal ao ácido sulfúrico, forma o sulfato de cálcio ou gesso, e o alabastro; ao ácido fosfórico, resultam: o fosfato de cálcio, base sólida dos ossos; o cloro e o hidrogênio formam o ácido clorídrico ou hidro clorídrico; o cloro e o sódio formam o cloreto de sódio ou sal marinho.
94. Todas essas combinações, e milhares de outras, se obtêm artificialmente, em pequena escala, nos laboratórios de Química; elas se operam espontaneamente, em grande escala, no grande laboratório da Natureza.
A Terra, em sua origem, não continha tais matérias combinadas, mas unicamente seus princípios constitutivos, volatilizados. Quando as terras calcárias e outras, tornadas por fim pedregosas foram depositadas em sua superfície, elas não existiam como produtos acabados; mas no ar se encontravam, no estado gasoso, todas as substâncias primitivas; tais substâncias, precipitadas por efeito do resfriamento sob o império de circunstâncias favoráveis, se combinaram segundo o grau de sua afinidade molecular; é então que se formaram as diferentes variedades de carbonatos, de sulfatos, etc., a princípio dissolvidos nas águas, e depois depositados na superfície do solo.
Suponhamos que por uma causa qualquer, a Terra volte a seu estado de incandescência primitiva; tudo isso se decomporá. Os elementos se separarão, todas as substâncias fusíveis se fundirão; todas as voláteis se volatilizarão. Depois, um segundo resfriamento resultará numa segunda precipitação, e as antigas combinações se formarão novamente.
10. Estas considerações provam o quanto a Química era necessária para a compreensão da Gênese.
Antes do conhecimento das leis de afinidade molecular, era impossível compreender a formação da Terra. Esta ciência esclareceu a questão sob um ponto de vista completamente novo, tal como a Astronomia e a Geologia o fizeram, sob outros pontos de vista.
11. Na formação dos corpos sólidos, um dos fenômenos mais notáveis é o da cristalização que consiste na forma regular que certas substâncias apresentam, quando passam do estado líquido ou gasoso para o estado sólido. Esta forma, que varia segundo a natureza da substância, é geralmente a de sólidos geométricos, tais como o prisma, o romboide, o cubo, a pirâmide. Todos conhecem cristais de açúcar cândi; os cristais de rocha, a sílica cristalizada, são prismas de seis lados, terminados por uma pirâmide igualmente hexagonal. O diamante é carbono puro, cristalizado. Os desenhos que se produzem sobre as vidraças, no inverno, são devidos à cristalização do vapor d'água, durante a congelação, sob a forma de agulhas prismáticas.
A disposição regular dos cristais se refere à forma particular das moléculas de cada corpo; essas partículas, infinitamente pequenas para nós, mas que nem por isso deixam de ocupar um certo espaço, solicitadas umas pelas outras pela atração molecular, se dispõem e se justapõem, segundo a exigência de sua forma, de maneira a que cada uma tome seu lugar em redor do núcleo ou primeiro centro de atração, e de modo a formar um conjunto simétrico.
A cristalização não se opera senão sob o império de certas circunstâncias favoráveis, fora das quais elas não podem se realizar; o grau de temperatura e o repouso são condições essenciais. Compreende-se que um calor muito forte, mantendo as moléculas afastadas, não lhes permite se condensarem, e pela agitação, opondo-se a seu arranjo simétrico, elas não formariam senão massa confusa e irregular, e portanto sem cristalização propriamente dita.
12. A lei que preside à formação dos minerais conduz naturalmente à formação dos corpos orgânicos.
A análise química nos mostra todas as substâncias vegetais e animais, compostas dos mesmos elementos que os corpos inorgânicos. Os elementos que desempenham o papel principal são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono; os outros não se encontram senão de modo acessório. Como no reino mineral, a diferença das proporções na combinação desses elementos produz toda a variedade das substâncias orgânicas e suas diversas propriedades, tais como: os músculos, os ossos, o sangue, a bílis, os nervos, a matéria cerebral, a gordura nos animais; a seiva, a madeira, as folhas, os frutos, as essências, os óleos, as resinas, etc., nos vegetais. Assim, na formação dos animais e das plantas não entra nenhum corpo especial que não seja igualmente encontrado no reino mineral. ([45])
13. Alguns exemplos usuais farão compreender as transformações que se operam no reino orgânico, unicamente pela modificação dos elementos constitutivos.
No suco da uva, não há ainda nem vinho nem álcool, mas simplesmente água e açúcar. Quando este suco chega à maturidade, e é colocado em circunstâncias propícias, ali se produz um trabalho íntimo, ao qual se dá o nome de fermentação. Nesse trabalho, uma parte do açúcar se decompõe; o oxigênio, o hidrogênio e o carbono se separam e se combinam nas proporções convenientes para formar álcool; de modo que ao beber o suco da uva, na realidade não se bebe álcool, pois ele ainda não existe; forma-se com as partes constitutivas da água e do açúcar, sem que haja, em suma, nem uma molécula a mais nem a menos.
No pão e nos legumes que comemos, não há certamente nem carne, nem sangue, nem ossos, nem matéria cerebral, e no entanto estes mesmos alimentos vão produzir essas diversas substâncias pela transformação de seus elementos constitutivos, mediante a sua decomposição e recomposição do trabalho da digestão e elaborações orgânicas.
Na semente de uma árvore não há certamente nem madeira, nem folhas, nem flores, nem frutos, e é um erro supor que a árvore inteira, sob forma microscópica, se encontra na semente; quase não há sequer a quantidade de oxigênio, de hidrogênio e de carbono, necessária para formar uma só folha de árvore. A semente encerra um germe que brota quando encontra as condições favoráveis; esse germe cresce à custa dos sucos que extrai da terra e dos gases que aspira do ar; tais sucos, que não são madeira, nem folhas, nem flores, nem frutos, infiltrando-se na planta, formam sua seiva, tal como os alimentos, nos animais, formam o sangue. Essa seiva, conduzida pela circulação a todas as partes do vegetal, seguindo os órgãos onde vai ter e onde recebe uma elaboração especial, se transforma em madeira, folhas, frutos, tal como o sangue se transforma em carne, ossos, bílis, etc., e no entanto, são sempre os mesmos elementos: o oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, diversamente combinados.
14. As diferentes combinações dos elementos para a formação das substâncias minerais, vegetais, não podem pois se operar senão nos ambientes e nas circunstâncias propícias; fora de tais circunstâncias, os princípios elementares estão numa espécie de inércia. Porém, desde que as circunstâncias sejam favoráveis, começa um trabalho de elaboração; as moléculas entram em movimento, se agitam, se atraem, se aproximam, se separam em virtude da lei das afinidades, e por suas múltiplas combinações, compõem a infinita variedade de substâncias. Se tais condições cessarem, o trabalho paralisa-se subitamente, para recomeçar quando novamente elas se apresentarem. É assim que a vegetação se ativa, se retarda, cessa e recomeça a trabalhar, sob a ação do calor, da luz, da umidade, do frio e da seca; que tal planta prospera num clima ou num dado terreno, e estiola ou perece noutro.
15. O que se passa diariamente sob nossos olhos pode nos indicar o que tem se passado desde a origem dos tempos, pois as leis da Natureza são invariáveis.
Verificado que os elementos constitutivos dos seres orgânicos e dos seres inorgânicos são os mesmos; que nós os vemos sem cessar sob o império de certas circunstâncias formar as pedras, as plantas e os frutos, pode-se concluir que os corpos dos primeiros seres vivos foram formados, como as primeiras pedras, pela reunião das moléculas elementares em virtude da lei da afinidade, à medida que as condições da vitalidade do globo foram propícias a tal ou qual espécie.
A semelhança de forma e de cores, na reprodução de indivíduos de cada espécie, pode ser comparada à semelhança de forma de cada espécie de cristal. As moléculas, justapondo-se sob o império da mesma lei, produzem um conjunto análogo.
Princípio Vital
16. Ao afirmar-se que as plantas e os animais são formados dos mesmos princípios constitutivos que os minerais, é preciso compreender isso no sentido exclusivamente material: aliás, estamos aqui tratando apenas do corpo.
Sem falar do princípio inteligente, que é uma questão à parte, há na matéria orgânica um princípio especial, inapreciável e que ainda não pode ser definido: é o princípio vital. Esse princípio, que é ativo no ser vivente, é extinto no morto; nem por isso deixa ele de conferir à substância, as propriedades características que a distinguem das substâncias inorgânicas. A Química, que decompõe e recompõe a maior parte dos corpos inorgânicos, tem conseguido decompor os corpos orgânicos; porém jamais conseguiu reconstituir uma simples folha morta; isso nos traz uma prova evidente de que nos compostos há alguma coisa que não existe nos inorgânicos.
17. Será o princípio vital algo de distinto, que tenha uma existência própria? Ou por outra, para entrar no sistema de unidade do elemento gerador, não será um estado particular, uma das modificações do fluido cósmico universal que se torna princípio de vida, como também se apresenta sob a forma de luz, fogo, calor, eletricidade? É neste último sentido que a questão é resolvida pelas comunicações relatadas antes. (Cap. VI, `Uranografia geral').
Porém, qualquer que seja a opinião que seja formulada sobre a natureza do princípio vital, ele existe, pois seus efeitos são observados. Pode-se pois admitir logicamente que ao se formar, os seres orgânicos assimilaram o princípio vital que era necessário à sua finalidade; ou, se assim o quisermos dizer, tal princípio se desenvolveu pelo próprio efeito da combinação dos elementos, tal como se vê, sob o império de certas circunstâncias, desenvolver-se o calor, a luz, e a eletricidade.
18. O oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono, quando se combinam sem o princípio vital não formariam senão um mineral ou um composto inorgânico; o princípio vital, modificando a constituição molecular desse corpo, lhe dá propriedade especiais. Em vez de uma molécula mineral, temos uma molécula de matéria orgânica.
A atividade do princípio vital é mantida durante a vida, pela ação do conjunto de órgãos, como o calor é mantido pelo movimento de rotação de uma roda; quando isto cessa pela morte, o princípio vital se extingue, como o calor, quando a roda cessa de girar. Porém o efeito sobre o estado molecular do corpo, causado pelo princípio vital, subsiste depois da extinção desse princípio, como a carbonização da madeira persiste depois da extinção do calor. Na análise dos corpos orgânicos a Química recupera os elementos constitutivos: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; porém ela não os pode reconstituir, porque não existindo mais a causa, ela não pode reproduzir o efeito, ao passo que pode reconstituir uma pedra.
19. Tomamos como comparação o calor desenvolvido pelo movimento de uma roda, porque se trata de um efeito vulgar, conhecido de todo o mundo, e mais fácil de compreender; porém teria sido mais exato dizer que, na combinação de elementos para formação dos corpos orgânicos, desenvolve-se eletricidade. Os corpos orgânicos seriam verdadeiras pilhas elétricas, que funcionam desde que tais pilhas estejam nas condições desejadas para que se produza a eletricidade: é a vida; ela se detém, quando cessam as condições: é a morte. Segundo este modo de encarar as coisas, o princípio vital não seria senão a espécie particular de eletricidade designada sob o nome de eletricidade animal, desprendida durante a vida pela ação dos órgãos, e dos quais a produção é paralisada na morte, pelo desaparecimento de tal ação.
Geração Espontânea
20. É natural que se inquira porque não se formam mais seres vivos, nas mesmas condições dos primeiros que apareceram sobre a Terra.
A questão da geração espontânea, que hoje preocupa a ciência, se bem que haja sido resolvida por modos diversos, não pode deixar de lançar luz sobre tal assunto. O problema proposto é o seguinte: em nossos dias formam-se espontâneamente seres orgânicos, unicamente pela união dos elementos constitutivos, sem o concurso de germes preliminares que fossem produtos da geração normal? Em outras palavras, sem pai nem mãe?
Os partidários da geração espontânea respondem afirmativamente, e se apoiam sobre observações diretas, as quais parecem ser conclusivas. Outros pensam que todos os seres vivos se reproduzem uns dos outros, e se apoiam sobre este fato, constatado pela experiência, de que os germes de certas espécies vegetais e animais, estando dispersos, podem conservar uma vitalidade latente durante um tempo considerável, até que as circunstâncias sejam favoráveis à sua eclosão. Esta opinião deixa sempre de pé a pergunta relativa à formação dos primeiros tipos de cada espécie.
21. Sem discutir os dois sistemas, convém notar que o princípio da geração espontânea não pode aplicar-se evidentemente senão aos seres das ordens mais inferiores do reino vegetal e do reino animal, àqueles nos quais começa a surgir a vida, e cujo organismo, extremamente simples, é de alguma forma rudimentar. São efetivamente aqueles os primeiros que apareceram sobre a Terra, e cuja geração provavelmente foi espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga àquela que teve lugar nas primeiras eras do mundo.
22. Mas então, por que não se veem mais formar da mesma maneira, os seres de organização complexa? Tais seres não existiram sempre, é fato positivo; logo, algum dia tiveram começo. Se o musgo, o líquen, o zoófito, o infusório, os vermes intestinais e outros, podem se produzir espontaneamente, por que não será o mesmo possível com as árvores, os peixes, cães e cavalos?
Aqui se detém no momento as investigações; o fio condutor se perde, e até que seja encontrado, o campo está aberto às hipóteses; seria pois imprudente e prematuro tomar os sistemas por verdades absolutas.
23. Se o fato da geração espontânea for demonstrado, embora de qualquer maneira limitada, não deixa de ser um fato capital, uma baliza que se pode colocar no caminho de novas observações. Se os seres orgânicos complexos não se produzem por esta maneira, quem sabe onde começaram? Quem conhece o segredo de todas essas transformações? Quando se vê o carvalho sair da bolota, quem pode dizer que não exista uma laço misterioso, unindo o pólipo e o elefante? (nº 25).
No estado geral de nossos conhecimentos não podemos enunciar a teoria da geração espontânea permanente, senão como uma hipótese, mas como uma hipótese provável, e que um dia, talvez tome lugar entre as verdades científicas reconhecidas. ([46])
Escala dos Seres Orgânicos
24. Entre o reino vegetal e o reino animal não há delimitação nitidamente traçada. Nos confins dos dois reinos estão os zoófitos ou animais-plantas, cujo nome indica que têm algo de um e do outro: é o traço de união.
Como os animais, as plantas nascem, vivem, crescem, se nutrem, respiram, se reproduzem e morrem. Como eles, para viver, elas têm necessidade de luz, de calor e de água; se forem privadas disso, estiolam e morrem; a absorção de ar viciado e de substâncias deletérias as envenena. Sua característica distintiva mais nítida, é a de serem presas ao solo e daí extraírem sua nutrição, sem se deslocarem.
O zoófito tem a aparência exterior de uma planta; como planta, agarra-se ao solo; como animal, a vida nele é mais acentuada; extrai sua nutrição do meio ambiente.
Um grau acima, o animal é livre e vai procurar sua alimentação: em primeiro lugar, encontram-se as inumeráveis variedades de pólipos, de corpo gelatinoso, sem órgãos bem distintos, e que não diferem das plantas senão pela faculdade de locomoção; depois vêm, na ordem de desenvolvimento de seus órgãos, da atividade vital e do instinto: os helmintos ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnudos sem ossos, dos quais uns são nus, como as lesmas, as polpas, ou polvos; outros são providos de conchas, como o caracol, a ostra; os crustáceos, cuja pele é revestida duma crosta dura, como o caranguejo, a lagosta; os insetos, nos quais a vida tem prodigiosa atividade e se manifesta o instinto industrioso, como a formiga, a abelha, a aranha. Alguns sofrem metamorfose, como a lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem em seguida a ordem dos vertebrados, animais de esqueleto ósseo, que compreende os peixes, os répteis, os pássaros, e enfim os mamíferos, cuja organização é a mais completa.
25. Se se considerarem apenas os dois pontos extremos da cadeia, não há nenhuma analogia entre tais seres; porém se passarmos de um anel para o outro, sem solução de continuidade, chegaremos da planta aos animais vertebrados sem transição brusca. Compreende-se então que os animais de organização complexa possam não ser mais que uma transformação, ou se assim o preferirmos, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior, e assim, de aproximação em aproximação, até o ser primitivo elementar. Entre a bolota e o carvalho, a diferença é grande, e não obstante, se acompanharmos passo a passo o desenvolvimento da bolota, chega-se ao carvalho, e já não será mais motivo de admiração que ele resulte de uma semente tão pequena. Se, pois a bolota encerra os elementos latentes próprios à formação de uma árvore gigante, por que não aconteceria o mesmo ao inseto e ao elefante? (Nº 23).
Do que foi exposto, compreende-se que não haja geração espontânea senão para os seres orgânicos elementares; as espécies superiores seriam o produto das transformações sucessivas desses mesmos seres, à medida que as condições climatéricas lhe tivessem sido propícias. Cada espécie adquirindo a faculdade de se reproduzir, seus cruzamentos resultarão em inumeráveis variedades; e depois, uma vez instalada a espécie, nas condições de vitalidade durável, quem diz que os germes primitivos de onde ela saiu não desapareceram daí em diante como inúteis? Quem diz que nosso inseto atual seja o mesmo que, de transformação em transformação, produziu o elefante? Assim se explicaria porque não há geração espontânea entre os animais de organização complexa.
Esta teoria, sem ser admitida de maneira definitiva, é a que tende evidentemente a predominar atualmente na ciência; e aceita por observadores sérios, como a mais racional.
O Homem Corporal
26. Do ponto de vista corporal e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos, da qual não difere senão por alguns detalhes da forma exterior; quanto ao mais, tem a mesma composição química que os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de reprodução; nasce, vive, morre nas mesmas condições, e com a morte seu corpo se decompõe como o de tudo quanto vive. Não há em seu sangue, sua carne, seus ossos, um átomo diferente dos que se encontram nos corpos dos animais; como esses, ao morrer, ele entrega à terra o hidrogênio, o oxigênio, o azoto e o carbono que estavam combinados para formar, e vão, por meio de novas combinações, formar novos corpos minerais, vegetais e animais. A analogia é tão grande, que as funções orgânicas do homem são estudadas em certos animais, quando as experiências não possam ser feitas nele mesmo.
27. Na classe dos mamíferos, o homem pertence à ordem dos bímanos. Imediatamente abaixo dele vêm os quadrúmanos (animais de quatro mãos) ou macacos, dos quais alguns, como o orangotango, o chimpanzé, o mono, têm certas semelhanças com o homem, a tal ponto que por muito tempo foram designados como homens da floresta; tal como o homem, caminham eretos, servem-se de paus, constroem cabanas, e levam seus alimentos à boca com a mão, o que são sinais característicos.
28. Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do ponto de vista de seu organismo, reconhece-se que, desde o líquen até à árvore, e do zoófito ao homem, há uma cadeia que se eleva por graus, sem solução de continuidade, e da qual todos os elos têm um ponto de contato com o elo precedente; seguindo passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior. Verificado que o corpo do homem está em condições idênticas aos outros corpos, que ele nasce, vive e morre da mesma maneira, deve ter sido formado nas mesmas condições.
23. Embora isto fira seu orgulho, o homem deve se resignar a ver em seu corpo material o último elo da animalidade sobre a terra. O inexorável argumento dos fatos aí está, e será em vão levantar protestos contra tal situação.
Porém, quanto mais o corpo diminui de valor a seus olhos, mais o princípio espiritual ganha importância; se o primeiro o nivela com os brutos, o segundo o eleva a uma altura incomensurável. Vemos o círculo onde o animal se detém; não vemos o limite que possa alcançar o Espírito do homem.
30. O materialismo pode por aí perceber que o Espiritualismo, longe de por em dúvida as descobertas da ciência, e sua atitude positiva, vai mais à frente e as provoca, pois é certo que o princípio espiritual, que tem sua existência própria, não pode sofrer nenhum dano.
O Espiritismo caminha a par com o materialismo, no terreno da matéria; admite tudo o que este admite; porém, onde o materialismo se detém, o Espiritismo prossegue. O Espiritismo e o materialismo são como dois viajantes que caminham juntos, partindo do mesmo ponto; chegados a uma certa distância, um diz: "Não posso ir mais longe;" o outro continua sua rota e descobre um mundo novo. Por que, pois, o primeiro diz que o segundo é louco, pois este, entrevendo novos horizontes, quer franquear o limite onde o outro acha conveniente se deter? Cristóvão Colombo também não foi considerado louco, porque acreditava existir um mundo além do Oceano? E quantos mais a História registra, desses loucos sublimes que fizeram avançar a humanidade, aos quais se tecem coroas, depois de se lhes ter atirado lama?
Bem! O Espiritismo, esta loucura do século XIX, segundo os que querem permanecer na praia terrestre, nos revela todo um mundo, mundo de importância muito maior para o homem que a América, pois nem todos os homens vão para a América, ao passo que todos, sem exceção vão para o mundo dos Espíritos, fazendo incessantes travessias de uma região para a outra.
Chegados ao ponto em que estamos, da Gênese, o materialismo se detém, ao passo que o Espiritismo prossegue suas pesquisas no domínio da Gênese espiritual.
Princípio espiritual — União do princípio espiritual e da matéria — Hipótese sobre a origem do corpo humano — Encarnações dos espíritos — Reencarnações — Emigrações e imigrações dos espíritos — Raça adâmica — Doutrina dos anjos decaídos
Princípio Espiritual
1. A existência do princípio espiritual é um fato que, por assim dizer, não necessita de demonstração, tanto quanto o princípio material; de alguma forma, é uma verdade axiomática: ele se afirma por seus efeitos, como a matéria, pelos que lhe são próprios.
Segundo o princípio "Todo efeito tendo uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente," não há ninguém que não faça diferença entre o movimento mecânico de um sino agitado pelo vento, e o movimento desse mesmo sino, destinado a dar um sinal, uma advertência, atestando por isso mesmo um pensamento, uma intenção. Ora, como não pode vir à ideia de ninguém, atribuir pensamento à matéria do sino, conclui-se que ele é movido por uma inteligência, à qual serve de instrumento para se manifestar.
Pela mesma razão, ninguém tem a ideia de atribuir o pensamento ao corpo de um homem morto. Se o homem vivo pensa, é porque nele há alguma coisa que já não há mais, quando está morto. A diferença que existe entre ele e o sino, é que a inteligência que faz mover este, está fora dele, enquanto que aquela que faz o homem agir está nele mesmo.
2. O princípio espiritual é o corolário da existência de Deus; sem este princípio, Deus não teria razão de ser, pois não seria mais possível conceber a soberana inteligência reinando durante a eternidade unicamente sobre a matéria bruta, tanto quanto não seria lícito tal supor em relação a um monarca terrestre que reinasse toda sua vida apenas sobre pedras. Como não se pode admitir Deus sem os atributos essenciais da Divindade: a justiça e a bondade, essas qualidades seriam inúteis se apenas devessem ser exercidas sobre a matéria.
3. Por outro lado, não se poderia conceber um Deus soberanamente justo e bom, criando seres inteligentes e sensíveis, para os votar ao nada depois de alguns dias de sofrimentos sem compensações, entretendo sua vida com essa sucessão indefinida de seres que nascem sem o ter solicitado, que pensam um instante para apenas conhecer a dor, e se extinguem para sempre, depois de uma existência efêmera.
Sem a sobrevivência do ser pensante, os sofrimentos da vida seriam, da parte de Deus, uma crueldade sem objetivo. Eis porque o materialismo e o ateísmo são corolários um do outro; negando a causa não podem admitir o efeito; negando o efeito não podem admitir a causa. O materialismo é, pois, coerente consigo mesmo, se bem que não esteja com a razão.
4. A ideia da perpetuidade do ser espiritual é inata no homem; ela existe nele, no estado de intuição e de aspiração; ele compreende que unicamente nisto está a compensação das misérias da vida: é devido ao fato de que tal ideia sempre existiu, que há e sempre haverá mais espiritualistas que materialistas, e mais deístas que ateus.
À ideia intuitiva e à potência do raciocínio, o Espiritismo vem acrescentar a sanção dos fatos, a prova material da existência do ser espiritual, de sua sobrevivência, de sua imortalidade e de sua individualidade; ele dá exatidão e definição ao que esse pensamento tinha de vago e de abstrato. Ele nos mostra o ser inteligente agindo fora da matéria, quer depois, quer durante a vida do corpo.
5. O princípio espiritual e o princípio vital são uma e a mesma coisa?
Como sempre, partindo da observação dos fatos, diremos que, se o princípio vital fosse inseparável do princípio inteligente, haveria alguma razão em confundi-los; porém, desde que se veem seres que vivem e não pensam, como as plantas; corpos humanos que ainda estão animados com a vida orgânica, ao passo que neles já não existe mais nenhuma manifestação do pensamento; que se produzem no ser vivente movimentos vitais independentes de qualquer ato de vontade; que durante o sono a vida orgânica está em toda sua atividade, ao passo que a vida intelectual não se manifesta por qualquer sinal exterior, há lugar para se admitir que a vida orgânica reside num princípio inerente à matéria, independente da vida espiritual que é inerente ao Espírito. Ora, desde que a matéria tem uma vitalidade independente do espírito, torna-se evidente que esta dupla vitalidade repousa sobre dois princípios diferentes (Cap. X. ns. 16 a 19).
6. O princípio espiritual teria sua fonte no elemento cósmico universal? Não seria senão uma transformação, um modo de existência desse elemento, como a luz, a eletricidade, o calor, etc.?
Se assim fosse, o princípio espiritual estaria sujeito às vicissitudes da matéria; ele se extinguiria pela desagregação, como o princípio vital; o ser inteligente não teria senão uma existência momentânea como sucede ao corpo, e com a morte ele reentraria no nada, ou, o que vem a dar no mesmo, no todo universal; isso seria, numa palavra, a sanção das doutrinas materialistas.
As propriedades sui generis que são reconhecidas no princípio espiritual provam que ele tem sua existência própria independente, pois, se tivesse sua origem na matéria, não teria essas propriedades. Desde que a inteligência e o pensamento não podem ser atributos da matéria, chega-se a essa conclusão, remontando os efeitos às causas, que o elemento material e o elemento espiritual são dois princípios constitutivos do universo. O elemento espiritual individualizado constitui os seres chamados Espíritos assim como o elemento material individualizado constitui os diferentes corpos da Natureza, orgânicos e inorgânicos.
7. Admitindo-se o ser espiritual, e se sua fonte não pode estar na matéria, qual é a sua origem, seu ponto de partida?
Aqui, os meios de investigação faltam de modo absoluto, assim como tudo o que diz respeito ao princípio das coisas. O homem não pode constatar senão o que existe; quanto a tudo o mais, apenas pode emitir hipóteses; e Deus não lhe deu tal conhecimento, seja porque tal conhecimento ultrapassa o alcance de sua inteligência atual, seja porque seria atualmente inútil ou inconveniente que ele o possuísse no momento.
O que Deus lhe transmite por seus mensageiros, e o que por outro lado o próprio homem tem podido deduzir, partindo do princípio da soberana justiça que é um dos atributos essenciais da Divindade, é que todos temos um mesmo ponto de partida; que todos são criados simples e ignorantes, com aptidão igual para progredir mediante sua atividade individual; que todos atingirão o grau de perfeição compatível com a criatura, através de seus esforços pessoais; que todos, sendo os filhos de um mesmo Pai, são o objeto de igual solicitude; que não há nenhum favorecido ou melhor dotado que os demais, e dispensado do trabalho que seria imposto a outros para atingir seu alvo.
8. Ao mesmo tempo em que Deus criou mundos materiais, desde toda a eternidade, igualmente criou seres espirituais desde toda a eternidade: sem isso, os mundos materiais teriam sido sem objetivo. Seria mais fácil conceber-se os seres espirituais sem os mundos materiais, que estes sem os seres espirituais. São os mundos materiais que teriam que fornecer aos seres espirituais, elementos de atividade para o desenvolvimento de sua inteligência.
9. O progresso é a condição normal dos seres espirituais, e a perfeição relativa é a finalidade que devem alcançar; ora, tendo Deus criado desde toda a eternidade, e criando sem cessar, por toda a eternidade, também terá havido aqueles que alcançaram o ponto culminante da escala.
Antes que a Terra existisse, mundos tinham sucedido a mundos, e quando a Terra saiu do caos dos elementos, o espaço era povoado por seres espirituais em todos os graus de progresso, desde aqueles que nasciam para a vida, até aqueles que, de toda a eternidade, haviam tomado lugar entre os puros Espíritos, vulgarmente chamados anjos.
União do Princípio Espiritual e da Matéria
10. Desde que a matéria seria o objeto do trabalho do Espírito para o desenvolvimento de suas faculdades, era necessário que ele pudesse agir sobre ela; por isso é que ele veio habitar a matéria, como o lenhador habita a floresta. Desde que a matéria deve ser ao mesmo tempo a finalidade e o instrumento de trabalho, Deus, em vez de ligar o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados, flexíveis, capazes de receber todos os impulsos de sua vontade, e de se prestar a todos os seus movimentos.
O corpo é, pois, ao mesmo tempo o envoltório e o instrumento do Espírito, e à medida que este adquire novas aptidões, reveste um invólucro apropriado ao novo gênero de trabalho que deve realizar, tal como se dá a um trabalhador instrumentos menos grosseiros, à medida que ele seja capaz de fazer um trabalho mais delicado.
11. Para ser mais exato, será preciso dizer que é o próprio Espírito que fabrica seu envoltório e o torna adequado às suas novas necessidades; ele o aperfeiçoa, o desenvolve e completa o organismo à medida que sente a necessidade de manifestar novas faculdades; numa palavra, ele o talha conforme sua inteligência; Deus lhe fornece os materiais; fica por sua conta, colocá-los em função; é assim que as raças adiantadas têm um organismo, ou se assim o preferirmos, um instrumento cerebral mais aperfeiçoado que as raças primitivas. Assim se explica igualmente o cunho especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia, e às linhas do corpo. (Cap. VIII, nº 7: A Alma da Terra).
12. Desde que um Espírito nasce na vida espiritual, para seu progresso, deve fazer uso de suas faculdades, as quais são a princípio rudimentares; é por isso que ele é revestido de um envoltório corporal apropriado a seu estado de infância intelectual, envoltório este que ele deixa para se revestir de outro, à medida que suas forças aumentam. Ora, como houve mundos, desde todo o tempo, e que tais mundos têm dado nascimento a corpos organizados, adequados a receber Espíritos, desde todos os tempos os Espíritos têm encontrado os elementos necessários à sua vida carnal qualquer que fosse seu grau de progresso.
13. Sendo o corpo exclusivamente material, sofre as vicissitudes da matéria. Depois de haver funcionado durante certo tempo, ele se desorganiza e se decompõe; o princípio vital, não encontrando mais elemento para sua atividade, extingue-se e o corpo morre. O Espírito, visto que o corpo privado de vida é, a partir de então, sem utilidade, deixa-o como se abandona uma casa em ruína ou uma vestimenta imprestável.
14. O corpo não é, pois, senão um envoltório destinado a receber o Espírito; desde então, pouco importa sua origem, e os materiais dos quais ele é construído. Quer o corpo do homem seja ou não uma criação especial, nem por isso deixa de ser formado pelos mesmos elementos que os dos animais, animado pelo mesmo princípio vital, (em outras palavras, aquecido pelo mesmo fogo), assim como é iluminado pela mesma luz, sujeito às mesmas vicissitudes e às mesmas necessidades: sobre este ponto não há contestação.
Se apenas considerarmos a matéria, fazendo abstração do Espírito, o homem não terá nada que o distinga do animal; porém tudo muda de aspecto se se faz a distinção entre a habitação e o habitante.
Um grande senhor, numa cabana, ou vestido com os simples vestuários do campônio, nem por isso deixará de ser o grande senhor. O mesmo sucede com o homem; não é seu vestuário de carne quem o eleva acima do bruto, e faz dele um ser à parte: é seu ser espiritual, seu Espírito.
Hipótese Sobre a Origem do Corpo Humano
15. Da semelhança de formas exteriores existentes entre o corpo do homem e do macaco, certos fisiologistas concluíram que o primeiro não era senão uma transformação do segundo. Nada há de impossível nisso, nem que afete a dignidade do homem, caso assim seja. Corpos de macacos teriam sido muito adequados a servir de vestimentas aos primeiros Espíritos humanos necessariamente pouco avançados, que vieram encarnar-se na Terra; tais corpos terão sido os mais apropriados às suas necessidades, e mais próprios ao exercício de suas faculdades, que o corpo de qualquer outro animal. Em lugar de ter sido necessário fazer-se um vestuário especial para o Espírito, ele já encontrou um feito. Pode, pois, vestir a pele do macaco, sem cessar de ser Espírito humano, como o homem se reveste às vezes da pele de certos animais, sem cessar de ser homem.
Fique bem entendido que aqui não se trata senão de uma hipótese, a qual de modo nenhum é formulada como princípio, porém oferecida apenas para mostrar que a origem do corpo não prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o corpo do macaco não implica na paridade entre seu Espírito e o do macaco.
16. Admitindo essa hipótese, pode-se dizer que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual de seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou seus detalhes, sempre conservando a forma geral do conjunto (Nº 11). Os corpos melhorados, ao se procriarem, reproduziram-se nas mesmas condições, como se tratasse de árvores enxertadas; deram nascimento a uma nova espécie, a qual pouco a pouco se afastava do tipo primitivo, à medida que o Espírito progredia. O Espírito do macaco, o qual não foi aniquilado, continuou a procriar corpos de macaco para seu uso tal como o fruto da árvore silvestre reproduz as mesmas; e o Espírito humano procriou corpos humanos, variantes do primeiro molde onde se estabeleceu. O tronco se bifurcou; produziu vergônteas, que se tornaram troncos.
Como não há transições bruscas na natureza, é provável que os primeiros homens que apareceram sobre a Terra pouco diferissem do macaco em sua forma exterior, e sem dúvida também quanto à sua inteligência. Mesmo atualmente ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés, e pela conformação da cabeça, certamente têm traços de macaco faltando apenas serem peludos para completar a semelhança.
Encarnação dos Espíritos
17. O Espiritismo nos ensina de que maneira se opera a união do Espírito e do corpo, na encarnação.
O Espírito, por sua essência espiritual, é um ser indefinido, abstrato, que não pode ter uma ação direta sobre a matéria; era-lhe necessário um intermediário; este intermediário é o envoltório fluídico que de certa forma faz parte integrante do espírito, envoltório semimaterial, isto é, participante da matéria, por sua origem, e da espiritualidade, por sua natureza astral; como toda matéria, ele é originado no fluido cósmico universal, o qual nesta circunstância sofre uma modificação especial. Este envoltório, designado sob o nome de perispírito, de um ser abstrato faz do Espírito um ser concreto, definido, apreensível pelo pensamento; ele o torna apto a agir sobre a matéria tangível, da mesma forma que todos os fluidos imponderáveis, que são, conforme se sabe, os mais possantes motores.
O fluido perispiritual é, pois, o traço de união entre o Espírito e a matéria. Durante sua união com o corpo, é o veículo de seu pensamento para transmitir o movimento às diversas partes do organismo, as quais se agitam sob o impulso de sua vontade, e para repercutir no Espírito as sensações produzidas pelos agentes exteriores. Tem por fios condutores os nervos, como no telégrafo o fluido elétrico tem por condutor o fio metálico.
18. Quando o Espírito deve se encarnar num corpo humano em vias de formação, um laço fluídico, que nada mais é senão uma expansão de seu perispírito, o liga ao germe em cuja direção ele se sente atraído por uma força irresistível desde o momento da concepção. À medida que o germe se desenvolve, firma-se o laço; sob influência do princípio vital material do germe, o perispírito, que possui certas propriedades da matéria, se une, molécula por molécula, ao corpo que o forma; daí se pode dizer que o Espírito, por intermédio de seu perispírito, de alguma forma toma raiz no germe como uma planta na terra. Quando o germe está inteiramente desenvolvido, a união é completa, e então ele nasce para a vida exterior.
Por efeito contrário, esta união do perispírito e da matéria carnal, que se havia realizado sob a influência do princípio vital do germe, quando esse princípio cessa de agir em resultado da desorganização do corpo, a união, que apenas era mantida por uma força atuante, cessa quando essa força cessa de agir; então o Espírito se solta, molécula por molécula, como um dia se uniu, e o Espírito recupera sua liberdade. Assim, não é a partida do Espírito que causa a morte do corpo, mas a morte do corpo que causa a partida do espírito.
Desde o instante posterior à morte, a integridade do Espírito é total; suas faculdades adquirem mesmo uma penetração maior, ao passo que o princípio da vida se extingue no corpo, e isto é prova evidente de que o princípio vital e o princípio espiritual são duas coisas distintas.
19. O Espiritismo nos ensina, pelos fatos que nos proporciona à observação, os fenômenos que acompanham essa separação; ela é algumas vezes rápida, fácil, doce e insensível; outras vezes é lenta, laboriosa, horrivelmente penosa, segundo o estado moral do Espírito, e pode durar meses inteiros.
20. Um fenômeno particular, igualmente assinalado pela observação, acompanha sempre a encarnação do Espírito. Desde que este é apanhado pelo laço fluídico que o liga ao germe entra em estado de perturbação; essa perturbação cresce, à medida que o laço se firma e, nos últimos momentos, o Espírito perde toda a consciência de si mesmo de modo que ele nunca é testemunha consciente de seu nascimento. No momento que a criança respira, o Espírito começa a recuperar suas faculdades, as quais se desenvolvem à medida que se formam e consolidam os órgãos que devem servir para sua manifestação.
21. Porém, ao mesmo tempo que o Espírito recupera a consciência de si mesmo, perde a recordação do seu passado, sem perder as faculdades, as qualidades e as aptidões adquiridas anteriormente, aptidões que estavam momentaneamente colocadas em estado latente, e que, ao retomar sua atividade, vão ajudá-lo a fazer mais, ou melhor, o que anteriormente não fez; renasce a partir do ponto em que deixou seu progresso anterior; isto é para ele um novo ponto de partida, um novo degrau a subir. Aqui mais uma vez se manifesta a bondade do Criador, pois a recordação de um passado muitas vezes penosa ou humilhante, acrescentando-se às amarguras de sua nova existência, poderia perturbá-lo e lhe criar embaraços; ele apenas se recorda daquilo que aprendeu, pois tal lhe será útil. Se por vezes conserva uma vaga intuição dos acontecimentos passados, é como a recordação de um sonho fugitivo. É, pois, um homem novo, embora seu Espírito possa ser antigo; ele se apoia sobre novos planos de ação, auxiliado pelo que adquiriu. Ao reentrar na vida espiritual, seu passado se desenrola diante de seus olhos, e ele julgará se empregou mal ou bem o seu tempo.
22. Não há, pois, solução de continuidade na vida espiritual, apesar do esquecimento do passado; o Espírito é sempre ele, antes, durante e depois da encarnação; a encarnação é apenas uma fase especial de sua existência. Aquele esquecimento não se efetiva senão durante a vida exterior, de relação; durante o sono, o Espírito, parcialmente desligado dos laços carnais, devolvido à liberdade e à vida espiritual, recorda-se; sua vida espiritual já não está tão obscurecida pela matéria.
23. Tomando a humanidade em seu grau inferior de escala intelectual, com os mais atrasados selvagens, pergunta-se se esse foi o ponto de partida da alma humana.
Segundo a opinião de alguns filósofos espiritualistas, o princípio inteligente, distinto do princípio material, se individualiza, se elabora, passando pelos diversos graus da animalidade; é ali que a alma se ensaia para a vida e desenvolve suas primeiras faculdades, pelo exercício; por assim dizer, isso seria seu tempo de incubação. Chegada ao grau de desenvolvimento que tal estado comporta, ela recebe as faculdades especiais que constituem a alma humana. Haveria assim filiação espiritual do animal para o homem como também existe uma filiação corporal.
Este sistema, fundado sobre a grande lei de unidade que preside à criação, corresponde, é forçoso que concordemos, à justiça e à bondade do Criador: dá uma saída, uma finalidade, um destino aos animais, os quais já não não seres deserdados, mas que acham, no futuro que lhes está reservado, uma compensação para os seus sofrimentos. O que constitui o homem espiritual não é sua origem, mas os atributos especiais dos quais está dotado em sua entrada na humanidade, atributos que o transformam e dele fazem um ser distinto, como o fruto saboroso é distinto da raiz amarga de onde saiu. Por ter passado pela linha da animalidade, o homem não seria menos homem; não seria mais animal, assim como o fruto não é a raiz, assim como o sábio não é o feto informe pelo qual teve seu começo no mundo.
Porém este sistema faz surgir numerosas interrogações das quais aqui não é o lugar para se discutir os prós e os contras, como não o é o exame das diferentes hipóteses formuladas acerca de tal assunto. Assim é, pois, que sem pesquisar a origem da alma, e as linhas de evolução pelas quais ela teve que passar, nós a tomamos em sua entrada na humanidade, no ponto onde dotada de senso moral e de livre-arbítrio, ela começa a incorrer na responsabilidade de seus atos.
24. A obrigação, para o Espírito encarnado, de prover à nutrição do corpo, à sua segurança, a seu bem-estar, o obriga a aplicar suas faculdades em investigações, a exercê-las e a desenvolvê-las. Sua união com a matéria é pois, útil a seu progresso; eis porque a encarnação é uma necessidade. Por outro lado, pelo trabalho inteligente que o Espírito opera sobre a matéria, em sua própria vantagem, ele auxilia a transformação e o progresso material do globo que habita; é assim que progredindo, ele auxilia a obra do Criador de quem é um agente inconsciente.
25. Porém a encarnação do Espírito nem é constante, nem é perpétua; não é senão transitória; deixando um corpo, não retoma outro instantaneamente; durante um lapso de tempo mais ou menos considerável, vive na vida espiritual, que é sua vida normal; de tal sorte que a soma do tempo passado nas diferentes encarnações é pouca coisa, comparada ao tempo que passa no estado de Espírito livre.
No intervalo de suas encarnações, o Espírito igualmente progride, no sentido de que ele põe a funcionar, para seu progresso, os conhecimentos e a experiência adquiridos durante a vida corporal; examina o que fez em sua permanência terrestre, passa em revista o que aprendeu, reconhece suas faltas, traça seus planos, e toma as resoluções segundo as quais contará guiar-se a uma nova existência em que procurará fazer melhor. É assim que cada existência é um passo avante na via do progresso, uma espécie de escola de aplicação.
26. A encarnação não é, pois, uma punição para o Espírito, como alguns têm pensado, mas uma condição inerente à inferioridade do Espírito, e um meio de progredir (‘O Céu e o Inferno’, Cap. III nº 8 e seguintes).
À medida que o Espírito progride moralmente, ele se desmaterializa, isto é, se subtrai à influência da matéria, se purifica; sua vida se espiritualiza, suas faculdades e sua percepção se ampliam; sua felicidade está na razão do progresso realizado. Mas, como ele age em virtude de seu livre-arbítrio pode, por negligência ou má vontade, retardar o progresso; por consequência, prolonga a duração de suas encarnações materiais, as quais então se tornam para ele uma punição, pois que, por sua culpa, permanece nas fileiras inferiores, obrigado a recomeçar a mesma tarefa. Depende, pois, do Espírito, abreviar a duração de suas encarnações mediante seu trabalho de purificação sobre si mesmo.
27. O progresso material de um globo segue o progresso moral de seus habitantes; ora, como a criação dos mundos e dos Espíritos é incessante, e que estes progridem mais ou menos rapidamente em virtude de seu livre-arbítrio, daí resulta que há mundos mais ou menos antigos em diferentes graus de adiantamento físico e moral, nos quais a encarnação é mais ou menos material, e nos quais, por conseguinte, o trabalho dos Espíritos é mais ou menos rude. Neste ponto de vista, a Terra é um dos menos adiantados, povoada por Espíritos relativamente inferiores, a vida corporal ali é mais penosa que noutros mundos, assim como há outros mais atrasados, onde a vida é mais penosa ainda que sobre a Terra; para alguns desses mundos, a Terra seria relativamente um mundo feliz.
28. Quando os Espíritos adquiriram em um mundo a soma de progresso que comporte o estado daquele mundo, eles o deixam para se encarnar noutro mais adiantado, onde adquirem novos conhecimentos, e assim por diante, até que a encarnação em um corpo material já não lhes é mais útil; passam a viver exclusivamente na vida espiritual, na qual progridem ainda num outro sentido e mediante outros meios. Chegados ao ponto culminante do progresso, gozam da suprema felicidade; admitidos aos conselhos do Todo-Poderoso, recebem o seu pensamento, e tornam-se seus mensageiros, seus ministros diretos, para o governo dos mundos, tendo sob suas ordens os Espíritos que se encontram em diferentes graus de progresso.
Assim, todos os Espíritos, encarnados ou desencarnados, em qualquer grau da hierarquia em que se encontrem, desde o menor até o maior, têm suas atribuições no grande mecanismo do Universo: todos são úteis ao conjunto ao mesmo tempo que são úteis a si mesmos; aos menos adiantados, como se se tratasse de simples serviçais, incumbe uma tarefa material, a princípio inconsciente, depois gradualmente intelectiva. Por toda parte se exerce a atividade do mundo espiritual, e nela não se encontra a inútil ociosidade, em nenhum lugar.
A coletividade dos Espíritos é, de alguma forma, a alma do Universo; é o elemento espiritual que age em todas as partes, sob o impulso do pensamento divino. Sem este elemento, nada há senão a matéria inerte, sem objetivo, sem inteligência, sem outro motor além das forças materiais que deixam uma multidão de problemas insolúveis; pela ação do elemento espiritual individualizado, tudo tem uma finalidade, uma razão de ser; tudo se explica; eis porque sem a espiritualidade, o homem esbarra com dificuldades insuperáveis.
29. Quando a Terra se encontrou em condições climatéricas próprias à existência da espécie humana, ali se encarnaram Espíritos humanos. De onde vieram? Quer estes Espíritos tenham sido criados em tal momento; quer tenham vindo à Terra, completamente formados, sua presença desde um tempo limitado é um fato, pois que antes deles, apenas havia animais; eles se revestiram de corpos apropriados às suas necessidades especiais, as suas aptidões, e que fisiologicamente, pertenciam à animalidade; sob sua influência, e mediante o exercício de suas faculdades, esses corpos foram modificados e aperfeiçoados: isso é o que se apura mediante a observação. Deixemos pois de lado a questão da origem, ainda insolúvel até este momento; tomemos o Espírito, não em seu ponto de partida, mas naquele em que, manifestando-se nele os primeiros germes do livre-arbítrio e do senso moral, vemo-lo desempenhar seu papel humano, sem nos inquietarmos com o ambiente no qual passou seu período de infância, ou, se assim o preferirmos, sua incubação. Não obstante a analogia de seu envoltório com os dos animais, às faculdades intelectuais e morais que o caracterizam, saberemos distingui-lo destes, como sob a mesma roupagem distinguimos o homem rústico do civilizado.
30. Se bem que os primeiros homens devessem ser pouco adiantados, pela mesma razão que os fazia encarnarem-se em corpos muito imperfeitos, devia haver entre eles diferenças sensíveis nos seus caracteres e aptidões. Os Espíritos semelhantes naturalmente se agruparam pela analogia e pela simpatia. A Terra achou-se assim povoada por diferentes categorias de Espíritos, mais ou menos aptos ou rebeldes ao progresso. Os corpos recebem a característica do Espírito, e esses corpos se procriam segundo seu tipo respectivo; daí resultaram diferentes raças, no físico como no moral (nº 11). Os Espíritos semelhantes, continuando a se encarnar de preferência no meio de seus semelhantes, perpetuaram o caráter distintivo físico e moral das raças e dos povos, o qual não se perde senão após muito tempo, pela sua fusão e pelo progresso dos Espíritos (`Revue Spirite', julho de 1860, pág. 198: Frenologia e fisiognomonia).
31. Podem-se comparar os Espíritos que vieram povoar a Terra a grupos de imigrantes, de origens diversas, que vão se estabelecer numa terra virgem. Ali encontram a madeira e a pedra para fazer suas habitações, e cada um dá à sua um feitio diferente conforme seu grau de saber, e seu gênio particular. Ali se agrupam pela analogia de origens e de gostos; esses grupos acabam por formar tribos, depois povos, cada um com seus costumes e seu caráter próprio.
32. O progresso não foi, pois, uniforme em toda a espécie humana; as raças mais inteligentes naturalmente progrediram mais que as outras, sem contar que os Espíritos, recentemente nascidos na vida espiritual, vindo a se encarnar sobre a Terra desde os que chegaram em primeiro lugar, tornam mais sensíveis a diferença do progresso. Com efeito, seria impossível atribuir a mesma antiguidade de criação aos selvagens que mal se distinguem dos macacos, que aos chineses, e ainda menos aos europeus civilizados.
Esses Espíritos de selvagens, entretanto, pertencem também à humanidade; atingirão um dia o nível de seus irmãos mais velhos, mas certamente isso não se dará no corpo da mesma raça física, impróprio a um certo desenvolvimento intelectual e moral. Quando o instrumento não estiver mais em relação ao desenvolvimento, emigrarão de tal ambiente para se encarnar num grau superior, e assim por diante até que hajam conquistado todos os graus terrestres, depois do que deixarão a Terra para passar a mundos mais e mais adiantados. (`Revue Spirite', abril de 1863, pág. 97: Perfectibilidade da raça negra).
Reencarnações
33. O princípio da reencarnação é uma consequência necessária da lei do progresso. Sem a reencarnação, como explicar a diferença que existe entre o estado social atual e o dos tempos de barbárie? Se as almas são criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que nascem hoje são tão novas, tão primitivas como as que viviam já há mil anos; acrescentemos que entre elas não haveria nenhuma conexão, nenhuma relação necessária; que elas seriam completamente independentes umas das outras; por que, pois, as almas de hoje seriam melhor dotadas para Deus, que as suas antecessoras? Por que elas compreendem melhor? Por que elas têm instintos mais purificados, costumes mais suaves? Por que elas têm a intuição de certas coisas, sem as haver aprendido? Desafiamos a que se apresente uma solução para tal problema, a não ser que admitamos ter Deus criado almas de qualidades diversas, segundo os tempos e os lugares, proposição essa inconciliável com a ideia de uma soberana justiça (Cap. II, n.º 19).
Considerai, ao contrário, que as almas de hoje já viveram em tempos recuados; que elas puderam ter sido bárbaras, como era seu século, mas que progrediram; que a cada nova existência, elas trazem a aquisição das existências anteriores; que, por conseguinte, as almas dos tempos civilizados são almas não criadas mais perfeitas, mas que se aperfeiçoaram elas mesmas, com o tempo, e tereis a única explicação plausível da causa do progresso social. (O Livro dos Espíritos, Caps. IV e V).
34. Algumas pessoas pensam que as diferentes existências da alma se realizam de mundo em mundo, e não sobre um mesmo globo, no qual cada Espírito não aparece senão uma vez.
Esta teoria seria admissível, se todos os habitantes da Terra estivessem exatamente no mesmo nível intelectual e moral; não poderiam então progredir senão indo a um outro mundo, e sua reencarnação sobre a Terra seria sem utilidade; ora, Deus nada faz de inútil. Desde o instante em que aqui se encontram todos os graus de inteligência e de moralidade, desde a selvageria própria do animal até a civilização mais adiantada, ela oferece um vasto campo ao progresso; seria lícito perguntar porque o selvagem seria obrigado a ir procurar alhures o grau acima dele, quando o encontra a seu lado, e assim gradualmente; por que o homem adiantado não teria podido fazer suas primeiras etapas senão em mundos inferiores, enquanto que os análogos de todos esses mundos estão ao redor dele? Que aqui há diferentes graus de progresso, não só de povo para povo, como também na mesma família? Se assim fosse, Deus teria feito algo de inútil, colocando lado a lado a ignorância e o saber, a barbárie e a civilização, o bem e o mal, enquanto que é exatamente esse contato que faz progredir os retardatários.
Então, não há mais necessidade que os homens mudem de mundo a cada etapa, assim como não há necessidade de que um escolar troque de colégio em cada série; longe de contribuir para o progresso, isso lhe seria um entrave, pois o Espírito seria privado do exemplo que lhe é oferecido pela visão dos graus superiores, e da possibilidade de reparar, por seus esforços, seus erros, no mesmo ambiente e na presença daqueles a quem houvesse ofendido, possibilidade que é para ele o mais poderoso meio de progresso moral. Após uma curta coabitação, os Espíritos, dispersando-se e tornando-se estranhos uns aos outros, romper-se-iam os laços de família e de amizade, pois não teriam tempo para se consolidarem.
Ao inconveniente moral se acrescentaria um inconveniente material. A natureza dos elementos, as leis orgânicas, as condições de existência, variam segundo os mundos: sob essa relação, não há dois que sejam perfeitamente idênticos. Nossos tratados de Física, de Química, de Anatomia, de Medicina, de Botânica, etc., de nada serviriam em outros mundos, e todavia o que se aprende não é perdido; não só isso desenvolve a inteligência, mas as ideias que dali derivam ajudam a adquirir novas ideias (Cap. VI, n.º 61 e segs.). Se o Espírito não faz senão uma aparição, frequentemente de curta duração, no mesmo mundo, a cada migração ele se encontraria em condições inteiramente diversas; de cada vez operaria sobre elementos novos com forças e segundo leis que lhe são desconhecidas, antes de ter tido o tempo de elaborar os elementos conhecidos, de os estudar, de se exercitar com eles. Seria de cada vez um novo aprendizado a fazer, e as incessantes mudanças seriam um obstáculo ao progresso. O Espírito deve, pois, permanecer no mesmo mundo, até que ali haja adquirido a soma de conhecimentos e o grau de perfeição que tal mundo comporte. (N.º 31).
Que os Espíritos saiam para um mundo mais avançado, deixando aquele sobre o qual nada mais possam adquirir, assim é, e assim deve ser; tal é o princípio. Se alguns há que antecipadamente deixam o mundo em que vinham se encarnando, isto é devido a causas individuais, que Deus pesa em sua sabedoria.
Tudo tem um objetivo na criação, sem o que Deus não seria prudente, nem sábio; ora, se a Terra não deve ser senão uma única etapa para o progresso do indivíduo, que utilidade haveria, para os Espíritos das crianças que morrem com pouca idade, de ali virem passar alguns anos, alguns meses, algumas horas, durante as quais nada poderiam adquirir? O mesmo sucede com os idiotas ou cretinos. Uma teoria não é boa, senão com a condição de resolver todas as questões que a ela se ligam. A questão dos mortos prematuros tem sido uma pedra de tropeço para todas as doutrinas, exceto para a doutrina espírita, a qual é a única que a resolve de maneira racional e completa.
Para os que seguem na Terra uma carreira normal há, para seu progresso, uma vantagem real em se encontrarem novamente no mesmo ambiente, para ali continuar o que deixaram inacabado, muitas vezes na mesma família ou em contato com as mesmas pessoas, para reparar o mal que se lhes pôde fazer ou para sofrer a pena de talião.
Emigração e Imigração dos Espíritos
35. No intervalo de suas existências corporais, os Espíritos estão no estado de erraticidade, e compõem população espiritual ambiente do globo. Pelas mortes e nascimentos essas duas populações se permutam incessantemente; operam-se, pois, incessantemente, emigrações do mundo corpóreo para o mundo espiritual, e imigrações do mundo espiritual para o mundo corporal: este é o estado normal.
36. Em certas épocas, reguladas pela sabedoria divina, essas emigrações e imigrações se operam em massas mais ou menos consideráveis, como resultado das grandes revoluções que fazem partir ao mesmo tempo, quantidades inumeráveis, as quais são logo substituídas por quantidades equivalentes de encarnações. Portanto, é preciso considerar os flagelos destruidores e os cataclismos como ocasiões de chegadas e partidas coletivas, meios providenciais de renovar a população corporal do globo, de a retemperar mediante a introdução de novos elementos espirituais mais purificados. Se, nessas catástrofes, há destruição de um grande número de corpos, ali não há senão vestes dilaceradas, porém nenhum Espírito perece: nada fazem senão mudar de ambiente; em lugar de partir isoladamente, partem em quantidades — eis toda a diferença — pois, quanto a partir por uma causa, ou por outra, para eles não muda a fatalidade de que mais cedo ou mais tarde deverão partir.
As renovações rápidas e quase instantâneas que se operam no elemento espiritual da população, como consequência dos flagelos destruidores, aceleram o progresso social; sem as imigrações e emigrações que ocorrem de tempos a tempos viessem dar-lhe um violento impulso, progrediria com extrema lentidão.
É notável que todas as grandes calamidades que dizimam as populações, são hoje seguidas de uma era de progresso na ordem física, intelectual e moral, e por conseguinte, no estado social dos que vivem naquele determinado povo onde se realizam. É que tiveram por finalidade operar um remanejamento na população espiritual, que é a população normal e ativa do globo.
37. Essa transfusão que se opera entre a população encarnada e a população desencarnada de um mesmo globo opera-se igualmente entre os mundos, seja individualmente nas condições normais, seja por massas em circunstâncias especiais. Há, pois, emigrações e imigrações coletivas, de um mundo para outro. Delas resulta a introdução, na população de um globo, de elementos inteiramente novos; novas raças de Espíritos, que vêm se misturar às raças existentes, constituem novas raças de homens. Ora, como os Espíritos não perdem jamais o que adquiriram, trazem com eles a inteligência e a intuição dos conhecimentos que possuem; por conseguinte, imprimem seu caráter à raça corporal que vieram animar. Para isso, não têm necessidade de que novos corpos sejam criados especialmente para seu uso; desde que a espécie corporal existe, encontram-nos prontos a recebê-los. São, pois, simplesmente, novos habitantes; chegando sobre a Terra, a princípio fazem parte de sua população espiritual, e depois encarnam-se como os demais.
Raça Adâmica
38. Segundo o ensino dos Espíritos, é uma dessas grandes imigrações, ou se assim o quisermos, uma dessas colônias de Espíritos, vindos de outra esfera, que deu nascimento à raça simbolizada na pessoa de Adão, a qual por essa razão é denominada raça adâmica. Quando ela aqui chegou, a Terra era povoada desde tempos imemoriais, como a América o era quando para ali foram os europeus.
A raça adâmica, mais adiantada que as que haviam precedido na Terra, é com efeito a mais inteligente; é ela que empurra todas as outras em direção ao progresso. A Gênese no-la mostra, desde seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem ter passado pela infância intelectual, o que não é próprio das raças primitivas, mas que concorda com a opinião de que ela se compunha de Espíritos que já haviam progredido. Tudo prova que ela não é antiga na Terra, e nada se opõe a que ela não tenha, aqui, senão alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem com os fatos geológicos, nem com as observações antropológicas e tenderia, ao contrário, a confirmá-las.
39. A doutrina que faz originar todo o gênero humano de uma só individualidade, após seis mil anos, não é admissível no estado atual dos conhecimentos. As principais considerações que a contradizem, deduzidas da ordem física e da ordem moral, se resumem nos pontos seguintes.
Do ponto de vista fisiológico, certas raças apresentam tipos particulares característicos, que não permitem, atribuir-lhes uma origem comum. Há diferenças que não são evidentemente o efeito do clima, pois que os brancos se reproduzem no país dos negros sem se tornarem negros e reciprocamente. O ardor do sol tosta e escurece a epiderme, porém jamais transformou um branco num negro, nem lhe achatou o nariz, nem mudou a forma dos traços da fisionomia, nem tornou encarapinhados e lanosos, os cabelos compridos e sedosos. Hoje se sabe que a cor do negro provém de um tecido particular subcutâneo, distintivo dessa raça.
Por isso, é preciso considerar as raças negras, mongólicas, caucásicas, como tendo sua origem própria, tendo nascido simultaneamente ou sucessivamente em diferentes partes do globo; seus cruzamentos deram origem às raças mistas secundárias. Os caracteres fisiológicos das raças primitivas são o índice evidente de que elas provêm de tipos especiais. As mesmas considerações existem, pois, para o homem como para os animais, quanto à pluralidade das origens ou troncos. (Cap. X, nº 2 e segs.).
40. Adão e seus descendentes são representados na Gênese como homens essencialmente inteligentes, pois, que, desde sua segunda geração, constroem cidades, cultivam a terra, trabalham os metais. Seus progressos nas artes e nas ciências são rápidos e duradouros. Não se conceberia que tivessem, como descendentes, povos tão numerosos e tão atrasados, de inteligência tão rudimentar, que ainda em nossos dias ombreiam com a animalidade; que teriam perdido todos os traços e até a menor recordação tradicional daquilo que seus pais faziam. Uma diferença tão radical nas aptidões intelectuais e no desenvolvimento moral atestam, com não menos evidência, uma diferença de origem.
41. Independentemente dos fatos geológicos, a prova da existência do homem sobre a Terra antes da época fixada pela Gênese é tirada da população do globo.
Sem falar da cronologia chinesa, que remonta, segundo se diz, a trinta mil anos, documentos mais autênticos atestam que o Egito, a Índia e outros países eram povoados e florescentes, pelo menos três mil anos antes da era cristã; mil anos, portanto, depois da criação do primeiro homem, segundo a cronologia bíblica. Documentos e observações recentes não deixam nenhuma dúvida hoje sobre as correlações existentes entre a América e os antigos Egípcios; de onde é forçoso concluir que essas regiões já eram povoadas em tal época. Seria pois necessário admitir-se que em mil anos a posteridade de um só homem tivesse podido cobrir a maior parte da Terra; ora, uma tal fecundidade seria contrária a todas as leis antropológicas. ([47])
42. A impossibilidade torna-se ainda mais evidente, se admitirmos com a Gênese, que o dilúvio destruiu todo o gênero humano, exceto Noé e sua família, a qual não era numerosa, no ano de 1656 do mundo, ou seja, 2344 anos antes da era cristã. Em realidade, pois, daquele patriarca é que dataria o povoamento do globo; ora, quando os hebreus se estabeleceram no Egito, 612 anos depois do dilúvio, já o Egito era um poderoso império que teria sido povoado, sem falar de outras regiões, pelo menos há seis séculos, pelos próprios descendentes de Noé — o que não é admissível.
De passagem, observemos que os egípcios acolheram os hebreus como estrangeiros; seria de admirar que eles tivessem perdido a recordação de uma comunidade de origem tão próxima, quando conservaram religiosamente os monumentos de sua história.
Uma lógica rigorosa, corroborada pelos fatos, demonstra, pois, da maneira mais peremptória que o homem está sobre a Terra desde um tempo indeterminado, bem anterior à época indicada pelo Gênesis. Há, da mesma forma, uma diversidade de origens primitivas; pois, demonstrar a impossibilidade de uma proposição, é demonstrar a possibilidade contrária. Se a geologia descobrir traços autênticos da presença do homem antes do grande período diluviano, a demonstração será ainda mais absoluta.
Doutrina dos Anjos Decaídos e do Paraíso Perdido ([48])
43. Os mundos progridem fisicamente pela elaboração da matéria, e normalmente pela purificação dos Espíritos que o habitam. A felicidade existe nele, em razão da predominância do bem sobre o mal, e a predominância do bem é o resultado do progresso moral dos Espíritos. O progresso intelectual não basta, pois que com a inteligência, eles podem fazer o mal. Logo que um mundo alcança um dos seus períodos de transformação que o deve fazer galgar a hierarquia, operam-se mutações em sua população encarnada e desencarnada; é então que se realizam as grandes emigrações e imigrações (ns. 34, 35). Aqueles que, apesar de sua inteligência e de seu saber, perseveraram no mal, em sua revolta contra Deus e suas leis, seriam a partir de então um entrave ao progresso moral ulterior, uma causa permanente de dificuldades ao repouso e felicidade dos bons; é por isso que são excluídos e enviados a mundos menos adiantados; lá eles aplicarão sua inteligência e a intuição de seus conhecimentos adquiridos, ao progresso daqueles em cujo meio são chamados a viver, ao mesmo tempo que expiarão, numa série de existências penosas e através de um duro trabalho, suas faltas passadas e seu endurecimento voluntário.
Que serão eles, no meio de tais povos, novos para eles, ainda na infância da barbárie, senão anjos ou Espíritos decaídos, enviados em expiação? A Terra da qual serão expulsos não será para eles um paraíso perdido? Ela não era, para esses degredados, um lugar de delícias, em comparação com o meio ingrato onde vão se encontrar relegados, durante milhares de séculos, até o dia em que terão merecido sua libertação? A vaga recordação intuitiva que conservarão, é para eles como uma miragem longínqua que os faz lembrar aquilo que perderam por sua falta.
44. Porém ao mesmo tempo que os maus partem do mundo que habitavam, são substituídos por Espíritos melhores, vindos talvez da erraticidade desse mesmo mundo ou de um mundo menos adiantado que deixaram por merecimento, e para os quais sua nova residência é uma recompensa. A população espiritual sendo assim renovada e purgada de seus piores elementos, no fim de algum tempo fará com que o estado moral do mundo se encontre melhorado.
Estas mudanças são algumas vezes parciais, isto é, limitadas a um povo, a uma raça; outras vezes, são gerais, quando o período de renovação chegou para o globo.
45. A raça adâmica tem todos os caracteres de uma raça proscrita; os Espíritos que dela fazem parte foram exilados sobre a Terra, já povoada porém por homens primitivos, mergulhados na ignorância, e que eles têm por missão fazer progredir, trazendo-lhes as luzes de uma inteligência desenvolvida. Não será esse, com efeito, o papel que esta raça tem executado, até hoje? Sua superioridade intelectual prova que o mundo de onde saíram era mais adiantado que a Terra; porém, devendo aquele mundo entrar numa nova fase de progresso, e esses Espíritos, por via de sua obstinação, não tendo sabido se colocar à altura desse progresso, ali estariam deslocados, e teriam sido um entrave à marcha providencial das coisas; é por isso que eles foram excluídos, enquanto que outros mereceram substituí-los.
Ao relegar essa raça sobre esta terra de labores e de sofrimentos, Deus teve razão de lhes dizer: "Tirarás teu alimento com o suor de teu rosto." Em sua mansuetude, prometeu-lhe que enviaria o Salvador, isto é, aquele que deveria clarear seu caminho pelo qual sairia deste lugar de misérias, deste inferno, e chegaria à felicidade dos eleitos. Este Salvador, ele o enviou na pessoa do Cristo, que ensinou a lei de amor e de caridade, desconhecida deles, e que devia ser a verdadeira âncora de salvação.
É igualmente com a finalidade de fazer progredir a humanidade num sentido determinado, que os Espíritos superiores, sem ter as qualidades do Cristo, se encarnam de tempos a tempos sobre a Terra, para ali realizar missões especiais que ao mesmo tempo resultam em seu progresso pessoal, se eles as executarem segundo as finalidades do Criador.
46. Sem a reencarnação, a missão do Cristo seria um contra-senso, assim como a promessa feita por Deus. Suponhamos, com efeito, que a alma de cada homem seja criada com o nascimento de seu corpo, e que ela nada faça senão aparecer e desaparecer sobre a Terra; não há nenhuma relação entre as que vieram desde Adão, até Jesus Cristo, nem entre aquelas que vieram depois; serão todas estranhas umas às outras. A promessa de um Salvador feita por Deus não poderia se aplicar aos descendentes de Adão, se suas almas não tivessem ainda sido criadas. Para que a missão do Cristo pudesse ligar-se às palavras de Deus, era preciso que tais palavras pudessem se aplicar às mesmas almas. Se essas almas forem novas, não podem ser manchadas pela falta do primeiro pai, o qual nada mais é senão o pai carnal, e não o pai espiritual; por outro modo Deus teria criado almas manchadas por uma falta que não podia recair sobre elas, pois ainda não existiam. A doutrina vulgar do pecado original implica, pois, a necessidade de uma relação entre as almas do tempo do Cristo com as do tempo de Adão, e por conseguinte, a reencarnação.
Admiti que todas essas almas faziam parte da colônia de Espíritos exilados sobre a Terra no tempo de Adão, e que elas eram manchadas por vícios que as haviam excluído de um mundo melhor, e tereis a única interpretação racional do pecado original, pecado próprio de cada indivíduo, e não o resultado da responsabilidade da falta de outrem, que ele jamais terá conhecido; dizer que essas almas ou Espíritos renascem por diversas vezes sobre a Terra, na vida corporal, para progredir e se purificar; que o Cristo veio iluminar essas mesmas almas não somente por suas vidas passadas, mas também por suas vidas ulteriores, e somente assim vós dareis à sua missão uma finalidade real e séria, aceitável pela razão.
47. Um exemplo familiar, chocante por sua analogia, fará compreender melhor ainda os princípios que acabam de ser expostos:
A 24 de maio de 1861, a fragata Ifigênia chegou à Nova Caledônia trazendo uma companhia disciplinar composta de 191 homens. À sua chegada, o comandante da colônia lhes dirigiu uma ordem do dia assim concebida:
"Ao pordes os pés nesta terra longínqua, já sem dúvida compreendestes o papel que vos é reservado.
"A exemplo dos bravos soldados da marinha que servem sob vossas vistas, vós nos ajudareis a levar com brilho a bandeira da civilização, no meio das tribos selvagens da Nova Caledônia. Não é esta uma bela e nobre missão? À vós dirijo esta pergunta. Vós a preenchereis dignamente.
"Escutai a voz e os conselhos de vossos chefes. Estou à frente deles; que minhas palavras sejam bem compreendidas.
"A escolha de vosso comandante, de vossos oficiais, de vossos sub-oficiais e cabos é uma segura garantia de todos os esforços que serão tentados para fazer de vós, excelentes soldados; digo mais, para vos educar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se assim o quiserdes.
"Vossa disciplina é severa; ela assim deve ser. Colocada em nossas mãos, ela será firme e inflexível, sabei-o bem; igualmente, será justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação..."
Eis, pois, homens expulsos, por sua má conduta, de um país civilizado, e enviados, como castigo, a um país bárbaro. Que lhe diz o seu chefe? Afrontastes a lei de vosso país; ali haveis causado dificuldades e escândalos, e dali fostes expulsos; aqui vos enviam, mas podeis resgatar vosso passado; podeis, pelo trabalho, criar para vós uma posição honrada, e tornar-vos honestos cidadãos. Tendes uma bela missão a satisfazer, a de trazer a civilização a essas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos reconhecer aqueles que se conduzirem bem. Vossa sorte está em vossas mãos; podeis melhorá-la se assim o quiserdes, pois que tendes vosso livre-arbítrio.
Para aqueles homens relegados ao seio da selvageria, a mãe-pátria não será o paraíso perdido por sua culpa, e por sua rebelião contra a lei? Sobre aquela terra longínqua, não são eles como anjos decaídos? A linguagem do chefe não é aquela que Deus fez ouvir aos Espíritos exilados sobre a Terra: “Vós desobedecestes minhas leis , e é por isso que vos expulsei do mundo onde podíeis viver felizes e em paz; aqui sereis condenados ao trabalho, mas podereis, por vossa boa conduta, merecer vosso perdão e reconquistar a pátria que haveis perdido por vossa culpa, isto é, o céu.”
48. À primeira vista, a ideia de decaimento parece estar em contradição com o princípio de que os Espíritos não podem retroceder; porém é preciso considerar que não se trata de um retorno ao estado primitivo; o Espírito, embora esteja numa posição inferior, nada perde do que adquiriu; seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, qualquer que seja o meio onde se encontre colocado. Está na posição do homem do mundo, condenado à prisão por seus delitos; certamente, ele está degradado, decaído do ponto de vista social, porém não se torna mais estúpido nem mais ignorante.
49. Porventura diremos que aqueles homens envidados para a Nova Caledônia vão se transformar subitamente em modelos de virtudes? Que vão abjurar de um só golpe seus erros passados? Quem assim supusesse, não reconheceria a humanidade. Pela mesma razão, os Espíritos da raça adâmica, uma vez transplantados à terra de exílio, não se despojaram instantaneamente de seu orgulho e de seus maus instintos; por longo tempo ainda, conservaram as tendências de sua origem, um resto do velho fermento; ora, isso não é o pecado original?
Os seis dias — O paraíso perdido
Os Seis Dias
CAPÍTULO 1º — 1. No princípio Deus criou o céu e a terra. — 2.A terra era uniforme e toda nua; as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. — 3. Ora, Deus disse: Faça-se a luz e a luz se fez. — 4. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. — 5. Deu à luz o nome de dia, e às trevas chamou noite; e da tarde e da manhã se fez o primeiro dia.
6. Disse também Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. — 7. E Deus fez o firmamento; e separou as águas que estavam embaixo das que estavam em cima do firmamento. E assim foi. — 8. E Deus deu ao firmamento o nome de céu; e foi a tarde e a manhã o dia segundo.
9. Disse ainda Deus: Que as águas que estão sob o céu se reúnam em um só lugar, e que surja o elemento árido. E assim se fez. — 10. Deus deu ao elemento árido o nome de terra, e chamou mares as águas reunidas. E viu que era bom. — 11. Disse ainda Deus: Que a terra produza erva verde que dê grãos, e árvores frutíferas que dêem frutos cada um segundo sua espécie, e nelas mesmas encerrem sementes para se reproduzirem sobre a terra. E assim foi feito. — 12. A terra produziu pois ervas verdes que traziam grãos segundo sua espécie, e árvores frutíferas que encerravam suas sementes em si mesmas, cada uma segundo sua espécie. E Deus viu que era bom. — 13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia.
14. E disse Deus: Haja luminares no firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite; e que eles sirvam de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos. — 15. E sejam para luzir nos céus, e que eles clareiem a terra. E assim se fez. — 16. Deus fez, pois, dois grandes corpos luminosos, o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; fez também as estrelas. — 17. E as colocou no firmamento do céu para luzir sobre a terra. — 18. Para presidir ao dia e à noite, e para separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. — 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.
20. Disse ainda Deus: Que as águas produzam animais viventes que nadem nas águas, e pássaros que voem sobre a terra, sob o firmamento do céu. — 21. Deus criou pois, os grandes peixes, e todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram cada um segundo sua espécie, e criou também todos os pássaros segundo sua espécie. E viu que isso era bom. — 22. E os abençoou dizendo: Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a terra. — 23. E da tarde e da manhã se fez o quinto dia.
24. Deus disse também: Que a terra produza animais viventes, cada um segundo sua espécie, os animais domésticos, os répteis e os animais selvagens da terra segundo suas diferentes espécies. E isso assim se fez. — 25. Deus fez, pois, as bestas selvagens da terra segundo suas espécies, os animais domésticos e todos os répteis, cada um segundo sua espécie. E Deus viu que era bom.
26. Disse em seguida: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, os pássaros do céu, as bestas, a toda a terra e aos répteis que se movem sobre a terra. — 27. Deus criou então o homem à sua imagem, e o criou à imagem de Deus, e os criou macho e fêmea. — 28. Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra e a submetei, e dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, e sobre os animais que se movem sobre a terra. — 29. Deus disse ainda: Eu vos dei todas as ervas que trazem seus grãos sobre a terra e todas as árvores que encerram nelas mesmas sua semente cada uma segundo sua espécie, a fim de que vos servissem de alimento. — 30. E a todos os animais da terra, a todos os pássaros do céu, a tudo quanto se move sobre a terra, e que seja vivente e animado, a fim de que tenham do que se nutrir. E assim se fez. — 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; e eram muito boas. — 32. E da manhã e da tarde se fez o sexto dia.
CAPÍTULO 2º — 1. O céu e a terra foram assim acabados com todos os seus ornamentos. — 2. Deus terminou no sétimo dia todas as obras que tinha feito, e repousou no sétimo dia, depois de haver terminado todas as suas obras. — 3. Abençoou o sétimo dia, e o santificou; porque havia cessado naquele dia de produzir todas as obras que havia criado. — 4. Tal é a origem do céu e da terra, e assim é que foram criados no dia em que o Senhor os fez, a um e a outro. — 5. E que ele criou todas as plantas dos campos antes que tivessem saído da terra, e todas as ervas das planícies antes que elas houvessem germinado. Pois o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia ainda o homem para a trabalhar. — 6. Mas da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a superfície. — 7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e insuflou sobre seu rosto um sopro de vida; e o homem tornou-se vivente e provido de alma.
2. Após as explanações contidas nos capítulos anteriores, a respeito da origem e da constituição do universo conforme os dados fornecidos pela ciência, quanto à parte material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual, será de utilidade colocá-los em paralelo ao próprio texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um possa estabelecer uma comparação e julgar com conhecimento de causa; algumas explicações complementares serão suficientes para fazer compreender as partes que têm necessidade de esclarecimentos especiais.
3. Sobre alguns pontos há certamente uma concordância notável entre a Gênese de Moisés e a doutrina científica; porém seria um erro acreditar que seria suficiente substituir-se, aos seis dias de vinte e quatro horas da criação, seis períodos indeterminados para encontrar uma completa analogia; seria um erro não menor acreditar que, afora o sentido alegórico de algumas palavras, a Gênese e a ciência seguem uma à outra passo a passo, e não são senão a paráfrase uma da outra.
4. Para começar, observemos que, tal como já foi dito (Cap. VII, nº 14), que o número dos seis períodos geológicos é arbitrário pois que se enumeram mais de vinte e cinco formações bem caracterizadas. Este número apenas marca as grandes fases gerais; no princípio, apenas foi adotado para encaixar as coisas, o mais possível, no texto bíblico, numa época, aliás pouco distante, na qual se acreditava que se devia controlar a ciência pela Bíblia. É por isso que os autores da maior parte das teorias cosmogônicas, a fim de serem mais facilmente aceitos, esforçaram-se em se colocar de acordo com o texto sagrado. Quando a ciência passou a apoiar-se sobre o método experimental, ela sentiu-se mais forte, e emancipou-se; hoje, é a Bíblia que se afere pela ciência.
Por outro lado, a Geologia, tomando como seu ponto de partida, apenas a observação da formação dos terrenos graníticos, não compreende, no número de seus períodos, o estado primitivo da Terra. Ela não se ocupa com o Sol, a Lua e as estrelas, nem com o conjunto do Universo, que diz respeito à Astronomia. Para entrar no quadro da Gênese, convém pois acrescentar um primeiro período que abranja esta ordem de fenômenos, e que poderia ser denominado período astronômico.
Além disso, nem todos os geólogos consideram o período diluviano como formando um período distinto, e sim como um fato transitório e passageiro que não alterou de maneira sensível o estado climático do globo, nem marcou uma nova fase nas espécies vegetais e animais, eis que, com pequenas exceções, as mesmas espécies existiam, antes e depois do dilúvio. Pode-se, pois, abstrair dele, sem se afastar da verdade.
5. O quadro comparativo seguinte, no qual estão resumidos os fenômenos que caracterizam a cada um dos seis períodos, permite abarcar o conjunto, e julgar as relações e as diferenças que existem entre eles e a Gênese bíblica:
GÊNESE
CIÊNCIA
1º DIA — O céu e a terra. — A luz.
I — PERÍODO ASTRONÔMICO. Aglomeração da matéria cósmica universal sobre um ponto do espaço em uma nebulosa que, pela condensação da matéria sobre diversos pontos, deu nascimento às estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua e a todos os planetas. — Estado primitivo fluídico e incandescente da Terra. — Atmosfera imensa carregada de toda a água em estado de vapor, e de todas as matérias volatilizáveis.
2º DIA — Separação das águas que estão sob o firmamento das que estão embaixo
II — PERÍODO PRIMÁRIO. Endurecimento da superfície da Terra pelo seu resfriamento; formação das camadas graníticas. — Atmosfera espessa e queimante, impenetrável aos raios do sol. — Precipitação gradual da água e das matérias sólidas volatilizadas no ar. — Ausência de toda vida orgânica.
3º DIA — As águas que estão sob o firmamento se ajuntam; o elemento árido aparece. — A terra e os mares. — As plantas.
III — PERÍODO DE TRANSIÇÃO. As águas cobrem toda a superfície do globo. — Primeiros depósitos de sedimentos formados pelas águas. — Calor úmido. — O sol começa a atravessar a atmosfera brumosa. — Primeiros seres organizados da constituição a mais rudimentar. — Líquens, musgos, fetos, licopódios, plantas erbáceas. — Vegetação colossal. — Primeiros animais marinhos: zoófitos, pólipos, crustáceos. — Depósitos hulhíferos.
4º DIA — O Sol, a Lua e as estrelas.
IV — PERÍODO SECUNDÁRIO. Superfície da Terra pouco acidentada; águas pouco profundas e pantanosas. — Temperatura menos abrasadora; atmosfera mais purificada. — Depósitos consideráveis de calcáreos das águas. — Vegetações menos colossais; novas espécies; plantas lenhosas; primeiras árvores. — Peixes; cetáceos; animais de conchas; grandes répteis aquáticos e anfíbios.
5º DIA — Os peixes e os pássaros.
V — PERÍODO TERCIÁRIO. Grandes alçamentos da crosta sólida; formação dos continentes. — Acumulação das águas nos lugares baixos; formação dos mares. — Atmosfera purificada; temperatura atual produzida pelo calor solar. — Animais terrestres gigantescos. — Vegetais e animais atuais. — Pássaros.
DILÚVIO UNIVERSAL.
6º DIA — Os animais terrestres. — O homem.
VI — PERÍODO QUATERNÁRIO OU PÓS-DILUVIANO. Terrenos de aluvião. — Vegetais e animais atuais. — O homem.
6. O primeiro fato que ressalta do quadro comparativo acima, é que o trabalho de cada um dos seis dias não corresponde de maneira rigorosa, como muitos o crêem, a cada um dos períodos geológicos. A concordância mais notável é a da sucessão dos seres orgânicos, que com pequena aproximação é quase a mesma, e na aparição do homem em último lugar; eis aqui um fato importante.
Igualmente há coincidência, não com a ordem numérica dos períodos, mas com o fato, na passagem onde se diz que, no terceiro dia, "as águas que estão sob o céu se juntaram num só lugar, e o elemento árido apareceu". É esta a expressão do que sucedeu no período terciário, quando os alçamentos da crosta puseram a descoberto os continentes, e fizeram recuar as águas que formaram os mares. Somente então é que apareceram os animais terrestres, segundo a Geologia e segundo Moisés.
7. Quando Moisés diz que a criação foi feita em seis dias, teria ele significado dias de vinte e quatro horas, ou
teria compreendido sob esta palavra, o sentido de período, duração? A primeira hipótese é a mais provável, o que se observa pelas referências ao próprio texto; para começar, porque tal é o sentido exato da palavra hebraica "iom", traduzida por dia; depois, a especificação da tarde e da manhã, as quais limitam cada um dos seis dias, dá toda base de supor-se que ele quis falar de dias comuns. Não se pode mesmo conceber qualquer dúvida a tal respeito, quando ele diz, no versículo 5: "Ele deu à luz o nome de dia, e às trevas chamou noite; e da tarde e da manhã se fez o primeiro dia." Isto evidentemente só se pode aplicar a um dia de vinte e quatro horas, dividido pela luz e pelas trevas. O sentido é ainda mais preciso quando ele diz, no versículo 17, falando do Sol, da Lua e das estrelas: "Ele as colocou no firmamento do céu para luzir sobre a terra; para presidir ao dia e à noite, e para separar a luz das trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia."
Aliás, na criação, tudo era miraculoso, e desde que se envereda na senda dos milagres, pode-se perfeitamente acreditar que a terra foi feita em seis dias de vinte e quatro horas sobretudo quando se desconhecem as primeiras leis naturais. Esta crença tem sido bem adotada por todos os povos civilizados, até o momento em que veio a Geologia, com seus materiais à mão, demonstrar sua impossibilidade.
8. Um dos pontos que têm sido dos mais criticados na Gênese, é a criação do Sol depois da luz. Com os próprios dados da Geologia, tem sido procurada a explicação que justifique essa afirmação, dizendo que nos primeiros tempos de sua formação, a atmosfera terrestre, estando carregada de vapores densos e opacos, não permita ver o Sol, o qual, devido a isso, não existia para a Terra. Essa razão seria talvez admissível se, nessa época, houvesse habitantes para julgar da presença ou da ausência do Sol; ora, segundo o próprio Moisés, apenas havia plantas, as quais, todavia, não teriam podido crescer e multiplicar-se, sem a ação do calor do Sol.
É, pois, evidente, o anacronismo na ordem que Moisés indica para a criação do Sol; o fato persiste no sentido de que, voluntariamente ou não, ele não cometeu erro quando disse que a luz havia precedido o Sol.
O Sol não é o princípio da luz universal, mas sim, uma concentração do elemento luminoso sobre um ponto, por outro modo de dizer, do fluido que, nas circunstâncias dadas, adquire propriedades luminosas. Esse fluido, que é a causa, devia necessariamente preceder o Sol, o qual não passa de um efeito. O Sol é a causa da luz que espalha, porém é o efeito em relação à que recebeu.
Num cômodo escuro, uma vela acesa é um pequeno sol. O que se fez para acender a vela? Desenvolveu-se a propriedade iluminante do fluido luminoso, e concentrou-se tal fluido sobre um ponto; a vela é a causa da luz difundida no cômodo; mas se o princípio luminoso não existisse antes da vela, esta não poderia ter sido acesa.
O mesmo sucede com o Sol. O erro provém da ideia falsa na qual por longo tempo se mantiveram os homens, de que o Universo todo inteiro começou com a Terra e não se compreende que o Sol pudesse ter sido criado depois da luz. Atualmente é sabido que antes de nosso Sol e nossa Terra, existiram milhões de sóis e de terras, as quais por conseguinte gozavam de luz. A afirmativa de Moisés é pois, perfeitamente exata em princípio; é falsa quando faz crer que a Terra houvesse sido criada antes do Sol; a Terra, sendo sujeita ao Sol em seu movimento de translação, deve ter sido formada depois dele: é o que Moisés não podia ter sabido, pois ignorava a lei da gravitação.
O mesmo pensamento se encontra na Gênese dos antigos persas. No primeiro capítulo do Vendedad, Ormuzd, contando a origem do mundo, diz: "Criei a luz que foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas". (Dicionário da mitologia universal). A forma está aqui certamente mais clara e mais científica do que em Moisés e não necessita de comentário.
9. É evidente que Moisés compartilha das crenças as mais primitivas referentes à cosmogonia. Tal como os homens de seu tempo, acreditava na solidez da abóbada celeste, e em reservatórios superiores para as águas. Esse pensamento está expresso sem alegoria nem ambiguidade nesta passagem (versículos 6 e seguintes): "Deus disse: Faça-se o firmamento no meio das águas e que haja separação de águas e águas. Deus fez o firmamento, e separou as águas que estavam embaixo, das que estavam em cima do firmamento". (Ver o cap. V. Sistemas antigos e modernos do mundo, Ns. 3, 4 e 5).
Uma antiga crença fazia considerar a água como o princípio, o elemento gerador primitivo; também Moisés não fala da criação das águas, as quais parecem já existir. "As trevas cobriam o abismo." Isto é, as profundezas do espaço que a imaginação representava vagamente ocupada pelas águas, em trevas antes da criação da luz; eis porque Moisés diz: "O Espírito de Deus era levado (ou planava) por sobre as águas." A terra, sendo supostamente formada no meio das águas, era necessário isolá-la; supõe-se pois que Deus fizera o firmamento, abóbada sólida que separava as águas do alto, das que estavam sobre a Terra.
Para compreender certas partes do Gênese, necessariamente será preciso colocar-se no ponto de vista das ideias cosmogônicas do tempo da qual é o reflexo.
10. Em face aos progressos da Física e da Astronomia, uma tal teoria é insustentável.([49]) Todavia, Moisés empresta tais palavras ao próprio Deus; ora, visto que elas exprimem um fato notoriamente falso, de duas coisas uma: ou Deus se enganou no relato que fez de sua obra ou tal relato não é uma revelação divina. Não sendo admissível a primeira suposição, necessariamente se deve concluir que Moisés exprimiu suas próprias ideias (Cap. I, nº 3).
11. Moisés está mais conforme à verdade, quando afirma que Deus formou o homem com o limo da Terra. ([50]) Com efeito, a ciência nos mostra (Cap. X), que o corpo do homem é composto de elementos hauridos na matéria inorgânica, o que de outro modo se diz, do limo da terra.
A mulher, formada de uma costela de Adão é uma alegoria, pueril na aparência, se for tomada ao pé da letra, porém profunda no sentido. Tem por finalidade mostrar que a mulher é da mesma natureza do homem, sua igual, por conseguinte, diante de Deus, e não uma criatura à parte, feita para ser usada como escrava e tratada como se fosse uma pária. Saída de sua própria carne, a imagem da igualdade é bem mais expressiva do que se ela tivesse sido formada separadamente do mesmo limo; o sentido é dizer ao homem que ela é sua igual, e não sua escrava, que ele deve amar como parte de si mesmo.
12. Para os espíritos incultos, sem noção alguma das leis gerais, incapazes de abarcar o conjunto e de conceber o infinito, essa criação milagrosa e instantânea tinha qualquer coisa de fantástico, que feria a imaginação. O quadro do Universo tirado do nada em alguns dias, por um único ato da vontade criadora, era para eles o sinal mais evidente do poder de Deus. Que pintura, com efeito, mais sublime e mais poética de tal poder, que estas palavras: "Deus disse: Faça-se a luz, e a luz foi feita!" Deus, criando o Universo pelo desempenho lento e gradual das leis da Natureza, lhes teria parecido menor e menos poderoso; era-lhes mister algo de maravilhoso, que fugisse dos caminhos ordinários e comuns; de outro modo, teriam dito que Deus não era mais hábil que os homens. Uma teoria científica e raciocinada da criação, os teria deixado frios e indiferentes.
Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; estudemo-la, ao contrário, como se estuda a história da infância dos povos. É uma época rica de alegorias, das quais é preciso procurar o sentido oculto; ela deve ser comentada e explicada com o auxílio das luzes da razão e da ciência. Fazendo, porém, ressaltar as belezas poéticas e as instruções veladas sob a forma imaginária, é preciso demonstrar firmemente seus erros, no próprio interesse da religião. Esta será mais respeitada quando tais erros não forem impostos à fé como se fossem verdades e Deus aparecerá maior e mais poderoso, quando seu nome não for misturado a fatos controversos.
[Início do trecho pela tradução de Sandra Regina Keppler]
O Paraíso Perdido([51])
13. Capítulo II — 8. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que formara. — 9. O Senhor Deus também produzira da terra toda espécie de árvores belas à vista e cujos frutos eram agradáveis ao gosto, e a árvore da vida no meio do paraíso4, com a árvore da ciência do bem e do mal. Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (“min haadama”( toda árvore bela para se ver e boa para se comer, e a árvore da vida (“vehetz hachayim”) no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal.
15. O Senhor tomou, pois, o homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e o guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso. Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (“hal haadam”) dizendo: De toda árvore do jardim (hagan) tu podes comer. — 17. Mas não comas o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no mesmo tempo em que o comeres, morrerás muito certamente. E da árvore da ciência do bem e do mal (“oumehetz hadaat tob vara”) tu não comerás, porque no dia em que dela comeres, morrerás.
14. Capítulo III — 1. Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: Por que Deus vos ordenou que não comêsseis o fruto de todas as árvores do paraíso? E a serpente (“nâhâsch”) era mais astuta que todos os animais terrestres que Jeová Eloim fizera. Ela disse à mulher “el haïscha”: Eloim terá dito: Não comereis de nenhuma árvore do jardim? — 2. A mulher lhe respondeu: Nós comemos os frutos de todas as árvores que estão no paraíso. Ela disse, a mulher, à serpente, do fruto “miperi” das árvores do jardim podemos comer. — 3. Mas quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não o comêssemos e nele não tocássemos, receoso de que não corrêssemos perigo de morrer. — 4. A serpente replicou à mulher: Certamente não morrereis; — 5. Mas é que Deus sabe que assim que houverdes comido desse fruto, vossos olhos serão abertos e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.
6. A mulher considerou, então, que o fruto dessa árvore era bom para comer, que era belo e agradável à vista. E tomando-o, ela o comeu, e o deu a seu marido que o comeu também. Ela viu, a mulher, que era boa a árvore para alimento, e que era desejável a árvore para compreender (“leaskil”), e ela tomou de seu fruto etc.
8. E como eles ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no paraíso à tarde, quando sopra um vento suave, eles se esconderam no meio das árvores do paraíso, para se ocultarem diante de Sua face. 9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? — 10. Adão lhe respondeu: Ouvi a vossa voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, por isso me ocultei. — 11. O Senhor lhe replicou: E como soubeste que estavas nu, a menos que tivesses comido o fruto da árvore da qual eu te proibi de comer? — 12. Adão lhe respondeu: A mulher que vós me destes por companhia me apresentou o fruto dessa árvore e eu o comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto.
14. Então o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da Terra; caminharás sobre o ventre e comerás a terra todos os dias de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a raça dela e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.
16. Deus disse também à mulher: Eu te afligirei com vários males durante tua gravidez; gerarás na dor; estarás sob o jugo de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida a Adão: Por teres escutado a voz de tua mulher e teres comido do fruto da árvore que eu te proibira de comer, a Terra te será maldita por causa do que fizeste, e tirarás o teu alimento durante toda a tua vida com muito trabalho. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e tu te alimentarás da erva da terra. — 19. E comerás teu pão com o suor de teu rosto, até que retornes à terra de onde foste tirado, porque tu és pó e ao pó retornarás.
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus fez também para Adão e sua mulher roupas de peles com as quais os cobriu. — 22. E Ele disse: Eis que Adão se tornou como um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, portanto, agora, que ele ponha sua mão na árvore da vida, tome também de seu fruto e que, ao comer desse fruto, viva eternamente. Ele disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida (“veata pen ischlachyado velakach mehetz hachayim”); comerá dela e viverá eternamente.
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra de onde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins ([52]) diante do jardim de delícias, os quais faziam brilhar uma espada de fogo, para guardar o caminho que conduzia à árvore da vida.
15. Sob uma imagem pueril e, às vezes ridícula, se nos detivermos na forma, a alegoria oculta, muitas vezes, as maiores verdades. Há fábula mais absurda, à primeira vista, que a de Saturno, um deus que devorava pedras que ele tomava por seus filhos? Mas, ao mesmo tempo, quão profundamente filosófica e verdadeira essa figura, se procurarmos seu sentido moral! Saturno é a personificação do tempo; todas as coisas sendo obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe, mas também tudo se destrói com o tempo. Saturno devorando as pedras é o emblema da destruição, pelo tempo, dos corpos os mais duros que são seus filhos, visto que eles se formaram com o tempo. E quem escapa a essa destruição, segundo essa mesma alegoria? Júpiter, o emblema da inteligência superior, do princípio espiritual, que é indestrutível. Essa imagem é mesmo tão natural que, na linguagem moderna, sem alusão à fábula antiga, diz-se de uma coisa deteriorada, que ela foi devorada, roída, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã é, na realidade, apenas um vasto quadro alegórico dos diversos lados bons e maus da Humanidade. Para os que nela procuram o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, tal como ocorre nas fábulas modernas. O absurdo está em tomar a forma pelo fundo.
16. O mesmo se dá com a Gênese, na qual é preciso ver as grandes verdades morais sob figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas, como em nossas fábulas, se tomássemos literalmente as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão é a personificação da Humanidade. Sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos materiais, aos quais não sabe resistir ([53]).
A árvore, como árvore da vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência é a da consciência que o homem adquire do bem e do mal, pelo desenvolvimento de sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre os dois; marca o ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada somente pelos instintos, toma posse de sua liberdade e incorre na responsabilidade de seus atos.
O fruto da árvore é o emblema do objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; resume sob uma mesma figura os motivos de arrastamento ao mal; comer o fruto é sucumbir à tentação. Ele cresce no meio do jardim das delícias para mostrar que a sedução está no seio dos prazeres, e lembrar que se o homem dá preponderância aos prazeres materiais, ele se prenderá à Terra e se afasta de seu destino espiritual([54]).
A morte de que Adão foi ameaçado, se infringisse a proibição que lhe foi feita, é uma advertência das consequências inevitáveis, físicas e morais, que decorrem da violação das Leis Divinas que Deus gravou em sua consciência. É bem evidente que não se trata aqui da morte corporal, pois que, depois de sua falta, Adão viveu ainda por muito tempo, mas, sim, da morte espiritual, ou dito de outro modo, da perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda cuja expulsão do jardim das delícias é a imagem.
17. A serpente está longe de passar, hoje, como tipo de astúcia. Está, pois, aqui, em relação à sua forma mais que a seu caráter; uma alusão à perfídia dos maus conselhos que deslizam como a serpente e dos quais, por essa razão, muitas vezes não se desconfia. Além disso, se a serpente, por ter enganado a mulher, foi condenada a rastejar sobre o ventre, isso poderia dizer que antes possuía pernas e, então, não se trataria de uma serpente. Por que, portanto, impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, alegorias tão evidentes se, falseando seu julgamento, faz com que mais tarde, considerem a Bíblia como formada de fábulas absurdas?
É necessário destacar, por outro lado, que a palavra hebraica nâhâsch, traduzida pela palavra serpente, vem da raiz nâhâsch que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas e pode significar: encantador, adivinho. Encontra-se, com essa acepção, em Gênesis, XLIV:5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de viagem de Benjamim: “A taça que roubaste é aquela em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch)([55]). — Ignorais que não há ninguém que me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” — No livro dos Números, XXIII:23: “Não há encantamentos (nâhâsch) contra Jacó, nem adivinhos em Israel”. Por conseguinte, a palavra nâhâsch tomou também a significação de serpente, réptil que os feiticeiros pretendiam encantar, ou do qual se serviam em seus encantamentos. É apenas na versão dos Setenta — que, segundo Hutcheson, corrom-peram o texto hebreu em várias passagens — escrita em grego no segundo século antes da era cristã, que a palavra nâhâsch foi traduzida por serpente. As inexatidões dessa versão devem-se, sem dúvida, às modificações que a língua hebraica sofreu no intervalo transcorrido, pois o hebraico do tempo de Moisés era, então, uma língua morta que diferia do hebraico comum, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário distinguem do grego e do árabe modernos([56]).
É, portanto, possível que Moisés tenha entendido, por sedutor de mulher, o desejo indiscreto de conhecer as coisas ocultas suscitado pelo espírito de adivinhação, o que está de acordo com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar. E, por outro lado, com essas palavras: “Deus sabe que tão logo comerdes desse fruto, vossos olhos serão abertos e vós sereis como deuses. — Ela viu, a mulher, que era cobiçável a árvore para compreender (léaskil) e tomou de seu fruto”. Não se deve esquecer que Moisés queria proibir, aos hebreus, a arte da adivinhação, usada entre os egípcios, assim como o prova sua proibição de interrogar os mortos e o Espírito de Piton. (Ver O Céu e o Inferno, capítulo XII)
18. A passagem na qual se diz que: “O Senhor passeava pelo paraíso, à tarde, quando sopra um vento brando”, é uma imagem ingênua e pueril, que a crítica não deixou de salientar, mas ela não tem nada que deva surpreender, se nos reportarmos à ideia que os hebreus dos tempos primitivos faziam da Divindade. Para essas inteligências rudes, incapazes de conceber abstrações, Deus deveria revestir uma forma concreta e eles relacionavam tudo à Humanidade como ao único ponto conhecido. Moisés lhes falava como a crianças, por imagens sensíveis. No caso de que se trata, era a força soberana personificada, como os pagãos personificavam, sob figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias abstratas. Mais tarde, os homens despojaram a ideia da forma, tal como a criança, tornada adulto, procura o sentido moral nos contos que a embalaram. É preciso, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria da Divindade vigiando, ela mesma, os objetos de Sua criação. O grande rabino Wogue traduziu-o assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim do lado de onde vem o dia”.
19. Se a falta cometida por Adão foi, literalmente, ter comido um fruto, ela não poderia, incontestavelmente, por sua natureza quase infantil, justificar o rigor do castigo que lhe foi aplicado. Não se poderia, tampouco, racionalmente, admitir que esse seja o fato que se supõe geralmente; a menos que Deus, considerando tal fato como um crime irremissível, houvesse condenado Sua própria obra, pois havia criado o Homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido nesse sentido (a proibição de tocar no fruto da árvore e com ela ficasse escrupulosamente conformado, onde estaria a Humanidade e que teria sido dos desígnios do Criador?
Deus não criou Adão e Eva para ficarem sozinhos na Terra; e a prova está nas palavras que lhes dirigiu logo após os ter criado, no paraíso terrestre:
“Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e dominai-a” (Gênesis, I:28). Ora, sendo a multiplicação do Homem uma lei desde o paraíso terrestre, sua expulsão não pode ter por causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição é o sentimento de vergonha de que Adão e Eva se sentiram tomados diante de Deus, e que os levou a se esconderem. Mas essa mesma vergonha é uma figura de comparação: ela simboliza a confusão que todo culpado prova na presença daquele a quem ofendeu.
20. Qual é, portanto, em definitivo, essa falta tão grande que pôde atingir com a desaprovação perpétua todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo pôde defini-la com lógica, porque todos, não saindo da letra, giraram em um círculo vicioso.
Hoje, sabemos que essa falta não foi um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que ela compreende, sob um fato alegórico único, o conjunto das prevaricações que pode tornar culpada a Humanidade ainda imperfeita, da Terra, e que se resumem nestas palavras: infração da lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro Homem, o qual simboliza a Humanidade, é o símbolo, ela mesma, de um ato de desobediência.
21. Ao dizer a Adão que ele tirará seu alimento da terra, com o suor do rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho, mas por que faz do trabalho uma punição? O que seria da inteligência do Homem se não a desenvolvesse pelo trabalho? O que seria da terra, se não fosse fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente do Homem?
Está dito (Gênesis, II:5 e 7): “O Senhor Deus não tinha ainda feito chover sobre a Terra, e não havia ainda o homem para trabalhá-la. O Senhor formou, portanto, o homem do limo da terra”. Tais palavras aproximadas a estas: Enchei a Terra, provam que o Homem era, desde sua origem, destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la; e, por outro lado, que o paraíso não era um lugar circunscrito a um canto do globo. Se a cultura da Terra devia ser uma consequência da falta de Adão, daí resultaria que, se ele não tivesse pecado, a Terra ficaria inculta e que os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por que diz Ele à mulher que, em virtude de ter cometido a falta, daria à luz com dor? Como a dor do parto pode ser um castigo, pois que é uma consequência do organismo, e que está fisiologicamente provado que é necessária? Como algo segundo as leis da Natureza pode ser uma punição? É o que os teólogos não explicaram ainda, e o que eles não poderão fazê-lo enquanto não saírem do ponto de vista em que se colocaram. E, no entanto, essas palavras, que parecem tão contraditórias, podem ser justificadas.
22. Observemos inicialmente que, se no momento da criação de Adão e de Eva, suas almas tivessem sido tiradas do nada, como se ensina, deviam ser noviços em todas as coisas. Eles não deviam saber o que é morrer. Visto que estavam sós na Terra enquanto viveram no paraíso terrestre, eles não teriam visto ninguém morrer. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como Eva poderia compreender que dar à luz com dor seria uma punição, pois, acabando de nascer para a vida, jamais tivera filhos, e era a única mulher no mundo?
As palavras de Deus não deveriam, portanto, ter para Adão e Eva nenhum sentido. Apenas tirados do nada, eles não deviam saber nem por que nem como dele tinham saído. Eles não podiam compreender nem o Criador nem a finalidade da proibição que lhes fazia. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como as crianças que agem sem discernimento, o que torna mais incompreensível ainda a terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a Humanidade inteira.
23. O que é um impasse para a Teologia, o Espiritismo explica-o sem dificuldade, e de maneira racional, pela anterioridade da alma e a pluralidade de existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida do Homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva tenham já vivido, tudo se encontra justificado: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, outrossim, que eles tenham habitado em um mundo mais avançado e menos material que o nosso, onde o trabalho do Espírito supria o do corpo; que por sua rebelião à lei de Deus, figurada pela desobediência, eles foram excluídos e exilados como punição para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, está sujeito a uma atividade corporal; Deus teria razão em lhes dizer: No mundo em que ides viver de hoje em diante “cultivareis a terra e dela tirareis vosso alimento com o suor de vosso rosto” ; e à mulher: “Darás à luz com dor” , porque tal é a condição desse mundo. (capítulo XI, no 31 e subsequentes).
O paraíso terrestre, do qual inutilmente se procuraram os traços na Terra, era, portanto, a figura do mundo feliz em que Adão vivia ou, antes, a raça dos Espíritos de que ele é a personificação. A expulsão do paraíso marca o momento em que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes deste mundo e a mudança de situação que se seguiu. O anjo armado de uma espada flamejante, que defende a entrada do paraíso, simboliza a impossibilidade em que estão os Espíritos dos orbes inferiores, de penetrar nos mundos superiores antes de terem merecido por sua depuração. (Ver a seguir o capítulo XIV, no 8 e subsequentes.)
24. Caim (após a morte de Abel) respondeu ao Senhor: Minha iniquidade é muito grande para poder obter perdão. — Vós me expulsais hoje de cima da Terra, e eu me ocultarei de vossa face. Serei fugitivo e vagabundo pela Terra, até quando, então, encontre alguém que me mate. — O Senhor lhe respondeu: Não, isto não acontecerá; porque qualquer um que matar Caim será punido muito severamente. E o Senhor colocou um sinal sobre Caim a fim de que os que o encon-trassem não o matassem.
Caim, tendo se retirado da face do Senhor, foi vagabundear sobre a Terra e habitou a região oriental do Éden. — E tendo conhecido sua mulher, ela concebeu e deu à luz Henoch. Ele construiu (“vaïehi bôné”, literalmente: ele estava construindo) uma cidade que chamou Henoch (Enoquia) do nome de seu filho. (Gênesis, IV:13 a 16)
25. Se nos prendermos à letra de Gênesis, eis a que consequências chegaremos: Adão e Eva estavam sozinhos no mundo após sua expulsão do paraíso terrestre; é somente depois que eles tiveram por filhos Caim e Abel. Ora, Caim, tendo matado seu irmão, retira-se para outra região, não viu novamente seu pai e sua mãe, que ficaram de novo sozinhos. Não é senão depois de muito tempo, na idade de 130 anos, que Adão teve um terceiro filho, chamado Seth. Após o nascimento de Seth, Adão viveu ainda, segundo a genealogia bíblica, 80 anos, e teve filhos e filhas.
Quando Caim veio se estabelecer ao oriente do Éden, havia, portanto, na Terra apenas três pessoas: seu pai, sua mãe e ele, sozinho de seu lado. No entanto, teve mulher e filho. Quem poderia ser essa mulher e onde poderia tê-la tomado? O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade e não ele construiu, o que indica uma ação presente e não ulterior; mas uma cidade supõe habitantes, visto que não é de presumir que Caim a fez para ele, sua mulher e seu filho, nem que ele pudesse construí-la sozinho.
É necessário, portanto, inferir dessa narrativa que a região era povoada. Ora, não poderia ser pelos descendentes de Adão, que então não eram outros além de Caim.
A presença de outros habitantes ressalta, igualmente, desta fala de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre me matará”, e da resposta que Deus lhe deu. Por quem poderia temer ser morto, e para que o sinal que Deus colocou sobre ele para preservá-lo, se não iria encontrar ninguém? Se, portanto, houvesse na Terra outros homens além da família de Adão, é porque aí já estavam antes dele; de onde esta consequência, tirada do texto mesmo de Gênesis: “Adão não é nem o primeiro nem o único pai do gênero humano”. (capítulo XI, no 34)([57])
26. Foram necessários os conhecimentos que o Espiritismo trouxe para lançar luz sobre as relações do princípio espiritual com o princípio material, sobre a natureza da alma, sua criação no estado de simplicidade e de ignorância, sua união com o corpo, sua marcha progressiva indefinida por meio das existências sucessivas, e pelos mundos que são, igualmente, degraus na via do aperfeiçoamento, sua libertação gradual da influência da matéria pelo uso de seu livre-arbítrio, a causa de suas tendências boas ou más e de suas aptidões, o fenômeno do nascimento e da morte, o estado do Espírito na erraticidade, enfim, o porvir que é o prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua perseverança no Bem, para lançar luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o Homem sabe, de agora em diante, de onde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Ele sabe que seu futuro está em suas mãos, e que a duração de seu cativeiro aqui neste mundo depende dele. A Gênese, livre da alegoria estreita e mesquinha, aparece-lhe grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada sob esse ponto de vista, a Gênese confundirá a incredulidade e a vencerá.
[Fim do trecho pela tradução de Sandra Regina Keppler]
Os milagres no sentido teológico — O Espiritismo não faz milagres — Deus faz milagres? O sobrenatural e os Milagres
Os Milagres no Sentido Teológico
1. Em sua acepção etimológica, a palavra milagre (de "mirari", admirar), significa: admirável, coisa extraordinária, surpreendente. A Academia Francesa definiu essa palavra: Um ato do poder divino contrário às leis conhecidas da natureza.
Em sua acepção usual, essa palavra perdeu, como tantas outras, sua significação primitiva. De geral que era, foi restringida a uma ordem particular de fatos. No pensamento das massas, um milagre implica a ideia de um fato sobrenatural; no sentido teológico, é uma derrogação das leis da natureza, pela qual Deus manifesta seu poder. Tal é com efeito sua acepção vulgar, reduzida ao sentido próprio, e não é senão por comparação e por metáfora, que ele é aplicado às circunstâncias comuns da vida.
Um dos caracteres do milagre propriamente dito, é de ser inexplicável, pelo próprio fato de que ele se realiza fora das leis naturais; é tanto essa a ideia que se lhe associa, que se um fato miraculoso chega a ser explicado, diz-se que não é mais um milagre, por mais espantoso que seja. Para a Igreja, o que dá valor aos milagres é precisamente sua origem sobrenatural, e a impossibilidade de explicá-los; ela se fixa tão bem sobre este ponto, que toda assimilação dos milagres aos fenômenos da natureza é taxada de heresia, de atentado contra a fé; e isso a tal ponto, que ela tem excomungado e mesmo queimado pessoas por não terem crido em certos milagres.
Um outro caráter do milagre, é o de ser insólito, isolado e excepcional; do momento em que um fenômeno se reproduz, seja espontaneamente, seja por um ato da vontade, é que ele é submetido a uma lei, e desde então quer essa lei seja ou não conhecida, o fato não pode ser um milagre.
2. A ciência faz diariamente milagres, aos olhos dos ignorantes. Que um homem realmente morto seja retornado à vida por uma intervenção divina, será um verdadeiro milagre, pois trata-se de um fato contrário às leis da Natureza. Porém se esse homem não tem senão as aparências de estar morto, se há nele ainda um resto de vitalidade latente, e que a ciência, ou uma ação magnética, consiga reanimá-lo, para as pessoas esclarecidas será um fenômeno natural, mas aos olhos do vulgo ignorante, o fato passará por miraculoso. Se um físico lançar um papagaio elétrico no meio de certas campinas e fizer cair o raio sobre uma árvore, este novo Prometeu será certamente considerado como sendo armado de um poder diabólico; porém Josué detendo o movimento do Sol, ou, antes, da Terra, — admitindo o fato — eis um verdadeiro milagre, pois não existe nenhum magnetizador dotado de um poder bastante grande para operar tal prodígio.
Os séculos de ignorância foram fecundos em milagres, porque tudo aquilo cuja causa era desconhecida, passava por sobrenatural. À medida que a ciência revelou novas leis, o círculo do maravilhoso se restringiu; porém, como ela ainda não havia explorado todo o campo na Natureza, ainda restava terreno bastante grande para o maravilhoso.
3. O maravilhoso, expulso do domínio da materialidade pela ciência, encastelou-se no domínio da espiritualidade, que foi seu derradeiro refúgio. O Espiritismo, demonstrando que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, força essa que incessantemente age em conjunto com a força material, faz voltar os fenômenos que dele haviam saído, ao círculo dos feitos naturais, pois que, como os de mais, são submetidos a leis. Se o maravilhoso é expulso da espiritualidade não terá mais razão de ser, e só então é que se poderá dizer que o tempo dos milagres passou. (Cap. I, nº 18).
O Espiritismo Não Faz Milagres
4. O Espiritismo, pois, vem a seu turno realizar aquilo que cada ciência faz em sua chegada: revelar novas leis, e explicar, por conseguinte, os fenômenos que derivam dessas leis.
Esses fenômenos, é certo, se prendem à existência dos Espíritos e à sua intervenção no mundo material; ora, dizem que isso é sobrenatural. Mas, então, teria sido necessário provar que os Espíritos e suas manifestações são contrários às leis da Natureza; que aí não há, nem pode haver, uma de suas leis.
O Espírito nada mais é senão a alma que sobreviveu ao corpo; é o ser principal, pois, não morre, ao passo que o corpo não é senão um acessório que se destrói. Sua existência, portanto, é também natural, tanto depois quanto durante a encarnação; ela é submetida às leis que regem o princípio espiritual como o corpo é submetido às que regem o princípio material; porém como esses dois princípios têm uma afinidade necessária, e reagem incessantemente um sobre o outro, e de sua ação simultânea resultam o movimento e a harmonia do conjunto, segue-se que a espiritualidade e a materialidade são as duas partes de um mesmo todo, tão naturais uma quanto a outra, e que a primeira não é uma exceção, uma anomalia na ordem das coisas.
5. Durante sua encarnação, o Espírito age sobre a matéria por intermédio de seu corpo fluídico ou perispírito; o mesmo sucede fora da encarnação. Como Espírito, e na medida de suas capacidades, ele faz o que fazia como homem; somente, como não tem mais seu corpo carnal como instrumento, serve-se, quando tal é necessário, dos órgãos materiais de um encarnado, que é chamado médium. Faz como alguém que, não podendo escrever, ele mesmo, serve-se da mão de um secretário; ou que, não sabendo uma língua, serve-se de um intérprete. Um secretário, um intérprete, são os médiuns de um encarnado, como o médium é o secretário ou o intérprete de um Espírito.
6. O ambiente no qual atuam os Espíritos e os meios de execução não são mais os mesmos que no estado de encarnação, e por isso os efeitos são diferentes. Tais efeitos não parecem ser sobrenaturais senão porque são produzidos com o auxílio de agentes que não são aqueles dos quais nos servimos; porém, desde o instante em que tais agentes existem na Natureza, e que os fatos de manifestações se realizam em virtude de certas leis, nada há de sobrenatural nem de maravilhoso. Antes de conhecer as propriedades da eletricidade, os fenômenos elétricos passavam como prodígios, aos olhos de certas pessoas; logo que a causa foi conhecida, o maravilhoso desapareceu. O mesmo sucede com os fenômenos espíritas, que não saem mais da ordem das leis naturais que os fenômenos elétricos, acústicos, luminosos e outros, que foram a fonte de uma quantidade de crenças supersticiosas.
7. Entretanto, alguém poderá dizer: admitis que um Espírito possa levantar uma mesa e mantê-la no espaço sem ponto de apoio; isso não é uma derrogação da lei da gravidade? — Sim, da lei conhecida; porém, conhecemos todas as leis? Antes que fosse experimentada a força ascensional de certos gases, quem teria dito que uma pesada máquina, conduzindo diversos homens, pudesse triunfar da força de atração? Aos olhos do vulgo, tal não pareceria maravilhoso, diabólico? Aquele que há um século propusesse transmitir uma mensagem a uma distância de cinquenta léguas e receber sua resposta em alguns minutos, teria passado por louco; se ele o houvesse feito, seria de se acreditar que tivesse o diabo às suas ordens, pois naquela época só o diabo seria capaz de ir tão depressa; entretanto, hoje a coisa é não somente reconhecida como possível, mas também parece ser inteiramente natural. Por que, pois, um fluido desconhecido não teria a propriedade, em circunstâncias dadas, de contrabalançar o efeito da gravidade, como o hidrogênio contrabalança o peso no balão? É efetivamente o que sucede no caso de que estamos tratando, (O Livro dos Médiuns, capítulo IV).
8. Estando os fenômenos espíritas presentes entre as leis da natureza, produziram-se em todos os tempos; porém precisamente porque seu estudo não se podia fazer pelos meios materiais disponíveis pela ciência vulgar, ficaram por mais tempo que outros no domínio do sobrenatural, de onde o Espiritismo os faz sair hoje.
O sobrenatural, baseado em aparências inexplicadas, deixa livre curso à imaginação, a qual, errante no desconhecido, gera as crenças supersticiosas. Uma explicação racional, fundada sobre as leis da Natureza, reconduz o homem ao terreno da realidade, coloca um ponto de parada aos desvarios da imaginação, e destrói as superstições. Longe de estender o domínio do sobrenatural, o Espiritismo o restringe até os últimos limites e lhe arrebata seu último refúgio. Se faz crer na possibilidade de certos fatos, impede que se acredite em muitos outros, porque demonstra, no círculo da espiritualidade, tal como a ciência no círculo da materialidade, o que é possível e o que não o é. Todavia, como o Espiritismo não tem a pretensão de dar a última palavra sobre todas as coisas, mesmo sobre aquelas que são de sua competência, não se dá a posição de regulador absoluto do possível, e deixa de lado os conhecimentos reservados ao futuro.
9. Os fenômenos espíritas consistem nos diferentes modos de manifestação da alma ou Espírito, seja durante a encarnação, seja no estado de erraticidade. É através de suas manifestações que a alma revela sua existência, sua sobrevivência e sua individualidade; ela é julgada por seus efeitos; a causa sendo natural, o efeito igualmente o é. São tais efeitos que constituem o objeto especial das pesquisas e do estudo do Espiritismo, a fim de chegar ao conhecimento tão completo quanto possível da natureza e dos atributos da alma assim como das leis que regem o princípio espiritual.
10. Para aqueles que negam a existência do princípio espiritual independente, e por conseguinte o da alma individual e sobrevivente, toda a natureza está na matéria tangível; todos os fenômenos que se ligam à espiritualidade, são a seus olhos sobrenaturais, e por conseguinte, quiméricos; não admitindo a causa, não podem admitir o efeito; e quando os efeitos são patentes, eles os atribuem à imaginação, à ilusão, à alucinação, e recusam aprofundá-los; daí, entre tais pessoas, se encontra uma opinião preconcebida que os torna impróprios ao são julgamento do Espiritismo, pois que partem do princípio da negação de tudo quanto não seja material.
11. Do fato, porém, de que o Espiritismo admite os efeitos que são consequências da existência da alma, não se segue que aceite todos os efeitos qualificados como maravilhosos, e que se proponha a justificá-los e dar-lhes foros de verdade; que ele se faça o campeão de todos os sonhadores, de todas as utopias, de todas as excentricidades sistemáticas, de todas as lendas miraculosas; seria necessário conhecê-lo muito pouco, para pensar assim. Seus adversários supõem opor-lhe um argumento sem réplica quando, depois de haver realizado eruditas pesquisas sobre os convulsionários de Saint-Médard, sobre os fanáticos das Cevenas, ou as religiosas de Loudun, chegaram a descobrir fatos evidentes de embuste, que ninguém contesta; porém, tais histórias, serão o evangelho do Espiritismo? Seus partidários terão negado que o charlatanismo haja explorado certos fatos em seu proveito? Que o fanatismo os haja exagerado muito? Ele não é solidário com as extravagâncias que podem ser cometidas em seu nome, assim como a ciência verdadeira não compactua com os abusos da ignorância, nem a verdadeira religião, com os excessos do fanatismo. Muitos críticos não opinam sobre o Espiritismo, senão baseados em contos de fadas e nas lendas populares que constituem suas ficções; o mesmo seria julgar a História pelos romances ou tragédias que se escrevem sobre assuntos históricos.
12. Os fenômenos espíritas são espontâneos, na maior parte dos casos, e produzem-se nem nenhuma ideia preconcebida, com pessoas que menos os esperam; em certas circunstâncias, há fenômenos que podem ser provocados por agentes designados sob o nome de médiuns; no primeiro caso, o médium é inconsciente do que se produz por seu intermédio; no segundo, age com conhecimento de causa: daí a distinção dos médiuns conscientes e médiuns inconscientes. Estes últimos são os mais numerosos e são encontrados frequentemente entre os mais obstinados incrédulos, que assim tomam parte no Espiritismo sem o saber e sem o querer. Os fenômenos espontâneos, por isso mesmo, têm uma importância capital, pois não se pode duvidar da boa fé das pessoas que os obtêm. Dá-se aqui o que se dá com o sonambulismo que, com certos indivíduos, é natural e involuntário, e com outros, provocado pela ação magnética. ([58])
Porém, quer estes fenômenos sejam ou não o resultado de um ato da vontade, a causa primária é sempre a mesma e em nada se afasta das leis naturais. Os médiuns não produzem absolutamente nada de sobrenatural; por conseguinte, não fazem nenhum milagre; as próprias curas imediatas não são mais miraculosas do que os outros efeitos, pois elas são devidas à ação de um agente fluídico que faz o papel de agente terapêutico, cujas propriedades não são menos naturais por terem sido desconhecidas até agora. O epiteto de taumaturgos, dado a certos médiuns pela crítica ignorante dos princípios do Espiritismo é, pois, inteiramente impróprio. A qualificação de milagres, dada, por comparação, a estas espécies de fenômenos, somente pode induzir em erro sobre o verdadeiro caráter deles.
13. A intervenção de inteligências ocultas nos fenômenos espíritas não os torna mais miraculosos que todos os demais fenômenos devidos a agentes invisíveis, pois esses seres ocultos que povoam os espaços são uma das potências da natureza, potência cuja ação é incessante sobre o mundo material como sobre o mundo moral.
O Espiritismo, esclarecendo-nos acerca desse poder, nos dá a chave de uma multidão de coisas inexplicadas, e inexplicáveis por quaisquer outros meios e que, em tempos recuados, puderam passar por prodígios; de modo semelhante ao magnetismo, ele revela uma lei, senão desconhecida, pelo menos mal compreendida; ou, dizendo melhor, conhecem-se os efeitos, pois são produzidos em todos os tempos, mas não se conhecia a lei; e a ignorância dessa lei é que engendrou a superstição. Conhecida essa lei, o maravilhoso desaparece e os fenômenos voltam à ordem das coisas naturais. Eis porque os Espíritos tanto fazem um milagre quando fazem girar uma mesa ou fazem os mortos escreverem, quanto o médico faz que um moribundo reviva, ou o físico quando faz cair um raio. Aquele que pretendesse, com o auxílio dessa ciência, fazer milagres, ou seria um ignorante do assunto, ou um charlatão.
14. Pois que o Espiritismo repudia toda pretensão às coisas milagrosas, haveria fora ele milagres na acepção usual da palavra?
Digamos para começar que entre os fatos considerados como milagrosos, os quais sucederam antes do advento do Espiritismo, e que ainda se passam em nossos dias, a maior parte, senão todos, encontram explicação nas leis novas
que ele veio revelar; tais fatos, pois, retornam à ordem dos fenômenos espíritas, embora sob outro nome, e como tais, nada têm de sobrenatural. Fique, porém, bem entendido que aqui não se trata senão de fatos autênticos, e não de casos que, sob o nome de milagres, são o produto de uma indigna sutileza, executada com o objetivo de explorar a credulidade; tampouco nos referimos a certos fatos legendários que, em sua origem, podem ter tido um fundo de verdade, mas que a superstição ampliou até o absurdo. É sobre tais fatos que o Espiritismo vem lançar a luz, proporcionando os meios de fazer distinção entre o erro e a verdade.
Deus Faz Milagres?
15. Quanto aos milagres propriamente ditos, desde que nada é impossível a Deus, ele os pode sem dúvida fazer; mas ele os tem feito? Em outros termos: ele derroga as leis que estabeleceu? Não compete ao homem prejulgar os atos da Divindade e os subordinar à fraqueza de seu entendimento; entretanto, em face das coisas divinas, temos, para critério de nosso juízo, os próprios atributos de Deus. Ao soberano poder ele junta a soberana sabedoria, e daí se deve concluir que nada faz de inútil.
Por que, então faria milagres? Para provar seu poder, dizem; mas o poder de Deus não se manifesta de maneira muito mais potente, pelo conjunto grandioso das obras da criação, pela sabedoria previdente que a preside nas suas partes ínfimas, bem como nas maiores? Pela harmonia das leis que regem o Universo? Não é isso superior a algumas e pueris derrogações, que todos os prestidigitadores sabem imitar? Que diríamos de um perito mecânico que, a fim de provar sua habilidade desmantelasse um relógio construído com suas mãos, obra-prima da ciência, somente para mostrar que pode desfazer o que fez? Seu saber não se manifesta, ao contrário, pela regularidade e pela exatidão do seu movimento?
A questão dos milagres propriamente ditos não é, pois, da alçada do Espiritismo; porém, apoiando-nos no raciocínio de que Deus nada faz de inútil, ele emite esta opinião: Os milagres não são necessários para a glória de Deus; nada no Universo se afasta das leis gerais. Deus não faz milagres, porque, sendo suas leis perfeitas, ele não tem necessidade de as derrogar. Se se trata de fatos que não compreendemos, é que ainda nos faltam os conhecimentos necessários.
16. Admitindo que, por motivos que não podemos apreciar, Deus pudesse derrogar acidentalmente as leis que estabeleceu, tais leis já não seriam imutáveis; porém, pelo menos é racional pensar que somente ele tem tal poder; não se poderá admitir, sem lhe negar o atributo de onipotência, que ele haja dado ao Espírito do mal o poder de desfazer a obra divina, praticando por seu lado prodígios para seduzir mesmo os efeitos, o que implicaria a ideia de um poder igual ao seu; no entanto, é isso o que nos ensinam. Se Satanás tem o poder de interromper o curso das leis naturais, que são obra divina, sem permissão de Deus, é mais poderoso que Deus: então, Deus não terá a onipotência; se Deus lhe delega tal poder, como pretendem, para induzir mais facilmente os homens ao mal, Deus não possui a soberana bondade. Num e noutro caso, é a negação de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus.
Daí vem a Igreja distinguir os bons milagres, que vêm de Deus, dos maus milagres que vêm de Satanás: porém, como estabelecer a diferença? Que um milagre seja satânico ou divino, não será menos uma derrogação das leis que unicamente emanam de Deus; se um indivíduo é curado por um meio do qual se diga ser milagroso, quer tenha sido feito por Deus ou por Satanás, nem por isso ele estará menos curado. Será preciso ter uma ideia bem pobre da inteligência humana, para esperar que doutrinas semelhantes possam ser aceitas em nossos dias.
A possibilidade de certos fatos considerados como miraculosos, é reconhecida; deve-se concluir deles que, qualquer que seja a fonte que se lhes atribui, trata-se de efeitos naturais dos quais podem usar, tanto Espíritos, como encarnados, como de tudo, como de sua própria inteligência e de seus conhecimentos científicos, para o bem ou para o mal, segundo sua bondade ou sua perversidade. Um ser perverso, pondo seu saber em ação pode, pois, fazer coisas que passam por prodígios aos olhos dos ignorantes; porém, quando tais efeitos têm com resultado um bem qualquer, seria ilógico atribuir-lhes uma origem diabólica.
17. Porém, dizem, a religião se apoia em fatos que não serão explicados, nem são explicáveis. Inexplicados, podem ser; inexplicáveis, é outra questão. Sem falar do milagre da criação, o maior de todos, sem contradita, e que hoje voltou ao domínio da lei universal, já não se veem, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, se reproduzirem os êxtases, as visões, as aparições, a visão à distância, as curas instantâneas, as levitações, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, considerados outrora como maravilhosos, e demonstrados hoje como pertencentes à ordem das coisas naturais, e conforme à lei constitutiva dos seres? Os livros sagrados estão cheios de fatos desse gênero, qualificados como sobrenaturais; porém, como os mesmos são encontrados, análogos e mais maravilhosos ainda, em todas as religiões pagãs da antiguidade, se a verdade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, já não seria possível saber qual delas devesse prevalecer.
O Sobrenatural e as Religiões
18. Pretender que o sobrenatural seja o fundamento necessário de todas as religiões, que ele é o fecho de abóbada do edifício cristão, é sustentar uma tese perigosa; se fizermos repousar as verdades do cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dar-lhe-emos um apoio frágil, cujas pedras se soltam a cada dia. Esta tese, da qual eminentes teólogos se tornaram defensores, conduz diretamente a esta conclusão de que, num tempo dado, não haverá religião possível, nem mesmo a religião cristã, caso se demonstre ser natural aquilo que se considera como sobrenatural; pois, por muito que se acumulem os argumentos, não se conseguirá mais manter a crença de que um fato seja milagroso, quando tiver sido provado que não o é; ora, a prova de que um fato não seja uma exceção nas leis naturais, é quando ele pode ser explicado pelas mesmas leis, e que, podendo se reproduzir por intermédio de um indivíduo qualquer, cessa de ser o privilégio dos santos. Não é que o sobrenatural seja necessário às religiões, mas sim o princípio espiritual, que erradamente se confunde com o maravilhoso, e sem o qual não há religião possível.
O Espiritismo considera a religião cristã sob ponto de vista mais elevado; dá-lhe base mais sólida que os milagres, que são as leis imutáveis de Deus, as quais regem o princípio espiritual, assim como o princípio material; essa base desafia o tempo e a ciência porque o tempo e a ciência virão sancioná-la.
Deus não é menos digno de nossa admiração, de nosso reconhecimento, de nosso respeito, por não ter derrogado suas leis, grandes sobretudo por sua imutabilidade. Não há necessidade do sobrenatural para render a Deus o culto que lhe é devido; a natureza não é bastante imponente por si mesma, que ainda seja necessário acrescentar qualquer coisa para provar o poder supremo? A religião encontrará tanto menos incrédulos, quanto seja ela sancionada pela razão em todos seus ângulos. O cristianismo nada tem a perder com esta sanção; ao contrário, só tem a ganhar. Se alguma coisa o tem prejudicado na opinião de certas pessoas, é exatamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural.
19. Se tomarmos a palavra milagre no seu sentido etimológico, no sentido de coisa admirável, temos sem cessar milagres sob nossos olhos; nós os aspiramos no ar e os calcamos aos pés pois tudo é milagre na natureza.
Querem dar ao povo, aos ignorantes, aos pobres de espírito, uma ideia do poder de Deus? Será preciso mostrá-la na sabedoria infinita que a tudo preside, no admirável organismo de tudo quanto vive, na frutificação das plantas, na adequação de todas as partes de cada ser às suas necessidades, segundo o meio no qual é chamado a viver; será preciso lhes mostrar a ação de Deus no caule da erva, na flor que se abre ao Sol que a tudo vivifica; será preciso mostrar sua bondade na solicitude por todas as criaturas, por ínfimas que pareçam ser; sua previdência na razão de ser de cada coisa, das quais nenhuma é inútil, no bem que sai sempre do mal aparente e momentâneo. Fazei com que compreendam sobretudo que o mal é obra dos homens e não de Deus; não procurareis assustá-los com o quadro das chamas eternas, nas quais acabam por não acreditar e que lhes faz duvidar da bondade de Deus; porém encorajai-os pela certeza de poderem se resgatar um dia e reparar o mal que terão feito; mostrai-lhes as descobertas da ciência como a revelação das leis divinas, e não como obra de Satanás; ensinai-lhes, enfim, a ler no livro da natureza, sem cessar aberto diante deles; neste livro inesgotável no qual a sabedoria e a bondade do Criador estão inscritas em cada página; então compreenderão que um Ser tão grande, ocupando-se de tudo, velando por tudo, a tudo prevendo, deve ser soberanamente poderoso. O trabalhador o verá quando traça seu sulco na terra, e o desafortunado o abençoará em suas aflições, pois a si mesmo dirá: se sou desgraçado, é por minha culpa. Então, os homens serão verdadeiramente religiosos, racionalmente religiosos, sobretudo, bem melhores do que se acreditassem em pedras que suam sangue ou em estátuas que piscam os olhos e derramam lágrimas.(·)
I. Natureza e propriedades dos fluidos: Elementos fluídicos — Formação e propriedades do perispírito — Ação dos Espíritos sobre os fluidos; criações fluídicas; fotografia do pensamento — Qualidade dos fluidos
II. Explicação de alguns fenômenos considerados sobrenaturais: Vista espiritual ou psíquica; vista dupla, sonambulismo — Sonhos — Catalepsia; ressurreições — Curas — Aparições; transfigurações — Manifestações físicas; Mediunidade — Obsessões e possessões
Natureza e Propriedades dos Fluidos
Elementos Fluídicos
1. A ciência deu a chave dos milagres que mais particularmente derivam do elemento material, seja explicando-os, seja demonstrando sua impossibilidade, segundo as leis que regem a matéria; porém, os fenômenos nos quais o elemento espiritual tem parte preponderante, não podendo ser explicados unicamente pelas leis da matéria, escapam às investigações da ciência: é por isso que eles têm, mais que outros, os caracteres aparentes do maravilhoso. É pois nas leis que regem a vida espiritual que se pode encontrar a chave dos milagres dessa categoria.
2. O fluido cósmico universal, como já foi demonstrado, é a matéria elementar primitiva, da qual as modificações e transformações constituem a inumerável variedade dos corpos da natureza (Cap. X). Como princípio elementar universal, oferece dois estados distintos: o de eterização ou de imponderabilidade, que se pode considerar como estado normal primitivo, e o de materialização ou de ponderabilidade, que é, de certa maneira, consecutivo àquele. O ponto intermediário é o da transformação do fluido em matéria tangível; porém, ainda neste assunto, não há transição brusca, pois pode-se considerar nossos fluidos imponderáveis como um termo médio entre os dois estados (Cap. VI, ns. 10 e seguintes).
Cada um desses estados necessariamente dá lugar a fenômenos especiais: ao segundo pertencem os do mundo visível, e ao primeiro os do mundo invisível. Uns, chamados fenômenos materiais, são da alçada da ciência propriamente dita; os outros, qualificados de fenômenos espirituais ou psíquicos, pois que se ligam especialmente à existência dos Espíritos, estão na atribuição do Espiritismo; porém, como a vida espiritual e a vida corporal estão em incessante contato, os fenômenos dessas duas ordens se apresentam frequentemente ao mesmo tempo. O homem, no estado encarnado não pode ter a percepção senão dos fenômenos psíquicos que se ligam à vida corporal; os que são do domínio exclusivo da vida espiritual escapam a seus sentidos materiais, e não podem ser percebidos senão no estado de Espírito. ([59])
3. No estado de eterização, o fluido cósmico não é uniforme; sem cessar de ser etéreo, passa por modificações tão variadas em seu gênero, e mais numerosas talvez, do que no estado de matéria tangível. Tais modificações constituem fluidos distintos que, se bem sejam procedentes do mesmo princípio, são dotados de propriedades especiais, e dão lugar aos fenômenos particulares do mundo invisível.
Uma vez que tudo é relativo, esses fluidos têm para os Espíritos, que em si mesmo são fluídicos, uma aparência material quanto a dos objetos tangíveis para os encarnados, e são para eles o que para nós são as substâncias do mundo terrestre; eles as elaboram, as combinam para produzir efeitos determinados como o fazem os homens com seus materiais, embora usando processos diferentes.
Porém ali, como aqui em baixo, não é dado a todos os Espíritos compreender o papel dos elementos constitutivos de seu mundo — apenas aos mais esclarecidos. Os ignorantes do mundo invisível são também incapazes de explicar a si mesmos os fenômenos dos quais são testemunhas, e aos quais concorrem frequentemente de modo maquinal, assim como os ignorantes da terra o são de explicar os efeitos da luz ou da eletricidade ou de dizer como os veem e ouvem.
4. Os elementos fluídicos do mundo espiritual escapam a nossos instrumentos de análise e à percepção de nossos sentidos, feitos para a matéria tangível e não para a matéria etérea. Parte deles pertence a um meio de tal modo diferente do nosso, que não podemos apreciá-los senão através de comparações tão imperfeitas quanto as que permitissem a um cego de nascença procurar fazer para si uma ideia da teoria das cores.
Porém de tais fluidos, alguns são intimamente ligados à vida corporal, e de alguma maneira pertencem ao meio terrestre. Não sendo possível sua percepção direta, podem-se observar seus efeitos, tal como se podem observar os do fluido do imã, embora não seja visível; pode-se mesmo adquirir sobre sua natureza conhecimentos de certa exatidão. Esse estudo é essencial, pois é a chave de uma quantidade de fenômenos inexplicáveis unicamente pelas leis da matéria.
5. O ponto de partida do fluido universal é o grau de pureza absoluta, do qual nada pode dar uma ideia; o ponto oposto é a sua transformação em matéria tangível. Entre os dois extremos, existem inúmeras transformações, as quais se aproximam mais ou menos de uma ou de outra. Os fluidos mais próximos da materialidade, e por conseguinte os menos puros, compõem aquilo que se pode chamar atmosfera espiritual terrestre. É nesse meio, onde se encontram igualmente diferentes graus de pureza, que os Espíritos encarnados ou desencarnados da terra extraem os elementos necessários à economia de sua existência. Esses fluidos, embora sutis e impalpáveis para nós, não deixam de ser de natureza grosseira, em comparação aos fluidos etéreos das regiões superiores.
O mesmo acontece na superfície de todos os mundos, ressalvadas as diferenças de constituição e as condições de vitalidade próprias a cada um. Quanto menos a vida ali for material, menos os fluidos espirituais terão afinidade com a matéria propriamente dita.
A qualificação de fluidos espirituais não é rigorosamente exata, pois que, em definitivo, trata-se sempre de matéria mais ou menos quintessenciada. Nada há de realmente espiritual senão a alma ou princípio inteligente. Eles são assim designados por comparação, e sobretudo em razão de sua afinidade com os Espíritos. Pode-se dizer que é a matéria do mundo espiritual: é por isso que são chamados fluidos espirituais.
6. Quem conhece, aliás, a constituição íntima da matéria tangível? Talvez ela não seja compacta, senão em relação a nossos sentidos, o que seria provado com a facilidade com que ela é atravessada pelos fluidos espirituais e pelos Espíritos, aos quais ela não opõe mais obstáculo que os corpos transparentes em relação à luz.
A matéria tangível, tendo por elemento primitivo o fluido cósmico etéreo, ao desagregar-se, deve poder voltar ao estado de eterização, assim como o diamante, o mais duro dos corpos, pode volatilizar-se num gás impalpável. A solidificação da matéria, na realidade, não passa de um estado transitório do fluido universal, o qual pode voltar ao seu estado primitivo quando as condições de coesão cessam de existir.
Quem sabe mesmo se, no estado de tangibilidade, a matéria não é suscetível de adquirir uma espécie de eterização que lhe confira propriedades particulares? Certos fenômenos, que parecem ser autênticos, tenderiam a tal suposição. Ainda não possuímos senão as balizas do mundo invisível, e o futuro nos reserva sem dúvida o conhecimento de novas leis que nos permitirão compreender o que para nós ainda é um mistério.
Formação e Propriedade do Perispírito
7. O perispírito, ou corpo fluídico dos Espíritos, é um dos produtos mais importantes do fluido cósmico; é uma condensação desse fluido em torno de um foco de inteligência ou alma. Já vimos que o corpo carnal tem igualmente seu princípio nesse mesmo fluido transformado e condensado em matéria tangível; no perispírito, a transformação molecular se opera diferentemente; pois o fluido conserva sua imponderabilidade e suas qualidades etéreas. O corpo perispiritual e o corpo carnal, pois, têm sua fonte no mesmo ele mento primitivo; um e outro são matéria, embora sob dois estados diversos.
8. Os Espíritos extraem seu perispírito do ambiente onde se encontram, o que quer dizer que esse envoltório é formado dos fluidos ambientais; daí resulta que os elementos constitutivos do perispírito devem variar segundo os mundos. Sendo Júpiter indicado como um mundo muito adiantado, em relação com a Terra, onde a vida corporal não tem a materialidade da nossa, os envoltórios perispirituais ali devem ser de uma natureza infinitamente mais quintessenciada que na nossa Terra. Ora, do mesmo modo que não poderíamos existir naquele mundo com nosso corpo carnal, nossos Espíritos ali não poderão penetrar com seu perispírito terrestre. Ao deixar a Terra, o Espírito aí deixa seu envoltório fluídico, e reveste um outro, apropriado ao mundo onde deve ir.
9. A natureza do envoltório fluídico está sempre em relação com o grau de adiantamento moral do Espírito. Os Espíritos inferiores não podem mudá-lo à sua vontade, e por conseguinte não podem se transportar à vontade de um mundo para outro. É o caso em que o envoltório fluídico, se bem que etéreo e imponderável em relação à matéria tangível, ainda é muito pesado, se assim se pode exprimir, em relação ao mundo espiritual, para lhes permitir saírem de seu ambiente. Será preciso classificar nesta categoria aqueles cujo perispírito é bastante grosseiro para que eles o confundam com o corpo carnal, e que, por esta razão, acreditam estar sempre vivos. Estes Espíritos, cujo número é grande, permanecem na superfície da Terra, tal como os encarnados, acreditando sempre ocupar-se com o que estão habituados; outros, um pouco mais desmaterializados, entretanto não o são o suficiente para se elevar acima das regiões terrestres. ([60])
Os Espíritos superiores, ao contrário podem vir aos mundos inferiores e mesmo aí se encarnar. Dos elementos constitutivos do mundo em que entram, eles extraem os materiais do envoltório fluídico ou carnal apropriado ao ambiente onde se encontram. Fazem como o grande senhor que deixa suas belas roupas para vestir-se momentaneamente com trajes plebeus, sem que por isso deixe de ser o grande senhor.
É assim que Espíritos das ordens mais elevadas podem se manifestar aos habitantes da Terra, ou encarnar-se entre eles, em missão. Tais espíritos trazem consigo, não o envoltório, mas a lembrança por intuição das regiões de onde provém, e que vêem no pensamento. São como videntes no meio de cegos.
10. A camada dos fluidos espirituais que rodeiam a Terra pode ser comparada às camadas inferiores da atmosfera, mais pesadas, mais compactas, menos puras que as camadas superiores. Esses fluidos não são homogêneos; são uma mistura de moléculas de diversas qualidades, entre as quais se encontram necessariamente as moléculas elementares que lhe formam a base mais ou menos alteradas. Os efeitos produzidos por tais fluidos estarão na razão da quantidade das partes puras que encerram. Tal é, por comparação, o álcool retificado ou o misturado, em diferentes proporções, com a água ou outras substâncias; sua densidade específica aumenta por efeito da mistura, ao mesmo tempo que sua inflamabilidade diminui, se bem que no todo haja álcool puro.
Os Espíritos chamados a viver naquele meio dele extraem seu perispírito; mas, conforme seja o próprio Espírito mais ou menos purificado, seu perispírito se forma de partes mais puras ou mais grosseiras do fluido próprio ao mundo no qual se encarna. O Espírito ali produz, sempre por comparação e não por assimilação, o efeito de um reativo químico que atrai a ele as moléculas assimiláveis à sua natureza.
Daí resulta um fato capital, que a constituição íntima do perispírito não é idêntica em todos os Espíritos encarnados ou desencarnados que povoam a Terra ou o espaço circundante. O mesmo já não se dá com o corpo carnal que, conforme tem sido demonstrado, é formado dos mesmos elementos, qualquer que seja a superioridade ou a inferioridade do Espírito. Por isso, em todos, os efeitos produzidos pelo corpo são os mesmos, as necessidades semelhantes, enquanto que diferem em tudo quanto é relativo ao perispírito.
Também resulta que: o envoltório perispiritual do mesmo Espírito se modifica com o progresso moral dele, em cada encarnação, mesmo que o faça no mesmo ambiente; que os Espíritos superiores, encarnando-se excepcionalmente em missão num mundo inferior, têm um perispírito menos grosseiro que o dos nativos deste mundo.
11. O meio está sempre em relação com a natureza dos seres que aí devem viver; os peixes estão na água; os seres terrestres estão no ar; os seres espirituais estão no fluido etéreo ou espiritual, mesmo sobre a Terra. O fluido etéreo é para as necessidades do Espírito, o que a atmosfera é para as necessidades dos encarnados. Ora, da mesma forma que os peixes não podem viver no ar; que os animais terrestres não podem viver numa atmosfera demais rarefeita para seus pulmões, os Espíritos inferiores não podem suportar o brilho e a impressão dos fluidos mais eterizados. Eles não morreriam ali, pois o Espírito não morre, mas uma força instintiva os mantém afastados, como nos afastamos de um fogo muito ardente ou de uma luz muito brilhante. Eis porque não podem sair do ambiente apropriado à sua natureza; para mudá-la, deverão primeiramente mudar sua natureza; terão que se despojar de seus instintos materiais, que os retêm em seus ambientes materiais; numa palavra, terão que se depurar e se transformar moralmente; então, gradualmente, eles se identificarão com um ambiente mais purificado, o que se torna para eles uma necessidade, da maneira gradual como sucede com os olhos de alguém que tenha vivido por muito tempo nas trevas, se habitua insensivelmente à luz do dia e ao esplendor do sol.
12. Assim, tudo se liga no Universo, tudo se encadeia; tudo está submetido à grande e harmoniosa lei de unidade, desde a materialidade mais compacta até a espiritualidade mais pura. A Terra é como um vaso do qual se evola uma fumaça espessa, a qual clareia à medida que sobe, e cujas parcelas rarefeitas se perdem no espaço infinito.
O poder divino brilha em todas as partes desse grandioso conjunto, e ainda se poderia querer que, para melhor atestar seu poder, Deus, não contente com o que fez, viesse perturbar essa harmonia! Que se rebaixasse ao papel de mágico, a fim de produzir pueris efeitos dignos de um prestidigitador! E ousa-se, ainda por cima, dar-lhe por rival o próprio Satanás! Jamais, na verdade, nunca se rebaixou tanto a majestade divina, e ainda se admiram de que a incredulidade aumente!
Tendes razão em dizer: "A fé se acaba!" Porém é a fé em tudo o que choca o bom senso e a razão, que se extingue; a fé idêntica àquela que antes fazia dizer: "Vão-se os deuses!" Porém a fé nas coisas sérias, a fé em Deus e na imortalidade, está sempre viva no coração do homem, e se ela foi abafada sob as pueris histórias com que a sobrecarregaram, ela se eleva mais forte desde que seja desembaraçada desses inúteis acréscimos, como a planta comprimida se eleva desde que revê o sol!
Sim, tudo é milagre na Natureza, pois que tudo é admirável e dá testemunho da sabedoria divina! Estes milagres existem para todos os que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, e não para vantagem de alguns. Não! Não há milagres no sentido que se atribui a essa palavra, pois que tudo ressalta das leis eternas da criação, dado que essas leis são perfeitas.
Ação dos Espíritos sobre os Fluidos.
Criações Fluídicas. Fotografia do Pensamento.
13. Os fluidos espirituais, que constituem um dos estados do fluido cósmico universal são, falando de modo apropriado, a atmosfera dos seres espirituais; são o elemento do qual extraem os materiais sobre os quais operam; é o ambiente no qual se passam os fenômenos especiais, perceptíveis pela visão e audição do Espírito, e que escapam aos sentidos impressionados unicamente pela matéria tangível; onde se forma esta luz particular ao mundo espiritual, diferente da luz ordinária por sua causa e por seus efeitos; é enfim veículo do pensamento, como o ar é o veículo do som.
14. Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não que os manipulem como os homens manipulam os gases, mas com o auxílio do pensamento e da vontade. O pensamento e a vontade são para os Espíritos aquilo que a mão é para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem a tais fluidos esta ou aquela direção; eles o aglomeram, os combinam ou o dispersam; formam com esses materiais, conjuntos que tenham uma aparência, uma forma, uma cor determinadas; mudam suas propriedades como um químico altera as propriedades dos gases ou de outros corpos, combinando-os segundo determinadas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.
Algumas vezes, essas transformações são resultado de uma intenção; frequentemente, são o produto de um pensamento inconsciente; basta ao Espírito pensar numa coisa para que tal coisa se produza, assim como basta modular uma ária para que a música repercuta na atmosfera.
É assim, por exemplo, que em Espírito se apresenta perante um encarnado dotado de visão psíquica, sob as aparências que tinha quando vivia na época em que os conheceram, mesmo que isso se dê depois de diversas encarnações. Apresenta-se com as roupas, os sinais exteriores — enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. — que tinha então; um decapitado se apresentará com falta de cabeça. Não se diga que ele conservou tais aparências; não, certamente, pois, como Espírito, não é coxo, nem maneta, nem decapitado; mas seu pensamento entrando em relação com a época em que isto se dava, seu perispírito toma instantaneamente aquela forma, a qual também deixa instantaneamente, desde que o pensamento cesse de agir. Se, pois, ele foi uma vez negro e outra vez branco, apresentar-se-á como negro ou como branco, segundo qual das duas encarnações será evocado, e à qual reportará seu pensamento.
Por um efeito análogo, o pensamento do Espírito cria fluidicamente os objetos dos quais tem o hábito de se servir; um avaro manejará o ouro, um militar terá suas armas e seu uniforme, um fumante, seu cachimbo, um trabalhador, seu arado e seus bois, uma mulher velha, seus aparelhos de fiar. Esses objetos fluídicos são tão reais para o Espírito, o qual é fluídico também, como o eram no estado material para o homem vivente; porém, pela mesma razão de que são criados pelo pensamento, sua existência é também fugitiva como o pensamento. ([61])
15. Sendo os fluidos o veículo do pensamento, este atua sobre os mesmos como o som atua sobre o ar; eles nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Pode-se, pois, dizer, com toda a verdade, que em tais fluidos há ondas e raios de pensamentos, os quais se cruzam sem se confundir, como no ar há ondas e raios sonoros.
Há mais: O pensamento cria imagens fluídicas, e se reflete no envoltório perispiritual como num espelho; o pensamento toma corpo e aí se fotografa de alguma forma. Tenha um homem, por exemplo, a ideia de matar outro; embora seu corpo material esteja impassível, seu corpo fluídico é posto em ação pelo pensamento, do qual reproduz todas as variações; executa fluidicamente o gesto, o ato que tem o desígnio de cumprir; o pensamento cria a imagem da vítima, e cena inteira se pinta, como em um quadro, tal como está em seu espírito.
É assim que os movimentos mais secretos da alma repercutem no envoltório fluídico; que uma alma pode ler em outra alma como num livro, e ver o que não é perceptível pelos olhos do corpo. Todavia, vendo a intenção, pode pressentir a realização do ato que se lhe seguirá, porém não pode determinar o momento em que ele se realizará, nem precisar seus detalhes, nem mesmo afirmar se ele virá a realizar-se, pois as circunstâncias ulteriores podem modificar os planos e mudar as disposições. Ela não pode ver aquilo que ainda não está no pensamento; o que ela vê, é a preocupação habitual do indivíduo, seus desejos, seus projetos, seus desígnios bons ou maus.
Qualidade dos Fluidos
16. A ação dos Espíritos sobre os fluidos espirituais tem consequências de importância direta e capital para os encarnados. Desde o instante em que tais fluidos são o veículo do pensamento, que o pensamento lhes pode modificar as propriedades, é evidente que eles devem estar impregnados das qualidades boas ou más, dos pensamentos que os colocam em vibração, modificados pela pureza ou impureza dos sentimentos. Os maus pensamentos corrompem os fluidos espirituais, como os miasmas deletérios corrompem o ar respirável. Os fluidos que rodeiam ou que projetam os maus Espíritos, são pois viciados, enquanto que aqueles que recebem a influência dos bons Espíritos são tão puros quanto o permite o grau de perfeição moral deles.
17. Seria impossível fazer uma enumeração ou classificação dos bons ou maus fluidos, nem especificar suas qualidades respectivas, tendo em vista que sua diversidade é tão grande quanto a dos pensamentos.
Os fluidos não têm qualidades sui generis, mas sim as que adquirem no meio onde são elaborados; modificam-se pelos eflúvios desse meio, como o ar pelas exalações, a água pelos sais das camadas que atravessa. Segundo as circunstâncias, essas qualidades são, como o ar e a água, temporárias ou permanentes, o que as torna mais especialmente próprias à produção de tais ou quais efeitos determinados.
Os fluidos tampouco têm denominações especiais; como os odores, são designados por suas propriedades, seus efeitos e seu tipo original. Sob o ponto de vista moral, trazem a impressão dos sentimentos do ódio, da inveja, do ciúme, do orgulho, do egoísmo, da violência, da hipocrisia, da bondade, da benevolência, do amor, da caridade, da doçura, etc.; sob o ponto de vista físico, são excitantes, calmantes, penetrantes, adstringentes, irritantes, dulcificantes, soporíficos, narcóticos, tóxicos, reparadores, expulsivos; tornam-se força de transmissão, de propulsão, etc. O quadro dos fluidos seria pois, o de todas as paixões, virtudes e vícios da humanidade, e o das propriedades da matéria, correspondentes aos efeitos que produzem.
18. Sendo os homens Espíritos encarnados, têm, em parte, as atribuições da vida espiritual, pois vivem essa vida no sono, e freqüentemente no estado de vigília. O Espírito, ao encarnar-se, conserva seu perispírito com as qualidades que lhe são próprias, e que, como se sabe, não é circunscrito ao corpo, porém irradia-se em derredor, envolvendo-o como uma atmosfera fluídica.
Pela sua união íntima com o corpo, o perispírito desempenha um papel preponderante no organismo; por sua expansão, coloca o Espírito encarnado em relação mais direta com os Espíritos livres e também com os Espíritos encarnados.
O pensamento do Espírito encarnado age sobre os fluidos espirituais como também o dos Espíritos desencarnados; transmite-se de Espírito a Espírito, pela mesma via, e, conforme seja bom ou mau, saneia ou vicia os fluidos circundantes.
Se os fluidos ambientes são modificados pela projeção dos pensamentos do Espírito, sem envoltório perispiritual, que é parte constitutiva de seu ser, que recebe diretamente e de maneira permanente a impressão de seus pensamentos, deve mais ainda receber a impressão de suas qualidades boas ou más. Os fluidos viciados pelos eflúvios dos maus Espíritos podem se purificar pelo afastamento deles, mas seu perispírito será sempre aquilo que é, enquanto o Espírito não se modificar por si mesmo.
O perispírito dos encarnados é de natureza idêntica à dos fluidos espirituais, e por isso os assimila com facilidade, como a esponja se embebe de líquido. Esses fluidos têm sobre o perispírito uma ação tanto mais direta, quanto, por sua expansão e por sua irradiação, se confunde com eles.
Tais fluidos agem sobre o perispírito, e este, por sua vez, reage sobre o organismo material com o qual está em contato molecular. Se os seus eflúvios forem de boa natureza, o corpo recebe uma impressão salutar; se forem maus, a impressão é penosa; se os fluidos maus forem permanentes e enérgicos, poderão determinar desordens físicas: certas moléstias não têm outra causa senão esta.
Os ambientes nos quais abundam os maus Espíritos são, pois, impregnados de maus fluidos que as pessoas absorvem por todos os poros perispirituais, tal como se absorvem pelos poros do corpo, os miasmas pestilenciais.
19. Assim se explicam os efeitos que se produzem nos lugares de reunião. Uma assembléia é um foco onde se irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra, um coro de pensamentos, onde cada um produz sua nota. Daí resulta uma multidão de correntes e de eflúvios fluídicos, dos quais cada um recebe a impressão pelo sentido espiritual, como num coro de música cada um recebe a impressão dos sons, pelo sentido da audição.
Porém, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes, há também pensamentos harmônicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico, a impressão é agradável; se for discordante, a impressão é penosa. Ora, para tal, não é necessário que o pensamento seja expresso em palavras; a irradiação fluídica nem por isso é menor, quer seja expressa ou não.
Tal é a causa do sentimento de satisfação que se experimenta em uma reunião simpática, animada por bons pensamentos, de benevolência; ali reina uma atmosfera moral salubre, onde se respira à vontade; dali se sai reconfortado, pois que as pessoas são impregnadas de eflúvios fluídicos salutares; porém, se ali se misturam pensamentos maus, produzem o efeito de uma corrente de ar gelado num ambiente cálido, ou de uma nota desafinada num concerto. Assim se explicam também a ansiedade, o mal-estar indefinível que se sente num ambiente antipático, onde pensamentos de malquerença provocam como que correntes de ar mal cheiroso.
20. O pensamento produz pois uma espécie de efeito físico, que reage sobre o moral; é isso que unicamente o Espiritismo poderia fazer compreender. O homem o sente instintivamente, pois que procura as reuniões homogêneas e simpáticas, onde sabe que pode absorver novas forças morais; poder-se-ia dizer que ele ali recupera as perdas fluídicas que sofre a cada dia pela irradiação do pensamento, assim como recupera através dos alimentos, as perdas do corpo material. É que, efetivamente, o pensamento é uma emissão que ocasiona perdas reais nos fluidos espirituais, e por conseguinte nos fluidos materiais, de tal sorte que o homem tem necessidade de se retemperar nos eflúvios que recebe de fora.
Quando se diz que um médico cura seu paciente com boas palavras, estamos expondo uma verdade absoluta, pois o pensamento benfazejo traz consigo fluidos reparadores que atuam sobre o físico tanto como sobre o moral.
21. Dir-se-á que se podem evitar os homens mal intencionados; porém, como subtrair-se à influência dos maus Espíritos que pululam em nosso derredor e se insinuam por toda a parte sem ser vistos?
O meio é muito simples, pois depende da vontade do próprio homem, que traz em si mesmo o preservativo necessário. Os fluidos se unem em razão da semelhança de sua natureza; os fluidos dissemelhantes se repelem; há incompatibilidade entre os bons e os maus fluidos, como entre o azeite e a água.
Que se faz então, quando o ar está viciado? Saneamo-lo, o purificamos, destruindo o foco dos miasmas, combatendo os eflúvios malsãos por correntes mais fortes de ar salubre. À invasão dos maus fluidos, pois, é preciso opor os bons fluidos; e, como cada um tem em seu próprio perispírito uma fonte fluídica permanente, trazemos o remédio em nós mesmos; trata-se de purificar esta fonte e dar-lhe tais qualidades, que sejam um verdadeiro repulsor para as más influências, em lugar de ser para elas uma força de atração. O perispírito é pois uma couraça à qual é preciso dar a melhor têmpera possível; ora, como as qualidades do perispírito estão em razão das qualidades da alma, será preciso trabalhar em sua própria melhoria, pois são as imperfeições da alma que atraem os maus Espíritos.
As moscas se dirigem para onde haja focos de corrupção que as atraem; destruídos tais focos, as moscas desaparecerão. Da mesma forma os maus Espíritos vão onde o mal os atrai; destruí o mal, e ele se afastarão. Os Espíritos realmente bons, encarnados ou desencarnados, nada têm a temer da influência dos maus Espíritos.
Explicação de alguns fatos considerados como sobrenaturais
Vista Espiritual, ou Psíquica; Vista dupla; Sonambulismo; Sonhos.
22. O perispírito é o traço de união entre a vida corporal e a vida espiritual; é por ele que o Espírito encarnado está em contínua relação com os Espíritos; é por ele enfim que se realizam no homem fenômenos especiais que não têm sua causa originária na matéria tangível, e que, por esta razão, parecem ser sobrenaturais.
É nas propriedades e na irradiação do fluido perispiritual, que se deve procurar a causa da vista dupla, ou vista espiritual, a que também se pode chamar vista psíquica; muitas pessoas são dela dotadas, frequentemente sem o saber, assim como da vista sonambúlica.
O perispírito é o órgão sensitivo do Espírito; é por seu intermédio que o Espírito encarnado tem a percepção das coisas espirituais, que escapam aos sentidos carnais. Pelos órgãos do corpo, a vista, o ouvido, e as diversas sensações são localizadas e limitadas à percepção das coisas materiais; pelo sentido espiritual, ou psíquico, elas são generalizadas; o Espírito vê, ouve e sente por todo o seu ser, o que está na esfera da irradiação de seu fluido perispiritual.
Esses fenômenos, no homem, são a manifestação da vida espiritual; é a alma que age fora do organismo. Na dupla vista, ou percepção pelo sentido psíquico, ele não vê pelos olhos do corpo; se bem que frequentemente, por hábito, ele os dirige para o ponto sobre o qual se dirige sua atenção; ele vê, pelos olhos da alma, e a prova está em que vê tudo igualmente bem com os olhos fechados, e além do alcance do raio visual; ele lê o pensamento figurado no raio fluídico (nº 15). ([62])
23. Embora, durante a vida, o Espírito seja fixado ao corpo pelo perispírito, não é tão escravo, que não possa alongar sua corrente e se transportar ao longe, seja sobre a Terra, seja sobre qualquer ponto do espaço. O Espírito está preso ao corpo, contra sua vontade, pois que sua vida normal é a liberdade, ao passo que a vida corporal é a do servidor preso à gleba.
O Espírito sente-se, pois, feliz, de deixar seu corpo, assim como o pássaro deixa sua gaiola; serve-se de todas as ocasiões em que sua presença não seja necessária à sua vida de relação. É o fenômeno designado sob o nome de emancipação da alma; sempre se realiza durante o sono; todas as vezes em que o corpo repousa e que os sentidos estão na inatividade, o Espírito se livra. (O Livro dos Espíritos, capítulo VIII).
Nesses momentos, o Espírito vive a vida espiritual, ao passo que o corpo vive a vida vegetativa: em parte, ele se encontra no estado em que se encontrará após a morte; percorre o espaço, entretém-se com seus amigos e outros Espíritos livres, ou encarnados como ele próprio.
O liame fluídico que o retém ao corpo não é definitivamente rompido senão com a morte; a separação completa não se realiza senão pela extinção absoluta da atividade do princípio vital. Enquanto o corpo vive, o Espírito, embora possa estar a alguma distância, ali é instantaneamente trazido de volta, desde que sua presença seja necessária; então, retoma o curso de sua vida de relação. Algumas vezes, ao acordar, conserva de suas peregrinações uma lembrança, uma imagem mais ou menos exata, o que constitui o sonho; em todo o caso, traz intuições que lhe sugerem ideias e pensamentos novos, e justificam o provérbio: a noite é boa conselheira.
Assim se explicam igualmente certos fenômenos característicos, do sonambulismo natural e magnético, da catalepsia, da letargia, do êxtase, etc., e que nada mais são senão manifestações da vida espiritual. ([63])
24. Se a vista espiritual não se efetua pelos olhos do corpo, é porque a percepção das coisas não se realiza pela ação da luz comum: com efeito, a luz material é feita para o mundo material; para o mundo espiritual existe uma luz especial cuja natureza nos é desconhecida, mas que sem dúvida é uma das propriedades do fluido etéreo afetado pelas percepções visuais da alma. Há, pois, luz material e luz espiritual. A primeira tem focos circunscritos aos corpos luminosos; a segunda tem seu foco por toda a parte: esta é a razão pela qual não há obstáculos à vista espiritual; ela não é detida pela distância, nem pela opacidade da matéria; a obscuridade não existe para ela. O mundo espiritual é portanto clareado pela luz espiritual, que tem seus efeitos próprios, como o mundo material é iluminado pela luz solar.
25. A alma, envolvida pelo seu perispírito, traz assim em si mesma seu princípio luminoso; penetrando a matéria por força de sua essência etérea não há corpos opacos à sua vista.
Entretanto, a vista espiritual não tem a mesma extensão nem a mesma penetração em todos os Espíritos; unicamente os Espíritos puros a possuem em todo seu poder; com os Espíritos inferiores, ela é enfraquecida pela relativa materialidade do perispírito, que se interpõe como uma espécie de bruma.
Ela se manifesta em diferentes graus nos Espíritos encarnados, pelo fenômeno de segunda vista, seja no sonambulismo natural ou magnético, seja no estado de vigília. Segundo o grau de potência da faculdade, diz-se que a lucidez é maior ou menor. É com o auxílio dessa faculdade que certas pessoas vêem o interior do organismo e descrevem a causa das moléstias.
26. A vista espiritual dá, pois, percepções especiais que, não tendo por sede os órgãos materiais, funcionam sob condições inteiramente diferentes de todas as demais da vida corporal. Por esta razão, não se podem atingir efeitos idênticos e experimentá-la segundo os mesmos processos. Seu desempenho se dá fora do organismo e ela tem uma mobilidade que frustra toda as previsões. É preciso estudá-la em seus efeitos e em suas causas, e não por assimilação com a vista comum, a qual não é destinada a completar, salvo casos excepcionais, aos quais não se pode tomar como regra.
27. A vista espiritual é necessariamente incompleta e imperfeita nos Espíritos encarnados, e por conseguinte, sujeita a aberrações. Tendo sua sede na própria alma, o estado desta deve influir sobre as percepções que ela proporciona. Segundo o grau de seu desenvolvimento, as circunstâncias e o estado moral do indivíduo, ela pode dar, seja no sono, seja no estado de vigília: 1º) a percepção de certos fatos materiais, reais, como o conhecimento de acontecimentos que se passam ao longe, os detalhes descritivos de uma localidade, as causas de uma moléstia e os remédios convenientes; 2º) a percepção de coisas igualmente reais do mundo espiritual, como a visão de Espíritos; 3º) imagens fantásticas criadas pela imaginação, análogas às criações fluídicas do pensamento (Ver neste Capítulo, nº 14). Tais criações estão sempre em relação com as disposições morais do Espírito que as concebe. É assim que o pensamento de pessoas fortemente imbuídas e preocupadas com certas crenças religiosas lhes apresenta o inferno, suas fornalhas, suas torturas e seus demônios, tais como as próprias pessoas os representam: às vezes é toda uma epopeia; os pagãos viam o Olimpo e o Tártaro, assim como os cristãos veem o inferno e o paraíso. Se, ao acordar, ou ao sair do êxtase, tais pessoas conservam uma recordação exata de suas visões, elas as tomam como realidades e confirmações de suas crenças, embora isso não passe de um produto de seus próprios pensamentos. ([64]) Há, pois, a necessidade de se fazer uma escolha muito rigorosa nas visões extáticas, antes de aceitá-las. O remédio da demasiada credulidade, sob este ponto de vista, é o estudo das leis que regem o mundo espiritual.
28. Os sonhos propriamente ditos apresentam as três naturezas das visões acima descritas. É às duas primeiras que pertencem os sonhos proféticos, pressentimentos e advertências ([65]); é no terceiro, isto é, nas criações fluídicas do pensamento, que se podem encontrar a causa de certas imagens fantásticas que nada têm de real em relação à vida material, mas que têm, para o Espírito, uma realidade às vezes tão nítida, que o corpo sofre o contra-golpe, e se tem visto os cabelos embranquecerem sob a impressão de um sonho. Essas criações podem ser provocadas: pelas crenças exaltadas; por recordações retrospectivas; pelos gestos, os desejos, as paixões, o temor, os remorsos; pelas preocupações habituais; pelas necessidades do corpo, ou por um embaraço nas funções do organismo; enfim, por outros Espíritos, com um objetivo benfazejo ou malfazejo, segundo sua natureza. ([66])
Catalepsia: Ressurreições
29. A matéria inerte é insensível; o fluido perispiritual o é igualmente, mas transmite a sensação ao centro sensitivo que é o Espírito. As lesões dolorosas do corpo repercutem, pois, no Espírito como um choque elétrico, por intermédio do fluido perispiritual, do que os nervos parecem ser os fios condutores. É o influxo nervoso dos fisiologistas, que, não conhecendo as relações desse fluido com o princípio espiritual não têm podido explicar todos os efeitos.
Essa interrupção pode ter lugar pela separação de um membro ou o seccionamento de um nervo, mas também, parcialmente ou de modo geral, e sem nenhuma lesão, nos momentos de emancipação, de grande super-excitação, ou de preocupação do Espírito. Nesse estado, o Espírito já não cuida mais do corpo, e em sua atividade febril atrai, por assim dizer, a si, o fluido perispiritual, o qual, retirando-se de sua superfície, ali produz uma insensibilidade momentânea. Poderíamos ainda admitir que em certas circunstâncias, se produza no próprio fluido perispiritual uma modificação molecular que lhe retire temporariamente a propriedade de transmissão. É assim que, no ardor do combate, um militar não percebe ter sido ferido; que uma pessoa cuja atenção esteja concentrada em seu trabalho não ouve o ruído que se faz em seu derredor. É um efeito análogo, porém mais pronunciado, que se realiza com certos sonâmbulos, na letargia e na catalepsia. Por fim, é assim que se pode explicar a insensibilidade dos convulsionários e de certos mártires ("Revue Spirite", janeiro de 1868; Estudos sobre os Aïssaouas).
A paralisia não tem totalmente a mesma causa: aqui o efeito é todo orgânico; são os próprios nervos, os fios condutores que não são mais aptos à circulação fluídica; são as cordas do instrumentos que estão alteradas.
30. Em certos estados patológicos, quando o Espírito não está mais no corpo, e o perispírito não adere a ele senão por alguns pontos, o corpo tem todas as aparências de morto, situação esta verdadeiramente bem descrita quando se diz que a vida está por um fio. Tal estado pode durar por mais ou menos tempo; certas partes do corpo podem mesmo entrar em decomposição, sem que a vida seja definitivamente extinta. Enquanto o derradeiro fio não for rompido, o Espírito pode ser trazido de volta ao corpo, seja por uma ação enérgica da sua própria vontade, seja pelo influxo fluídico estranho, igualmente poderoso. Assim se explicam certas prolongações da vida contra toda probabilidade, e certas pretensas ressurreições. É a planta que volta a viver, por vezes com uma só fibrila da raiz; mas quando as últimas moléculas do corpo fluídico são destacadas do corpo carnal, ou quando este último está num grau de degradação irreparável, todo retorno à vida torna-se impossível. ([67])
Curas
31. Como vimos, o fluido universal é o elemento primitivo do corpo carnal e do perispírito, do qual são transformações. Pela identidade de sua natureza, este fluido, condensado no perispírito, pode fornecer ao corpo os princípios reparadores; o agente propulsor é o Espírito, encarnado ou desencarnado, que infiltra num corpo deteriorado uma parte da substância de seu envoltório fluídico. A cura se opera pela substituição de uma molécula sã a uma molécula malsã. A potência curadora estará, pois, em razão da pureza da substância inoculada; ela depende ainda da energia da vontade, a qual provoca uma emissão fluídica mais abundante e dá ao fluido uma força maior de penetração; depende, enfim, das intenções que animam aquele que quer curar, quer seja ele homem ou Espírito. Os fluidos que emanam de uma fonte impura são como substâncias médicas alteradas.
32. Os efeitos da ação fluídica sobre os doentes são extremamente variados, segundo as circunstâncias; esta ação é algumas vezes lenta, e reclama um tratamento seguido, como no magnetismo comum; outras vezes é rápida como uma corrente elétrica. Há pessoas dotadas de tal poder, que operam sobre certos doentes curas instantâneas por uma só imposição das mãos ou mesmo por um só ato de vontade. Entre os dois polos extremos de tal faculdade, há infinitas variações. Todas as curas desse gênero são variedades do magnetismo e não diferem senão pela potência e a rapidez da ação. O princípio é sempre o mesmo; é o fluido que desempenha o papel de agente terapêutico, e cujo efeito é subordinado à sua qualidade e a circunstâncias especiais.
33. A ação magnética pode produzir-se por diversas maneiras:
1º — Pelo próprio fluido do magnetizador; é o magnetismo propriamente dito, ou magnetismo humano, cuja ação é subordinada à potência e sobretudo à qualidade do fluido;
2º — Pelo fluido dos Espíritos que atuam diretamente e sem intermediário sobre um encarnado, seja para curar ou acalmar um sofrimento, seja para provocar o sono sonambúlico espontâneo, seja para exercer sobre o indivíduo uma influência física ou moral qualquer. É o magnetismo espiritual, cuja qualidade está em razão das qualidades do Espírito. ([68])
3º — Pelo fluido que os Espíritos derramam sobre o magnetizador e ao qual este serve de condutor. É o magnetismo misto, semi-espiritual ou, se assim o quisermos, humano-espiritual. O fluido espiritual, combinado com o fluido humano, dá a este último as qualidades que lhe faltam. O auxílio dos Espíritos, em tais circunstâncias, é por vezes espontâneo, porém com mais frequência é provocado pelo apelo do magnetizador.
34. A faculdade de curar pela influência fluídica é muito comum e pode desenvolver-se mediante o exercício; porém a de curar instantaneamente pela imposição das mãos é mais rara, e seu apogeu pode ser considerado como excepcional. Entretanto, tem sido observada em diversas épocas, e em quase todos os povos têm surgido indivíduos que a possuíam em grau elevado. Nestes últimos tempos, tem-se visto diversos exemplos notáveis, cuja autenticidade não pode ser contestada. Dado que estas espécies de curas repousam sobre um princípio natural, e que o poder de as produzir não é um privilégio, é que elas não saem da natureza e apenas têm de miraculosa, a aparência. ([69])
Aparições; Transfigurações.
35. O perispírito é invisível para nós em seu estado normal; porém, como é formado de matéria etérea, o Espírito pode, em certos casos, lhe fazer receber, por um ato de sua vontade, uma modificação molecular que o torna momentaneamente visível. É assim que se produzem as aparições, as quais, como também outros fenômenos, não estão fora das leis da natureza. Este fenômeno não é mais extraordinário que o do vapor, o qual é invisível quando é muito rarefeito, e torna-se visível quando é condensado.
Segundo o grau de condensação do fluido perispiritual, a aparição é algumas vezes vaga e vaporosa; outras vezes é mais nitidamente definida; e outras, enfim, tem todas as aparências da matéria tangível; pode mesmo chegar à tangibilidade real, ao ponto em que se pode duvidar da natureza do ser que temos diante de nós.
As aparições vaporosas são frequentes, e sucede muitas vezes que indivíduos assim se apresentam às pessoas a quem têm afeição. As aparições tangíveis são mais raras, embora haja delas numerosos exemplos, perfeitamente autênticos. Se o Espírito deseja fazer-se conhecido, dará a seu envoltório todos os sinais exteriores que tinha enquanto vivia. ([70])
36. Deve-se notar que as aparições tangíveis não têm senão as aparências da matéria carnal, porém, não as suas qualidades; em razão de sua natureza fluídica, não podem ter a mesma coesão, porque, na realidade, não se trata de carne. Elas se formam instantaneamente, e do mesmo modo desaparecem, ou se evaporam pela desagregação das moléculas fluídicas. Os seres que se apresentam nestas condições não nascem nem morrem como os outros homens; são vistos, e depois não são vistos mais, sem saber de onde vieram, como vieram, nem onde vão; não se poderia matá-los, nem os acorrentar, nem os prender, pois que não possuem o corpo carnal; os golpes que lhes fossem infligidos o seriam no vácuo.
Tal é o caráter dos agêneres, com os quais podemos tratar, sem duvidar do que sejam, mas que jamais demoram por muito tempo, e não podem tornar-se comensais habituais de uma casa, nem figurar entre os membros de uma família.
Aliás, há em toda sua pessoa, em seus ademanes, algo de estranho e de insólito que se relaciona com a materialidade e com a espiritualidade: seu olhar, vaporoso e penetrante ao mesmo tempo, não tem a nitidez do olhar dos olhos da carne; sua linguagem breve e quase sempre sentenciosa, nada tem do brilho e da volubilidade da linguagem humana; sua aproximação faz experimentar uma sensação particular indefinível de surpresa, que inspira uma espécie de medo, e embora os tomemos por indivíduos iguais aos demais do mundo, involuntariamente se diz: eis um ser singular. ([71])
37. O perispírito é o mesmo, nos encarnados e nos desencarnados; por um efeito completamente idêntico, um Espírito encarnado pode aparecer, num momento de liberdade, num outro ponto diferente daquele onde repousa seu corpo, com seus traços habituais e com todos os sinais de sua identidade. Foi este fenômeno, do qual há exemplos autênticos, que motivou a crença dos homens duplos. ([72])
38. Um efeito particular a estas ordens de fenômenos, é de que as aparições vaporosas e mesmo tangíveis não são perceptíveis indistintamente por todas as pessoas; os Espíritos não se mostram senão quando querem, e a quem o desejam. Um Espírito poderia pois aparecer numa assembleia a um ou a diversos assistentes e não ser visto por outros. Isso deriva de que tais espécies de percepções se efetuam pela vista espiritual, e não pela vista carnal; pois não somente a vista espiritual não é dada a todos, mas pode ser retirada, se for preciso, pela vontade do Espírito, daquele a quem não quer se mostrar, como pode dá-la momentaneamente, se ele o considerar necessário.
A condensação do fluido perispiritual nas aparições, mesmo até sua tangibilidade, não tem, pois, as propriedades da matéria comum; sem isso, se as aparições fossem perceptíveis pelos olhos do corpo, o seriam por todas as pessoas presentes. ([73])
39. O Espírito pode operar transformações na contextura de seu envoltório perispiritual, e dado que esse envoltório irradia ao redor do corpo como uma atmosfera fluídica, pode-se produzir na superfície do próprio corpo um fenômeno análogo àquele das aparições. Sob a camada fluídica, a figura real do corpo pode se diluir mais ou menos completamente, e revestir outros traços; ou ainda, os traços primitivos, vistos através da camada fluídica modificada como através de um prisma, podem tomar uma outra expressão. Se o Espírito encarnado, saindo do terra-a-terra, se identifica com as coisas do mundo espiritual, a expressão de uma fisionomia feia pode tornar-se bela, radiosa, e por vezes mesmo luminosa; se, ao contrário, o espírito é exaltado por más paixões, uma fisionomia bela pode tomar aspecto horrendo.
É assim que se operam as transfigurações, que são sempre um reflexo das qualidades e dos sentimentos predominantes do Espírito. Este fenômeno é, pois, o resultado de uma transformação fluídica; é uma espécie de aparição perispiritual que se produz sobre o próprio corpo vivente, e algumas vezes no momento da morte, em lugar de se produzir ao longe, como é o caso das aparições propriamente ditas. O que distingue as aparições deste gênero, é que geralmente elas são perceptíveis a todos os assistentes e pelos olhos do corpo, precisamente porque elas têm por base a matéria carnal visível, enquanto que, nas aparições puramente fluídicas, não há matéria tangível. ([74])
Manifestações físicas. Mediunidade.
40. Os fenômenos das mesas girantes e falantes, da suspensão etérea de corpos pesados, da escrita mediúnica, tão velhos quanto o mundo, porém comuns nos tempos atuais, dão a chave de alguns fenômenos análogos, espontâneos, aos quais, devido à ignorância da lei que os rege, se havia atribuído um caráter sobrenatural e milagroso. Estes fenômenos repousam sobre as propriedades do fluido perispiritual, seja de encarnados, seja de Espíritos livres.
41. É com o auxílio de seu perispírito que o Espírito atua sobre um corpo vivo; é ainda com o mesmo fluido que ele se manifesta agindo sobre a matéria inerte, e que produz ruídos, movimentos de mesas e outros objetos que levanta, derruba ou transporta. Esse fenômeno nada tem de surpreendente, se considerarmos que, entre nós, os mais poderosos motores se encontram nos fluidos mais rarefeitos, e mesmo imponderáveis, como o ar, o vapor e a eletricidade.
É igualmente com o auxílio de seu perispírito que o Espírito faz o médium escrever, falar ou desenhar; não tendo um corpo tangível para agir ostensivamente quando deseja manifestar-se, serve-se do corpo de um médium, de quem toma os órgãos por empréstimo; faz seus órgãos, assim, agir como se fosse seu próprio corpo, e isso, mediante o eflúvio fluídico que verte sobre ele.
42. É pelo mesmo meio que o Espírito age sobre a mesa, seja para a fazer mover em significação determinada, seja para fazer com que ela receba golpes inteligíveis, que indicarão as letras do alfabeto para formar palavras e frases, fenômeno esse designado sob o nome de tiptologia. A mesa aqui não passa de um instrumento do qual o Espírito se serve, como o faria de um lápis para escrever; dá-lhe momentânea vitalidade, pelo fluido que a penetra mas não se identifica com ela. As pessoas que, tomadas de emoção, diante da manifestação de um ser que lhes é querido, abraçam a mesa, praticam um ato ridículo, pois absolutamente como se abraçassem o bastão do qual se serve um amigo, para desferir pancadas. O mesmo se aplica aos que dirigem a palavra à mesa, como se o Espírito estivesse encerrado na madeira, ou como se a madeira se tivesse tornado Espírito.
Quando se realizam comunicações por este modo, será preciso imaginar o Espírito, não na mesa, mas a seu lado, tal como estaria se estivesse vivo, e tal como seria visto, se nesse momento isto se desse. O mesmo se aplica nas comunicações através da escrita; conceituaremos o Espírito ao lado do médium, dirigindo sua mão ou lhe transmitindo seu pensamento por uma corrente fluídica.
43. Quando a mesa se desprende do solo e flutua no espaço, sem ponto de apoio, o Espírito não a ergue com um braço, mas sim, a envolve e a penetra com uma espécie de atmosfera fluídica a qual neutraliza o efeito da gravitação, como o faz o ar nos balões e papagaios. O fluido do qual ela é penetrada lhe dá momentaneamente maior leveza específica. Quando ela está pregada no chão, encontra-se no caso análogo ao da máquina pneumática na qual se faz o vácuo. O que estamos dizendo não passa de comparações para mostrar a analogia dos efeitos, e não da absoluta semelhança das causas (O Livro dos Médiuns, cap. IV).
Depois disso, compreende-se que não é mais difícil a um Espírito erguer uma pessoa, do que erguer uma mesa, transportar um objeto de um lugar para outro, ou atirá-lo a algum lugar; estes fenômenos se produzem pela mesma lei. ([75])
Quando a mesa persegue alguém, não é o Espírito que corre, pois pode permanecer tranquilamente no mesmo lugar, mas sim que ele dá um impulso ao objeto, por meio de uma corrente fluídica, com a qual a faz mover à sua vontade.
Quando se fazem ouvir golpes na mesa ou alhures, não é que o Espírito bata com sua mão, nem com qualquer outro objeto; ele dirige sobre o ponto de onde parte o ruído um jato de fluido que produz o efeito de um choque elétrico. Ele modifica o ruído como se podem modificar os sons produzidos pelo ar. ([76])
44. Um fenômeno muito frequente na mediunidade, é a aptidão de certos médiuns para escrever numa língua que lhes seja estranha; a desenvolver pela palavra ou pela escrita, assuntos fora do alcance de sua instrução. Não é raro ver pessoas que escrevem desembaraçadamente, sem terem aprendido a escrever; outros que produzem poesia, sem jamais terem sabido fazer um verso em suas vidas; outros desenham, pintam, esculpem, compõem música, tocam um instrumento sem conhecer o desenho, a pintura, a escultura ou a arte musical. É muito frequente que um médium escrevente reproduza, sem se enganar, a escrita e a assinatura que eram usadas pelos Espíritos que se comunicam através deles, quando eram vivos, embora não os hajam conhecido.
Este fenômeno não é mais maravilhoso do que quando vemos uma criança escrever, guiada sua mão. Por esta maneira pode-se fazer com que alguém realize tudo o que se deseja. Pode-se fazer com que escreva o que se quer, numa língua qualquer, ditando-lhe as palavras, letra por letra. Compreende-se que o mesmo seja possível na mediunidade, se nos reportarmos à maneira pela qual os Espíritos se comunicam aos médiuns, os quais, em realidade, não são para eles senão instrumentos passivos. Porém, se o médium possui o mecanismo, se vence as dificuldades práticas, se as expressões lhe são familiares, enfim, se ele tem em seu cérebro os elementos daquilo que o Espírito quer fazê-lo executar, está na posição do homem que sabe ler e escrever correntemente; o trabalho é mais fácil e mais rápido; o Espírito não tem mais do que transmitir o pensamento que seu intérprete reproduz pelos meios de que dispõe.
A aptidão de um médium para coisas que lhe são estranhas também tem frequentemente ligação com os conhecimentos que possuía numa outra existência, e dos quais seu Espírito conservou a intuição. Se foi poeta ou músico, por exemplo, terá mais facilidade de assimilar o pensamento poético ou musical que se pretende reproduzir. A língua que ele ignora hoje, pode lhe ter sido familiar numa outra existência: daí resulta, para ele, uma aptidão maior para escrever mediunicamente nessa língua. ([77])
Obsessões e Possessões
45. Os maus Espíritos pululam ao redor da Terra, como consequência da inferioridade moral de seus habitantes. Sua ação malfazeja faz parte dos flagelos com os quais a humanidade se vê a braços aqui embaixo. A obsessão, que é um dos efeitos dessa ação, como as moléstias e todas as tribulações da vida, devem, pois, ser consideradas como uma prova ou uma expiação, e aceitas como tais.
A obsessão é a ação persistente que um mau Espírito exerce sobre um indivíduo. Apresenta caracteres muito diferentes, desde a simples influência moral sem sinais exteriores sensíveis, até à perturbação completa do organismo e das faculdades mentais. Oblitera todas as faculdades mediúnicas; na mediunidade auditiva e psicográfica, ela se traduz pela obstinação de um Espírito a se manifestar com exclusão de todos os outros.
46. Assim como as moléstias são o resultado das imperfeições físicas que tornam o corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre a decorrência de uma imperfeição moral, que dá entrada a um mau Espírito. A uma causa física, opõe-se uma causa física; a uma causa moral, será preciso contrapor uma causa moral. Para se preservar das moléstias, fortifica-se o corpo; para garantir-se contra a obsessão, será preciso fortificar a alma; daí resulta, para o obsedado, a necessidade de trabalhar para sua própria melhoria, o que geralmente basta, na maior parte dos casos, para o desembaraçar do obsessor, sem o auxílio de pessoas estranhas. Tal socorro torna-se necessário quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, pois então o paciente perde por vezes a sua vontade e o seu livre-arbítrio.
A obsessão é quase sempre o fato de uma vingança exercida por um Espírito, e que mais frequentemente tem sua origem nas relações que o obsedado teve com ele, em uma existência precedente.
No caso de obsessão grave, o obsedado está como que envolvido e impregnado de um fluido pernicioso que neutraliza a ação dos fluidos salutares, e os repele. É do fluido que será preciso desembaraçar-se; ora, um mau fluido não pode ser repelido por um mau. Por uma ação idêntica à do médium curador no caso de moléstia, será preciso expulsar o fluido mau com o auxílio de um fluido melhor.
Esta é a ação mecânica, porém que nem sempre basta; será preciso, também, e acima de tudo, agir sobre o ser inteligente ao qual é preciso ter o direito de falar com autoridade, e esta autoridade não é dada senão à superioridade moral; quanto maior é esta, maior a autoridade.
Mas nem tudo se resume nisso: para assegurar o livramento, será necessário levar o Espírito perverso a renunciar a seus maus desígnios; é preciso fazer nascer nele o arrependimento e o desejo do bem, com o auxílio de instruções habilmente dirigidas, em evocações particulares feitas com a finalidade de sua educação moral; então pode-se ter a doce satisfação de livrar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito.
A tarefa se torna mais fácil quando o obsedado, compreendendo a situação, traz seu auxílio de vontade e de oração; não é assim quando o doente, subjugado pelo Espírito enganador, se ilude a respeito das qualidades de seu dominador, e se compraz no erro em que este o mergulhou; pois, então, longe de auxiliar, ele repele toda assistência. É o caso da fascinação, sempre infinitamente mais rebelde que a subjugação mais violenta. (O Livro dos Médiuns, cap. XXIII).
Em todos os casos de obsessão, a oração é o mais poderoso auxiliar para agir contra o Espírito obsessor.
47. Na obsessão, o Espírito atua exteriormente por meio de seu perispírito, que ele identifica com o do encarnado; este último se encontra então enlaçado como numa teia e constrangido a agir contra sua vontade.
Na possessão, em lugar de agir exteriormente, o Espírito livre se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado; faz domicílio em seu corpo, sem que todavia este o deixe definitivamente, o que só pode ter lugar na morte. A possessão é assim sempre temporária e intermitente, pois um Espírito desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar de um encarnado, dado que a união molecular do perispírito e do corpo não pode se operar senão no momento da concepção (Cap. XI, nº 18).
O Espírito, em possessão momentânea do corpo, dele se serve como o faria com o seu próprio; fala por sua boca, enxerga pelos seus olhos, age com seus braços, como o teria feito se fosse vivo. Já não é mais como na mediunidade falante, na qual o Espírito encarnado fala transmitindo o pensamento de um Espírito desencarnado; é este último, mesmo, que fala e que se agita, e se o conhecemos quando vivo, reconheceríamos sua linguagem, sua voz, seus gestos e até a expressão de sua fisionomia.
48. A obsessão é sempre o resultado da ação de um Espírito malfeitor. A possessão pode ser o feito de um bom Espírito que quer falar e, para fazer mais impressão sobre seus ouvintes, toma emprestado o corpo de um encarnado, que este lhe cede voluntariamente tal como se empresta uma roupa. Isso se faz sem nenhuma perturbação ou incômodo, e durante esse tempo o Espírito se encontra em liberdade como no estado de emancipação, e com mais frequência se conserva ao lado de seu substituto para o ouvir.
Quando o Espírito possessor é mau, as coisas se passam por outro modo; ele não toma emprestado o corpo; ele se apodera dele, se o titular não tem força moral para resisti-lo. Ele o faz por maldade dirigida contra o possesso, a quem tortura e martiriza por todas as maneiras até pretender fazê-lo perecer, seja por estrangulamento, seja empurrando-o ao fogo ou outros lugares perigosos. Servindo-se dos membros e dos órgãos do infeliz paciente, ele blasfema, injuria e maltrata os que o rodeiam; entrega-se a excentricidades e atos que têm todos os caracteres da loucura furiosa.
Os fatos desse gênero, em diversos graus de intensidade, são muito numerosos, e muitos casos de loucura não têm outra causa senão essa. Muitas vezes, dão-se ao mesmo tempo desordens patológicas, as quais não são senão conseqüências, e contra as quais os tratamentos médicos são impotentes, enquanto subsistir a causa inicial. O Espiritismo, fazendo conhecer esta fonte de uma parte das misérias humanas, indica o meio de as remediar: este meio é agir sobre o autor do mal, que, sendo um ser inteligente, deve ser tratado pela inteligência. ([78])
49. A obsessão e a possessão são mais frequentemente individuais, mas por vezes são epidêmicas. Quando uma nuvem de maus Espíritos se abate sobre uma localidade, é como quando uma tropa de inimigos vem invadi-la. Neste caso, o número de indivíduos atingidos pode ser considerável. ([79])
Superioridade da natureza de Jesus — Sonhos —Estrela dos magos — Vista dupla — Curas — Os possessos — Ressurreições — Jesus caminha sobre as águas — Transfiguração — A tempestade amainada — As Bodas de Canaã — A multiplicação dos pães — A tentação de Jesus — Prodígios por ocasião da morte de Jesus — Aparições de Jesus depois de sua morte — Desaparecimento do corpo de Jesus
Superioridade da Natureza de Jesus
1. Os fatos relatados no Evangelho, que têm até agora sido considerados como miraculosos, pertencem, em sua maior parte, à ordem dos fenômenos psíquicos, isto é, daqueles que têm por causa primária, as faculdades e os atributos da alma. Se os aproximarmos daqueles que são descritos e explicados no capítulo anterior, sem esforço se reconhece que há entre eles identidade de causa e de efeito. A História nos mostra casos análogos em todos os tempos e em todos os povos, uma vez que, desde que existem almas encarnadas e desencarnadas, os mesmos efeitos deverão ter-se produzido. É certo que se pode contestar sobre este ponto, a veracidade da História; porém, hoje, eles se produzem sob nossos olhos, por assim dizer à vontade, e por indivíduos que nada têm de excepcional. Só o fato da reprodução de um fenômeno, em condições idênticas, é suficiente para provar que ele é possível e submetido a uma lei, e que portanto não é miraculoso.
O princípio dos fenômenos psíquicos repousa, como já o vimos, sobre as propriedades do fluido perispiritual que constitui o agente magnético; sobre as manifestações da vida espiritual durante a vida e depois da morte; enfim, sobre o estado constitutivo dos Espíritos e seu papel como força ativa da Natureza. Conhecidos esses elementos e constatados os seus efeitos, sua consequência é fazer admitir a possibilidade de certos fatos que antes eram rejeitados, a menos que se lhes atribuísse uma origem sobrenatural.
2. Sem prejulgar em nada a natureza do Cristo, cujo exame não entra no quadro desta obra, e não o considerando, por hipótese, senão como um Espírito superior, não se pode impedir que se reconheça nele um daqueles da ordem mais elevada, e que é colocado por suas virtudes bem acima da humanidade terrestre. Pelos imensos resultados que produziu, sua encarnação neste mundo não podia deixar de ser uma das missões que somente são confiadas aos mensageiros diretos da Divindade, para a realização de seus desígnios. A supor que ele não fosse o próprio Deus, mas um enviado de Deus para transmitir sua palavra, seria mais que um profeta, pois seria um Messias divino.
Como homem, tinha a organização dos seres carnais; mas como Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais que na vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre os homens não era relativa às qualidades particulares de seu corpo, mas às de seu Espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta, e ao seu perispírito alimentado pela parte a mais quintessenciada dos fluidos terrestres (Cap. XIV, nº 9). Sua alma não devia estar ligada ao corpo senão por laços estritamente indispensáveis; constantemente separada, ela devia lhe dar uma vista dupla não só permanente como também de uma penetração excepcional e por outro modo muito superior àquela que se encontra nos homens comuns. O mesmo devia acontecer com todos os fenômenos que dependem dos fluidos perispirituais ou psíquicos. A qualidade de tais fluidos lhe dava um imenso poder magnético, secundado pelo desejo incessante de fazer o bem.
Nas curas que operava, agia como médium? Pode-se considerá-lo como um poderoso médium curador? Não; pois o médium é um intermediário, um instrumento do qual se servem os Espíritos desencarnados. Ora, o Cristo não tinha necessidade de assistência, ele que assistia e auxiliava os demais; agia pois por si mesmo, em vista de seu poder pessoal, tal como o podem fazer os encarnados em certos casos, e na medida de suas forças. Aliás, qual seria o Espírito que ousaria insuflar-lhe seus próprios pensamentos e encarregá-lo de os transmitir? Se ele recebesse um influxo estranho, não poderia ser senão de Deus; segundo a definição dada por um Espírito, era o médium de Deus.
Sonhos
3. José, diz o Evangelho, foi advertido por um anjo que lhe surgiu em sonhos, e lhe disse que devia fugir para o Egito com o Menino (São Mateus, cap. II, v. 19 a 23).
As advertências por sonhos desempenham um grande papel nos livros sagrados de todas as religiões. Sem garantir a exatidão de todos os fatos relatados e sem os discutir, o fenômeno em si mesmo nada tem de anormal, quando se sabe que durante o sono o Espírito se desliga dos laços da matéria, quando entra momentaneamente na vida espiritual onde reencontra aqueles a quem já conheceu. É frequentemente este momento que os Espíritos protetores escolhem para se manifestar a seus protegidos e dar-lhes conselhos mais diretos. Os exemplos autênticos de advertências ou avisos por sonhos são numerosos, mas não se deveria deduzir que todos os sonhos sejam avisos, e anda menos que tudo quanto se veja em sonhos tenha significado. Deve-se colocar a arte de interpretar os sonhos, entre as crenças supersticiosas e absurdas. (Cap. XIX, ns. 27 e 28).
Estrela dos Magos
4. Diz-se que uma estrela apareceu aos magos que tinham vindo adorar a Jesus, que ela se deslocou diante deles para lhes indicar o caminho e parou quando chegaram. (São Mateus, cap. II, vers. de 1 a 12).
A questão não é de saber se o fato relatado por São Mateus é real, ou se não é apenas uma imagem para indicar que os magos foram guiados de maneira misteriosa para o lugar onde se encontrava o Menino, pois não existe nenhum meio de verificar o assunto; consideremos se é possível um fato dessa natureza.
Uma coisa certa é que, em tais circunstâncias, a luz não podia ser uma estrela. Assim se podia pensar, numa época em que se consideravam as estrelas como pontos luminosos fixos ao firmamento, os quais podiam cair sobre a Terra; não hoje, quando se lhes conhece a natureza.
Nem por isso deixa de ser coisa possível a aparição de uma luz com o aspecto de uma estrela, mesmo que não tenha a causa que se lhe atribui. Um Espírito pode aparecer sob forma luminosa ou transformar uma parte de seu fluido perispiritual em um ponto luminoso. Diversos fatos desse gênero, recentes e perfeitamente autênticos, não têm outra causa, e esta causa nada tem de sobrenatural. (Cap. XIV, ns. 13 e seguintes).
Vista Dupla
Entrada de Jesus em Jerusalém
5. Quando se aproximaram de Jerusalém, chegados a Betfagé, perto da montanha das Oliveiras, Jesus enviou dois de seus discípulos, — e lhes disse: Ide a esta cidade que está diante de vós, e lá chegando, encontrareis uma jumenta amarrada, e seu jumentinho perto dela; desamarrai-a e trazei-mos. — Se alguém vos disser alguma coisa, dizei-lhe que o Senhor tem necessidade deles, e logo vos deixarão trazê-los. — Ora, tudo se fez a fim de que se cumprisse a palavra do profeta: — Dizei à filha de Sion: Eis vosso rei que vem a vós, cheio de doçura, montado numa jumenta, e com o jumentinho daquela que está sob o jugo (Zacarias, IX, vers. 9, 10).
Os discípulos se foram, pois, e fizeram o que Jesus lhes ordenara. E tendo trazido a jumenta e o jumentinho, cobriram-nos com suas vestes e o fizeram montar. (S. Mateus, cap. XXI, vers. de 1 a 7).
Beijo de Judas
6. Levantai-vos, vamos! Aquele que deve me trair está perto. Ainda não terminara tais palavras, quando Judas, um dos doze, chegou, e com ele uma tropa de gente armada de espadas e paus, os quais tinham sido enviados pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. Ora, aquele que o haveria de trair lhes havia dado um sinal para o reconhecer, dizendo-lhes: Aquele que eu beijar, será o que procurais; agarrai-o. E logo aproximou-se de Jesus, e lhe disse: Mestre, eu vos saúdo; e o beijou. Jesus lhe respondeu: Amigo, que vieste fazer aqui? E ao mesmo tempo todos os outros, avançando, atiraram-se sobre Jesus e apoderaram-se dele. (S. Mateus, Cap. XXVI, vers. de 46 a 50).
Pesca Milagrosa
7. Num dia, quando Jesus estava sobre as margens do lago de Genesaré, encontrando-se comprimido pela multidão do povo, que se apertava para ouvir a palavra de Deus, viu duas barcas atracadas à borda do lago, das quais os pescadores haviam desembarcado, e lavavam suas redes. Entrou, pois, numa de tais barcas, que era de Simão, e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra; e assentando-se, ensinava ao povo de dentro da barca.
Quando cessou de falar, disse a Simão: Avançai para as águas fundas, e lançai vossas redes para pescar. — Simão lhe respondeu: Mestre, trabalhamos toda a noite sem nada apanhar, mas apesar disso, devido à vossa palavra lançarei as redes. — E tendo-as lançado, apanharam tão grande quantidade de peixes, que suas redes se romperam. — E fizeram sinais a seus companheiros, que estavam na outra barca, para que os auxiliassem. Assim o fizeram, e encheram de tal modo suas barcas, que pouco faltou para que se afundassem. (S. Lucas, Cap. V, vers. de 1 a 7).
Vocação de Pedro, André, Tiago, João e Mateus
8. Ora, andando Jesus ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, os quais lançavam suas redes ao mar, pois eram pescadores; e ele lhes disse: Segui-me, e eu vos farei pescadores de homens. — Logo eles deixaram suas redes e o seguiram.
Dali, prosseguindo, viu dois outros irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João seu irmão, que estavam num barco com Zebedeu, pai de ambos; acomodavam suas redes, e ele os chamou. No mesmo momento abandonaram suas redes e seu pai, e seguiram-no (S. Mateus, cap. IV, vers. de 18 a 22).
Jesus, saindo dali, viu ao passar um homem sentado à mesa dos impostos, chamado Mateus, ao qual disse: Segue-me; e imediatamente ele ergueu-se e o seguiu. (S. Mateus, cap. IV, vers. 9).
9. Estes fatos nada têm de surpreendente, quando se conhece o poder da vista dupla e a causa muito natural de tal faculdade. Jesus a possuía em grau supremo, e pode-se dizer que ela era o seu estado normal, o que é confirmado por um grande número de atos de sua vida, hoje explicado pelos fenômenos magnéticos e pelo Espiritismo.
A pesca qualificada de milagrosa explica-se igualmente pela vista dupla. Jesus não produziu espontaneamente os peixes, onde não existiam; ele viu, como o teria podido fazer um vidente lúcido acordado, pela vista da alma, o lugar onde eles se encontravam; pode indicar com segurança aos pescadores, onde deviam atirar suas redes.
A penetração do pensamento, e por conseguinte certas previsões, são a consequência da vista espiritual. Quando Jesus chamou a si, Pedro, André, Tiago, João e Mateus, seria necessário conhecer as suas disposições íntimas para saber que o seguiriam e que seriam capazes de preencher a missão da qual ele devia encarregá-los. Era necessário que eles mesmos tivessem a intuição dessa missão, para se abandonarem a ele. Sucede o mesmo quando, no dia da Ceia, ele anuncia que um dos doze o trairá, e que o designa dizendo que é aquele que põe a mão no prato; o mesmo se dá quando diz que Pedro o renegará.
Em muitas passagens do Evangelho, se diz: "Porém, Jesus conhecendo seus pensamentos, lhes diz..." Ora, como poderia ele conhecer os pensamentos alheios, senão pela irradiação fluídica que lhe trazia tal pensamentos, e pela vista espiritual que lhe permitia ler no foro íntimo das pessoas?
Muitas vezes, supondo que um pensamento se acha sepultado nos refolhos da alma, o homem não suspeita que traz em si um espelho onde se reflete aquele pensamento, um revelador de sua própria irradiação fluídica, impregnada dele. Se víssemos o mecanismo do mundo invisível que nos rodeia, as ramificações de tais fios condutores do pensamento que entrelaçam todos os seres inteligentes, corpóreos e incorpóreos, os eflúvios fluídicos carregados das impressões do mundo moral, e que, como correntes aéreas atravessam o espaço, ficaríamos menos surpresos quanto a certos efeitos que a ignorância atribui ao acaso. (Cap. XIV, ns. 15, 22 e seguintes).
Curas
Perda de Sangue
10. Então uma mulher, que havia doze anos sofria de uma hemorragia, — a qual muito havia sofrido nas mãos de muitos médicos, e que, tendo consumido todos os seus bens, não havia recebido nenhum alívio, mas sempre se encontrava pior, — tendo ouvido falar de Jesus, veio na multidão por detrás, e tocou suas vestes; pois ela dizia: Se eu puder ao menos tocar suas vestes, serei curada. — No mesmo momento a fonte do sangue que ela perdia se secou, e ela sentiu em seu corpo que estava curada daquela moléstia.
E logo Jesus, conhecendo a virtude que havia saído dele, voltou-se para a multidão, e disse: Quem tocou minhas vestes? Seus discípulos lhe disseram: Vedes que a multidão vos comprime por todos os lados, e perguntais quem vos tocou? E ele olhava em toda a volta dele para ver quem o havia tocado.
Porém a mulher, que sabia o que se havia passado com ela, tomada de medo e pavor, veio atirar-se a seus pés, e lhe declarou toda a verdade. E Jesus lhe disse: Minha filha, tua fé te salvou; vai em paz, e fica curada de tua moléstia. (S. Marcos, cap. V, vers. de 25 a 34).
11. Estas palavras: "Conhecendo a virtude que havia saído dele, são significativas; elas exprimem o movimento fluídico que se operou de Jesus para a mulher doente; ambos sentiram a ação que acabava de se produzir. É notável que o efeito não foi provocado por um ato de vontade de Jesus; não houve magnetização, nem imposição de mãos. A irradiação fluídica normal foi suficiente para operar a cura.
Mas por que esta irradiação se dirigiu para aquela mulher, em vez de outras, pois Jesus não estava pensando nela, e se achava rodeado pela multidão?
A razão é bem simples. O fluido, sendo dado como matéria terapêutica, deve atingir a desordem orgânica para a reparar; pode ser dirigido sobre o mal pela vontade do curador ou atraído pelo desejo ardente, a confiança, numa palavra, a fé do doente. Em relação à corrente fluídica, a primeira faz o efeito de uma bomba comprimida, e a segunda de uma bomba aspirante. Algumas vezes a simultaneidade dos dois efeitos é necessária, de outras vezes uma só basta; é o segundo caso que se positivou nesta circunstância.
Jesus tinha pois razão de dizer: "Tua fé te salvou." Compreende-se que aqui a fé não é a virtude mística, como certas pessoas entendem, mas uma verdadeira força atrativa, enquanto que aquele que não a tem opõe à corrente fluídica uma força repulsiva, ou pelo menos uma força de inércia que paralisa a ação. Assim sendo, compreende-se que de dois doentes atingidos do mesmo mal, estando na presença do curador, um possa ser curado e o outro não. Aí está um dos princípios mais importantes da medicina curadora e que explica, por uma causa muito natural, certas anomalias aparentes. (Cap. XIV, ns. 31, 32, 33).
O cego de Betsaida
12. Tendo chegado a Betsaida, foi-lhe trazido um cego que lhe pediu que o tocasse.
E tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; colocou-lhe saliva sobre os olhos, e havendo-lhe imposto as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa. O homem, olhando, lhe disse: Vejo andarem homens que me parecem árvores. — Jesus ainda lhe colocou as mãos sobre os olhos, e começou a ver melhor; e enfim ficou curado de tal forma, que via distintamente todas as coisas.
Ele o mandou em seguida para sua casa, e lhe disse: Ide à vossa casa; e se entrais na aldeia, não dizei a ninguém o que vos sucedeu. (S. Marcos, cap. VIII, vers. 22 a 26).
13. Aqui o efeito magnético é evidente; a cura não foi instantânea, porém gradual e como resultado de uma ação reiterada, embora bem mais rápida que na magnetização comum. A primeira sensação daquele homem é bem aquela que os cegos experimentam quando recobram a luz; por um efeito ótico os objetos lhe pareciam de um tamanho desmedido.
O Paralítico
14. Jesus, havendo tomado um barco, atravessou o lago e veio à sua cidade (Cafarnaum). — E como lhe apresentassem um paralítico deitado num leito, Jesus, vendo sua fé disse ao paralítico: Meu filho, tende confiança, vossos pecados vos serão perdoados.
E logo alguns dos escribas disseram entre si: Este homem blasfema. — Mas Jesus, sabendo o que eles pensavam, lhes disse: Por que tendes maus pensamentos em vossos corações? — Pois, o que é mais fácil dizer: Vossos pecados vos são perdoados, ou dizer: Erguei-vos, e andai? — Ora, a fim de que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra o poder de perdoar os pecados: Levantai-vos, disse então ao paralítico; levai vossa cama, e ide para vossa casa.
O paralítico se levantou logo e foi para sua casa. — E o povo, vendo este milagre, encheu-se de temor e rendeu graças a Deus por haver dado um tal poder aos homens. (S. Mateus, cap. IX, vers. de 1 a 8).
15. Que poderiam significar essas palavras: "Vossos pecados vos são perdoados", e o que elas poderiam servir para a cura? O Espiritismo fornece a chave, como de uma infinidade de outras palavras incompreendidas até hoje; ele nos ensina, pela lei da pluralidade das existências, que os males e as aflições da vida são freqüentemente expiações do passado, e que padecemos na vida presente as conseqüências das faltas que cometemos numa existência anterior: as diversas existências são solidárias umas com as outras até que hajamos pago a dívida de suas imperfeições.
Se, pois, a moléstia desse homem fosse uma punição pelo mal que pudera ter cometido, ao lhe dizer: "Vossos pecados vos são perdoados", era o mesmo que dizer: "Haveis pago vossa dívida; a causa de vossa moléstia é apagada por vossa fé presente; em consequência, mereceis ser libertado de vossa moléstia. "É por isso que ele disse aos escribas: "É tão fácil dizer: Vossos pecados vos são perdoados, como: Levantai-vos, e andai;" cessada a causa, o efeito deve cessar. O caso é o mesmo que para um prisioneiro a quem viessem dizer: "Vosso crime está expiado e perdoado," o que equivaleria a lhe dizer: "Podeis sair da prisão."
Os Dez Leprosos
16. Um dia, indo para Jerusalém, e passando pelos confins da Samaria e da Galileia, — estando perto de entrar numa cidade, dez leprosos vieram diante dele; e mantendo-se afastados, elevaram suas vozes e lhe disseram: Jesus, nosso mestre, tende piedade de nós, — Quando ele os percebeu, disse-lhes: Ide vos mostrar aos sacerdotes. E enquanto iam, foram curados.
Um deles, vendo que estava curado, voltou sobre seus passos, glorificando a Deus em altas vozes; — e veio atirar-se aos pés de Jesus, o rosto contra a terra, rendendo-lhe graças; e este era samaritano.
Então Jesus disse: Todos os dez não estão curados? Onde estão pois os outros nove? — Só se encontrou um que voltou, e que rendeu graças a Deus, e este é estrangeiro. — E ele lhe disse: Erguei-vos, ide: vossa fé vos salvou". (S. Lucas, cap. XVII, vers. de 11 a 19).
17. Os samaritanos eram cismáticos, aproximadamente como os protestantes em relação aos católicos, e desprezados pelos Judeus como heréticos. Jesus, curando indistintamente os samaritanos e os Judeus, deu ao mesmo tempo uma lição e um exemplo de tolerância; e fazendo ressaltar que o samaritano foi o único que voltara para dar graças a Deus, mostrou que nele havia mais da verdadeira fé e mais reconhecimento, que naqueles que se diziam ortodoxos. Acrescentando: "Vossa fé vos salvou", fez ver que Deus olha o fundo do coração e não a forma exterior da adoração. Todavia, os outros foram curados; tal era preciso para a lição que queria dar, e provar a sua ingratidão; porém, quem sabe o que terá proporcionado esse resultado, e se eles se terão beneficiado do favor que lhes fora concedido? Dizendo ao samaritano: "Vossa fé vos salvou", Jesus dá a entender que o mesmo não sucedeu com os demais.
A Mão Seca
18. Jesus entrou outra vez na sinagoga, onde encontrou um homem que tinha uma mão seca. — E ele era observado, para ver se faria uma cura num dia de sábado, a fim de buscar por isso, motivos de o acusar. E disse ele a esse homem que tinha uma mão seca: Levantai-vos, e vinde ao meio. — Depois disse-lhe: Será permitido no dia de sábado fazer o bem ou o mal, salvar uma vida, ou tirá-la? E eles permaneceram em silêncio. — Porém, ele, olhando-os com cólera, condoído de sua cegueira nos corações, disse a esse homem: Estendei vossa mão. Ele a estendeu, e ela tornou-se sã.
Logo os fariseus, tendo saído, tomaram conselho contra ele com os herodianos, sobre a maneira de o perder. — Porém, Jesus se retirou com seus discípulos em direção ao mar, onde uma grande multidão de povo o seguiu da Galileia e da Judéia, de Jerusalém, da Iduméia, e de além-Jordão; e aqueles dos arredores de Tiro e de Sidon, tendo ouvido falar das coisas que ele fazia, vieram em grande número encontrá-lo. (S. Marcos, cap. III, vers. de 1 a 8).
A Mulher Encurvada
19. Jesus ensinava na sinagoga todos os dias de sábado. — E num dia, aí viu uma mulher possuída de um Espírito que a tornava doente, já há dezoito anos; e ela estava tão encurvada, que não podia olhar para cima. — Jesus ao vê-la, chamou-a e lhe disse: Mulher, estás livre de tua enfermidade. — Ao mesmo tempo, fez-lhe a imposição das mãos; e logo ela se endireitou, e deu graças a Deus.
Porém, o chefe da sinagoga, indignado porque Jesus havia curado a mulher num dia de sábado, disse ao povo: Há seis dias destinados para trabalhar; vinde em tais dias para serdes curados e não nos de sábado.
O Senhor, tomando a palavra, lhe disse: Hipócrita, haverá entre vós alguém que não desamarra seu boi da canga ou seu jumento em dia de sábado, e não o leva a beber? Por que, pois, não se devia libertar dos laços num dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás tinha assim amarrada durante dezoito anos?
Com tais palavras, todos os seus adversários ficaram confusos e todo o povo ficou encantado de vê-lo praticar tantas ações gloriosas. (S. Lucas, cap. XIII, vers. de 10 a 18).
20. Este fato prova que naquela época a maior parte das moléstias era atribuída ao demônio, e que tal como hoje, os possessos eram confundidos com os doentes, porém em sentido inverso; isto é, que hoje, aqueles que não crêem nos maus Espíritos confundem as obsessões com as moléstias patológicas.
O Paralítico da Piscina
21. Depois disso, chegando a festa dos Judeus, Jesus foi a Jerusalém. Ora, havia em Jerusalém a piscina das ovelhas, a qual se chama em hebreu, Betsaida, a qual tinha cinco galerias — nas quais estavam deitados doentes em grande número, cegos, coxos, outros com membros dessecados, os quais todos esperavam que a água fosse agitada. Pois, o anjo do Senhor, num certo tempo, descia nessa piscina e agitava a água; e aquele que entrasse em primeiro lugar, depois que a água fosse assim agitada, seria curado, qualquer que fosse seu mal.
Ora, havia um homem que estava doente há trinta e oito anos. Jesus, tendo-o visto deitado, e conhecendo que estava doente já há tanto tempo, lhe disse: Queres ser curado? O doente respondeu: Senhor, não tenho ninguém para me lançar à piscina depois que a água for agitada; e durante o tempo que levo para lá chegar, um outro ali desce antes de mim. Jesus lhe disse: Levanta-te, pega teu leito e marcha. Naquele instante aquele homem foi curado; e tomando seu leito, começou a andar. Ora, aquele dia era um sábado.
Os Judeus disseram, pois, àquele que fora curado: Hoje é sábado; não te é permitido levar teu leito. Ele lhe respondeu: Aquele que me curou me disse: Leva teu leito e anda. — Porém, o que tinha sido curado não sabia quem ele era, pois Jesus se havia retirado da multidão que ali estava.
Depois Jesus encontrou aquele homem no Templo, e lhe disse: Tu que foste curado, não peques no futuro, para que não te aconteça coisa pior.
Aquele homem foi encontrar os Judeus, e lhes disse que era Jesus quem o curara. — E por essa razão é que os Judeus perseguiam a Jesus, porque ele fazia essas coisas no dia de sábado. — Então, Jesus lhes disse: Meu Pai não cessa de agir até o presente, e eu também ajo sem cessar. (S. João, capítulo V, vers. de 1 a 17).
22. Piscina (da palavra latina "piscis", peixe), se dizia, entre os romanos, dos reservatórios ou viveiros onde se nutriam peixes. Mais tarde, a significação dessa palavra foi estendida às bacias onde se banhavam em comum.
A piscina de Betsaida, em Jerusalém, era um poço, perto do Templo, alimentado por uma nascente, cuja água parecia ter propriedades curativas. Era sem dúvida uma fonte intermitente que, em certas épocas, golfava com força e dava movimento à água. Segundo a crença vulgar, esse movimento era o mais favorável às curas; talvez, na realidade, no momento de sua emissão, a água tivesse uma propriedade mais ativa, ou que a agitação produzida pela água fizesse vir à tona a vasa salutar para algumas moléstias. Tais efeitos são muito naturais e perfeitamente conhecidos na atualidade; mas naquela época as ciências estavam pouco adiantadas e enxergava-se uma causa sobrenatural na maior parte dos fenômenos incompreendidos. Os Judeus atribuíam pois a agitação dessa água à presença de um anjo, e tal crença lhes parecia tanto melhor fundada, quanto naquele momento a água era mais salutar.
Depois de haver curado aquele homem, Jesus lhe disse: "Para o futuro não peques mais para que não te suceda alguma coisa pior." Por essas palavras, lhe faz entender que sua moléstia era uma punição, e que, se não melhorasse, poderia ser de novo punido ainda mais rigorosamente. Esta doutrina é inteiramente conforme à que é ensinada pelo Espiritismo.
23. Jesus parecia dar preferência em operar suas curas no sábados, para ter ocasião de protestar contra o rigorismo dos fariseus no que dizia respeito à observação de tal dia. Ele queria mostrar-lhes que a verdadeira piedade não consiste na observância de práticas exteriores e de coisas formais, mas do que está nos sentimentos do coração. Ele se justifica dizendo: "Meu Pai não cessa de agir até o presente, e eu também ajo sem cessar."; isto é: "Deus não suspende suas obras nem sua ação sobre as coisas da natureza no dia de sábado; continua a fazer produzir o que é necessário à vossa nutrição e à vossa saúde, e eu sou seu exemplo".
O Cego de Nascença
24. Quando Jesus passava, viu um homem que era cego desde o seu nascimento; — e seus discípulos lhes fizeram esta pergunta: Mestre, a causa de ter este homem nascido cego, é o pecado dele, ou de seus pais?
Jesus lhes respondeu: Não é que ele haja pecado, nem aqueles que o trouxeram ao mundo; mas assim sucede para que as obras do poder de Deus brilhem nele. É preciso que eu faça as obras daquele que me enviou enquanto é dia; vem depois a noite, na qual ninguém pode agir. — Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.
Depois de ter dito isso, cuspiu no chão, e tendo feito lama com a saliva, untou com essa lama os olhos do cego, e lhe disse: Ide vos lavar na piscina de Siloé, que significa Enviado. Ele foi pois, lavou-se, e voltou com vista.
Seus vizinhos e os que haviam visto antes a pedir esmolas, diziam: Não é este que estava sentado, e que pedia esmolas? Uns respondiam: Sim, é ele; outros diziam: Não, é alguém que com ele se parece. Porém ele lhes dizia: Sou eu mesmo. — E então lhe perguntavam: Como é que vossos olhos estão abertos? — Ele lhes respondia: Este homem a quem chamais Jesus fez lama e untou meus olhos, e me disse: Ide à piscina de Siloé, e banhai-vos aí. Eu fui, lavei-me, e vejo. — Eles lhe diziam: Onde está ele? E a resposta: Não sei.
Então levaram-no aos fariseus, a este homem que tinha sido cego. — Ora, era o dia de sábado, quando Jesus fez a lama e lhe abrira os olhos.
Os fariseus o interrogaram pois, para saber como é que havia recuperado a visão. E ele lhes disse: Ele colocou lama sobre meus olhos; lavei-me, e vejo. — E sobre isso alguns fariseus diziam: Este homem não é enviado de Deus, pois não guarda o sábado. Porém outros diziam: Como poderia um homem mau fazer tais prodígios? E assim havia divisão entre eles.
Novamente disseram ao cego: E tu, que dizes deste homem que te abriu os olhos? Respondeu-lhes: Digo que é um profeta. — Mas os Judeus não acreditaram que esse homem tivesse sido cego, e que recuperara a vista, até que tivessem feito vir seu pai e sua mãe, — a quem interrogaram, dizendo-lhes: Este é vosso filho que dizeis ter nascido cego? Como é então que agora vê? O pai e a mãe responderam: Sabemos que este é nosso filho, e que nasceu cego: — mas não sabemos como é que agora ele vê, e não sabemos quem é que lhe abriu os olhos. Perguntai a ele; é maior de idade, e que fale por si mesmo.
Seu pai e sua mãe assim falavam, porque temiam os Judeus; pois estes já haviam resolvido em conjunto que quem quer que reconhecesse a Jesus como sendo o Cristo, seria expulso da sinagoga. — Isso foi o que obrigou o pai e a mãe a responderem: Ele é maior de idade, interrogai-o.
Chamaram pois uma segunda vez a esse homem que tinha sido cego, e lhe disseram: Rende glória a Deus; sabemos que esse homem é um pecador. — Ele lhes respondeu: Se é um pecador, não sei; mas tudo o que sei, é que eu era cego, e agora vejo. — Ainda lhe diziam: O que ele te fez, e como ele te abriu os olhos? — Respondeu-lhes: Já vos disse, e o haveis entendido; por que quereis ouvir mais uma vez? Será que quereis ser seus discípulos? — Ao que eles o carregaram de injúrias, e lhe disseram: Sê tu mesmo seu discípulo; quanto a nós, somos discípulos de Moisés. — Sabemos que Deus falou a Moisés, mas quanto a este, não sabemos de onde saiu.
Aquele homem lhes respondeu: Eis o que é mais admirável, que não saibais de onde saiu, e que ele me abrisse os olhos. — Ora, sabemos que Deus não exalta os pecadores; porém se alguém o honra e faz sua vontade, é a este que ele exalta. — Desde que o mundo é mundo, jamais se ouviu dizer que alguém haja aberto os olhos a um cego de nascença. — Se este homem não é um enviado de Deus, não poderia fazer nada, de tudo quanto tem feito.
Responderam-lhe: Tu não és senão pecado desde o ventre de tua mãe, e queres nos ensinar? E o expulsaram. (S. João, cap. IX, vers. de 1 a 34).
25. Este relato, tão simples e tão ingênuo, traz em si um caráter evidente de verdade. Nada de fantástico nem de maravilhoso; é uma cena da vida real, tomada no lugar do acontecimento. A linguagem desse cego é bem aquela dos homens simples nos quais o saber é suprido pelo bom senso, e que retrucam os argumentos de seus adversários com bonomia, e por razões a que não falta nem justeza nem a oportunidade. O tom dos fariseus não é o dos orgulhosos que nada admitem acima de suas inteligências, e se indignam só com o pensamento de que um homem do povo possa lhes indicar a verdade? Afora a cor local dos nomes, poder-se-ia dizer que se trata do nosso tempo.
Ser expulso da sinagoga equivalia a ser posto fora da Igreja; era uma espécie de excomunhão. Os Espíritas, cuja doutrina é a do Cristo interpretada segundo o progresso das luzes atuais, são tratados como os Judeus que reconheciam a Jesus como Messias; mediante sua excomunhão, são colocados fora da Igreja, como fizeram os escribas e os fariseus com relação aos partidários de Jesus. Assim, eis um homem que é expulso, porque não podia crer que aquele que o havia curado fosse um possesso do demônio, e porque glorificava a Deus por sua cura! Não é isso o que fazem com relação aos Espíritas? Aquilo que obtêm, sábios conselhos dos Espíritos, retorno a Deus e ao bem, curas, tudo é obra do diabo e é coberto de anátema. Não se veem’’ padres dizerem, do alto de seus púlpitos, que era preferível continuar incrédulo do que voltar à fé através do Espiritismo? Não se tem visto dizer a doentes que não deviam se fazer curar pelos Espíritas que possuem este dom, porque é um dom satânico? A outros, pregar que os infelizes não deviam aceitar o pão distribuído pelos Espíritas, porque era o pão do diabo? Que diziam e que faziam de mais os padres judeus e os fariseus? Aliás, fomos avisados de que tudo deve se passar hoje, como no tempo do Cristo.
Esta pergunta dos discípulos: Será o pecado deste homem que é causa de ser ele nascido cego? Indica a intuição de uma existência anterior, pois por outro modo ela não teria sentido; pois o pecado que seria a causa de uma enfermidade de nascença deveria ter sido cometido depois do nascimento, e, por conseguinte, numa existência anterior. Se Jesus ali tivesse visto uma ideia falsa, ter-lhes-ia dito: "Como este homem teria podido pecar antes de ter nascido?" Em vez disso, ele lhes diz que este homem é cego, não porque haja pecado, mas a fim de que o poder de Deus brilhe nele, isto é, que ele devia ser o instrumento de uma manifestação do poder de Deus. Se isso não se deu por uma expiação do passado, era uma prova que devia servir a seu progresso, pois Deus, que é justo, não lhe podia impor um sofrimento sem compensação.
Quanto ao meio empregado para o curar, é evidente que a espécie de lama feita com a saliva e a terra não podia ter virtude senão pela ação do fluido curador do qual ela estava impregnada; é assim que as substâncias as mais insignificantes, a água, por exemplo, podem adquirir qualidades poderosas e eficientes sob a ação do fluido espiritual ou magnético ao qual elas servem de veículo, ou se quiserem, de reservatório.
Numerosas Curas de Jesus
26. Jesus ia por toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o Evangelho do reino, e curando todas as fraquezas e todas as moléstias por entre o povo. — E sua reputação se espalhou por todos os povos da Síria, que lhes apresentavam todos os que estavam doentes, e diversamente afligidos de males e de dores, os possessos, os lunáticos, os paralíticos, e ele os curava; — e uma grande multidão de povo o seguiu da Galileia, da Decápode, de Jerusalém da Judéia, e de além-Jordão. (S. Mateus, cap. IV, vers. 23, 24 e 25)
27. De todos os fatos que testemunham o poder de Jesus, os mais numerosos, sem contradita, são as curas; ele queria provar por isso que o verdadeiro poder era o do bem, que sua finalidade era de se tornar útil, e não de satisfazer a curiosidade dos indiferentes, mediante coisas extraordinárias.
Ao aliviar os sofrimentos, ele subjugava a si as pessoas pelo coração, e fazia para si prosélitos mais numerosos e mais sinceros do que o teria conseguido pelo espetáculo oferecido à satisfação dos olhos. Por esse meio ele se fazia amar, enquanto que, se se houvesse limitado a produzir efeitos materiais surpreendentes, como lhe pediam os fariseus, a maior parte não teria visto nele senão um feiticeiro e um hábil mágico, a quem os desocupados iriam ver para se distraírem.
Assim, quando João Batista lhe envia seus discípulos para lhe perguntar se ele era o Cristo, ele não diz: "Eu o sou", pois todo e qualquer impostor teria podido dizer o mesmo; ele não fala de prodígios, nem de coisas maravilhosas, mas lhes responde simplesmente: "Ide dizer a João: os cegos veem, os doentes são curados, os surdos ouvem, o Evangelho é anunciado aos pobres." Isso era o mesmo que lhes dizer: "Reconhecei minhas obras, julgai a árvore pelo seu fruto," pois aí está o verdadeiro caráter de sua missão divina.
28. É também pelo bem que pratica, que o Espiritismo prova sua missão providencial. Ele cura os males físicos, mas cura sobretudo as moléstias morais e aí estão os maiores prodígios mediante os quais ele se afirma. Seus mais sinceros adeptos não são aqueles que foram atingidos pela observação de fenômenos extraordinários, mas aqueles que foram tocados no coração, pelo conforto; aqueles que foram libertados das torturas da dúvida; aqueles cuja coragem foi revelada nas aflições, que hauriram forças na certeza do futuro que lhes foi revelado, no conhecimento de seu ser espiritual e de seu destino. Eis aqueles cuja fé é inquebrantável porque sentem e compreendem.
Os que não podem ver no Espiritismo senão efeitos materiais não podem compreender seu poder moral; também os incrédulos, que só o conhecem por fenômenos dos quais não admitem a causa primeira, só vêem nos Espíritas, mágicos e charlatães. Não é, pois, mediante a produção de prodígios que o Espiritismo triunfará da incredulidade: é multiplicando seus benefícios morais, pois se os incrédulos não admitem os prodígios, conhecem, como todo o mundo, o sofrimento e as aflições, e ninguém recusa alívio e consolação.
Os Possessos
29. Vieram em seguida a Cafarnaum; e Jesus, entrando primeiramente no dia de sábado, na sinagoga, os instruiu; — e admiravam-se de sua doutrina, pois que os instruía como quem tem autoridade, e não como os escribas.
Ora, encontrava-se na sinagoga um homem, possuído por um Espírito impuro, que gritava dizendo: Que há entre vós e nós, Jesus de Nazaré? Viestes para nos perder? Sei quem vós sois: vós sois o santo de Deus. — Mas Jesus, falando-lhe com tom de ameaça, lhe dizia: Cala-te e sai desse homem. — Então o Espírito impuro, agitando-se com violentas convulsões, e soltando um grande grito, saiu dele.
Todos ficaram tão surpresos, que perguntavam-se uns aos outros: Que é isto? E qual é esta nova doutrina? Ele manda com império, mesmo aos Espíritos impuros, e eles obedecem. (S. Marcos, Cap. I, vers. de 21 a 27).
30. Depois que saíram, foi-lhes trazido um homem mudo possesso do demônio. — O demônio, tendo sido expulso, o mudo falou, e o povo, tomado de admiração, dizia: Jamais se viu algo semelhante em Israel.
Porém, os fariseus diziam ao contrário: É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios. (S. Marcos, cap. IX, vers. 32, 33 e 34).
31. Quando ele veio ao lugar onde estavam os outros discípulos, viu uma grande multidão de pessoas em redor deles, e escribas que com eles disputavam. — Logo o povo, tendo percebido Jesus, foi tomado de espanto e de temor; acorrendo, saudaram-no.
Então ele lhes perguntou: Sobre quê disputáveis em assembleia? — E um homem de entre o povo, tomando a palavra, lhe disse: Mestre, eu vos trouxe meu filho que está possuído de um Espírito mudo; — e em qualquer lugar que ele se apodere de meu filho, o atira ao chão, e o menino espuma, rilha os dentes, e torna-se mirrado. Pedi a vossos discípulos que o curassem, porém não puderam.
Jesus lhe respondeu: Oh! Gente incrédula! Até quando estarei convosco? Até quando sofrerei convosco? Trazei-mo! E trouxeram-no. E não havia ele ainda posto os olhos em Jesus, o Espírito começou a se agitar com violência, e caiu ao chão, onde rolava e se espumava.
Jesus perguntou ao pai do menino: Há quanto tempo isso lhe sucede? Desde sua infância, disse o pai. — E o Espírito o tem lançado muitas vezes, ora ao fogo, ora à água, para o fazer perecer; mas se podeis fazer qualquer coisa, tende compaixão, de nós, e socorrei-o.
Jesus lhe respondeu: Se podes crer, tudo é possível àquele que crê. — E logo o pai do menino, gritando, lhe diz com lágrimas: Senhor, eu creio, ajudai-me na minha incredulidade.
E Jesus, vendo que o povo acorria em multidão, falou com ameaça ao Espírito impuro, e lhe disse: Espírito surdo e mudo sai do menino, eu te ordeno e não entres mais aí. — Então, o Espírito, tendo soltado um grande grito, tendo-o agitado por violentas convulsões, saiu, e o menino ficou como morto, de sorte que diversos disseram que morrera. Porém, tendo Jesus o tomado pela mão, o soergueu, e ele se levantou.
Quando Jesus entrou na casa, seus discípulos lhe disseram em particular: De onde vem o fato de que não pudemos expulsar esse demônio? — Ele lhes respondeu: Essas espécies de demônios não pode ser expulsa senão por meio da oração e do jejum. (S. Marcos, cap. IX, vers. de 13 a 28).
32. Então foi-lhe apresentado um possesso cego e mudo, e ele o curou, de modo a que começou a falar e a ver. Todo o mundo ficou cheio de admiração, e dele diziam: Não é este o filho de Davi?
Porém os fariseus, ouvindo isso, diziam: Este homem expulsa os demônios por virtude de Belzebu, príncipe dos demônios.
Ora, Jesus, conhecendo seus pensamentos, lhes disse: Todo reino dividido contra si mesmo será arruinado; e toda cidade ou casa que esteja dividida contra si mesma, não poderá subsistir. — Se Satanás expulsa a Satanás é dividido contra si mesmo; como, pois, seu reino subsistirá? — E se é por Belzebu que expulso os demônios, por quem vossos filhos os expulsam? É por isso que eles mesmos serão vossos juízes. — Se expulso os demônios pelo Espírito de Deus, o reino de Deus chegou a vós. (S. Mateus, Cap. XII, vers. 22 a 28).
33. Com as curas, as libertações de possessos figuram entre os mais numerosos atos de Jesus. Entre os fatos desta natureza, alguns há como este que é relatado acima, nº 30, no qual a possessão não é evidente. É provável que naquela época, como ainda sucede em nossos dias, se atribuísse à influência dos demônios todas as moléstias cuja causa fosse desconhecida, principalmente a mudez, a epilepsia e a catalepsia. Porém há casos em que a ação dos maus Espíritos não é duvidosa; há casos que têm analogia tão chocante com alguns dos quais somos testemunhas, que reconhecemos todos os sintomas de tal gênero de afecção. A prova da participação de uma inteligência oculta, em casos idênticos, brota de um fato material; são as numerosas curas radicais obtidas, em alguns centros espíritas, unicamente pela evocação e moralização de Espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicação, e frequentemente estando o paciente ausente e à distância. A imensa superioridade do Cristo dava-lhe tal autoridade sobre os Espíritos imperfeitos, então chamados demônios, que lhe bastava recomendar que se retirassem, para que eles não pudessem resistir a tal injunção. (Cap. XIV, nº 46).
34. O fato de serem alguns maus espíritos enviados aos corpos de porcos é contrário a toda probabilidade. Aliás, seria dificilmente explicável a presença de um rebanho tão numeroso de porcos num país onde esse animal era tido em horror e sem utilidade para a alimentação. Um Espírito mau não deixa de ser um Espírito humano ainda bastante imperfeito para praticar o mal após a morte, tal como o fazia antes; é contra as leis da natureza, que ele possa animar o corpo de um animal; devemos, pois, reconhecer nesse pretenso fato, uma dessas amplificações comuns nos tempos de ignorância e superstição ou talvez uma alegoria para caracterizar as inclinações imundas de certos Espíritos.
35. Os obsedados e os possessos parecem ter sido muito numerosos na Judéia, no tempo de Jesus, o que lhe dava oportunidade para curar a muitos. Os maus Espíritos tinham sem dúvida feito invasão nesse país, e causado uma epidemia de possessões. (Cap. XIV, nº 49).
Mesmo não sendo no estado epidêmico, as obsessões individuais são extremamente frequentes e apresentam-se sob aspectos muito variados, facilmente reconhecíveis por um conhecimento aprofundado do Espiritismo, muitas vezes elas podem ter consequências danosas à saúde, seja agravando afecções orgânicas, seja causando-as. Incontestavelmente elas serão um dia classificadas entre as causas patológicas que exigem, por sua natureza especial, meios curativos especiais. O Espiritismo, fazendo conhecer a causa do mal, abre um novo caminho à arte de curar e fornece à ciência o meio de ser bem sucedida onde ela só faz malograr, muitas vezes por não atacar a causa primária do mal. (O Livro dos Médiuns, Cap. XXIII).
36. Jesus era acusado pelos fariseus, de expulsar os demônios usando outros demônios; o bem que fazia, segundo eles, era obra de Satanás, sem refletir que seria insensato o ato de Satanás expulsar a si mesmo. É notável que os fariseus daquele tempo pretendessem que toda faculdade transcendente, e por este motivo considerada sobrenatural, era obra do demônio, pois que, segundo eles, Jesus mesmo recebia dele tal poder; é um ponto de semelhança com a época atual, e esta doutrina ainda é aquela que a Igreja procura fazer prevalecer hoje, contra as manifestações espíritas. ([80])
Ressurreição
A Filha de Jairo
37. Tendo Jesus novamente passado de barco para a outra margem, logo que desembarcou, uma grande multidão se reuniu em redor dele. E um chefe da sinagoga, chamado Jairo, veio a seu encontro; e encontrando-o, atirou-se a seus pés, — e suplicava-lhe com grande sentimento dizendo-lhe: Tenho uma filha que está agonizando; vinde impor-lhe as mãos para curá-la e salvar-lhe a vida.
Jesus foi com ele, e era seguido de grande multidão que o comprimia.
Enquanto Jairo ainda falava, vieram pessoas que lhe eram subordinadas, as quais lhe disseram: Vossa filha está morta; por que quereis dar ao Mestre o incômodo de ir mais longe? — Porém Jesus, tendo ouvido tais palavras, disse ao chefe da sinagoga: Não temais, crede somente. — E a ninguém permitiu que o seguisse, exceto Pedro, Tiago e João irmão de Tiago.
Chegados à casa desse chefe da sinagoga, viram um grupo confuso de pessoas que choravam e lançavam grandes gritos; — e entrando, disse-lhes: Por que fazeis tanto barulho, e por que chorais? Esta moça não está morta, ela apenas está adormecida. — E troçavam dele. tendo feito sair a todos, tomou o pai e a mãe e aqueles que com ele tinham vindo, e entrou no local onde estava deitada a moça. Tomou-a pela mão e disse-lhe: "Talitha cumi", isto é, minha filha, levanta-te, eu o ordeno. — No mesmo instante, a moça se levantou e pôs-se a andar; pois contava doze anos, e ficaram todos maravilhados e espantados. (S. Marcos, cap. V, vers. 21 a 43).
O Filho da Viúva de Naim
38. No dia seguinte Jesus foi a uma cidade chamada Naim, e seus discípulos o acompanhavam com uma grande multidão de povo. Quando estavam perto da porta da cidade, sucedeu que traziam um morto a enterro; tratava-se do filho único de sua mãe, que era viúva, e havia grande número de pessoas da cidade com ela. O Senhor tendo-a visto, tocou-se de compaixão por ela, e lhe disse: Não chores mais. — Depois, aproximando-se, tocou o esquife, e os que o conduziam pararam. Então disse: Jovem, levanta-te, eu te ordeno. — Ao mesmo tempo o morto se ergueu, sentou-se, e começou a falar, e Jesus o entregou à sua mãe.
Todos que estavam presentes foram tomados de terror, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo. — O rumor desse milagre espalhou-se por toda a Judéia e em todos os países em seu derredor. (S. Lucas, cap. VII vers. de 11 a 17).
39. O fato da volta à vida corporal, de um indivíduo realmente morto, seria contrário às leis da natureza, e por conseguinte, mais miraculoso. Ora, não é necessário recorrer a esta ordem de fatos para explicar as ressurreições operadas pelo Cristo.
Se, entre nós, as aparências enganam por vezes os profissionais, os acidentes dessa natureza deviam ser bem mais frequentes num país onde não se tomasse nenhuma precaução, e onde o sepultamento fosse imediato. ([81]) Há, pois, toda a probabilidade de que, nos dois exemplos acima citados apenas houve síncope e letargia. Jesus mesmo o diz, positivamente, em relação à filha de Jairo: Esta moça não está morta, ela apenas está adormecida.
Dado o poder fluídico que possuía Jesus, nada há de espantoso que o fluido vivificante, dirigido por uma forte vontade, haja reanimado os sentidos entorpecidos; e mesmo, que ele tenha podido voltar ao corpo o Espírito prestes, a deixá-lo, enquanto o liame perispiritual não estivesse definitivamente rompido. Para os homens daquele tempo, que julgavam estar o indivíduo morto, desde que não respirasse mais, houve ressurreição, e isso terão podido afirmar, com toda boa fé; porém, houve na realidade cura, e não ressurreição, na acepção da palavra.
40. A ressurreição de Lázaro, digam o que disserem, não invalida de modo nenhum esse princípio. Diz-se que ele já estava há quatro dias no sepulcro; mas sabe-se que há letargias que duram oito dias, e mesmo mais. Acrescenta-se que ele cheirava mal o que é um sinal de decomposição. Essa alegação não prova nada, visto que em certos indivíduos há decomposição parcial do corpo, mesmo antes da morte, e exalam odor de apodrecimento. A morte não chega senão quando os órgãos essenciais à vida são atacados. E quem podia saber se ele cheirava mal? É sua irmã Marta que o diz; mas como sabia? Lázaro se achava enterrado há quatro dias, ela supunha isso, mas não podia ter certeza. (Cap. XIV, nº 29). (2[82])
Jesus Caminha Sobre as Águas
41. Logo, Jesus fez com que seus discípulos embarcassem e atravessassem antes dele, enquanto ficava a despedir o povo. Depois de haver mandado o povo embora, subiu sozinho ao alto de uma montanha, para orar; e tendo chegado a tarde, encontrou-se sozinho naquele lugar.
Enquanto isso, a barca era fortemente açoitada pelas ondas no meio do mar, pois o vento lhe era contrário. Porém, na quarta vigília da noite, Jesus veio andando sobre o mar. ([83]) Quando eles o viram assim andar por sobre as águas, turbaram-se, e diziam: É um fantasma; e gritavam atemorizados. Logo Jesus lhes falou e lhes disse: Tranquilizai-vos, sou eu, não temais.
Pedro lhe respondeu: Senhor, se és tu, ordena que eu vá contigo andando sobre as águas. Jesus lhe disse: Vem. E Pedro, descendo da barca, andou sobre a água para ir a Jesus. Mas vendo soprar um grande vento, teve medo; e começou a afundar, e gritou: Senhor, salva-me. — Logo, Jesus, dando-lhe a mão, o tomou e disse: Homem de pouca fé, por que duvidaste? — E subindo à barca, o vento cessou. Então, aqueles que estavam nessa barca, aproximando-se dele, o adoraram dizendo: Sois verdadeiramente filho de Deus. (S. Mateus, cap. XIV, vers. de 22 a 33).
42. Este fenômeno encontra sua explicação natural nos princípios acima expostos, cap. XIV, nº 43.
Exemplos análogos provam que isso nem é impossível, nem milagroso, pois que está nas leis da Natureza. Pode ser produzido por duas maneiras.
Jesus, mesmo vivo, pôde aparecer sobre a água sob uma forma tangível, enquanto seu corpo carnal se encontrava alhures; é a hipótese mais provável. Neste relato, pode-se mesmo reconhecer certos sinais característicos das aparições tangíveis. (Cap. XIV, ns. 35 a 37).
Por outro lado, seu corpo poderia ser sustentado, e a gravidade ser neutralizada pela mesma força fluídica que mantém uma mesa no espaço sem ponto de apoio. O mesmo efeito tem se produzido muitas vezes sobre corpos humanos.
Transfiguração
43. Seis dias depois, tendo Jesus tomado a Pedro, Tiago e João consigo, os levou a sós com ele sobre uma alta montanha a um lugar afastado, e ali transfigurou-se diante deles. E enquanto fazia sua oração, seu rosto parecia ser inteiramente outro; suas vestes tornaram-se brilhantes de luz, e brancas como a neve, de modo tal que não há sobre a terra, alvejante que os possa assim tornar brancos. E viram aparecer Elias e Moisés, que conversavam com Jesus.
Então, disse Pedro a Jesus: Mestre, estamos bem aqui; façamos três tendas: uma para vós, uma para Moisés, e uma para Elias: — pois nem sabia o que dizia, de tão maravilhado que estava.
Ao mesmo tempo, apareceu uma nuvem que os cobriu; e dessa nuvem saiu uma voz que assim dizia: Este é o meu filho bem amado; escutai-o.
Logo, olhando de todos os lados, não viram mais ninguém senão a Jesus, que permanecera com eles.
Quando desciam da montanha, ele lhes ordenou que a ninguém falassem do que haviam visto, até que o Filho do homem ressuscitasse de entre os mortos. — E conservaram secretas essas coisas, perguntando uns aos outros o que queria ele dizer com aquelas palavras: Até que o Filho do Homem ressuscitasse de entre os mortos. (S. Marcos, cap. IX, vers. de 1 a 9).
44. É ainda nas propriedades do fluido perispiritual que se podem encontrar as razões deste fenômeno. A transfiguração, explicada no cap. XIV, nº 39, é um fato bastante comum que, por consequência da irradiação fluídica, pode modificar a aparência de um indivíduo; porém a pureza do perispírito de Jesus podia permitir a seu Espírito, dar-lhe um brilho excepcional. Quanto à aparição de Moisés e de Elias, ela entra inteiramente no caso de todos os fenômenos do mesmo gênero. (Cap. XIV, ns. 35 e seguintes).
De todas as faculdades que se revelaram em Jesus, não há nenhuma que esteja fora das condições da humanidade, e que não seja encontrada no comum dos homens, pois elas estão na natureza; mas pela superioridade de sua essência moral e de suas qualidades fluídicas, elas atingiam nele proporções acima das do vulgo. Ela nos representaria, à parte do seu envoltório carnal, o estado dos Espíritos puros.
A Tempestade Amainada
45. Um dia, estando sobre um barco com seus discípulos, disse-lhes: Passemos à outra margem do lago. E, pois, partiram. E enquanto passavam, ele adormeceu. — Então um grande turbilhão de vento veio de súbito abater-se sobre o lago, de modo que seu barco se enchia de água, e eles estavam em perigo. Aproximaram-se dele, e o despertaram, dizendo-lhe: Mestre, nós perecemos. Jesus, levantando-se, falou com ameaça às ondas agitadas, e elas se amainaram, e fez-se uma grande calma. — Então ele lhes disse: Onde, pois, está vossa fé? Porém, eles, cheios de medo e de admiração, diziam uns aos outros: Quem é pois este, que ordena desta maneira às ondas e aos ventos, e eles lhes obedecem? (S. Lucas, cap. VIII, vers. de 22 a 25).
46. Ainda não conhecemos bastante os segredos da Natureza, para afirmar se há ou não, inteligências ocultas que presidem à ação dos elementos. Na hipótese afirmativa, o fenômeno em questão poderia ser o resultado de um ato de autoridade sobre essas mesmas inteligências, e provaria um poder que a nenhum homem é dado exercer.
Em todo o caso, Jesus, dormindo tranquilamente durante a tempestade, atesta uma segurança que pode se explicar pelo fato de que seu Espírito via que não havia perigo algum, e que a tempestade iria amainar-se.
As Bodas de Caná
47. Este milagre, mencionado apenas no Evangelho de S. João, é indicado como o primeiro que Jesus praticou, e por isso deveria ter sido um dos mais notados. Entretanto, bem fraca impressão deve ter causado, pois nenhum outro evangelista fala dele. Um fato assim extraordinário deveria ter causado admiração aos convivas, no mais alto grau, e sobretudo ao dono da casa, e no entanto, essas pessoas nem sequer parecem ter-se apercebido do incidente.
Considerado em si mesmo, este fato tem pouca importância se o compararmos com aqueles que testemunham verdadeiramente as qualidades espirituais de Jesus. Admitindo que as coisas se hajam passado como são relatadas, é notável tratar-se do único fenômeno desse gênero que ele tenha produzido; ele era de uma natureza demais elevada para se deter em efeitos puramente materiais, unicamente próprios a atiçar a curiosidade da multidão, que o haveria assimilado a um mágico; ele sabia que as coisas úteis lhe conquistariam mais simpatia e lhe trariam mais adeptos que aquelas que poderiam passar por fruto de destreza, e não tocariam o coração. (Nº 27).
A rigor, o fato pode ser explicado até certo ponto pela ação fluídica que, assim como o magnetismo nos oferece exemplos, teria mudado as propriedades da água conferindo-lhe o gosto do vinho; no entanto, esta hipótese é pouco provável, visto que num caso destes, se a água apenas tivesse o gosto do vinho, teria conservado sua cor, o que não poderia deixar de ser notado. É mais racional ver aí uma dessas parábolas tão frequentes nos ensinamentos de Jesus, como a do filho pródigo, da festa de bodas, do mau rico, da figueira seca, e tantas outras que têm entretanto o caráter dos fatos consumados. Ele teria feito durante a refeição uma alusão ao vinho e à água, do que teria tirado uma instrução. O que justifica essa opinião, são as palavras que a tal respeito lhe dirige o mestre de cerimônias: "Todos servem a princípio o bom vinho, e depois que já beberam bastante, servem então o de inferior qualidade; mas vós reservastes o bom vinho até esta hora."
Entre estas duas hipóteses, será necessário escolher a mais racional, e os Espíritos não são tão crédulos que vejam por toda a parte manifestações, nem tão absolutos para pretender explicar tudo pelos fluidos.
Multiplicação dos Pães
48. A multiplicação dos pães é um dos milagres que mais tem intrigado os comentadores, ao mesmo tempo que tem alimentado as zombarias dos incrédulos. Sem se dar ao trabalho de sondar o sentido alegórico, estes nada veem senão um conto pueril; porém a maior parte das pessoas sérias viram neste relato, embora sob uma forma diferente da comum, uma parábola comparando o alimento espiritual da alma ao alimento do corpo.
Pode-se, todavia, perceber aí mais que uma figura, e admitir, num certo ponto de vista, a realidade de um fato material, sem por isso recorrer ao prodígio. Sabe-se que uma grande preocupação de espírito ou a atenção fixada sobre um assunto, fazem esquecer a fome. Ora, aqueles que seguiam a Jesus eram pessoas ávidas de ouvi-lo; nada há de espantoso que, fascinados por sua palavra e talvez também pela poderosa ação magnética que ele exercia sobre seu auditório, não sentissem a necessidade material de comer.
Jesus, que previa esse resultado, pôde, pois, tranqüilizar seus discípulos, dizendo na linguagem figurada que lhe era habitual, e admitindo que alguém houvesse realmente trazido alguns pães, que os mesmos seriam suficientes para matar a fome da multidão. Dava ao mesmo tempo a estes uma lição: "Dai-lhes de comer, vós mesmos", dizia; ele lhes ensinava com isto, que assim podiam nutrir pela palavra.
Assim, ao lado do sentido alegórico moral, ele pôde produzir um efeito fisiológico natural, muito conhecido. O prodígio, neste caso, está na ascendência da palavra de Jesus, bastante poderosa para cativar a atenção de uma multidão imensa, ao ponto de fazê-la esquecer de comer. Este poder moral testemunha a superioridade de Jesus, muito mais que o fato puramente material da multiplicação dos pães, que deve ser considerado como uma alegoria.
Esta explicação se encontra aliás confirmada pelo próprio Jesus, nas duas passagens seguintes:
O Fermento dos Fariseus
49. Ora, seus discípulos tendo passado além da água, tinham esquecido de levar pães. — Jesus lhes disse: Tende cuidado de vos guardar do fermento dos fariseus e dos saduceus. — Porém pensavam e diziam entre si: Isto é porque não trouxemos pães.
Jesus, conhecendo isso, lhes disse: Homens de pouca fé, por que comentais entre vós a respeito de não terdes trazido pães? Não compreendestes ainda, e não vos lembrais que cinco pães foram bastante para cinco mil homens, além do quanto sobrou nas cestas? — Como é que não compreendeis que não vos falo do pão, quando vos alerto para vos guardardes do fermento dos fariseus e dos saduceus?
Então compreenderam que ele não se referia ao fermento que se coloca nos pães, mas da doutrina dos fariseus e dos saduceus. (S. Mateus, cap. XVI, vers. 5 a 12).
O Pão do Céu
50. No dia seguinte, o povo, que permaneceu no outro lado do mar, notou que daquele lado não havia barca, e que Jesus não entrara na que seus discípulos haviam tomado, que os seus discípulos haviam partido sós, — e como tinham chegado depois outras barcas de Tiberíades, perto do lugar onde o Senhor, depois de render graças, os alimentara com cinco pães; — e como verificassem, depois, que Jesus ali não se encontrava, nem tampouco seus discípulos, entraram nessas barcas, e vieram a Cafarnaum buscar a Jesus. — E tendo-o encontrado além do mar, lhe disseram: Mestre, quando vieste para cá?
Jesus lhes respondeu: Em verdade, em verdade vos digo, vós me procurais, não por causa dos milagres que tendes visto, mas porque eu vos dei pão para comer, e ficastes saciados.
— Trabalhai a fim de ter, não a comida que perece, mas aquela que permanece para a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará, porque é nele que o Deus Pai imprimiu seu selo e seu caráter.
Ao que lhe disseram: Que faremos nós para fazer as obras de Deus? — Jesus lhes retrucou: A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou.
Perguntaram-lhe então. Que milagre operarás que nos faça crer, vendo-o? Que farás de extraordinário? — Nossos pais comeram o maná no deserto, conforme está escrito: Ele lhes deu de comer o pão do céu.
Jesus lhes respondeu: em verdade, em verdade vos digo que Moisés não vos deu o pão do céu; meu Pai é quem dá o verdadeiro pão do céu, — porquanto o pão de Deus é aquele que desceu do céu e que dá vida ao mundo.
Disseram, eles então: Senhor, dá-nos sempre desse pão.
Jesus lhes respondeu: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim não terá jamais sede. — Porém eu já vos disse: vós me tendes visto e não credes.
Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim tem a vida eterna. — Eu sou o pão da vida. — Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. — Aqui está o pão que desceu do céu, a fim de que quem dele comer não morra. (S. João, cap. VI, vers. 22-36 e 47-50).
51. Na primeira passagem, Jesus, lembrando o fato produzido anteriormente, de modo claro dá a entender que não se tratava de pães materiais; de outro lado, a comparação que estabeleceu com o fermento dos fariseus teria sido sem objetivo. "Não compreendeis ainda, diz ele, e não vos recordais que cinco pães bastaram para cinco mil homens, e que sete pães bastaram para quatro mil homens? Como é que não compreendeis que não vos falo do pão, quando vos disse que deveis tomar cuidado com o fermento dos fariseus?" Este confronto não teria nenhuma razão de ser na hipótese de uma multiplicação material. O fato deveria ter sido bastante extraordinário em si mesmo para ter atingido a imaginação de tais discípulos, os quais, todavia, não pareciam recordar-se.
É também o que não menos ressalta, do discurso de Jesus acerca do pão do céu, no qual ele se esforça para fazer compreender o sentido verdadeiro da nutrição espiritual: "Trabalhai, diz ele, não para ter a comida que perece, mas aquela que dura por toda a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará." Essa alimentação é a sua palavra, que é o pão vindo do céu e que dá vida ao mundo. "Eu sou, diz ele, o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim não terá sede."
Porém, tais distinções eram demasiado sutis para as naturezas brutas dos que o ouviam, e que só compreendiam as coisas tangíveis. O maná que nutria o corpo de seus ancestrais era para eles o verdadeiro pão do céu; ali estava o milagre. Se, pois, a multiplicação dos pães tivesse se realizado materialmente, como é que esses mesmos homens, em cujo proveito ele se havia realizado apenas há poucos dias, teriam sido tão pouco impressionados com ele, para dizer a Jesus: "Qual milagre, pois, fizestes, a fim de que vendo-o, nós vos acreditemos? Que fizeste vós de extraordinário?" É que eles entendiam por milagres, os prodígios que os fariseus exigiam, isto é, sinais no céu, realizados sob ordem, como sob a varinha de um mágico. Aquilo que Jesus fazia era demasiado simples, e não se afastava das leis da Natureza; mesmo as curas não tinham um caráter demais estranho, bastante extraordinário; os milagres espirituais não tinham suficiente substância para eles.
Tentação de Jesus
52. Jesus, transportado pelo diabo ao alto do Templo, e depois a uma montanha, e tentado por ele, é uma dessas parábolas que lhe eram familiares e que a credulidade pública transformou em fatos materiais. ([84])
53. "Jesus não foi transportado, mas queria fazer com que os homens compreendessem que a humanidade está sujeita a falhar, e que ela sempre deve estar em guarda contra as más inspirações às quais sua natureza fraca a leva a ceder. A tentação de Jesus é pois uma figura, e seria necessário ser cego para a tomar ao pé da letra. Como pretenderíeis que o Messias, o Verbo de Deus encarnado, tivesse sido submetido por um tempo, embora fosse tão curto, às sugestões do demônio, e que, como se registra no Evangelho de Lucas, o demônio o haja deixado, por algum tempo, o que daria base para se considerar que ainda estaria submetido ao seu poder? Não; há que compreender melhor os ensinamentos que vos são dados. O Espírito do mal nada podia sobre a essência do bem. Ninguém afirma ter visto Jesus sobre a montanha ou sobre o pináculo do templo; certamente, isso teria sido um caso de natureza a ser propagado entre todos os povos. A tentação não foi pois um ato material e físico. Quanto ao ato moral, podeis vós admitir que o Espírito das trevas pudesse dizer àquele que conhecia sua origem e seu poder: "Adora-me, e eu te darei os reinos da terra?". O demônio teria então ignorado a quem era que fazia tais ofertas, o que não é provável; se ele o conhecia, sua proposta seria falta de senso, pois bem sabia que seria repelida por aquele que vinha arruinar seu império entre os homens.
"Compreendeu então o sentido desta parábola, pois não passa disso, assim como aquelas do Filho Pródigo e do Bom Samaritano. Uma nos mostra os perigos que correm os homens, se não resistirem àquela voz íntima que lhes grita sem cessar: "Tu podes ser mais do que és; tu podes possuir mais do que possuis; tu podes crescer, adquirir; cede à voz da ambição, e todos os teus votos serão preenchidos." Ela nos mostra o perigo e o meio de evitá-lo, dizendo às más inspirações: Retira-te, Satanás! Ou por outras palavras, dizei: Para trás, tentação!"
As duas outras parábolas que fiz recordar vos mostram o que pode ainda esperar aquele que, fraco demais para expulsar o demônio, sucumbiu às suas tentações. Elas vos mostram a misericórdia do pai de família estendendo sua mão sobre a cabeça do filho arrependido, e lhe concedendo, com amor, o perdão implorado. Elas vos mostram o culpado, o cismático, o homem repelido por seus irmãos, tendo aos olhos do Juiz supremo mais valor que aqueles que o desprezam, porque pratica as virtudes ensinadas pela lei do amor.
Pesai bem os ensinos dados nos Evangelhos; sabei distinguir qual é seu significado certo ou figurado, e os erros que vos têm cegado durante tantos séculos se apagarão pouco a pouco, para dar lugar à brilhante luz da Verdade." (Bordéus, 1862, João, Evang.).
Prodígios por Ocasião da Morte de Jesus
54. Ora, depois da sexta hora do dia até a nona, toda a terra foi coberta de trevas.
Ao mesmo tempo o véu do Templo se rasgou em dois, de alto a baixo; a terra tremeu; as pedras se fenderam; os sepulcros se abriram; e muitos corpos de santos, que estavam no sono da morte, ressuscitaram; — e saindo de seus túmulos após sua ressurreição, vieram à cidade santa, e foram vistos por diversas pessoas. (S. Mateus, cap. XXVII, vers. 45, 51, 52 e 53).
55. É estranho que tais prodígios, realizando-se no momento mesmo em que a atenção da cidade se fixava sobre o suplício de Jesus, que era o acontecimento do dia, não hajam sido notados, eis que nenhum historiador faz deles menção. Parece impossível que um tremor de terra, e toda a terra coberta de trevas durante três horas, numa região onde o céu é sempre de uma perfeita limpidez, tenham passado desapercebidos.
A duração dessa obscuridade corresponde com bastante aproximação à de um eclipse solar; porém estas espécies de eclipses só se produzem com a lua nova, e a morte de Jesus foi durante a lua cheia, no dia 14 do mês de nissan, dia da Páscoa dos judeus.
O obscurecimento do sol pode também ser produzido pelas manchas que se notam em sua superfície. Em caso desta natureza, o brilho da luz se enfraquece sensivelmente, porém jamais ao ponto de produzir obscuridade e trevas. Supondo que um fenômeno dessa natureza tivesse tido lugar naquela época, o seria por uma causa perfeitamente natural. ([85])
Quanto aos mortos ressuscitados, pode ser que algumas pessoas tenham tido visões ou aparições, o que não é excepcional; mas, como então não se conhecia a causa de tal fenômeno, afigurava-se que os indivíduos aparecidos saíssem do sepulcro.
Os discípulos de Jesus, emocionados com a morte de seu Mestre, sem dúvida ligaram a este fato alguns acontecimentos particulares aos quais não teriam prestado atenção em outras ocasiões. Terá sido suficiente que um fragmento de rochedo se haja destacado naquele momento, para que pessoas predispostas ao maravilhoso tenham aí percebido um prodígio, e ampliando o fato, tenham dito que as pedras se fenderam.
Jesus é grande por suas obras, e não pelos quadros fantásticos que um entusiasmo pouco esclarecido entendeu de cercá-lo.
Aparições de Jesus Depois de sua Morte
56. Porém, Maria (Madalena) se conservou fora, perto do sepulcro, chorando. E enquanto chorava, abaixando-se para olhar no sepulcro, viu dois anjos vestidos de branco, sentados no lugar onde estivera o corpo de Jesus, um no lugar da cabeça, outro no lugar dos pés. E lhe disseram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: É que levaram meu Senhor, e não sei onde o puseram.
Tendo dito isso, ela se voltou, e viu Jesus de pé, sem que ao menos soubesse que fosse Jesus. — Então este lhe disse: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, pensando que fosse o jardineiro, lhe disse: Senhor, se fostes vós quem o levastes, dizei-me onde o haveis colocado, e eu o levarei.
Jesus lhe disse: Maria. Logo ela se voltou, e lhe disse: Rabboni, o que quer dizer: Meu mestre. — Jesus lhe respondeu: Não me toques, pois ainda não subi para meu Pai; mas ide encontrar meus irmãos, e a eles dizei de minha parte: Subo a meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus.
Maria Madalena veio pois, dizer aos discípulos que ela vira o Senhor, e que ele lhe havia dito tais coisas. (S. João, cap. XX, vers. de 11 a 18).
57. Naquele mesmo dia, dois de entre eles foram a um lugar denominado Emaús, a uma distância de sessenta estádios de Jerusalém, — e comentavam tudo o que se passara. — E sucedeu que quando conversavam e entre si conferenciavam, o próprio Jesus veio se juntar a eles, e se pôs a andar a seu lado; seus olhos, porém, estavam tolhidos a fim de que não o reconhecessem. — E, ele lhes disse: Do que conversais assim, andando, e por que é que estais assim tão tristes?
Um deles, chamado Cleófas, tomando a palavra, lhe disse: Sois vós tão estranho em Jerusalém, que não sabeis o que tem se passado nestes dias? — Que foi? perguntou ele. Responderam-lhe: A respeito de Jesus de Nazaré, que foi um poderoso profeta diante de Deus e diante de toda a gente, e acerca do modo porque os príncipes dos sacerdotes e os nossos anciãos o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. — Ora, nós esperávamos fosse ele quem resgatasse a Israel, no entanto, já estamos no terceiro dia depois que tais coisas se deram. — É certo, algumas mulheres das que estavam conosco nos espantaram, pois, que, tendo ido ao seu sepulcro antes do romper do dia, nos vieram dizer que anjos mesmos lhes apareceram, dizendo-lhes que ele está vivo. — E alguns dos nossos, tendo ido também ao sepulcro, encontraram todas as coisas conforme as mulheres haviam referido; mas quanto a ele, não o encontraram.
Disse-lhes então Jesus: Oh! Insensatos de coração tardo para crer em tudo quanto os profetas têm dito! Não era preciso que o Cristo sofresse todas essas coisas e que entrasse assim na sua glória? — E a começar de Moisés, passando em seguida por todos os profetas, lhes explicava o que em todas as Escrituras fora dito dele.
Ao aproximarem-se da povoação para onde se dirigiam, ele deu mostras de que ia mais longe. Os dois o obrigaram a deter-se, dizendo-lhe: Fica conosco, que já é tarde e o dia está em declínio. Ele entrou com os dois. — Estando com eles à mesa, tomou do pão, abençoou-o e lhes deu. — Abriram-se-lhes ao mesmo tempo os olhos e ambos o reconheceram; ele, porém, lhes desapareceu das vistas.
Então, disseram um ao outro: Não é verdade que o nosso coração ardia dentro de nós, quando ele pelo caminho nos falava, explicando-nos as Escrituras? — E, erguendo-se no mesmo instante, voltaram a Jerusalém e viram que os onze apóstolos e os que continuavam com eles estavam reunidos — e diziam: O Senhor em verdade ressuscitou e apareceu a Simão. — Então, também eles narraram o que lhes acontecera em caminho e como o tinham reconhecido ao partir o pão.
Enquanto assim confabulavam, Jesus se apresentou no meio deles e lhes disse: A paz seja convosco; sou eu, não vos assustais. — Mas na perturbação e no medo de que foram tomados, eles imaginaram estar vendo um Espírito.
E Jesus lhes disse: Por que vos turbais? Por que se elevam tantos pensamentos nos vossos corações? — Olhai para as minhas mãos e para os meus pés e reconhecei que sou eu mesmo. Tocai-me e considerai que um Espírito não tem carne, nem osso, como vedes que eu tenho. — Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés.
Mas, como eles ainda não acreditavam, tão transportados de alegria e de admiração se achavam, disse-lhes: Tendes aqui alguma coisa que se coma? — Eles lhe apresentaram um pedaço de peixe assado e um favo de mel. — Ele comeu diante deles e, tomando os restos, lhes deu, dizendo: Eis que, estando ainda convosco eu vos dizia que era necessário se cumprisse tudo o que de mim foi escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos.
Ao mesmo tempo lhes abriu o espírito, a fim de que entendessem as Escrituras — e lhes disse: É assim que está escrito e assim era que se fazia necessário sofresse o Cristo e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia; — e que se pregasse em seu nome o arrependimento e a remissão dos pecados em todas as nações, a começar por Jerusalém. — Ora, vós sois testemunhas dessas coisas. — Vou enviar-vos o dom de meu Pai, o qual vos foi prometido; mas, por enquanto, permanecei na cidade, até que eu vos haja revestido da força do Alto. (S. Lucas, cap. XXIV, vers. 13 a 49).
58. Ora, Tomé, um dos doze apóstolos, chamado Dídimo, não se achava com eles quando Jesus lá foi visto. — Os outros discípulos então lhe disseram: Vimos o Senhor. Ele, porém, lhes disse: Se eu não vir nas suas mãos as marcas dos cravos que as atravessaram e não puser o dedo nos furos feitos pelos cravos e minha mão na abertura do seu lado, não acreditarei.
Oito dias depois, estando ainda os discípulos no mesmo lugar e com eles Tomé, Jesus se apresentou, achando-se fechadas as portas, e colocando-se no meio deles, disse-lhes: A paz seja convosco.
Disse em seguida a Tomé: Põe aqui o teu dedo e olha minhas mãos; estende também a tua mão e mete-a no meu lado e não sejas incrédulo, mas fiel. — Tomé lhe respondeu: Senhor meu e Deus meu! — Jesus lhe disse: Tu creste, Tomé, porque viste; ditosos os que creram sem ver. (S. João, cap. XX, vers. 20 a 29).
59. Jesus também se mostrou depois aos seus discípulos à margem do mar de Tiberíades, apresentando-se desta forma:
Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo, Natanael, que era de Canaã, na Galileia, os filhos de Zebedeu e dois outros de seus discípulos estavam juntos. — Disse-lhes Simão Pedro: Vou pescar. Os outros disseram: Também nós vamos contigo. Foram-se e entraram numa barca; mas naquela noite nada apanharam.
Ao amanhecer, Jesus apareceu à margem sem que seus discípulos conhecessem que era ele. — Disse-lhes então: Filhos nada tendes que se coma? Responderam-lhe: Não. Disse-lhes ele: Lançai a rede do lado direito da barca e achareis. Eles a lançaram logo e quase não a puderam retirar, tão carregada estava de peixes.
Então, o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor. Simão Pedro, ao ouvir que era o Senhor, vestiu-se (pois que estava nu) e atirou-se ao mar. — Os outros discípulos vieram com a barca, e, como não estavam distantes da praia mais de duzentos côvados, puxaram daí a rede cheia de peixes. (S. João, cap. XXI, vers. 1 a 8).
6. Depois disso, ele os conduziu a Betsaida e, tendo lavado as mãos, os abençoou, — e tendo-os abençoado, separou-se deles e foi arrebatado ao céu.
Quanto a eles, depois de o terem adorado, voltaram para Jerusalém, cheios de alegria. — Estavam constantemente no templo, louvando e bendizendo a Deus. Amém. (S. Lucas, cap. XXIV, vers. 50 a 53).
61. As aparições de Jesus depois de sua morte são narradas por todos os evangelistas com detalhes circunstanciados que não permitem duvidar da realidade do fato. Aliás, elas se explicam perfeitamente pelas leis fluídicas e pelas propriedades do perispírito, e nada apresentam de anômalo com os fenômenos do mesmo gênero, dos quais a História antiga e contemporânea oferece numerosos exemplos, sem excetuar a tangibilidade. Se se observam as circunstâncias que acompanharam suas diversas aparições, reconhece-se nelas todos os caracteres de um ser fluídico. Aparece inopinadamente e desaparece da mesma forma; é visto por uns e por outros sob aparência que não o fazem reconhecido, nem mesmo por seus discípulos; mostra-se em lugares fechados, onde um corpo carnal penetraria; sua linguagem não tem a vivacidade de um ser corporal; tem o tom breve e sentencioso; particular aos Espíritos que se manifestam desse maneira; todas as suas atitudes, numa palavra, têm qualquer coisa que não é do mundo terrestre. Sua apresentação causa ao mesmo tempo surpresa e pavor; seus discípulos, ao vê-lo, não lhe falam com a mesma liberdade; sentem que não é mais o homem.
Jesus mostrou-se, pois, com seu corpo perispiritual, o que explica não ter sido visto por aqueles a quem desejava mostrar-se; se estivesse em seu corpo carnal, teria sido visto por todos, como quando era vivo. Desde que seus discípulos ignoravam a causa primária do fenômeno das aparições, não se apercebiam dessas particularidades, as quais provavelmente não notavam; viam a Jesus e o tocavam, o que para eles deveria ser seu corpo ressuscitado. (Cap. XIV, vers. 14 e de 35 a 38).
62. Ao passo que a incredulidade rejeita todos os fatos realizados por Jesus, que tenham aparência sobrenatural, e os considera, sem exceção, como lendários, o Espiritismo dá à maior parte de tais fatos uma explicação natural; prova sua possibilidade, não somente pela teoria das leis fluídicas, mas por sua identidade com os fatos análogos produzidos por uma multidão de pessoas nas condições as mais comuns. Visto que tais fatos são de alguma forma do domínio público, nada provam, em princípio, no que toca à natureza excepcional de Jesus. ([86])
63. O maior dos milagres de Jesus, aquele que atesta verdadeiramente sua superioridade, é a revolução que seus ensinamentos operou no mundo, apesar da exiguidade de seus meios de ação.
Com efeito, Jesus, obscuro, pobre, nascido na mais humilde condição, num pequeno povo quase ignorado e sem preponderância política, artística ou literária, apenas prega durante três anos; durante este curto espaço de tempo, é desatendido e perseguido por seus concidadãos, caluniado, tratado como impostor; é obrigado a fugir para não ser lapidado; é traído por um de seus apóstolos, negado por outro, abandonado por todos no momento em que cai às mãos de seus inimigos. Apenas fazia o bem, e isso não o coloca ao abrigo da malquerença, a qual voltava contra ele os próprios serviços que prestava. Condenado ao suplício reservado para os criminosos, morre ignorado do mundo, pois a História do seu tempo se cala a seu respeito ([87]). Nada escreveu, e entretanto, auxiliado por alguns homens obscuros como ele, sua palavra bastou para regenerar o mundo; sua doutrina matou o paganismo todo-poderoso, e tornou-se a bandeira da civilização. Tinha contra si tudo o que pode fazer malograr os homens, e é por isso que dizemos que o triunfo de sua doutrina é o maior de seus milagres, ao mesmo tempo que prova sua missão divina. Se, em lugar de oferecer princípios sociais e regeneradores, fundados sobre o futuro espiritual do homem, ele não tivesse a oferecer à posteridade senão alguns fatos maravilhosos, hoje mal seria conhecido pelo nome.
Desaparecimento do Corpo de Jesus
64. O desaparecimento do corpo de Jesus após sua morte foi objeto de numerosos comentários; é atestado pelos quatro evangelistas, baseados nos relatos das mulheres que se apresentaram ao sepulcro no terceiro dia, e que não o acharam. Uns viram neste desaparecimento um fato milagroso; outros supuseram uma remoção clandestina.
Segundo outra opinião, Jesus não teria jamais revestido um corpo carnal, mas somente um corpo fluídico; durante toda sua vida, não teria sido senão uma aparição tangível, uma espécie de agênere. Seu nascimento, sua morte e todos os atos materiais de sua vida não teriam sido mais que uma aparição. E dizem que assim se explica que seu corpo, retornado ao estado fluídico, pode desaparecer do sepulcro, e foi com este mesmo corpo que ele se teria mostrado depois de sua morte.
Sem dúvida, um fato destes não é radicalmente impossível, segundo o que hoje se sabe sobre as propriedades dos fluidos; porém seria pelo menos inteiramente excepcional e em oposição formal com o caráter dos agêneres (Cap. XIV, nº 36). A questão é, pois, de saber se tal hipótese é admissível, se ela é confirmada ou contraditada pelos fatos.
65. A permanência de Jesus sobre a terra apresenta dois períodos: aquele que precede e aquele que segue sua morte. No primeiro, desde o momento da concepção até o nascimento, tudo se passa com sua mãe, como nas condições comuns da vida. ([88]) A partir do nascimento e até sua morte, tudo, em seus atos, sua linguagem e nas diversas circunstâncias de sua vida, apresenta os caracteres inequívocos da sua corporeidade. Os fenômenos de ordem psíquica que se produzem nele são acidentais e nada têm de anormal, pois explicam-se pelas propriedades do perispírito, e são encontrados em diferentes graus em outros indivíduos. Depois de sua morte, ao contrário, tudo revela nele o ser fluídico. A diferença entre estes dois estados é tão fundamentalmente traçada, que não é possível assemelhá-las.
O corpo carnal tem as propriedades inerentes à matéria propriamente dita, as quais diferem essencialmente dos fluidos etéreos; a desorganização ali se opera pela rutura da coesão molecular. Um instrumento cortante, penetrando no corpo material, divide seus tecidos; se os órgãos essenciais à vida são atacados, seu funcionamento se detém, e a morte será a consequência, isto é, a morte do corpo. Essa coesão não existe nos corpos fluídicos; a vida, neles, não repousa no funcionamento de órgãos especiais, e neles não se podem produzir desordens análogas; um instrumento cortante, ou qualquer outro, ali penetra como num vapor, sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis porque os seres fluídicos designados sob o nome de agêneres não podem ser mortos.
Depois do suplício de Jesus, seu corpo lá ficou, inerte e sem vida; foi sepultado como os corpos comuns, e todos puderam vê-lo e tocá-lo. Depois de sua ressurreição, quando ele quis deixar a Terra, não morre; seu corpo se eleva, se desvanece e desaparece sem deixar nenhum sinal, prova evidente de que esse corpo era de outra natureza que não aquele que pereceu sobre a cruz; de onde será forçoso concluir que se Jesus pôde morrer, é que tinha corpo carnal.
Em consequência de suas propriedades materiais, o corpo carnal é a sede das sensações e das dores físicas que repercutem no centro sensitivo ou Espírito. Não é o corpo que sofre, é o Espírito que recebe o contragolpe das lesões ou alterações dos tecidos orgânicos. Num corpo privado de Espírito, a sensação é absolutamente nula; pela mesma razão, o Espírito, que não tem corpo material não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração da matéria; daí será preciso igualmente concluir que se Jesus sofreu materialmente como não será possível duvidar-se, é que tinha um corpo material, de natureza idêntica à de todos.
66. Aos fatos materiais se juntam considerações morais, do mais alto poder.
Se durante sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos, não teria experimentado nem a dor, nem nenhuma das necessidades do corpo; supor que ele assim era, será retirar-lhe todo o mérito da vida de privações e de sofrimentos que havia escolhido como exemplo de resignação. Se tudo nele era só aparência, todos os atos de sua vida, o anúncio reiterado de sua morte, a cena dolorosa do Jardim das Oliveiras, sua oração a Deus para que afastasse o cálice de seus lábios, sua paixão, sua agonia, tudo, até seu último grito no momento de entregar o Espírito, não teria sido senão um vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma comédia indigna de um homem honesto e simples, quanto mais, e por mais forte razão, de um ser também superior; numa palavra, teria abusado da boa fé dos seus contemporâneos e da posteridade. Tais são as consequências lógicas desse sistema, consequências que não são admissíveis, pois resultaria em diminui-lo moralmente, em lugar de o elevar.
Jesus teve, pois, como todos, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é confirmado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que assinalaram sua vida.
67. Esta ideia a respeito da natureza do corpo de Jesus não é nova. No século IV, Apolinário, de Laodicéia, chefe da seita dos Apolinaristas, pretendia que Jesus não havia tomado um corpo como o nosso e sim um corpo impassível que desceu do céu no seio da Santa Virgem, e não nascera dela; que assim Jesus não era nascido, não sofrera e não morrera senão na aparência. Os apolinaristas foram anatematizados no concílio de Alexandria, no ano 360; igualmente, no de Roma em 374, e no de Constantinopla em 381.
Os Docetas (do grego "dokein", aparecer), seita numerosa dos Gnósticos, tinham a mesma crença; esta seita subsistiu durante os três primeiros séculos.
1. Como é possível o conhecimento do futuro? Compreende-se a previsão dos acontecimentos que sejam consequência do estado atual, mas não daqueles que não tenham nenhuma relação, e ainda menos daqueles que são atribuídos ao acaso. As coisas futuras, não existem; estão ainda no nada; então, como saber que elas sucederão? Os exemplos de predições realizadas são entretanto bastante numerosos, do que se deve concluir que aí se passa um fenômeno do qual não temos a chave, pois não há efeito sem causa; é esta causa que vamos procurar encontrar, e é ainda o Espiritismo, ele próprio a chave de tantos mistérios, que nos fornecerá, e que, além do mais, nos mostrará que o próprio fato das predições não se afasta das leis naturais.
Tomemos como comparação um exemplo nas coisas usuais, e que ajudará a fazer compreender o princípio que desenvolveremos.
2. Suponhamos um homem colocado no alto de uma montanha, a observar a vasta extensão da planície. Nessa situação, o espaço de uma légua será pouca coisa para ele, e poderá facilmente abarcar num só golpe de vista todos os acidentes do terreno, desde o começo até o fim da estrada. O viajante que segue esta estrada pela primeira vez sabe que caminhando, chegará ao fim dela; eis aí uma previsão simples da consequência de sua marcha; porém os acidentes do terreno, as subidas e as descidas, os rios a vencer, os bosques a atravessar, os precipícios nos quais poderá cair, os salteadores escondidos para lhe saquear as bagagens, as casas hospitalares nas quais poderá repousar, tudo isso é independente de sua pessoa; é para ele o desconhecido, o futuro, pois sua vista não se estende além do pequeno círculo que o rodeia. Quanto à duração, ele a mede pelo tempo que consome a percorrer o caminho; retirai-lhe os pontos de referência, e a duração se apaga. Para o homem que está no alto da montanha e que acompanha sua viagem, tudo isso é o presente. Suponhamos que o observador desça para perto do viajante e lhe diga: "Em tal momento encontrareis tal coisa, sereis atacado e socorrido"; estará prevendo o futuro; o futuro existe para o viajante; para quem está no alto da montanha, esse futuro é o presente.
3. Se sairmos do círculo das coisas puramente materiais, e se pelo pensamento entrarmos no domínio da vida espiritual, veremos esse fenômeno produzir-se numa escala maior. Os Espíritos desmaterializados são como o homem da montanha; o espaço e a duração se apagam para eles. Mas a extensão e a penetração de suas vistas são proporcionais à sua purificação e à sua elevação na hierarquia espiritual; em relação aos Espíritos inferiores, eles estão como o homem armado de um possante telescópio, ao lado daquele que apenas dispõe de seus olhos. Para estes últimos, a visão é circunscrita, não somente porque dificilmente poderão se afastar do globo, aos quais estão presos, mas porque a materialidade de seus perispíritos veda as coisas afastadas, como o faz a bruma para os olhos do corpo.
Compreende-se que, segundo o grau de perfeição, um Espírito possa abarcar um período de alguns anos, de alguns séculos e mesmo de diversos milhares de anos, pois o que é um século em presença do infinito? Os acontecimentos não se desenrolam sucessivamente diante dele, como os incidentes da estrada para o viajante: ele vê simultaneamente o começo e o fim do período; todos os acontecimentos que, durante tal período são o futuro para o homem na terra, são o presente para ele. Terá ele, pois, a possibilidade de vir até nós e dizer com certeza: tal coisa sucederá em tal época, pois que ele vê essa coisa como o homem da montanha vê o que aguarda o viajante na estrada; se ele não o faz, é porque o conhecimento do futuro será nocivo para o homem; entravará seu livre-arbítrio; paralisará o homem em seu trabalho, que deve efetivar para seu progresso; o bem e o mal que espera, estando no desconhecido, são para ele, a prova.
Se uma tal faculdade, mesmo restrita, pode estar entre os atributos da criatura, em que grau de poder não deve se elevar no Criador, que abarca o infinito? Para ele, o tempo não existe: o começo e o fim dos mundos são o presente. Nesse imenso panorama, o que é a duração da vida de um homem, de uma geração, de um povo?
4. Entretanto, como o homem deve concorrer para o progresso geral, e que certos sucessos devam resultar de sua cooperação, pode ser útil, em casos especiais, que ele seja informado a respeito de tais sucessos, a fim de que prepare os caminhos e se conserve pronto a agir quando vier o momento; é por isso que Deus permite por vezes que uma ponta do véu seja levantada; porém será sempre com uma finalidade útil e jamais para satisfazer uma vã curiosidade. Portanto, essa missão não pode ser dada a todos os Espíritos, pois entre esses há os que não conhecem melhor o futuro que os próprios homens; mas sim, a alguns Espíritos suficientemente avançados para tal; ora, é de notar-se que essas espécies de revelações são sempre feitas espontaneamente, e jamais, ou pelo menos raramente, em resposta a uma pergunta direta.
5. Esta missão pode igualmente ser entregue a certos homens, e eis de que maneira.
Aquele a quem é confiado o cuidado de revelar uma coisa escondida pode receber, à sua revelia, a inspiração dos Espíritos que a conhecem, e então ele a transmite maquinalmente, sem se aperceber de que o faz. Ademais, sabe-se que a alma se desprende, e possui em grau maior ou menor as faculdades do Espírito livre, seja durante o sono, seja no estado de vigília, nos êxtases da vista dupla. Se se tratar de um Espírito adiantado, se ele recebeu, como os profetas, uma missão especial para tal efeito, gozará nos momentos de emancipação da alma, a faculdade de abranger por si mesmo, um período mais ou menos extenso e vê, como se fossem presentes, os acontecimentos desse período. Ele poderá então revelá-los no próprio instante ou conservar a memória quando acordar. Se tais acontecimentos devem permanecer em segredo, ele perderá a respectiva recordação, ou terá deles apenas uma vaga intuição, suficiente para o guiar instintivamente.
6. É assim que se vê essa faculdade desenvolver-se providencialmente em certas ocasiões, nos perigos iminentes, nas grandes calamidades, nas revoluções, e que a maior parte das seitas perseguidas têm tido numerosos videntes; é assim ainda que se tem visto grandes capitães marchar resolutamente contra o inimigo, com a certeza da vitória; homens de gênio, como Cristóvão Colombo, por exemplo, procurar um objetivo prevendo, por assim dizer, o momento no qual o atingirão; é que eles viram o alvo, que não é o desconhecido para seu Espírito.
O dom da predição não é, pois, sobrenatural, tanto quanto uma porção de outros fenômenos; repousa sobre as propriedades da alma e sobre a lei das relações do mundo visível e do mundo invisível, a qual o Espiritismo vem tornar conhecida.
Esta teoria da presciência não resolve talvez de maneira absoluta todos os casos que a revelação do futuro pode apresentar, mas não se pode deixar de convir que ela possui seu princípio fundamental.
7. Frequentemente, as pessoas dotadas da faculdade de prever, no estado extático ou sonambúlico, veem os acontecimentos se desenharem como num quadro. Isso poderia também se explicar pela fotografia do pensamento. Um acontecimento que está no pensamento dos Espíritos que trabalham para sua concretização, ou no pensamento dos homens cujos atos o devem provocar, tal pensamento, atravessando o espaço como os sons atravessam o ar, pode tornar a imagem visível pelo vidente; porém, como a realização pode ser apressada ou retardada por um concurso de circunstâncias, ele vê a coisa sem poder precisar o momento de sua realização. Talvez mesmo esse pensamento possa ser apenas um projeto, um desejo, que pode não ter seguimento; daí os frequentes erros de fato e de data nas previsões. (Cap. XIV, ns. 13 e seguintes).
8. Para compreender as coisas espirituais, isto é, para se fazer delas uma ideia tão nítida quanto aquela que comparávamos com a de uma paisagem que estivesse sob nossos olhos, falta-nos verdadeiramente um sentido, exatamente como ao cego falta o sentido necessário para compreender os efeitos de luz, das cores, e da vista sem o contato. Também, não é senão mediante um esforço da imaginação que nós chegamos a tal resultado, auxiliados por comparações extraídas das coisas que nos são familiares. Porém as coisas materiais não podem dar senão ideia muito imperfeita das coisas espirituais; é por isso que não deveríamos tomar tais comparações ao pé da letra, e crer, por exemplo, que a extensão das faculdades perceptivas dos Espíritos se relaciona com sua efetiva elevação, e que eles têm necessidade de estar sobre uma montanha, ou acima das nuvens, para abarcar o tempo ou o espaço.
Tal faculdade é inerente ao estado de espiritualização, ou se o preferirmos, de desmaterialização; isto é, a espiritualização produz um efeito que se pode comparar, embora muito imperfeito, àquele da vista de conjunto do homem no alto da montanha. Esta comparação tinha simplesmente a finalidade de mostrar que os acontecimentos que estão no futuro para uns, estão no presente para outros, e podem assim ser preditos, o que não implica na produção do efeito pela mesma maneira.
Para gozar dessa percepção, o Espírito não tem pois necessidade de se transportar a algum ponto do espaço; aquele que está na Terra, a nosso lado pode possuí-la em sua plenitude, tão bem como se estivesse a mil léguas, enquanto que nada vemos além do horizonte visual. A vista, nos Espíritos, não se produz da mesma maneira que no homem, nem com os mesmos elementos; seu horizonte visual é inteiramente outro; ora, é precisamente este o sentido que nos falta para o conceber; o Espírito, ao lado do encarnado, é como aquele que vê ao lado de um cego.
9. Além disso, será preciso saber que essa percepção de todas as coisas, repetimos, é uma faculdade inerente e proporcionada ao estado de desmaterialização. Esta faculdade é amortecida pela encarnação, mas não é completamente anulada, pois a alma não é encerrada no corpo como numa caixa. O encarnado a possui, embora sempre num grau menor que quando a alma se encontra completamente libertada; é isso que dá a certos homens um poder de penetração que falta totalmente a outros, uma justeza maior no golpe de vista moral, uma compreensão mais fácil das coisas extra-materiais.
Não só o Espírito encarnado percebe, mas lembra-se do que viu no estado de Espírito, e essa lembrança é como um quadro que se recompõe no seu pensamento. Na encarnação, ele vê, porém vagamente e como através de um véu; no estado de liberdade ele vê e concebe claramente. O princípio da vista não está fora dele, mas nele; é por isso que não tem necessidade de nossa luz exterior. Por efeito do desenvolvimento moral, o círculo das ideias e a concepção, se alargam; pela desmaterialização gradual do perispírito, este se purifica dos elementos grosseiros que alterariam a delicadeza das percepções; do que se conclui que a extensão de todas as faculdades acompanha o progresso do Espírito.
10. É o grau de extensão das faculdades do Espírito, que, na encarnação, o torna mais ou menos apto a conceber as coisas espirituais. Todavia, esta aptidão não é a consequência necessária do desenvolvimento da inteligência; a ciência vulgar não a confere: é por isso que se encontram homens de grande saber, tão cegos para as coisas espirituais como outros o são para as coisas materiais; são refratários, porque não as compreendem; isto significa que seu progresso ainda não se realizou em tal sentido, enquanto que se encontram pessoas de instrução e inteligência vulgares, dominando tais assuntos com a maior facilidade, prova de que antecipadamente tinham a intuição delas. É para estes uma recordação retrospectiva daquilo que já viram e já souberam, seja na erraticidade, seja em suas existências anteriores, assim como outros têm a intuição das línguas e das ciências, que antes já conheceram e possuíram.
11. Quanto ao futuro do Espiritismo, os Espíritos, como se sabe, são unânimes em afirmar o triunfo próximo, apesar dos entraves que se lhe opõem; esta previsão lhes é fácil, primeiro porque sua propagação é sua obra pessoal: auxiliando o movimento, ou dirigindo-o, sabem, por consequência, o que devem fazer com o mesmo; em segundo lugar, basta-lhes considerar um período de curta duração, e em tal período, eles veem os poderosos auxiliares que Deus lhes suscita, e que não tardarão a se manifestar.
Sem ser Espíritos desencarnados, que os espíritas se transportem apenas a um período de trinta anos atrás, até a geração que surge; que dali, considerem o que se passa hoje, que sigam a marcha progressiva, e verão consumir-se em vãos esforços aqueles que acreditam ser chamados a anulá-lo; eles os verão desaparecer pouco a pouco da cena, ao lado da árvore que cresce e cujas raízes se estendem cada dia mais.
12. Os acontecimentos vulgares da vida privada são, frequentemente, a consequência da maneira de agir de cada um: aquele será bem sucedido segundo suas capacidades, sua habilidade, sua perseverança, sua prudência, e sua energia, em assuntos nos quais outro malogrará por sua insuficiência; de modo que se pode dizer que cada um é o arquiteto de seu próprio futuro, o qual não está jamais submetido a uma cega fatalidade independente da pessoa. Conhecendo o caráter de um indivíduo, facilmente se lhe pode predizer a sorte que o espera no caminho a que se aplica.
13. Os sucessos que dizem respeito aos interesses gerais da humanidade são regulados pela Providência. Quando uma coisa está nos desígnios de Deus, ele deve realizar-se de qualquer modo, seja por um meio, seja por outro. Os homens concorrem para sua realização, porém ninguém é indispensável; de outro modo, o próprio Deus estaria à mercê de suas criaturas. Se aquele a quem incumbe a missão de executar a tarefa se omitir, um outro será encarregado de sua realização. Não há missão fatal; o homem é sempre livre de preencher aquela que lhe é confiada, e que ele voluntariamente aceitou; se ele não o faz, perde o respectivo benefício, e assume a responsabilidade das demoras que possam ser o resultado de sua negligência ou de sua má vontade; se ele se tornar um obstáculo à sua realização, Deus pode quebrá-lo com um sopro.
14. O resultado final de um acontecimento pode pois ser certo, porque está incluído nos desígnios de Deus; porém, como na maior parte dos casos os detalhes e o modo da execução são subordinados às circunstâncias e ao livre-arbítrio dos homens, as vias e meios podem ser eventuais. Os Espíritos podem nos revelar o conjunto, se for de utilidade que sejamos prevenidos; mas, para precisar o lugar e a data, seria necessário que eles conhecessem antecipadamente a determinação que tal ou qual indivíduo tomará; ora, se tal deliberação ainda não está em seu pensamento, conforme ela seja, poderá acelerar ou retardar o desenvolvimento do caso, modificar os meios secundários de ação, tudo atingindo o mesmo resultado. É assim, por exemplo, que os Espíritos podem, pelo conjunto das circunstâncias, prever que uma guerra esteja mais ou menos próxima, que é inevitável, sem poder predizer o dia em que ela começará, nem os incidentes de pormenores que podem ser modificados pela vontade dos homens.
15. Para a fixação da época dos acontecimentos futuros será preciso, além do mais, dar-se conta de uma circunstância inerente à própria natureza dos Espíritos.
O tempo, da mesma forma que o espaço, não pode ser avaliado senão com o auxílio de pontos de comparação ou de reparo, que o dividem em períodos que possam ser contados. Sobre a terra, a divisão natural do tempo em dias e anos é marcada pelo nascimento e ocaso do Sol, e pela duração do movimento de translação da Terra. As unidades de medida do tempo devem variar segundo os mundos, pois que os períodos astronômicos são diferentes; é assim por exemplo, que em Júpiter os dias equivalem a dez de nossas horas, e os anos, a quase doze anos terrestres.
Há, pois, para cada mundo, uma maneira diferente de computar-se a duração, conforme a natureza das revoluções siderais que aí se realizam; já isso apresentaria uma dificuldade para a determinação de nossas datas, por Espíritos que não conhecessem nosso mundo. Porém, fora dos mundos, tais meios de apreciação não existem. Para um Espírito no espaço, não há nem nascimento nem ocaso do Sol na marcação dos dias, nem revolução periódica marcando anos; para ele, não há senão a duração e o espaço infinitos (Cap. VI, ns. 1 e seguintes). Aquele, pois, que jamais tivesse vindo à Terra, não teria nenhum conhecimento de nossos cálculos, os quais, de resto, lhe seriam completamente inúteis; há mais; aquele que nunca se tivesse encarnado em outro mundo, não teria nenhuma noção das frações da duração do tempo. Quando um Espírito estranho à Terra aqui vem se manifestar, não poderá assinalar data aos acontecimentos, senão identificando-se com os nossos usos, o que sem dúvida está em seu poder, mas que muitas vezes ele não julga ser útil fazer.
16. Os Espíritos que compõem a população invisível do nosso globo, onde já viveram e onde continuam a viver em nosso meio, estão naturalmente identificados com nossos hábitos, dos quais levam a recordação na erraticidade. Poderiam, por conseguinte, com mais facilidade indicar uma data aos acontecimentos futuros, quando a conhecessem; mas, além do fato de que isso nem sempre é permitido, são impedidos de fazê-lo pela razão de que todas as vezes em que as circunstâncias de detalhes são subordinadas ao livre-arbítrio e à eventual decisão do homem, a data exata não existe realmente, senão quando o acontecimento está realizado.
Eis porque as predições circunstanciadas não podem oferecer certeza, e não devem ser aceitas senão como probabilidades, mesmo quando não tragam cunho que as torne legitimamente suspeitas. Também os Espíritos verdadeiramente sábios não predizem nada, jamais, em datas fixas; eles se limitam a prevenir-nos do andamento das coisas que nos sejam de utilidade conhecer. Insistir para ter pormenores precisos, é expor-se às mistificações dos Espíritos levianos, que predizem tudo quanto se deseja, sem se preocuparem com a verdade, e divertem-se com os terrores e as decepções que causam.
17. A forma geralmente empregada até aqui, bastante geral para as predições, faz delas verdadeiros enigmas frequentemente indecifráveis. Essa forma misteriosa e cabalística, da qual Nostradamus oferece o tipo mais completo, lhes dá um certo prestígio aos olhos do vulgo, que lhes atribui tanto mais valor quanto mais sejam elas incompreensíveis. Por sua ambiguidade, elas se prestam a interpretações muito diferentes; de tal sorte que, segundo o sentido atribuído a certas palavras alegóricas ou de convenção, segundo a maneira de computar o cálculo bizarramente complicado das datas, e com um pouco de boa vontade, ali se encontra aproximadamente tudo quanto se quer.
Seja como for, não se pode deixar de convir que algumas predições têm caráter sério, e confundem pela sua veracidade. É provável que esta forma velada tivesse, num certo tempo, sua razão de ser e até mesmo sua necessidade.
Hoje, as circunstâncias não são mais as mesmas; o positivismo do século atual pouco se acomodaria com a linguagem sibilina. Também, as predições de nossos dias não afetam mais essas formas estranhas; as feitas pelos Espíritos, nada têm de místicas; falam a linguagem de todas as pessoas como o teriam feito quando vivos, pois não cessaram de pertencer à humanidade; eles nos previnem quanto às coisas futuras, pessoais e gerais, quando tal nos puder ser útil, na medida da perspicácia de que são dotados, como o fariam conselheiros ou amigos. Suas previsões constituem pois mais advertências, as quais não impedem o nosso livre-arbítrio, do que predições propriamente ditas, que implicariam uma fatalidade absoluta. Sua opinião é, por outro lado, quase sempre motivada, pois que eles não querem que o homem aniquile sua razão sob uma fé cega, o que nos permite apreciar-lhes a justeza.
18. A humanidade contemporânea tem também os seus profetas; mais de um escritor, poeta, literato, historiador ou filósofo, tem pressentido, em seus escritos, a marcha futura das coisas que vemos realizar-se hoje.
Esta aptidão se relaciona, frequentemente, sem dúvida, com a retidão de julgamento que deduz as consequências lógicas do presente; mas frequentemente também ela é o resultado de uma clarividência inconsciente, ou de uma inspiração estranha. O que os homens fazem enquanto vivem, com razão mais forte podem fazer, e com mais exatidão, em seu estado de Espíritos, quando a vista espiritual não é obscurecida pela matéria.
Ninguém é profeta em sua terra — Morte e paixão de Jesus — Perseguição aos apóstolos — Cidades impenitentes — Ruína do Templo e de Jerusalém — Maldição contra os fariseus — A pedra angular — Parábola dos vinhateiros homicidas — Um só rebanho e um só pastor — Advento de Elias — Anunciação do Consolador — Segundo advento do Cristo — Sinais precursores — Vossos filhos e filhas profetizarão — Julgamento final
Ninguém é Profeta em sua Terra
1. E, tendo vindo à sua terra natal, ele os instruía nas sinagogas, de sorte que, tomados de espanto, diziam: De onde lhe vieram essa sabedoria e esses milagres? — Não é este o filho do carpinteiro? Sua mãe não é Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs, não se acham todas entre nós? E assim faziam dele objeto de escândalo. Mas Jesus lhes disse: Um profeta só não é honrado em sua terra e em sua casa. — E não fez lá muitos milagres devido à sua incredulidade. (S. Mateus, Cap. XIII, vers. de 54 a 58).
2. Jesus enunciou ali uma verdade transformada em provérbio, que é de todos os tempos, e à qual se poderia dar mais extensão dizendo que ninguém é profeta enquanto viver.
Na linguagem usual, esta máxima se aplica ao crédito que alguém goza entre aqueles em cujo meio vive, da confiança que lhes inspira pela superioridade do saber e da inteligência. Se sofre exceções, são raras, e em todo o caso, elas não são jamais absolutas; o princípio desta verdade é uma consequência natural da fraqueza humana, e pode explicar-se assim.
O hábito de se verem desde a infância, nas circunstâncias vulgares da vida, estabelece entre os homens uma espécie de igualdade material que faz com que, muitas vezes, as pessoas recusem reconhecer uma superioridade moral naquele que foi o companheiro ou o comensal, que saiu do mesmo meio e de quem se viram as primeiras fraquezas; o orgulho sofre pelo ascendente que é obrigado a suportar. Quem quer que se eleve acima do nível comum está sempre em luta com o ciúme e com a inveja; aqueles que se sentem incapazes de atingir sua altura esforçam-se por rebaixá-lo por meio da difamação, da maledicência e da calúnia; gritam tanto mais forte quanto se vêm menores, acreditando se engrandecer e eclipsá-lo pelo ruído que fazem. Tal tem sido e tal será a história da humanidade, enquanto os homens não compreenderem sua natureza espiritual e não houverem alargado seu horizonte moral; também este preconceito é próprio dos espíritos estreitos e vulgares, que tudo medem por sua própria personalidade.
Por outro lado, toda gente em geral, faz dos homens apenas conhecidos por seu espírito um ideal que cresce com o afastamento dos tempos e dos lugares. Eles são como que despojados da humanidade; parece que não devem falar nem sentir como o mundo; que sua linguagem e seus pensamentos devem estar constantemente no diapasão da sublimidade, sem cuidar que o Espírito não poderia estar constantemente em estado de tensão, e num perpétuo estado de super-excitação. No contato diário da vida privada, se vê demasiado o homem material, que nada distingue do vulgar. O homem corporal, que impressiona os sentidos, apaga quase o homem espiritual, que apenas impressiona o Espírito; de longe, apenas se percebem os brilhos do gênio; de perto, vê-se o repouso do Espírito.
Depois da morte, a comparação não existe mais, o homem espiritual permanece só, e parece ser tanto maior, quanto se afasta a recordação do homem corporal. Eis porque os homens que marcaram sua passagem por obras de valor real, são mais apreciados depois de sua morte que enquanto vivem. São julgados com mais imparcialidade, porque os invejosos e os ciumentos desapareceram, e os antagonismos pessoais não existem mais. A posteridade é um juiz desinteressado que aprecia a obra do Espírito, aceita-a sem entusiasmo cego se ela for boa, rejeita-a sem ódio se ela for má, feita abstração da individualidade que a produziu.
Jesus pouco podia escapar às consequências desse princípio, inerente à natureza humana, por viver num ambiente pouco esclarecido e entre homens devotados inteiramente à vida material. Seus compatriotas viam nele apenas o filho do carpinteiro, o irmão de homens tão ignorantes quanto eles, e se perguntavam que é que podia torná-lo superior a si próprios e dar-lhe o direito de censurá-los; também, vendo que sua palavra tinha menos crédito sobre os seus, que o desprezavam, foi pregar entre aqueles que o escutavam, no meio onde encontrava simpatia.
Pode-se julgar de que sentimentos seus conhecidos estavam animados em relação a ele, pelo fato de que seus próprios irmãos, acompanhados de sua mãe, vieram a uma assembleia onde ele se encontrava, para se apoderarem dele, dizendo que ele havia perdido o espírito. (S. Marcos, Cap. III, vers. 20, 21, e de 31 a 35). O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIV).
Assim, por outro lado, os sacerdotes e os fariseus acusavam Jesus de agir pelo demônio; do outro, era taxado de loucura pelos seus próprios parentes. Não é assim que hoje se costuma fazer com relação aos espíritas, e estes devem se queixar de não serem melhor tratados por seus concidadãos do que o foi Jesus? Aquilo que nada tinha de espantoso há dois mil anos, num povo ignorante, é mais estranho no século XIX, nas nações civilizadas.
Morte e Paixão de Jesus
3. (Depois da cura do lunático) — Todos ficaram admirados do grande poder de Deus. E estando todos presos de admiração pelo que Jesus fazia, disse ele a seus discípulos: Guardai bem nos vossos corações o que vos digo. O filho do homem tem que ser entregue às mãos dos homens. — Eles, porém, não entendiam essa linguagem; ela lhes era de tal modo oculta que nada compreendiam daquilo e temiam mesmo interrogá-lo a respeito. (S. Lucas, cap. IX, vers. 44 e 45).
4. A partir de então, começou Jesus a revelar a seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém; que aí tinha de sofrer muito da parte dos senadores, dos escribas e dos príncipes dos sacerdotes; que tinha de ser morto e de ressuscitar ao terceiro dia (S. Mateus, cap. XVI, vers. 21).
5. Estando na Galileia, disse-lhes Jesus: O Filho do homem tem que ser entregue às mãos dos homens; estes lhe darão morte e ele ressuscitará no terceiro dia, o que os afligiu extremamente. (S. Mateus, cap. XVII, vers. 21 e 22).
6. Ora, indo Jesus a Jerusalém, chamou de parte seus doze discípulos e lhes disse: Vamos para Jerusalém e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que o condenarão à morte e o entregarão aos gentios, a fim de que o tratem com zombarias, o açoitem e crucifiquem; e ele ressuscitará ao terceiro dia. (S. Mateus, cap. XX, vers. 17, 18 e 19).
7. Em seguida, tomando de parte os doze apóstolos, disse-lhes Jesus: Eis que vamos a Jerusalém e tudo o que os profetas escreveram acerca do Filho do homem vai cumprir-se, — porquanto ele será entregue aos gentios, zombarão dele, açoitá-lo-ão e lhe escarrarão no rosto. — Depois que o tiverem açoitado, matá-lo-ão e ele ressuscitará ao terceiro dia.
Mas, eles nada compreenderam de tudo isso; aquela linguagem lhes era oculta e não entendiam o que ele lhes dizia. (S. Lucas, cap. XVIII, vers. 31 a 34).
Ora, tendo concluído todos esses discursos, Jesus disse a seus discípulos: Sabeis que a Páscoa se fará daqui a dois dias e que o Filho do homem será entregue para ser crucificado.
Ao mesmo tempo, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo se reuniram na corte do sumo sacerdote chamado Caifás, — e entraram a consultar-se mutuamente, à procura de um meio de se apoderarem habilmente de Jesus e de fazê-lo morrer. — Diziam: É absolutamente necessário que não seja durante a festa, para que não se levante qualquer tumulto no seio do povo. (S. Mateus, cap. XXVI, vers. 1 a 5).
9. No mesmo dia, alguns fariseus disseram-lhe: Vai-te, sai deste lugar, pois Herodes quer dar-te à morte. — Ele respondeu: Ide dizer a essa raposa: Ainda tenho que expulsar os demônios e restituir a saúde aos doentes, hoje e amanhã; no terceiro dia, serei consumado. (S. Lucas, cap. XIII, vers. 31 e 32).
Perseguição aos Apóstolos
10. Guardai-vos dos homens, porquanto eles vos farão comparecer nas suas assembleias, e vos farão açoitar nas suas sinagogas; e sereis apresentados, por minha causa, aos governadores e aos reis, para lhes servir de testemunhas, bem como às nações. (S. Mateus, cap. X, vers. 17-18).
11. Eles vos expulsarão das sinagogas e vem o tempo em que aquele que vos fizer morrer julgará fazer coisa agradável a Deus. — Tratar-vos-ão desse modo, porque não conhecem nem a meu Pai, nem a mim. — Ora, digo-vos estas coisas, a fim de que, quando houver chegado o tempo, vos lembreis de que eu vo-las disse. (S. João, cap. XVI, vers. 1 a 4).
12. Sereis traídos e entregues aos magistrados por vossos pais e vossas mães, por vossos irmãos, parentes, amigos e darão morte a muitos de nós. — Sereis odiados de toda gente, por causa do meu nome. — Entretanto, nenhum só cabelo de vossa cabeça se perderá. — Pela vossa paciência é que possuireis vossas almas. (S. Lucas, cap. XXI, vers. 16 a 19).
13. (Martírio de S. Pedro). Em verdade, em verdade vos digo que, quando éreis mais moços, vos cingíeis a vós mesmos e íeis onde queríeis; mas quando fordes velhos, estendereis as mãos e outro vos cingirá e conduzirá onde não quereríeis ir. — Ora, ele dizia isto para assinalar de que morte Pedro havia de glorificar a Deus. (S. João, cap. XXI, vers. 18 e 19).
Cidades Impenitentes
14. Começou então a reprovar as cidades onde fizera muitos milagres, por não terem feito penitência.
Ai de ti, Corazim, ai de ti Betsaida, porque se os milagres que foram feitos dentro de vós tivessem sido feitos em Tiro e em Sidon, há muito teriam elas feito penitência com sacos e cinzas. — Declaro-vos por isso que, no dia do juízo, Tiro e Sidon serão tratadas menos rigorosamente do que vós.
E tu, Cafarnaum, elevar-te-ás sempre até ao céu? Serás abaixada até ao fundo do inferno, porque, se os milagres que foram feitos dentro de ti o houvessem sido em Sodoma, esta ainda talvez subsistisse até hoje. — Declaro-te por isso que, no dia do julgamento, o país de Sodoma será tratado menos rigorosamente do que tu. — (S. Mateus, cap. XI, vers. 20 a 24).
Ruína do Templo de Jerusalém
15. Quando Jesus saiu do templo para ir-se embora, seus discípulos se acercaram dele para lhe fazerem notar a estrutura e a grandeza daquele edifício. — Ele, porém, lhes disse: Vedes todas essas construções? Digo-vos, em verdade, que serão de tal maneira destruídas, que não ficará pedra sobre pedra. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 1 e 2).
16. Em seguida, tendo chegado perto de Jerusalém, contemplando a cidade, ele chorou por ela, dizendo: — Ah! se ao menos neste dia que ainda te é concedido, reconhecesses aquele que te pode proporcionar paz! Mas, agora, tudo isto se acha oculto aos teus olhos. — Tempo virá, pois, para ti, em que teus inimigos te cercarão de trincheiras, te encerrarão e apertarão de todos os lados; — em que te deitarão por terra, a ti e aos seus filhos que estão dentro de ti, e não te deixarão pedra sobre pedra, porque não reconheceste o tempo em que Deus te visitou. (S. Lucas, cap. XIX, vers. 41 a 44).
17. Entretanto, é preciso que eu continue a andar hoje e amanhã e o dia seguinte, porquanto necessário é que nenhum profeta morra fora de Jerusalém.
Jerusalém! Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como uma galinha que reúne sob as asas seus pintainhos, e não o quiseste! — Aproxima-se o tempo em que vossa casa ficará deserta. Ora, em verdade vos digo que doravante não me tornareis a ver, até que digais: Bendito seja o que vem em nome do Senhor. (S. Lucas, cap. XIII, vers. 33 a 35).
18. Quando virdes um exército cercando Jerusalém, sabei que está próxima a sua destruição. — Fujam para as montanhas os que estiverem na Judéia, retirem-se os que estiverem dentro dela e não entrem os que estiverem na região circunvizinha. — Porquanto esses dias serão os da vingança, a fim de que se cumpra tudo o que está na Escritura. — Ai das que estiverem grávidas nesses dias, visto que este país será acabrunhado de males e a cólera do céu cairá sobre este povo. — Serão passados a fio de espada; serão levados em cativeiro para todas as nações, e Jerusalém será calcada aos pés pelos gentios, até que se haja cumprido o tempo das nações. (S. Lucas, cap. XXI, vers. 20 e 24).
19. (Jesus caminhando para o suplício). — Ora, acompanhava-o grande multidão de povo e mulheres a bater nos peitos e a chorar. — Jesus, então, voltando-se, disse: Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos — porquanto virá tempo em que se dirá: Ditosas as estéreis, as entranhas que não geraram filhos e os seios que não amamentaram. — Todos se porão a dizer às montanhas: Cai sobre nós! E às colinas: cobri-nos! — Pois, se tratam deste modo o lenho verde, como será tratado o lenho seco? (S. Lucas, cap. XXIII, vers. 27 a 31).
20. A faculdade de pressentir as coisas futuras é um dos atributos da alma, e explica-se pela teoria da presciência. Jesus a possuía, como todos os outros, num grau elevado. Ele pode, portanto, prever os acontecimentos que seguiriam sua morte, sem que houvesse feito nada de sobrenatural, pois este mesmo fato se vê reproduzir sob nossos olhos nas condições as mais comuns. Não é raro que indivíduos anunciem com precisão o instante de sua morte: é que sua alma, no estado de desprendimento, é como o homem na montanha (Cap. XVI, nº 1); ela abarca o caminho a percorrer, e vê seu termo.
21. O mesmo, e melhor, devia acontecer a Jesus, que, tendo consciência da missão que vinha preencher, sabia que a morte pelo suplício era a consequência necessária. A vista espiritual, que era permanente nele, assim como a penetração do pensamento, devia mostrar-lhe as circunstâncias e a época fatal. Pela mesma razão, ele podia prever a ruína do Templo, a de Jerusalém, as desgraças que iam atingir seus habitantes, e a dispersão dos Judeus.
Maldição Contra os Fariseus
22. (João Batista). Vendo muitos fariseus e saduceus que vinham a seu batismo, ele lhes disse: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? — Produzi então frutos dignos de arrependimento; não penseis em dizer a vós mesmos: Temos Abraão por pai, porquanto eu vos declaro que Deus pode fazer que destas pedras nasçam filhos a Abraão. — O machado já está posto à raiz das árvores e toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo. (S. Mateus, cap. III, vers. 7 a 10).
23. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o reino dos céus! Lá não entrais e ainda vos opondes a que outros entrem!
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que a pretexto de longas orações, devorais as casas das viúvas; tereis por isso um julgamento mais rigoroso!
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e que, depois de o haver conseguido, o tornais duas vezes mais digno do inferno do que vós mesmos!
Ai de vós, condutores de cegos, que dizeis: Se um homem jura pelo templo, isso nada vale; quem quer, porém, que jure pelo ouro do templo fica obrigado a cumprir o seu juramento! — Insensatos e cegos que sois! A qual se deve mais estimar: ao ouro, ou ao templo que santifica o ouro? — Se um homem, dizeis, jura pelo altar, isso nada vale; mas aquele que jura pelo dom que esteja sobre o altar, fica obrigado a cumprir o seu juramento. — Cegos que sois! A qual se deve mais estimar, ao dom ou ao altar que santifica o dom? — Aquele, portanto, que jura pelo altar, jura não só pelo altar, como por tudo o que está sobre ele; — e aquele que jura pelo templo jura por aquele que o habita; — e aquele que jura pelo céu jura pelo trono de Deus e por aquele que aí se assenta.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e que tendes abandonado o que há de mais importante na lei, a saber: a justiça, a misericórdia e a fé! Essas as coisas que deveis praticar, sem contudo omitir as outras. — Guias cegos, que tendes grande cuidado em coar o que bebeis, por medo de engolir um mosquito, e que, no entanto, engolis um camelo!
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais por fora o copo e o prato e que estais por dentro cheios de rapina e impureza! Fariseus cegos! Limpai primeiro o interior do copo e do prato, a fim de que também o exterior fique limpo.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que vos assemelhais a sepulcros caiados, que por fora parecem belos aos olhos dos homens, mas que por dentro, estão cheios de ossadas de mortos e de toda espécie de podridão! — Assim, por fora pareceis justos, enquanto que por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que erigis túmulos aos profetas e adornais os monumentos dos justos — e que dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais não nos teríamos nos associados a eles para derramar o sangue dos profetas! Acabai, portanto, de encher a medida de vossos pais. — Serpentes, raça de víboras, como podereis evitar a condenação ao inferno? — Eis que vos enviarei profetas, homens de sabedoria e escribas e matareis a uns, crucificareis a outros e a outros açoitareis nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em cidade — a fim de que recaia sobre vós todo o sangue inocente que tem sido derramado na Terra, desde o sangue de Abel, o justo, até o de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o templo e o altar! Digo-vos, em verdade, que tudo isso virá recair sobre esta raça hoje existente. (S. Mateus, cap. XXIII, vers. 13 a 36).
24. Então, aproximando-se dele, seus discípulos lhe disseram: Sabes que, ouvindo o que acabaste de dizer, os fariseus se escandalizaram? — Ele respondeu: Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada. Deixa-os; são cegos condutores de cegos; se um cego guia outro cego, cairão ambos na cova. (S. Mateus, cap. XV, vers. 12 a 14).
25. O Céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 35).
26. As palavras de Jesus não passarão, porque elas são verdadeiras em todos os tempos; seu código moral será eterno, porque encerra as condições do bem que conduz o homem ao seu destino eterno. Porém suas palavras terão chegado até nós sem mistura e isentas de más interpretações? Todas as seitas cristãs terão apanhado o seu espírito? Alguma não terá desviado o verdadeiro sentido, em consequência dos preconceitos e da ignorância das leis da natureza? Alguma não terá feito de si mesma um instrumento de dominação para servir a ambições e interesses materiais, um degrau, não para subir aos céus, mas para se elevar sobre a Terra? Terão todas elas adotado como regra de conduta as práticas das virtudes das quais Jesus fez a condição expressa da salvação? Todas elas são isentas das apóstrofes que ele dirigia aos fariseus de seu tempo? Todas, enfim, em teoria assim como na prática, são a expressão pura de sua doutrina?
Sendo a verdade uma só, não se pode encontrá-la em afirmações contrárias, e Jesus não poderia querer dar duplo sentido às suas palavras. Se pois as diferentes seitas se contradizem; se umas consideram como verdadeiro algo que outras condenam como heresia, é impossível que todas estejam com a verdade. Se todas houvessem tomado o sentido verdadeiro do ensinamento evangélico, elas se teriam encontrado sobre o mesmo terreno, e não haveria seitas.
O que não passará, é o sentido verdadeiro das palavras de Jesus; o que passará, é o que os homens construíram sobre os falsos significados que deram a essas mesmas palavras.
Tendo Jesus, como missão trazer aos homens o pensamento de Deus, sua doutrina pura é a única que pode ser a expressão de tal pensamento; por isso ele disse: Toda planta que meu Pai celestial não plantar será arrancada.
A Pedra Angular
27. Não lestes jamais isto nas Escrituras: A pedra que os edificadores rejeitaram se tornou a principal pedra da esquina? Foi o que o Senhor fez e nossos olhos o vêem com admiração. Por isso vos declaro que o reino de Deus vos será tirado e será dado a um povo que dele tirará frutos. Aquele que se deixar cair sobre essa pedra se despedaçará e ela esmagará aquele sobre quem sair.
Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus, tendo ouvido essas palavras de Jesus, conheceram que era deles que falava; e, querendo prendê-lo, recearam-se do povo, pois este o considerava como um profeta. (S. Mateus, Cap. XXI, vers. de 42 a 46).
28. A palavra de Jesus tornou-se a pedra angular, isto é, a pedra da consolidação do novo edifício da lei, elevada sobre as ruínas do antigo; os Judeus, os príncipes dos sacerdotes e os fariseus, havendo rejeitado essa palavra, ela os esmagou, como esmagará aqueles que mais tarde a desprezarem, ou que lhe desnaturarem o sentido, para lucro de sua ambição.
Parábola dos vinhateiros Homicidas
29. Havia um pai de família que, tendo plantado uma vinha, cercou-a com uma sebe; e cavando a terra, construiu uma torre. Arrendou-a depois a uns vinhateiros, e partiu para uma terra distante.
Ora, estando próximo o tempo dos frutos, enviou seus servidores aos vinhateiros, para recolher o fruto de sua vinha. — Mas os vinhateiros, apoderando-se dos seus servidores, a um feriram, a outro mataram, e lapidaram ao terceiro. — Enviou-lhes ainda outros servidores, em quantidade maior que da primeira vez, e foram tratados da mesma maneira. — Enfim, enviou-lhes o seu próprio filho, dizendo de si para si: Terão algum respeito por meu filho. — Mas os vinhateiros, vendo o filho, disseram entre eles: Eis o filho, o herdeiro, vinde, matemo-lo, e nós seremos os donos de sua herança. — Assim, apoderando-se dele, expulsaram-no da vinha, e o mataram.
Quando o dono da vinha vier, como tratará os vinhateiros? — Responderam-lhe: Fará que pereçam miseravelmente esses malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entreguem os frutos na estação própria. (S. Mateus, cap. XXI, vers. de 33 a 41).
30. O pai de família é Deus; a vinha que plantou é a lei que estabeleceu; os vinhateiros aos quais alugou sua vinha são os homens que devem ensinar e praticar sua lei; os servidores que lhes enviou são os profetas que fizeram perecer; seu filho, que por fim envia, é Jesus, a quem fizeram perecer da mesma forma. E, pois, como o Senhor tratará seus mandatários prevaricadores de sua lei? Haverá de tratá-los como trataram seus enviados, e chamará a outros que lhe prestarão melhores contas de suas propriedades, e da condução de seu rebanho.
Assim tem sido com os escribas, príncipes dos sacerdotes e fariseus; assim será quando ele vier de novo, pedir conta a cada um daquilo que fez de sua doutrina; retirará a autoridade a quem dela houver abusado, pois ele quer que seu campo seja administrado segundo sua vontade.
Depois de dezoito séculos a humanidade, tendo chegado à idade viril, está madura para compreender aquilo que o Cristo apenas tratou de leve, porque, como ele mesmo o disse, não teriam compreendido. Ora, a qual resultado chegaram aqueles que, durante esse longo período, foram encarregados de sua educação religiosa? Ao de que a indiferença sucedeu à fé, e a incredulidade erigiu-se em doutrina. Com efeito, em nenhuma outra época o ceticismo e o espírito de negação estiveram mais espalhados em todas as classes da sociedade.
Porém, se algumas das palavras do Cristo são veladas sob alegorias ele é claro, explícito e sem ambiguidade no que concerne à regra de procedimento, de conduta, as relações de homem para homem, os princípios de moral de que ele faz a condição expressa da salvação. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XV).
O que fizeram das suas máximas de caridade, amor e tolerância? Das recomendações que fez a seus apóstolos, de converter os homens pela doçura e persuasão? Da simplicidade, da humildade, do desinteresse e de toda as virtudes das quais ele deu o exemplo? Em seu nome, os homens reciprocamente se lançaram anátema e maldição; esganaram-se em nome daquele que disse: todos os homens são irmãos. Fizeram um Deus ciumento, cruel, vingativo e parcial daquele que proclamou ser infinitamente justo, bom e misericordioso; a esse Deus, de paz e de verdade, foram sacrificadas milhares de vítimas nas fogueiras, pela tortura e pelas perseguições, o que jamais foi feito pelos pagãos aos falsos deuses; venderam-se orações e os favores do céu em nome daquele que expulsou os mercadores do Templo, e que disse a seus discípulos: dai de graça o que de graça recebestes.
Que diria o Cristo, se vivesse hoje entre nós? Se visse seus representantes ambicionar as honras, as riquezas, o poder e o fausto dos príncipes do mundo, enquanto que ele, mais rei que os reis da terra, fez sua entrada em Jerusalém, montado numa jumenta? Não estaria ele no direito de dizer-lhes: que tendes feito de meus ensinamentos, vós que incensais o bezerro de ouro, que atribuís, em vossas orações, uma larga parte aos ricos e uma magra parte aos pobres, ao passo que vos tenho dito: os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros no reino dos céus? Mas, se ele não está carnalmente entre vós, está em Espírito e, como o senhor da parábola, virá pedir conta aos seus vinhateiros do produto de sua vinha, quando chegar o tempo da colheita.
Um só Rebanho e um só Pastor
31. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco; é preciso que também a essas eu conduza; elas escutarão minha voz, e não haverá senão um só rebanho e um só pastor. (S. João, cap. X, vers. 16).
32. Por estas palavras, Jesus anunciou claramente que um dia os homens se unirão por uma crença única; porém, como se poderá fazer essa unificação? Isto parecerá difícil, se levarmos em conta as diferenças existentes entre as religiões, o antagonismo que elas entretêm entre seus respectivos adeptos com relação à sua obstinação em crer que cada um está de posse exclusiva da verdade. Todas querem a unidade, mas todas se iludem de que ela se fará com sua vantagem, e nenhuma pretende fazer concessões em seus artigos de fé.
Entretanto, a unidade se fará em religião, como tende a se fazer socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda das barreiras que separam os povos, pela assimilação dos costumes, dos usos, da linguagem; os povos do mundo inteiro fraternizam já, como se fossem províncias do mesmo império; pressente-se a sua unidade, e todos a desejam. Ela se fará pela força das coisas, porque se tornará uma necessidade para que se estreitem os laços de fraternidade entre as nações; ela se fará pelo desenvolvimento da razão humana, que fará compreender a puerilidade dessas dissidências; pelo progresso das ciências, que demonstra a cada dia os erros materiais sobre os quais elas se apoiam, e pouco a pouco soltam as pedras estragadas de seus alicerces. Se a ciência é a demolidora, nas religiões, daquilo que é obra dos homens e fruto de sua ignorância das leis da natureza, ela não pode destruir, apesar da opinião de alguns, aquilo que é obra de Deus, e eterna verdade; eliminando os acessórios, ela prepara os caminhos da unidade.
Para chegar à unidade, as religiões deverão se reencontrar sobre um terreno neutro, e todavia comum a todas; para isso, todas terão que fazer concessões e sacrifícios maiores ou menores de seus dogmas particulares. Mas, em virtude do princípio de imutabilidade que todas elas professam, a iniciativa das concessões não poderia vir do campo oficial; em lugar de iniciar-se do alto, elas partirão de baixo, pela iniciativa individual. Depois de algum tempo se operará um movimento de descentralização que tende a adquirir uma força irresistível. O princípio da imutabilidade, que as religiões têm considerado até aqui como uma égide conservadora, tornar-se-á um elemento destruidor, visto que com a imobilização dos cultos, ao passo que a sociedade caminha para a frente, eles serão ultrapassados, e depois absorvidos na corrente das ideias progressistas.
A imobilidade, em vez de ser uma força, torna-se uma causa de fraqueza e de ruína para quem não segue o movimento geral; ela rompe a unidade, porque aqueles que querem ir para diante se separam daqueles que se obstinam a ficar para trás.
No estado atual de opinião e de conhecimentos, a religião que um dia deverá ligar todos os homens sob uma mesma bandeira, será aquela que melhor satisfaça a razão e as legítimas aspirações do coração e do espírito; que em nenhum ponto seja desmentida pela ciência positiva; que em lugar de se imobilizar, siga a humanidade em sua marcha progressiva sem jamais se deixar ultrapassar; que não seja exclusiva, nem intolerante; que seja a emancipadora da inteligência, nada admitindo senão a fé racionada; aquela cujo código de moral seja o mais puro, o mais racional, em mais harmonia com as necessidades sociais, o mais próprio, enfim, para que se funde sobre a terra o reinado do bem, pela prática da caridade e da fraternidade universais.
O que alimenta o antagonismo entre as religiões é a ideia que cada uma delas tem de um Deus particular, e sua pretensão de que o seu seja o único verdadeiro e o mais poderoso, em constante hostilidade com os deuses de outros cultos, é preocupado em combater sua influência. Quando as religiões se convencerem de que há apenas um Deus no Universo, e que de modo definitivo é o mesmo que adoram sob os nomes de Jeová, Alá ou Deus; quando elas se puserem de acordo sobre os seus atributos essenciais, compreenderão que um ser único só pode ter uma vontade; elas se estenderão as mãos como servidores de um mesmo Senhor e filhos do mesmo Pai, e terão realizado um grande passo para a unidade.
Advento de Elias
33. Então, seus discípulos lhe perguntaram: Por que então os escribas dizem que é preciso que antes venha Elias? — Jesus lhes respondeu: É certo que Elias deve vir, e que ele restabelecerá todas as coisas.
Mas eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram; antes, o trataram como lhes aprouve. É assim que farão morrer o Filho do homem.
Então, seus discípulos compreenderam que era de João Batista que ele lhes falara. S. Mateus, cap. XVII, vers. 10 a 13).
34. Elias já viera na pessoa de João Batista. Seu novo advento é anunciado de maneira explícita; ora, como não poderá voltar senão com um corpo novo, eis a consagração formal do princípio da pluralidade das existências. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV, nº 10).
Anunciação do Consolador
35. Se vós me amais, guardai meus mandamentos — e pedirei a meu Pai, e ele vos enviará um outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: — o Espírito de Verdade, que este mundo não pode receber, pois não o vê; mas vós o conhecereis, pois ficará convosco, e estará em vós. — Mas o Consolador, que é o Espírito Santo, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará recordar de tudo quanto vos tenho dito. (S. João, cap. XIV, vers. 15, 16, 17 e 26. — O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. VI).
36. Entretanto, digo-vos a verdade: Convém que eu vá; pois se eu não me for, o Consolador não virá a vós; porém eu vou, e eu vo-lo enviarei, — e quando ele vier, convencerá o mundo no que respeita ao pecado, à justiça e ao julgamento: — no que respeita ao pecado, porque eles não terão acreditado em mim; — no que respeita à justiça, porque eu vou a meu Pai e vós não me vereis mais; no que respeita ao julgamento, porque o príncipe deste mundo já está julgado.
Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as podeis suportar agora.
Quando este Espírito de Verdade vier, ele vos ensinará toda a verdade, pois não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas vindouras.
Ele me glorificará, porque receberá do que está em mim e vo-lo anunciará. (S. João, cap. XVI, vers. 7 a 14).
37. Esta predição, sem contradita, é uma das mais importantes do ponto de vista religioso, pois ela prova de maneira inequívoca que Jesus não disse tudo aquilo que tinha a dizer, pois não o compreenderiam, mesmo seus apóstolos, pois era a estes que ele se dirigia. Se lhes houvesse dado instruções secretas, eles teriam mencionado isso no Evangelho. Então, desde que ele não disse tudo a seus apóstolos, os sucessores destes não poderiam ter sabido mais que aqueles; poderiam, pois, ter-se enganado sobre o sentido das suas palavras, dar uma falsa interpretação a seus pensamentos, frequentemente velados sob forma simbólica. As religiões fundadas sobre o Evangelho não podem, pois, dizer que estão na posse de toda a verdade, pois que ele se reservou o direito de completar ulteriormente suas instruções. O princípio de imutabilidade das religiões está, pois, desmentido pelas próprias palavras de Jesus.
Ele anuncia sob o nome de Consolador e de Espírito de Verdade, aquele que deve ensinar todas as coisas e fazer recordar o que ele dissera; de onde se diz que seu ensinamento não estava completo; além disso, ele previa que haviam de esquecer o que ele dissera, e que haviam de desnaturar seu ensinamento, pois o Espírito de Verdade lhes devia fazer recordar, e de acordo com Elias, restabelecer todas as coisas, isto é, segundo o verdadeiro pensamento de Jesus.
38. Quando deverá vir este novo revelador? É bem evidente que, se na época em que Jesus falava os homens não estavam em estado de compreender aquilo que lhe restava dizer, não seria em alguns anos que poderiam adquirir as luzes necessárias. Para compreensão de certa parte do Evangelho, excetuados os preceitos da moral, seriam necessários conhecimentos que unicamente o progresso da ciência poderia dar, e que deviam ser a obra do tempo e de diversas gerações. Se, portanto, o novo Messias tivesse vindo pouco tempo depois do Cristo, teria encontrado o terreno também pouco propício, e não teria feito mais que ele. Ora, desde Cristo até os nossos dias, não se produziu nenhuma grande revelação que haja completado o Evangelho, e haja elucidado suas partes obscuras, o que constitui índice seguro de que o Enviado ainda não aparecera.
39. Qual deverá ser esse Enviado? Ao dizer Jesus: "Orarei a meu Pai e ele vos enviará um outro Consolador," isto indica claramente que não se trata dele mesmo, senão teria dito: "Voltarei a completar o que vos tenho ensinado." Depois, ele acrescenta: "A fim de que permaneça eternamente convosco, e estará em vós." Isto não poderia dizer respeito a uma individualidade encarnada que não pode permanecer eternamente conosco, e ainda menos estar em nós; compreende-se bem que pode ser uma doutrina a qual, com efeito, desde que tenha sido assimilada, pode estar eternamente em nós. O Consolador é, pois, no pensamento de Jesus, a personificação de uma doutrina soberanamente consoladora, cujo inspirador deve ser o Espírito de Verdade.
40. O Espiritismo realiza, conforme foi já demonstrado (Cap. I, nº 30), todas as condições do Consolador prometido por Jesus. Não é uma doutrina individual, uma concepção humana; ninguém pode dizer que foi seu criador. É o produto do ensinamento coletivo dos Espíritos, ensino ao qual preside o Espírito de Verdade. Nada suprime do Evangelho: ele o completa e elucida; com o auxílio das novas leis que revela, juntas às da ciência, faz compreender o que era ininteligível, admitir a possibilidade do que a incredulidade considerava como inadmissível. Teve seus precursores e seus profetas, que lhe pressentiram a vinda. Por seu poder moralizador, prepara o reino do bem sobre a Terra.
A doutrina de Moisés, incompleta, permaneceu circunscrita ao povo judeu; a de Jesus, mais completa, espalhou-se por toda a Terra, pelo cristianismo, porém não converteu todo o mundo; o Espiritismo, mais completo ainda, tendo raízes em todas as crenças, converterá a humanidade. ([89])
41. Quando Jesus dizia a seus apóstolos: "Um outro virá mais tarde, que vos ensinará aquilo que não posso vos dizer agora," proclamava por isso mesmo, a necessidade da reencarnação. Como poderiam estes homens aproveitar o ensinamento mais completo que deveria ser dado ulteriormente? Como seriam eles mais aptos a compreendê-lo, se não deviam reviver? Jesus teria dito uma inconsequência, se os homens futuros devessem, segundo a doutrina vulgar, ser homens novos, almas saídas do nada no seu nascimento. Admita-se, ao contrário, que os apóstolos e os homens de seu tempo tenham vivido depois; que eles revivem ainda hoje; então, a promessa de Jesus se encontra justificada; sua inteligência, que deve ter-se desenvolvido ao contato do progresso social, pode suportar agora aquilo que então não o poderia. Sem a reencarnação, a promessa de Jesus teria sido ilusória.
42. Se se dissesse que essa promessa foi realizada no dia de Pentecostes pela descida do Espírito Santo, a resposta seria de que o Espírito Santo os inspirou, que ele pode abrir sua inteligência, desenvolver neles as aptidões mediúnicas que deviam facilitar suas missões, mas que nada lhes ensinou além do que Jesus ensinara, pois nenhum traço se encontra, de um ensinamento especial. O Espírito Santo, pois, não realizou o que Jesus anunciara, do Consolador: de outro modo os apóstolos teriam elucidado, enquanto viviam, tudo quanto permaneceu obscuro no Evangelho, até nossos dias, e cuja interpretação contraditória deu lugar às inúmeras seitas que dividiram o cristianismo desde os primeiros séculos.
Segundo Advento do Cristo
43. Disse então Jesus a seus discípulos: Se alguém quiser vir a mim, que tome sua cruz e siga-me; — pois aquele que quiser salvar sua vida perdê-la-á, e aquele que perder sua vida por amor de mim a reencontrará.
E de que valeria ao homem ganhar todo o mundo, e perder sua alma? Ou por que preço poderá o homem resgatar sua alma, depois de havê-la perdido? — Pois o Filho do homem deve vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então dará a cada um segundo suas obras.
Digo-vos, em verdade, há alguns dos que estão aqui, que não experimentarão a morte senão depois de haverem visto o Filho do homem vir em seu reino. (S. Mateus, cap. XVI, vers. de 24 a 28).
44. Então o sumo-sacerdote, levantando-se no meio da assembleia, interrogou a Jesus e lhe disse: Vós não respondeis nada aos que depõem contra vós? — Mas Jesus permaneceu em silêncio e nada respondeu. O sumo-sacerdote ainda o interrogou e lhe disse: Sois vós o Cristo, o Filho de Deus abençoado para sempre? — Jesus lhe respondeu: Eu o sou, e vereis um dia o Filho do homem sentado à direita da majestade de Deus, vindo sobre as nuvens do céu.
Logo o sumo-sacerdote, rasgando suas vestes, lhes disse: Que necessidade temos de mais testemunhas? (S. Marcos, cap. XIV, vers. 60 a 63).
45. Jesus anuncia seu segundo advento, mas não diz que virá sobre a terra com um corpo carnal, nem que o Consolador será personificado nele. Ele se apresenta como devendo vir em Espírito, na glória de seu Pai, julgar o mérito e o demérito, e dar a cada um segundo suas obras, quando os tempos forem chegados.
Estas palavras: "Há alguns dos que aqui se encontram que não experimentarão a morte senão depois de terem visto o Filho do homem em seu reino," parece uma contradição, pois é certo que ele não veio enquanto vivia qualquer daqueles que estavam presentes. Entretanto, Jesus não podia se enganar numa previsão dessa natureza, e sobretudo por um assunto contemporâneo, que lhe dizia respeito pessoalmente; para começar, será preciso que nos perguntemos se suas palavras foram sempre fielmente transmitidas. Será lícito duvidar dessa transmissão, se nos lembrarmos de que os apóstolos nada escreveram; que suas palavras apenas foram recolhidas depois de sua morte; e quando se encontra o mesmo discurso quase sempre reproduzido com palavras diferentes em cada evangelista, é prova evidente de que as expressões de que eles se serviram não foram as expressões textuais de Jesus. Além disso, é provável que o sentido haja sido por vezes alterado, ao passar por traduções sucessivas.
Por outro lado, é certo que se Jesus tivesse dito tudo o que poderia dizer, ter-se-ia expressado sobre todas as coisas de maneira nítida e precisa, de modo a não causar nenhum equívoco, como o faz quanto aos princípios de moral enquanto que ele deve ter desejado velar seu pensamento a respeito dos assuntos que julgava não dever aprofundar. Os apóstolos, persuadidos de que a geração presente devia ser testemunha daquilo que anunciava, deverão ter interpretado o pensamento de Jesus segundo suas ideias; por consequência, puderam redigi-la no sentido do presente, de maneira mais absoluta do que aquela que ele mesmo não teria usado. Seja como for, o fato é que as coisas não se passaram como o supuseram.
46. Um ponto capital que Jesus não pode desenvolver porque os homens de seu tempo não estavam suficientemente preparados para tal ordem de ideias, assim como para suas consequências, mas do qual ele estabeleceu o princípio, como aliás o fez para todas as coisas, é a grande e importante lei da reencarnação. Esta lei, estudada e trazida à luz de nossos dias pelo Espiritismo, é a chave de muitas passagens do Evangelho, as quais, sem isso, pareceriam um contra-senso.
É nesta lei que se pode encontrar a explicação racional das palavras acima, se as admitirmos como textuais. Desde que elas não podem se aplicar às pessoas dos apóstolos, é evidente que dizem respeito ao reino futuro do Cristo, isto é, ao tempo em que sua doutrina, melhor compreendida, será a lei universal. Ao dizer-lhes que alguns dos que estão presentes verão seu advento, isto não podia se entender senão no sentido de que haveriam de reviver naquela época. Porém os Judeus entenderam que iriam ver tudo aquilo que Jesus anunciava, e tornavam suas alegorias ao pé da letra.
Além do mais, algumas de suas predições se cumpriram no seu próprio tempo, tais como a ruína de Jerusalém, as desgraças que dela resultaram, e a dispersão dos Judeus; porém Jesus lança suas vistas mais longe, e falando do presente, constantemente faz alusão ao futuro.
Sinais Precursores
47. Ouvireis também falar de guerras e rumores de guerras; mas tratai de não vos perturbardes, pois é preciso que tais coisas aconteçam; mas não será ainda o fim, — pois vereis se levantar povo contra povo e reino contra reino; e haverá pestes, fome e tremores de terra em diversos lugares, — e todas essas coisas não serão senão o começo das dores. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 6, 7 e 8)
48. Então o irmão entregará o irmão para ser morto e os filhos se levantarão contra seus pais e mães e os farão morrer. — Sereis odiados de toda gente por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até o fim será salvo. (S. Marcos, cap. XIII, vers. 12 e 13).
49. Quando virdes que a abominação da desolação que foi predita pelo profeta Daniel, está no lugar santo, (aquele que lê entenda); — fujam então para as montanhas os que estiverem na Judéia: ([90]) não desça aquele que estiver no telhado, para levar de sua casa qualquer coisa; — e não volte para apanhar suas roupas aquele que estiver no campo. — Mas, ai da mulheres que estiverem grávidas ou amamentando nesses dias. — Pedi a Deus que a vossa fuga não se dê durante o inverno, nem em dia de sábado — porquanto a aflição desse tempo será tão grande, como ainda não houve igual desde o começo do mundo até o presente e como nunca mais haverá. — E se esses dias não fossem abreviados, nenhum homem se salvaria; mas esses dias serão abreviados em favor dos eleitos. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 15 a 22).
50. Logo depois desses dias de aflição, o Sol se obscurecerá e a Lua deixará de dar sua luz; as estrelas cairão do céu e as potestades dos céus serão abaladas.
Então o sinal do filho do homem aparecerá no céu e todos os povos da Terra estarão em prantos e em gemidos e verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu com grande majestade.
Ele enviará seus anjos, que farão ouvir a voz retumbante de suas trombetas e que reunirão seus eleitos dos quatro cantos do mundo, de uma extremidade a outra do céu.
Apreendei uma comparação tirada da figueira. Quando seus ramos já estão tenros e dão folhas, sabeis que está próximo o estio. — Do mesmo modo, quando virdes todas essas coisas, sabei que o Filho do homem, está próximo à porta.
Digo-vos, em verdade, que esta geração não passará, sem que todas essas coisas se tenham cumprido. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 19 a 34).
E acontecerá no advento do Filho do homem o que aconteceu ao tempo de Noé — pois, como nos últimos tempos antes do dilúvio, os homens comiam e bebiam, se casavam e casavam seus filhos, até ao dia em que Noé entrou na arca; — e assim como não conheceram o momento do dilúvio, senão quando este sobreveio e arrebatou toda a gente, assim também será no advento do Filho do homem. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 37 e 38).
51. Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém o sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, mas somente o Pai. (S. Marcos, cap. XIII, vers. 32).
52. Em verdade, em verdade vos digo: chorareis e gemereis, e o mundo se rejubilará; estareis em tristeza, mas a vossa tristeza se mudará em alegria. — Uma mulher, quando dá à luz, está em dor, porque é chegada a sua hora; mas depois que ela dá à luz um filho, não mais se lembra de todos os males que sofreu, pela alegria que experimenta de haver posto no mundo um homem. — É assim que agora estais em tristeza; mas, eu vos verei de novo e o vosso coração se rejubilará e ninguém vos arrebatará a vossa alegria. (S. João, cap. XVI, vers. 20 a 22).
53. Levantar-se-ão muitos falsos profetas que seduzirão a muitas pessoas; — e, porque abundará a iniquidade, a caridade de muitos esfriará; — mas, aquele que perseverar até o fim será salvo. — E este Evangelho será pregado em toda a Terra, para servir de testemunho a todas as nações. É então que chegará o fim. (S. Mateus, cap. XXIV, vers. 11 a 14).
54. Este quadro do fim dos tempos é evidentemente alegórico como a maior parte dos que Jesus apresenta. As imagens que ele contém são, por sua energia, de molde a impressionar as inteligências ainda subdesenvolvidas. Para atingir essas imaginações tão pouco sutis, era preciso recorrer a pinturas vigorosas de cores fortes. Jesus dirigia-se sobretudo ao povo, aos homens menos esclarecidos, incapazes de compreender as abstrações metafísicas, e de aprender a delicadeza das formas. Para chegar ao coração, era necessário falar aos olhos, com o auxílio de sinais materiais, e aos ouvidos, pelo vigor da linguagem.
Numa consequência natural dessa disposição de espírito, o poder supremo, segundo a crença então vigorante, não podia deixar de se manifestar senão por fatos extraordinários, sobrenaturais; quanto mais impossíveis, tanto melhor eram aceitos como prováveis.
O Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu, com grande majestade, rodeado de seus anjos e com o ruído das trombetas, lhes parecia muito mais imponente que um ser investido apenas de poder moral. Assim é que os Judeus não quiseram reconhecer no humilde filho do carpinteiro, sem autoridade material, o Messias, pois esperavam um rei da terra, poderoso entre todos os demais reis, para colocar sua nação em primeira plana, e restaurar o trono de Davi e Salomão.
Entretanto, este pobre proletário da Judéia tornou-se o maior entre os grandes; conquistou para sua soberania, mais reinos que os mais poderosos potentados; unicamente com sua palavra e alguns miseráveis pescadores, revolucionou o mundo, e é a ele que os Judeus devem sua reabilitação. Ele estava pois com a verdade, quando, a esta pergunta de Pilatos: "Sois rei?", ele respondeu: "Vós o dizeis."
55. Deve-se notar que, para os Antigos, os tremores de terra e o escurecimento do sol eram os acessórios forçados de todos os acontecimentos e de todos os presságios sinistros; são encontrados na morte de Jesus, na de César, e numa porção de circunstâncias da História do paganismo. Se tais fenômenos se houvessem produzido com tanta frequência como são narrados, pareceria impossível que os homens não lhes retivessem a memória, pela tradição. Aqui cabem também as estrelas que caem do céu, como para testemunhar às gerações futuras mais esclarecidas, que se trata de mera ficção, pois que hoje se sabe que as estrelas não podem cair.
56. Entretanto, sob essas alegorias se escondem grandes verdades. Para começar, é o anúncio das calamidades de todas as espécies que atingirão a humanidade e a dizimarão; calamidades engendradas pela luta suprema entre o bem e o mal, a fé e a incredulidade, as ideias progressivas e as ideias retrógradas. Em segundo lugar, a da difusão, por toda a terra, do Evangelho, restabelecido em sua pureza primitiva; depois, o reinado do bem, que será o da paz e da fraternidade universal, sairá do código da moral evangélica posto em prática por todos os povos. Tal será verdadeiramente o reinado de Jesus, pois que ele presidirá seu estabelecimento, e os homens viverão sob a égide de sua lei; reino de felicidade, pois, diz ele, "após os dias de aflição virão os dias de alegria."
57. Quando se realizarão tais cousas? "Ninguém o sabe, diz Jesus, nem mesmo o Filho." Porém, quando chegar o momento, os homens serão advertidos pelos índices precursores. Tais sinais não estarão nem no Sol, nem nas estrelas, mas no estado social e nos fenômenos mais morais que físicos, e que em parte se podem deduzir de suas alusões.
É bem certo que tal modificação não poderia se operar em vida dos apóstolos, por outro modo Jesus não teria podido ignorá-lo; aliás, tal transformação não poderia efetivar-se em alguns anos. Entretanto, ele fala como se os apóstolos devessem ser testemunhas de tais acontecimentos; é que, com efeito, eles poderão reviver nessa época e eles mesmos trabalharem na transformação. Ele ora fala da sorte próxima de Jerusalém, ora toma esse fato como ponto de referência ao que ocorreria no futuro.
58. Será o fim do mundo que Jesus anuncia por sua nova vinda, e quando diz: Quando o Evangelho for pregado por toda a Terra, é então que o fim chegará?"
Não é racional supor que Deus destrua o mundo, exatamente quando venha a entrar no caminho do progresso moral, pela prática dos ensinamentos evangélicos; aliás, nada nas palavras de Cristo, indica uma destruição universal, a qual, em tais condições, não seria justificada.
A prática geral do Evangelho, devendo resultar numa melhoria do estado geral dos homens, trará, por isso mesmo, o reinado do bem e resultará na queda do reinado do mal. É pois o fim do velho mundo, do mundo governado pela incredulidade, pela cupidez e todas as más paixões a que o Cristo alude quando diz: "Quando o Evangelho for pregado por toda a Terra, é então que o fim chegará;" mas esse fim trará uma luta, e é dessa luta que resultarão os males que ele previu.
Vossos Filhos e Filhas Profetizarão
59. Nos últimos tempos, diz o Senhor, espalharei meu espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões, e vossos velhos terão sonhos. — Naqueles dias, espalharei meu espírito sobre meus servos e servas, e eles profetizarão. (Atos, cap. II, vers. 17 e 18. — Joel, cap. II, vers. 28 e 29).
60. Se considerarmos o estado atual do mundo físico e do mundo moral, as tendências, as aspirações, os pressentimentos das massas, a decadência das velhas ideias que se debatem em vão desde um século contra as ideias novas, não se pode duvidar que nova ordem de coisas se prepara, e que o velho mundo chega a seu termo.
Se agora levarmos em conta a forma alegórica de certos quadros, e perscrutando o sentido íntimo das palavras de Jesus comparamos a situação atual com os tempos por ele descritos, como devendo marcar a era de renovação, não se pode deixar de convir em que diversas de suas predições apresentam hoje sua efetivação; daí concluir-se que chegamos aos tempos anunciados, o que é confirmado sobre todos os pontos do globo pelos Espíritos que se manifestam.
61. Como temos visto (Cap. I, nº 32), o advento do Espiritismo, coincidindo com outras circunstâncias, realiza uma das mais importantes predições de Jesus pela influência que forçosamente deve exercer sobre as ideias. Ademais, ele é claramente anunciado naquela predição relatada nos Atos dos Apóstolos: "Nos derradeiros tempos, diz o Senhor, espalharei o meu Espírito por toda a carne: vossos filhos e filhas profetizarão".
É o anúncio inequívoco da vulgarização da mediunidade, a qual se revela em nossos dias nos indivíduos de todas as idades, de todos os sexos e de todas as condições, e por conseguinte, da manifestação universal dos Espíritos, pois sem os Espíritos não haveria médiuns. Diz-se que tal sucederia nos últimos tempos: ora, dado que não alcançamos ainda o fim do mundo, mas ao contrário, a sua regeneração, deve-se entender essas palavras: os últimos tempos do mundo moral que termina. ("O Evangelho segundo o Espiritismo", cap. XXI).
Julgamento Final
62. Ora, quando o Filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos, sentar-se-á sobre o trono de sua glória; — e estando todas as nações reunidas diante dele, separará uns dos outros, como um pastor separa as ovelhas dos bodes, e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. — Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, vós que tendes sido abençoados por meu Pai, etc. (S. Mateus, cap. XXV, vers. de 31 a 46. — O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XV).
63. Devendo o bem reinar sobre a Terra, será preciso dela excluir os Espíritos endurecidos no mal, e que poderiam acarretar-lhe perturbações. Deus já os deixou pelo tempo necessário à sua melhoria; mas no momento em que este mundo deva ser elevado na hierarquia dos mundos, mediante o progresso moral dos seus habitantes, tendo chegado tal tempo, este lugar será interditado àqueles que não hajam aproveitado as instruções que aí vieram receber; e tal interdição se aplicará não só aos encarnados como aos desencarnados de tal grupo. Serão exilados para mundos inferiores, como antes sucedeu sobre a Terra, com os componentes da raça adâmica; ao mesmo tempo, serão substituídos por Espíritos mais adiantados. É a esta separação que Jesus presidirá, o que é figurado por estas palavras do julgamento final: "Os bons passarão à minha direita, e os maus, à minha esquerda." (Cap. XI, ns. 31 e seguintes.)
64. A doutrina de um julgamento final, único e universal, que coloque fim a toda a humanidade, repugna à razão, no sentido em que ela implicaria a inatividade de Deus durante a eternidade que precedeu a criação da Terra, e a eternidade que se seguirá à sua destruição. Pergunta-se qual seria então a utilidade do Sol, da Lua e das estrelas, as quais, segundo o Livro de Gênesis foram feitos para iluminar nosso mundo. É espantoso que uma obra tão imensa haja sido feita para durar tão pouco tempo e para benefício de seres cuja maior parte estaria de antemão votada aos suplícios eternos.
65. Materialmente, a ideia de um julgamento único era, até certo ponto, admissível aos que não procuram a razão das coisas, enquanto se acreditasse estar toda a humanidade concentrada sobre a Terra, e que tudo no Universo fora criado para seus habitantes: ela é inadmissível desde que se tornou sabido que há milhares de mundos semelhantes que perpetuam as humanidades durante a eternidade, e entre os quais a Terra é um ponto imperceptível, dos menos consideráveis.
Por este único fato se vê que Jesus tinha razão em dizer a seus discípulos: "Há muitas coisas que não vos posso dizer, pois não as compreenderíeis", eis que o progresso da ciência ora indispensável a uma sã interpretação de algumas de suas parábolas. Certamente os apóstolos, S. Paulo e os primeiros discípulos, teriam estabelecido outros dogmas se tivessem tido os conhecimentos astronômicos, geológicos, físicos, químicos, fisiológicos e psicológicos, que hoje se tem. Também Jesus adiou o complemento de suas instruções, e anunciou que todas as coisas deveriam ser restabelecidas.
66. Moralmente, um julgamento definitivo e sem apelo é inconciliável com a bondade infinita do Criador, que Jesus nos apresenta sem cessar como um bom Pai, o qual sempre deixa uma via aberta ao arrependimento, e está pronto a estender seus braços ao filho pródigo. Se Jesus houvesse entendido o julgamento nesse sentido, teria desmentido suas próprias palavras.
E depois, se o julgamento final deve tomar os homens de improviso, no meio de seus trabalhos ordinários, e as mulheres grávidas, pergunta-se com que finalidade Deus, que nada faz de inútil nem de injusto, faria nascer crianças e criaria almas novas nesse momento supremo, no termo fatal da humanidade, para as fazer passar por julgamento ao sair do seio de suas mães, antes que tivessem a consciência de si próprios, enquanto que outros tiveram milhares de anos para se reconhecer? De qual lado, à direita ou à esquerda, tomariam lugar essas almas que ainda não são nem boas nem más, e para quem todo o caminho ulterior de progresso estará para sempre fechado, pois a humanidade não existirá mais? (Cap. II, nº 19).
Aqueles cuja razão se contenta com semelhantes crenças e que as conservam, estão no seu direito e ninguém nada tem que objetar a tal direito; mas, não levem a mal que nem todos compartilhem delas.
67. O julgamento, por via de emigração, tal como foi acima definido (63), é racional; é fundado sobre a mais rigorosa justiça, visto que deixa eternamente ao Espírito, seu livre-arbítrio; que ele não constitui privilégio de ninguém; que uma igual latitude é dada por Deus a todas as suas criaturas, sem exceção, para progredir; que mesmo a aniquilação de um mundo, que traria como consequência a destruição do corpo, não causaria nenhuma interrupção à marcha progressiva do Espírito. Tal é a consequência da pluralidade dos mundos e da pluralidade das existências.
Segundo essa interpretação, a qualificação de julgamento final não é exata, pois que os Espíritos passam por semelhantes depurações a cada renovação dos mundos que habitam, até que hajam atingido um certo grau de perfeição. Não há, pois, falando corretamente, julgamento final, mas há julgamentos gerais, em todas as épocas de renovação parcial ou total da população dos mundos, e em consequência delas se operam as grandes emigrações e imigrações dos Espíritos.
Sinais dos Tempos
1. Os tempos marcados por Deus são chegados, dizem-nos de todos os lados, em que grandes acontecimentos vão se realizar para a regeneração da humanidade. Em que sentido se devem entender essas palavras proféticas? Para os incrédulos, elas não têm nenhuma importância; a seus olhos, tal não passa da expressão de uma crença pueril e sem fundamento; para o maior número dos crentes, elas têm qualquer coisa de místico e de sobrenatural, que lhes parece ser o precursor do transtorno das leis da natureza. Essas duas interpretações são igualmente errôneas: a primeira, em que ela implica a negação da Providência; a segunda, em que essas palavras não anunciam a perturbação das leis da natureza, mas sim o seu cumprimento.
2. Tudo é harmonia na criação; tudo revela uma previdência que não se desmente nem nas menores coisas, nem nas maiores; devemos pois, desde o início, afastar toda ideia de capricho, inconciliável com a sabedoria divina; em segundo lugar, se nossa época é marcada para a realização de certas coisas, é que elas têm sua razão de ser na marcha do conjunto.
Isto posto, diremos que nosso globo, como tudo quanto existe, está sujeito à lei do progresso. Progride fisicamente pela transformação dos elementos que o compõem, e moralmente pela purificação dos Espíritos encarnados e desencarnados que o povoam. Estes dois progressos se seguem e caminham paralelamente, pois a perfeição da morada está relacionada com a do habitante. Fisicamente, o globo passou por transformações, constatadas pela ciência, e que sucessivamente o tornaram habitável por seres mais e mais aperfeiçoados; moralmente, a humanidade progride pelo desenvolvimento da inteligência, do senso moral e do abrandamento dos costumes. Ao mesmo tempo que a melhoria do globo se opera sob o império das forças materiais, os homens concorrem para ela, pelos esforços de sua inteligência; saneiam as regiões insalubres, tornam as comunicações mais fáceis e a terra mais produtiva.
Este duplo progresso de realiza de duas maneiras: uma, lenta, gradual e insensível; a outra, por modificações mais bruscas; cada uma delas resulta num movimento ascensional mais rápido, o qual marca, com sinais nítidos, os períodos progressivos da humanidade. Esses movimentos, subordinados nos pormenores ao livre-arbítrio dos homens, são de alguma forma fatais em seu conjunto, pois são submetidos a leis, como as que se operam na germinação, no crescimento e maturação das plantas; é por isso que o movimento progressivo é algumas vezes parcial, isto é, limitado a uma raça ou uma nação; outras vezes será geral.
O progresso da humanidade se efetua pois, em virtude de uma lei; ora, como todas as leis da natureza são a obra eterna da sabedoria e da presciência divinas, tudo o que é efeito dessas leis é o resultado da vontade de Deus, não de uma vontade acidental e caprichosa, mas de uma vontade imutável. Portanto, quando a humanidade está madura para franquear um grau, pode-se dizer que os tempos marcados por Deus chegaram, como se pode também dizer que em tal estação, são chegados os tempos para a maturidade dos frutos e a colheita.
3. Da afirmação de que o movimento progressivo da humanidade é inevitável, porque está na natureza, não se segue que Deus seja indiferente ao mesmo, e que após haver estabelecido suas leis, haja retornado à inação, deixando que as coisas se movam por si. Suas leis são eternas e imutáveis, sem dúvida, mas porque sua própria vontade é eterna e constante, e seu pensamento anima todas as coisas sem interrupção; seu pensamento, que penetra tudo, é a força inteligente e permanente que mantém tudo em harmonia; se este pensamento cessar de agir um só instante, o Universo seria como um relógio sem o pêndulo regulador. Deus vela pois, incessantemente, pela execução de suas leis, e os Espíritos que povoam o espaço são seus ministros encarregados dos detalhes, segundo as atribuições relativas ao seu grau de adiantamento.
4. O Universo é ao mesmo tempo um mecanismo incomensurável, conduzido por um número não menos incomensurável de inteligências, um imenso governo onde cada ser inteligente tem sua parte de ação sob o olhar do soberano Mestre, cuja vontade única mantém a unidade por toda a parte. Sob o império dessa vasta potência reguladora, tudo se move, tudo funciona numa ordem perfeita; aquilo que nos parecem perturbações, são os movimentos parciais e isolados, que só nos parecem irregulares, porque nossa vista é circunscrita. Se pudéssemos abarcar o conjunto, veríamos que tais irregularidades não são senão aparentes, e que elas se harmonizam no todo.
5. A humanidade realizou até hoje incontestáveis progressos; os homens, por sua inteligência, chegaram a resultados que jamais atingiram, sob o ponto de vista das ciências, das artes e do bem-estar material; resta-lhes ainda um imenso progresso a realizar; é o de fazer reinar entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade para assegurar o bem-estar moral. Tal não lhes era possível, nem com suas crenças, nem com suas instituições envelhecidas e superadas, restos de uma outra era, boas numa certa época, suficientes para um estado transitório, mas que, tendo dado o que comportavam, seriam hoje um ponto de parada. Já não é mais somente o desenvolvimento da inteligência o que os homens necessitam; é a elevação do sentimento, e por isso é preciso destruir tudo quanto possa excitar neles o egoísmo e o orgulho.
Tal é o período no qual vamos entrar a partir de agora, o qual marcará uma das fases principais da humanidade. Esta fase, que se elabora neste momento, é o complemento necessário da etapa precedente, como a idade viril é o complemento da juventude; ela poderia pois ser prevista e predita com antecipação, e é por isso que se diz que são chegados os tempos marcados por Deus.
6. Nesse tempo, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Uma nova ordem de coisas tende a se estabelecer, e os homens que maior oposição lhe fazem, trabalham nela contra sua vontade; a geração futura, desembaraçada das escórias do velho mundo e formada por elementos mais purificados, encontrar-se-á animada por ideias e sentimentos completamente diversos dos que são adotados pela geração presente, que se retira a passos de gigante. O velho mundo estará morto, e viverá na História, como hoje acontece aos tempos da Idade Média, com seus costumes bárbaros e suas crenças supersticiosas.
Quanto ao mais, cada um sabe o quanto a ordem de coisas atual ainda deixa a desejar; depois de ter de alguma sorte esgotado o bem-estar material, que é o produto da inteligência, chega-se a compreender que o complemento de tal bem-estar só se encontra no desenvolvimento moral. Quanto mais se avança, mais se sente aquilo que falta, sem que todavia seja possível ainda defini-lo claramente: é o efeito do trabalho íntimo que se opera visando a regeneração; as pessoas têm desejos, aspirações, que são como o pressentimento de um estado melhor.
7. Porém uma mudança tão radical como a que se elabora, não pode realizar-se sem comoção; há a luta inevitável entre as ideias. De tal conflito nascerão forçosamente perturbações temporárias, até que o terreno haja sido desobstruído e o equilíbrio restabelecido. É pois da luta das ideias que surgirão os graves acontecimentos anunciados e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais. Os cataclismos gerais eram a consequência do estado de formação da terra; hoje não são as entranhas do globo que se agitam, são as da humanidade.
8. Se a Terra não tem mais a temer os cataclismos gerais, não estará, menos por isso, submetida a revoluções periódicas cujas causas são explicadas, do ponto de vista científico, nas seguintes instruções dadas por dois eminentes Espíritos ([91]):
"Cada corpo celeste, além das leis simples que presidem à divisão dos dias e das noites, das estações, etc., passa por revoluções que levam milhares de séculos para sua perfeita realização, mas que, como as revoluções mais breves, passam por todos os períodos, desde o nascimento até um máximo de efeito, depois do qual há um decréscimo até o limite inferior, para recomeçar em seguida a percorrer as mesmas fases.
"O homem não abarca senão as fases de duração relativamente curta, e das quais ele pode constatar a periodicidade; porém há outras que compreendem longas gerações de seres, e mesmo de sucessões de raças, cujos efeitos, por conseguinte, têm para ele as aparências de novidade e de espontaneidade, ao passo que, se seu olhar pudesse alcançar alguns milhares de séculos atrás, veria, entre estes mesmos efeitos e suas causas, uma correlação da qual nem sequer suspeita. Tais períodos, que confundem a imaginação dos humanos devido a sua relativa extensão, não são entretanto senão instantes na duração eterna.
"Em um mesmo sistema planetário todos os corpos que dele dependem reagem uns sobre os outros; todas as influências físicas dali são solidárias, e não há um só dos efeitos que vós designais sob o nome de grandes perturbações, que não seja a consequência do componente de influências de todo esse sistema.
"Vou mais longe: digo que os sistemas planetários reagem uns sobre os outros, em razão da proximidade ou do afastamento que resulta de seus movimentos de translação através dos miríades de sistemas que compõem nossa nebulosa. Vou mais longe ainda: digo que nossa nebulosa, que é como um arquipélago na imensidade, tendo também seu movimento de translação através dos miríades de nebulosas, sofre a influência daquelas das quais se aproxima.
"Assim, as nebulosas reagem sobre as nebulosas, os sistemas reagem sobre os sistemas, como os planetas reagem sobre os planetas, como os elementos de cada planeta reagem uns sobre os outros, e assim de aproximação em aproximação até o átomo; daí, em cada mundo, as revoluções locais ou gerais, que não parecem perturbações senão em relação à brevidade da vida, a qual não permite ver senão os efeitos parciais.
"A matéria orgânica não poderia escapar a tais influências; as perturbações que ela sofre podem portanto alterar o estado físico dos seres viventes, e determinar algumas moléstias, como todos os flagelos, são para a inteligência humana um estimulante que a impele, por necessidade, à pesquisa dos meios de combatê-las, e à descoberta das leis da natureza.
"Porém a matéria orgânica reage por sua vez sobre o Espírito; este, por seu contato e ligação íntima com os elementos materiais, sofre também influências que modificam suas disposições, sem entretanto obstar ao seu livre-arbítrio, excitando ou moderando sua atividade, e, por isso mesmo, contribuem para o seu desenvolvimento. A movimentação que se manifesta por vezes em toda uma população, entre os homens de uma mesma raça, não é coisa fortuita, nem o resultado de um capricho; tem sua causa nas leis da natureza. Essa efervescência, a princípio inconsciente, que não passa de um vago desejo, uma aspiração indefinida de qualquer coisa melhor, uma necessidade de mudança, traduz-se por uma surda agitação, depois por atos que desfecham revoluções sociais, as quais, crede bem, também têm sua periodicidade, como as revoluções físicas, pois tudo se encadeia. Se a vista espiritual não fosse limitada pelo véu da matéria, veríeis as correntes fluídicas que, à semelhança de milhares de fios condutores, entrelaçam as coisas do mundo espiritual e do mundo material.
"Quando se diz que a humanidade chegou a um período de transformação, e que a terra deve se elevar na hierarquia dos mundos, não vede nestas palavras nada de místico, mas, ao contrário, o cumprimento de uma das grandes leis fatais do Universo, contra as quais se quebra a má vontade humana." — ARAGO.
9. "Sim, certamente, a humanidade se transforma como já se transformou em outras épocas, e cada transformação é marcada por uma crise que é, para o gênero humano, o que são as crises de crescimento para os indivíduos; crises frequentemente penosas, dolorosas, que com elas arrastam as gerações e as instituições, mas sempre seguidas de uma fase de progresso material e moral.
"A humanidade terrestre, chegada a um desses períodos de crescimento, está totalmente, já há quase um século, no trabalho da transformação; é por isso que ela se agita de todos os lados, presa de uma espécie de febre, e como que movida por uma força invisível até que retorne seu assento sobre novas bases. Quem a ver então, a encontrará bem mudada em seus costumes, seu caráter, suas leis, suas crenças, numa palavra, em todo o seu estado social.
"Uma coisa que vos parecerá estranha, mas que nem por isso deixa de ser rigorosa verdade, é que o mundo dos Espíritos que vos rodeia sofre o contra-golpe de todas essas comoções que agitam o mundo dos encarnados: digo mesmo que ele aí toma parte ativa. Isto nada tem de surpreendente, para quem sabe que os Espíritos e a humanidade não deixam de ser um todo; que eles dela saem, e nela devem reentrar; é, pois, natural, que se interessem pelos movimentos que se operam entre os homens. Tende pois certeza de que, quando uma revolução social se realiza sobre a Terra, ela agita igualmente o mundo invisível; todas as paixões boas e más ali são excitadas, como entre vós; uma invencível agitação reina entre os Espíritos que ainda fazem parte de vosso mundo e que aguardam o momento de ali reentrar.
"À agitação dos encarnados e dos desencarnados se juntam, por vezes, e mesmo na maior parte dos casos, pois que tudo se relaciona na natureza, às perturbações dos elementos físicos; dá-se, então, por algum tempo, uma verdadeira confusão geral, que passa como um furacão, depois do qual o céu volta a ser sereno, e a humanidade, reconstituída sobre novas bases, imbuída de novas ideias, percorre nova etapa de progresso.
"É no período que se abre que se verá florescer o Espiritismo, e que produzirá seus frutos. É pois, para o futuro, mais que para o presente, que vós trabalhais; contudo, era necessário que tais trabalhos fossem preparados antecipadamente, pois eles preparam as vias da regeneração pela unificação e a racionalidade das crenças. Felizes aqueles que dele aproveitam desde hoje: isto será para eles um outro passo e penas poupadas." — Doutor BARRY.
10. Resulta do que precede que, em consequência de seu movimento de translação através do espaço, os corpos celestes exercem, uns sobre os outros, uma influência maior ou menor, conforme sua aproximação e sua posição respectivas; que essa influência pode ser causa de uma perturbação momentânea em seus elementos constitutivos, e modificar as condições de vitalidade de seus habitantes; que a regularidade dos movimentos deve resultar da volta periódica das mesmas causas e dos mesmos efeitos; que se a duração de certos períodos é bastante curta para ser apreciável pelos homens, outras veem passar gerações e raças que dela não se apercebem, e para as quais o estado de coisas é normal; as gerações, ao contrário, contemporâneas da transição, dela recebem o contragolpe, e tudo lhes parece afastar-se das leis ordinárias. Elas veem uma causa sobrenatural, maravilhosa, milagrosa, naquilo que na realidade nada é senão o cumprimento das leis da natureza.
Se, pelo encadeamento e a solidariedade das causas e dos efeitos, os períodos de renovações morais da humanidade coincidem, como tudo leva a crer, com as revoluções físicas do globo, elas podem ser acompanhadas ou precedidas de fenômenos naturais, insólitos para aqueles que não estejam habituados, de meteoros que lhes parecem estranhos, da recrudescência e intensificação desacostumadas, de flagelos destruidores. Tais flagelos não são causa, nem presságios sobrenaturais, mas sim uma consequência do movimento geral que se opera no mundo físico e no mundo moral.
Ao predizer a era de renovação que devia abrir-se para a humanidade e marcar o fim do velho mundo, Jesus pôde, pois, dizer que ela seria assinalada por fenômenos extraordinários, tremores de terra, flagelos diversos, sinais nos céus — que não são outra coisa senão meteoros, — sem sair das leis naturais; mas o vulgo ignorante viu nessas palavras o anúncio de fatos miraculosos. ([92])
11. A previsão dos movimentos progressivos da humanidade nada tem de surpreendente para os seres desmaterializados que vêem o objetivo para o qual tendem todas as coisas, pois alguns deles possuem o pensamento direto de Deus, e são os que julgam, nos movimentos parciais, o tempo no qual se poderá realizar o movimento geral, como se estima o tempo que necessitará uma árvore para frutificar, como os astrônomos calculam a época de um fenômeno astronômico pelo tempo que um astro leva para realizar sua revolução.
12. A humanidade é um ser coletivo no qual se operam as mesmas revoluções morais que em cada ser individual, com esta diferença: que umas se realizam de ano para ano, e as outras de século em século. Se a seguirmos em suas evoluções através dos tempos, veremos a vida das diversas raças marcada por períodos que dão a cada época uma fisionomia particular.
13. A marcha progressiva da humanidade opera-se de duas maneiras, como temos dito: uma gradual, lenta, insensível, se se consideram as épocas próximas, que se traduz por melhorias sucessivas nos costumes, nas leis, nos usos, e não se percebe senão à distância, como as mudanças que as correntes d'água realizam na superfície do globo; outra, por movimentos relativamente bruscos, rápidos, semelhantes àqueles de uma torrente que rompe seus diques, que lhe fazem franquear em alguns anos o espaço que levou séculos a percorrer. É então um cataclismo moral que traga em alguns instantes as instituições do passado, e ao qual sucede uma nova ordem de coisas que se assenta aos poucos, à medida que a calma se restabelece e se torna definitiva.
A quem viver tempo bastante para abarcar as apresentações da nova fase, parecerá que um mundo novo haja saído das ruínas do antigo; o caráter, os costumes, os usos, tudo mudou; é que com efeito surgiram homens novos, ou melhor, regenerados; as ideias adotadas pela geração que se extingue deram lugar às ideias novas da geração que se eleva.
14. A humanidade, tornada adulta, tem novas necessidades, aspirações mais amplas, mais elevadas; ela compreende o vazio das ideias nas quais foi acalentada, a insuficiência das suas instituições, no tocante à sua felicidade; ela não encontra mais no estado de coisas as satisfações legítimas cujo apelo sente; é por isso que deixa o círculo infantil e se lança, impelida por uma força irresistível, em direção a praias desconhecidas, à descoberta de novos horizontes menos estreitos.
É a um desses períodos de transformação ou, se quisermos, de crescimento moral, que chegou a humanidade. Da adolescência ela passou à idade viril; o passado não pode mais bastar às suas novas necessidades; ela não pode mais ser conduzida pelos mesmos meios; ela não se prende mais a ilusões e prestígios: sua razão amadurecida necessita de alimentos mais substanciais. O presente é por demais efêmero; ela sente que seu destino é mais vasto e que a vida corporal é demasiado restrita para a encerrar toda inteira; é por isso que ela lança seus olhares no passado e no futuro, a fim de descobrir o mistério de sua existência e daí extrair uma segurança consoladora.
E é no momento em que ela se encontra demasiado acanhada em sua esfera material, onde a vida intelectual transborda, onde o sentimento da espiritualidade se expande, que homens intitulados filósofos esperam preencher o vácuo com as doutrinas do negativismo e do materialismo! Estranha aberração! Estes mesmos homens que pretendem empurrá-la para a frente esforçam-se por circunscreve-la no círculo estreito da matéria de onde ela aspira sair; eles lhe barram o aspecto da vida infinita, e lhe dizem, apontando-lhe o túmulo: Nec plus ultra!
15. Quem quer que haja meditado sobre o Espiritismo e suas consequências, e não o circunscreve à produção de alguns fenômenos, compreende que ele abre à humanidade uma via nova, e lhe revela os horizontes do infinito; iniciando-o nos mistérios do mundo invisível, mostra-lhe seu verdadeiro papel na criação, papel perpetuamente ativo, tanto no estado espiritual como no estado corporal. O homem não caminha mais como cego: sabe de onde vem, para onde vai e porque está sobre a Terra. O futuro se mostra a ele na realidade, desembaraçado dos preconceitos da ignorância e da superstição; não é mais uma vaga esperança: é uma verdade palpável, tão certa para ele como a sucessão do dia e da noite. Sabe que seu ser não é limitado a alguns instantes de uma existência efêmera; que a vida espiritual não é interrompida pela morte; que já viveu, que ainda reviverá, e que de tudo que adquire em perfeição pelo trabalho, nada é perdido; encontra nas suas existências anteriores a razão do que hoje é, e pode deduzir o que ele será um dia, pelo que hoje faz.
16. Com o pensamento de que a atividade e a cooperação individuais na obra geral da civilização são limitadas à vida presente, que antes a criatura nada foi, e que depois nada será, que importa ao homem o progresso ulterior da humanidade? Que lhe importa que no futuro os povos sejam melhor governados, mais felizes, mais esclarecidos, melhores uns para com os outros? Pois se ele não vai daí tirar nenhum fruto, esse progresso não é perdido para ele? De que lhe serve trabalhar para os que virão depois se jamais os conhecerá, se são seres novos que dali a pouco reentrarão no nada, também eles? Sob o império da negação do futuro individual, tudo se amesquinha forçosamente às acanhadas proporções do momento e da personalidade.
Mas, ao contrário, que amplitude dá ao pensamento do homem a certeza da perpetuidade de seu ser espiritual! Quê de mais racional, de mais grandioso, de mais digno do Criador, que esta lei segundo a qual a vida espiritual e a vida corporal não são senão dois modos de existência que se alternam para a concretização do progresso! Quê de mais justo e de mais consolador senão a ideia dos mesmos seres progredindo sem cessar, a princípio através das gerações do mesmo mundo, e em seguida, de um mundo para outro, até atingir a perfeição sem solução de continuidade! Todas as ações têm então uma finalidade, pois, trabalhando para todos, estamos trabalhando para nós mesmos e reciprocamente; de sorte que nem o progresso individual nem o progresso geral jamais são estéreis; aproveita às gerações e às individualidades futuras, que não são senão as gerações e as individualidades passadas, chegadas a um grau mais alto do adiantamento.
17. A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social; porém não há fraternidade real, sólida e efetiva, se não for apoiada numa base inquebrantável; esta base, é a fé; não a fé em tais ou quais dogmas particulares que mudam com os tempos ou os povos e se apedrejam, pois quando se anatematizam alimentam o antagonismo; mas a fé nos princípios fundamentais que todo o mundo pode aceitar; Deus, a alma, o futuro, o progresso individual, indefinido, a perpetuidade das relações entre os seres. Quando todos os homens se convencerem de que Deus é o mesmo para todos; de injusto; que o mal vem dos homens e não dele, hão de que este Deus, soberanamente justo e bom, nada pode querer se encarar como filhos de um mesmo Pai, e estender-se-ão as mãos.
É esta fé que o Espiritismo proporciona e que de agora em diante será o eixo sobre o qual se moverá o gênero humano, quaisquer que sejam o modo de adoração e as crenças particulares.
18. O progresso intelectual realizado até hoje nas mais vastas proporções é um grande passo, e marca a primeira fase da humanidade; porém, sozinho, é impotente para regenerá-la; enquanto o homem for dominado pelo orgulho e pelo egoísmo, utilizará sua inteligência e seus conhecimentos para vantagem de suas paixões e seus interesses pessoais; é por isso que ele os aplica ao aperfeiçoamento dos meios de prejudicar os seus semelhantes, e os destruir.
19. Unicamente o progresso moral pode assegurar a felicidade dos homens sobre a Terra pondo um freio às más paixões; unicamente ele pode fazer reinar entre os homens a concórdia, a paz e a fraternidade.
É ele que derrubará as barreiras dos povos, que fará cair os preconceitos de casta e calar os antagonismos de seitas, ensinando aos homens a se considerarem como irmãos chamados a se auxiliar reciprocamente, e não a viver às expensas uns dos outros.
É anda o progresso moral, secundado aqui pelo progresso da inteligência, que confundirá os homens numa mesma crença estabelecida sobre verdades eternas, não sujeitas a discussão e por isso mesmo aceitas por todos.
A unidade de crença será o liame mais possante, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, quebrada desde todo o tempo pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem ver nos dissidentes, inimigos que se devem exortar, combater, exterminar, em vez de irmãos a quem se deve amar.
20. Um tal estado de coisas supõe uma mudança no sentimento das massas, um progresso geral que não se podia realizar senão saindo do círculo das ideias estreitas e terra-a-terra, que fomentam o egoísmo. Em diversas épocas, homens de elite têm procurado impelir a humanidade nesta via; mas a humanidade, ainda demasiado jovem, permaneceu surda, e seus ensinamentos foram como a boa semente lançada sobre as pedras.
Hoje, a humanidade está madura para lançar suas vistas mais alto que nunca, para assimilar ideias mais amplas e compreender o que antes não pudera.
A geração que desaparece levará com ela seus preconceitos e seus erros; a geração que se eleva, embebida numa fonte mais purificada, imbuída de ideias mais sadias, imprimirá ao mundo o movimento ascensional no sentido do progresso moral, que deve assinalar a nova fase da humanidade.
21. Esta fase já se revela por sinais inequívocos, por tentativas de reformas úteis, por ideias grandes e generosas que veem o dia e que começam a encontrar ecos. É assim que se veem fundar uma porção de instituições protetoras, civilizadoras e emancipadoras, sob o impulso e pela iniciativa de homens evidentemente predestinados à obra da regeneração; que as leis penais se impregnam a cada dia de um sentimento mais humano. Os preconceitos de raça se enfraquecem, os povos começam a se encarar como membros de uma grande família; pela uniformidade e facilidade dos meios de transação, suprimem-se as barreiras que os dividiam; de todas as partes do mundo, reúnem-se conclaves universais para os torneios pacíficos da inteligência.
Porém, falta a essas reformas uma base para se desenvolver, se completar, se consolidar, uma predisposição moral mais geral para frutificar e se fazer aceita pelas massas. Isto não deixa de ser um sinal característico do tempo, o prelúdio do que se realizará em mais larga escala, à medida que o terreno se torne mais propício.
22. Um sinal não menos característico do período em que entramos, é a reação evidente que se opera no sentido das ideias espiritualistas; uma repulsão instintiva se manifesta contra as ideias materialistas. O espírito de incredulidade que se havia apoderado das massas, ignorantes ou esclarecidas, e as fizera rejeitadas, com a forma, o próprio fundo de todas as crenças, parece ter sido um sono do qual, ao sair, se experimenta a necessidade de respirar um ar mais vivificante. Involuntariamente, onde o vácuo se faz, procura-se alguma coisa, um ponto de apoio, uma esperança.
23. Suponho que a maioria dos homens são imbuídos de tais sentimentos, facilmente se podem figurar as modificações que os mesmos trarão para as relações sociais: caridade, fraternidade, benevolência para com todos, tolerância para todas as crenças, tal será a sua divisa. É o objetivo para o qual se orientará a humanidade, o objetivo de suas aspirações, de seus desejos, sem que ela saiba bem com que meios os realizará; ela ensaia, ela tateia, mas é detida por resistências ativas ou pela força da inércia dos preconceitos, das crenças estacionárias e refratárias ao progresso. São resistências que será preciso vencer, e isto será a obra da nova geração; se seguirmos o curso atual das coisas, reconhecemos que tudo parece predestinado a lhe abrir caminho; ela terá para si a dupla potência do número e das ideias, e mais a experiência do passado.
24. A nova geração marchará pois, para a realização de todas as ideias humanitárias compatíveis com o grau de adiantamento a que houver chegado. Marchando o Espiritismo para o mesmo objetivo, e realizando suas finalidades, ambos se encontrarão sobre o mesmo terreno. Os homens de progresso encontrarão nas ideias espíritas uma possante alavanca, e o Espiritismo encontrará nos homens novos, espíritos predispostos a acolhê-lo. Neste estado de coisas, o que poderão fazer aqueles que pretendessem se colocar em oposição?
Não é o Espiritismo que cria a renovação social, é a madureza da humanidade que faz de tal renovação uma necessidade. Pela sua potência moralizadora, por suas tendências progressivas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abraça, o Espiritismo, mais que qualquer outra doutrina, está apto a secundar o movimento regenerador; por isso mesmo são contemporâneos. Ele veio no momento em que podia ser mais útil, pois também para ele os tempos são chegados; mais cedo, teria encontrado obstáculos insuperáveis; teria sucumbido inevitavelmente, pois que os homens, satisfeitos com o que já tinham, não experimentavam ainda a necessidade do que ele traz. Hoje, nascido com o movimento das ideias que fermentam, encontra o terreno preparado a recebê-lo; os espíritos, cansados da dúvida e da incerteza, horrorizados com o abismo que se lhe abre à frente, o acolhem como uma âncora de salvação e um supremo consolo.
26. O número dos retardatários ainda é sem dúvida grande; mas o que podem eles contra a onda que sobe, senão atirar-lhe algumas pedras? Essa onda é a geração que se levanta, ao passo que eles somem com a geração que se retira cada dia a passos largos. Até então, porém, defenderão o terreno passo a passo; há, portanto, luta inevitável, mas desigual, pois é a do passado decrépito que cai em farrapos, contra o futuro jovem; da estagnação contra o progresso; da criatura contra a vontade de Deus, pois são chegados os tempos marcados.
A Nova Geração
27. Para que os homens sejam felizes sobre a Terra, é necessário que ela seja povoada apenas por bons Espíritos encarnados e desencarnados, que apenas queiram o bem. Tendo chegado tal tempo, uma grande emigração se realiza neste momento entre os que a habitam; aqueles que praticam o mal pelo mal, e que o sentimento do bem não atinge, não sendo mais dignos da Terra transformada, dela serão excluídos, porque eles lhe trariam novamente perturbações e confusão, e seriam um obstáculo ao progresso. Irão expiar seu endurecimento, uns nos mundos inferiores, outros, em raças terrestres atrasadas, que serão o equivalente a mundos inferiores, onde levarão seus conhecimentos adquiridos, e onde irão com a missão de as fazer progredir. Serão substituídos por Espíritos melhores, que farão reinar entre si a justiça, a paz, a fraternidade.
No dizer dos Espíritos, a Terra não deve ser transformada por um cataclismo que anulará subitamente uma geração. A geração atual desaparecerá gradualmente, e a nova lhe sucederá do mesmo modo, sem que nada seja mudado na ordem natural das coisas.
Portanto, tudo se passará exteriormente como de costume, com esta única diferença, porém diferença capital, que uma parte dos Espíritos que aí se encarnam, não mais se encarnarão. Num menino que venha a nascer, em lugar de um Espírito atrasado e inclinado ao mal, virá um Espírito mais adiantado e inclinado ao bem.
Trata-se pois, muito menos de uma nova geração corporal, que de uma nova geração de Espíritos; é neste sentido, sem dúvida, que o entendia Jesus, quando dizia: "Em verdade vos digo que esta geração não passará sem que estas coisas aconteçam." Assim, aqueles que esperarem ver a transformação por efeitos sobrenaturais e maravilhosos ficarão decepcionados.
28. A época atual é de transição; os elementos das duas gerações se confundem. Colocados no ponto intermediário, assistimos à partida de uma e à chegada da outra, e cada uma já se assinala no mundo por caracteres que lhes são próprios.
As duas gerações que se sucedem têm ideias e pontos de vista inteiramente opostos. Pela natureza das disposições morais, mas sobretudo das disposições intuitivas e inatas, é fácil distinguir a qual das duas pertence cada indivíduo.
A nova geração, devendo fundar a era do progresso moral, distingue-se por uma inteligência e uma razão geralmente precoces, unidas ao sentimento inato do bem e das crenças espiritualistas, o que é sinal indubitável de um certo grau de adiantamento anterior. Ela não será composta exclusivamente de Espíritos eminentemente superiores, mas daqueles que, tendo já progredido, são predispostos a assimilar todas as ideias progressivas e aptos a secundar o movimento regenerador.
O que distingue, ao contrário, os Espíritos atrasados, é de início a revolta contra Deus pela recusa em reconhecer qualquer poder superior à humanidade; a propensão instintiva às paixões degradantes, aos sentimentos anti-fraternos do egoísmo, do orgulho, da inveja, do ciúme; enfim, a preferência a favor de tudo quanto é material: a sensualidade, a cupidez, a avareza.
São estes os vícios dos quais a Terra deve ser purgada, mediante o afastamento daqueles que se recusam a emendar-se, porque serão incompatíveis com o reino da fraternidade, e os homens de bem sempre sofrerão pelo seu contato. Quando a Terra for libertada desses vícios, os homens marcharão sem entraves em direção ao futuro melhor que lhes está reservado aqui embaixo, como prêmio de seus esforços e de sua perseverança, esperando que uma depuração ainda mais completa lhes abra a entrada dos mundos superiores.
29. Por esta emigração dos Espíritos, não se deve entender que todos os Espíritos retardatários serão expulsos da Terra e relegados a mundos inferiores. Ao contrário, muitos aqui voltarão, pois muitos cederam à influência das circunstâncias e do exemplo; a superfície era neles pior que o fundo. Uma vez subtraídos à influência da matéria e dos preconceitos do mundo corporal, a maior parte verá as coisas de maneira inteiramente diferente da que quando viviam; isto nos é confirmado por numerosos exemplos. Nisso, são auxiliados por Espíritos benfazejos que por eles se interessam, se dão pressa em esclarecê-los e lhes mostrar o falso caminho que seguiam. Por meio de nossas orações e nossas exortações, podemos contribuir para a sua melhoria, pois há uma solidariedade perpétua entre os mortos e os vivos.
A maneira pela qual se opera a transformação é bastante simples, e, como se viu, ela é toda moral e não se afasta em absoluto, das leis da natureza.
30. Quer os Espíritos da nova geração sejam Espíritos novos, melhores, ou os antigos Espíritos, melhorados, o resultado é o mesmo; desde o instante em que apresentem melhores disposições sempre será uma renovação. Os Espíritos encarnados formam assim duas categorias, segundo suas disposições naturais: de um lado, os Espíritos retardatários que partem, do outro, os Espíritos adiantados que chegam. O estado dos costumes e da sociedade será, pois, num povo, numa raça ou no mundo inteiro, conforme à preponderância de uma das duas categorias.
31. Uma comparação comum fará compreender melhor o que se passa nessa circunstância. Suponhamos um regimento com grande maioria de homens turbulentos e indisciplinados: estes ali trazem sem cessar uma desordem que a severidade da lei penal será frequentemente chamada a reprimir. Tais homens são mais fortes, porque mais numerosos; eles se apoiam, se encorajam e se estimulam pelo exemplo. Os poucos bons não têm influência; seus conselhos são desprezados; são ridicularizados, maltratados pelos outros, e sofrem com este contato. Não é a imagem da sociedade atual?
Suponhamos que tais homens são retirados do regimento, um por um, dez a dez, cem a cem; e que sejam substituídos na mesma medida por uma quantidade igual de bons soldados, mesmo por alguns que tenham sido expulsos, mas que se hajam corrigido seriamente: no fim de algum tempo teremos sempre o mesmo regimento, porém transformado; a boa ordem terá sucedido à desordem. Assim será com a humanidade regenerada.
32. As grandes partidas coletivas não só têm como finalidade ativar as saídas, mas transformar mais rapidamente o espírito da massa, desembaraçando-a das más influências, e dar maior ascendência às ideias novas.
É por isso que muitos, apesar de suas imperfeições, estão maduros para tal transformação; que muitos partem para se retemperar numa fonte mais pura. Enquanto permanecessem no mesmo meio e sob as mesmas influências, teriam persistido em suas opiniões e em sua maneira de ver as coisas. Uma permanência no mundo dos Espíritos basta para lhes descerrar os olhos, porque ali veem o que não podiam ver sobre a Terra. O incrédulo, o fanático, o absolutista poderão pois voltar com ideias inatas de fé, de tolerância e de liberdade. Em sua volta, encontrarão as coisas mudadas e receberão o ascendente do novo meio no qual serão nascidos. Em vez de fazer oposição às ideias novas, serão seus auxiliares.
33. A regeneração da humanidade não tem pois, absolutamente, necessidade da renovação integral dos Espíritos: basta uma modificação em suas disposições morais; esta modificação se opera em cada um, e em todos que para tal estão predispostos, quando são subtraídos à influência perniciosa do mundo. Aqueles que regressam então, não são sempre outros Espíritos, mas na maior parte das vezes os mesmos Espíritos, pensando e sentindo de outro modo.
Quando esta melhoria é isolada e individual, passa desapercebida e não tem influência ostensiva sobre o mundo. O efeito é muito diverso, quando ela se opera simultaneamente sobre grandes massas; pois então, segundo as proporções, em uma geração as ideias de um povo ou de uma raça podem estar profundamente modificadas.
É o que se nota quase sempre depois dos grandes choques que dizimam as populações. Os flagelos destruidores não destroem senão o corpo, e não atingem o Espírito; eles ativam o movimento de vai-e-vem entre o mundo corporal e o mundo espiritual, e por conseguinte o movimento progressivo dos Espíritos encarnados e desencarnados. Deve-se observar que em todas as épocas da História, as grandes crises sociais têm sido seguidas de uma era de progresso.
34. É um desses movimentos gerais que se opera neste momento, o que deve trazer o remanejamento da humanidade. A multiplicidade das causas de destruição é um sinal característico dos tempos, pois elas devem acelerar a eclosão dos novos germes. São as folhas de outono que caem, às quais sucederão novas folhas cheias de vida, pois a humanidade tem estações, como os indivíduos têm idade. As folhas mortas da humanidade caem carregadas pelas rajadas e pelos golpes do vento, mas para renascer mais vivazes, sob o mesmo sopro de vida, que não se extingue, mas se purifica.
35. Para o materialista, os flagelos destruidores são calamidades sem compensação, sem resultados úteis, pois que, segundo ele, aniquilam os seres para sempre. Mas para aquele que sabe que a morte não destrói senão o envoltório, os flagelos não têm as mesmas consequências e não causam o menor temor; ele compreende seu resultado e sabe também que os homens não perdem mais por morrerem juntos, que por morrer isoladamente, pois que, de uma ou de outra maneira, sempre deverão lá chegar.
Os incrédulos rirão destas coisas e as tratarão como quimeras; mas, digam o que disserem, não escaparão à lei comum; cairão quando chegar sua vez, como os demais, e então, o quê será deles? Nada! eles exclamarão. Mas, viverão a despeito de si próprios e um dia serão forçados a abrir os olhos.
[1] A palavra elemento não é tomada aqui no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no sentido de parte constitutiva de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento Espiritual tem parte ativa na economia do universo, tal como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram na estatística de uma população; que o elemento religioso entra na educação; que na Argélia há o elemento árabe e o elemento europeu.
[2] Muitos pais de família deploram a morte prematura de filhos para cuja instrução fizeram grandes sacrifícios, e dizem a si mesmos que tudo isso é em pura perda. Com o Espiritismo, não se lastimam por tais sacrifícios, e estariam prontos a fazê-los, mesmo com a certeza de ver morrer seus filhos, pois sabem que, se estes não aproveitam essa educação no presente, ela servirá de princípio ao seu progresso como Espíritos; pois, aquilo que houveram adquirido numa nova existência, já que voltarão, lhes servirá como bagagem intelectual, que os tornará mais aptos a adquirir novos conhecimentos. Tais são estes meninos que ao nascer trazem ideias inatas, que, por assim dizer, sabem sem ter necessidade de aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de ver seus filhos tirar proveito dessa educação, certamente terão tal satisfação, seja como Espíritos, seja como homens. Talvez eles sejam novamente os pais destes mesmos filhos, de quem se dirá que foram bem dotados pela natureza, e que no entanto devem suas aptidões a uma educação precedente; assim, também, se os filhos se desenvolvem mal como resultado da negligência dos seus pais, estes podem ter que sofrer mais tarde pelos aborrecimentos e tristezas que tais filhos lhes suscitarem numa nova existência. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nº 21, Mortes prematuras.)
[3] Nosso papel pessoal, no grande movimento das ideias que se prepara pela ação do Espiritismo, e que começa a se operar, é o do observador atento que estuda os fatos para pesquisar sua causa e deduzir-lhe as consequências. Temos confrontado todos os fatos que nos têm sido possível reunir; temos comparado e comentado as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos do globo, e depois temos coordenado o seu conjunto, metodicamente; numa palavra, temos estudado e dado a público o fruto de nossas pesquisas, sem atribuir a nossos trabalhos outro valor senão o de uma obra filosófica, deduzida da observação e da experiência, sem jamais nos colocarmos como chefe de doutrina, nem ter pretendido impor nossas ideias a ninguém. Ao publicá-las, usamos um direito comum, e os que as têm aceito o fazem livremente. Se essas ideias têm encontrado numerosas simpatias, é que elas têm tido o mérito de dar resposta às aspirações do grande número, e disso não nos poderíamos vangloriar, pois tal não nos pertence. Nosso maior mérito é o da perseverança e do devotamento à causa que abraçamos. Em tudo isso, temos feito o que outros poderiam fazer como nós; é por isso que jamais tivemos a pretensão de nos crermos um profeta, ou um messias, e ainda menos de nos darmos como tal.
[4] O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez entrever o Espiritismo no caminho filosófico, pela dedução das consequências morais dos fatos, que abordou toda as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que levantou foi, desde a sua aparição, o ponto de encontro em cuja direção convergiram espontaneamente os trabalhos individuais. É notório que da publicação desse livro data a era do Espiritismo filosófico o qual até então permanecia no domínio das experiências de curiosidade. Se esse livro conquistou as simpatias da maioria, é que ele era a expressão dos sentimentos dessa mesma maioria, e que dava uma resposta às suas aspirações: e também porque cada um ali encontrava a confirmação e uma explicação racional do que obtinha em particular. Se ele tivesse estado em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, não teria merecido nenhum crédito, e prontamente cairia no olvido. Ora, quem recebeu as adesões? Não foi o homem, que nada é por si mesmo, sendo apenas uma engrenagem de trabalho que morre e desaparece, mas a ideia que não perece quando emana de uma fonte superior ao homem.
Esta concentração espontânea das forças esparsas deu lugar a uma correspondência imensa, monumento único do mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, no qual se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que foram originados da doutrina, dos resultados morais, dos devotamentos e fracassos, arquivo precioso para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas sobre peças autênticas. Na presença desses testemunhos irrecusáveis, o que virão a ser, a seu tempo oportuno, todas as falsas alegações, as difamações da inveja e do ciúme?...
[5] Um testemunho significativo, tão notável quanto tocante, dessa comunhão de pensamentos que se estabelece entre os Espíritas pela conformidade das crenças, são os pedidos de orações que nos chegam dos países mais distantes, desde o Peru até as extremidades da Ásia, provenientes de pessoas de religiões e nacionalidades diversas, as quais nunca vimos. Não é o prelúdio da grande unificação que se prepara? A prova das raízes profundas que por toda parte toma o Espiritismo?
É notável que, de todos os grupos que se formaram com a intenção premeditada de estabelecer cisão com a proclamação de princípios divergentes, do mesmo modo que de todos quantos, apoiando-os em razões de amor-próprio ou outras quaisquer, para não parecer que se submetem à lei comum, se consideraram fortes bastante para caminhar sozinhos, possuidores de luzes bastante para não terem necessidade de conselhos, nenhum chegou a construir uma ideia que fosse preponderante e viável. Todos se extinguiram e vegetaram na sombra. Como poderia ser de outra forma, desde que, para se distinguir, ao invés de se esforçarem para proporcionar maior soma de satisfações, rejeitavam princípios da doutrina, precisamente aqueles que fazem dela o mais poderoso atrativo, o que ela tem de mais consolador, de mais encorajador e de mais racional? Tivessem eles compreendido o poder dos elementos morais que constituíram a sua unidade, não se teriam acalentado numa ilusão quimérica. Porém, tomando o seu pequeno círculo pelo universo, não viram em seus aderentes senão uma camarilha que pudesse facilmente ser derrubada por outra contrária. Era equivocar-se de modo estranho sobre os caracteres essenciais da doutrina, e esse erro nada podia trazer senão decepções; em vez de romper a unidade, romperam o laço que lhes poderia dar a força e a vida. (Ver "Revue Spirite", abril de 1866, págs. 106 e 111: O Espiritismo sem os Espíritos; O Espiritismo independente.)
[6] Tal é o objeto das nossas publicações, que podem ser consideradas como o resultado desse trabalho de purificação. Todas as opiniões são ali discutidas, mas as questões não são erigidas em princípios, senão depois de haverem recebido a consagração de todos os pontos de comprovação, os quais são os únicos que lhes podem dar a força de lei, e permitir afirmações. Eis porque não preconizamos de modo superficial nenhuma doutrina, e é nisso exatamente que a doutrina, decorrendo do ensino geral, não é o produto de um sistema preconcebido; igualmente é isso que tem constituído sua força e assegura seu futuro.
[7] Ver em "O Evangelho Segundo o Espiritismo", item II da Introdução e a Revue Spirite, abril de 1864, pág. 90: "Autoridade da doutrina Espírita; concordância universal do ensino dos Espíritos".
[8] Diante das declarações tão nítidas e tão categóricas como as contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência ao absolutismo e à autocracia dos príncipes, todas as falsas afirmações que pessoas prevenidas e mal informadas prestam à doutrina. Tais declarações, aliás, não são novas; nós as temos repetido com frequência em nossos escritos, para não deixar nenhuma dúvida quanto a tais comentários. Por outro lado, elas nos indicam nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhar.
[9] O uso do artigo antes da palavra Cristo (originada do grego Christós, ungido), empregado no sentido absoluto, é mais correto, visto que essa palavra não é o nome de Messias de Nazaré, mas sim uma qualidade considerada substantivamente. Dir-se-á pois: Jesus era Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo, ao passo que se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: O Buda Gautama adquiriu a dignidade de Buda por suas virtudes e suas austeridades; a vida do Buda, como se diz: exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei, e não de rei.
[10] O erro consiste em pretender que a alma saia perfeita das mãos do Criador, enquanto que este, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da purificação gradual do Espírito, e sua própria obra. Deus quis que a alma, em virtude de seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e que alcançasse suas finalidades mediante uma vida militante, e em resistência ao mal. Se houvesse criado a alma perfeita como ele, e, ao sair de suas mãos, já lhe houvesse assegurado sua beatitude eterna, ele a teria feito, não à sua imagem, mas sim, semelhante a si próprio (Bonnamy, Juiz de instrução: "A Razão do Espiritismo", cap. VI).
[11] Ver a (Revue Spirite, agosto, 1864, pág. 241, "Extinção das raças").
[12] Sem nada prejulgar a respeito das consequências que se poderiam extrair deste princípio, unicamente temos pretendido demonstrar, mediante esta explicação, que a destruição dos seres vivos, uns pelos outros, em nada enfraquece a sabedoria divina, e que tudo se encadeia nas leis da natureza. Este entrelaçamento é necessariamente rompido se fizermos abstração do princípio espiritual; devido a isto é que tantas perguntas ficam sem resposta, se apenas considerarmos a matéria.
As doutrinas materialistas trazem em si, o princípio de sua destruição; contra elas, têm não somente seu antagonismo com as aspirações da universalidade dos homens e suas consequências morais, que as tornarão repulsivas, como dissolventes da sociedade, mas ainda a necessidade que se experimenta, de tomar em consideração tudo o que nasce do progresso. O desenvolvimento intelectual leva o homem à pesquisa das causas; ora, por pouco que ele reflita, não demora a reconhecer a impotência do materialismo, a tudo explicar. Como jamais poderiam prevalecer doutrinas que não satisfazem o coração, nem a razão, nem a inteligência, que conservam problemáticas as questões mais vitais? O progresso das ideias matará o materialismo, como já extinguiu o fanatismo.
· A posição criteriosa de Kardec fica bem clara neste capítulo. Ele apresenta as razões históricas da concepção ingênua da Gênese bíblica e sustenta a importância da concepção científica da gênese planetária no século passado, lembrando que, entretanto, as Ciências ainda não haviam chegado a conclusões definitivas. Há quem critique essa posição, achando que Kardec devia ir além das Ciências do seu tempo, apoiando-se em dados de comunicações mediúnicas. Kardec obedeceu ao princípio espírita de que só devemos aceitar o que estiver provado cientificamente. No século atual o avanço científico foi espantoso e assim mesmo não ofereceu os dados necessários a uma formulação definitiva de uma concepção científica da gênese. O critério rigoroso de Kardec o livrou de aceitar revelações mediúnicas que invalidariam a sua obra. Espíritas eminentes ainda não compreenderam que o Espiritismo não se apoia em revelações mediúnicas, mas no estudo das condições dos espíritos e na comprovação pela pesquisa da validade ou não das informações que nos dão (J. Herculano Pires).
[13] A mitologia hindu ensinava que o astro do dia despojava-se à noite de sua luz, e atravessava o céu durante a noite com sua face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, com o apoio de Plutarco, sustentava que o sol era uma carruagem cheia de um fogo muito vivo, o qual saía por um orifício circular. Na opinião de Epicuro, segundo um de seus seguidores, o sol se acendia de manhã e à noite se apagava nas águas do Oceano; outros diziam que o Oceano fazia do sol uma pedra-pomes aquecida até o grau da incandescência. Anaxágoras o conceituava como um ferro quente do tamanho do Peloponeso. Curiosa afirmativa! Os Antigos eram tão invencivelmente levados a considerar o tamanho aparente, deste astro, como se fosse o verdadeiro, que perseguiram este filósofo temerário, por haver atribuído um tal volume à tocha do dia; foi necessária toda a autoridade de Péricles para salvar o filósofo da condenação à morte, comutada para exílio." (Flammarion, "Etudes et lectures sur l'astronomie", pág. 6).
Quando se encontram tais ideias adotadas no quinto século antes da era cristã, no tempo mais florescente da Grécia, não se pode admirar das conceituações que faziam os homens das primeiras eras acerca do sistema do mundo.
[14] Este capítulo foi extraído integralmente de uma série de comunicações ditadas na Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título: "Estudos uranográficos", que traziam a assinatura: Galileu; o médium foi o Sr. C. F.
[15] Os principais corpos simples são: entre os corpos não metálicos, o oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o cloro, o carbono, o fósforo, o enxofre, o iodo; entre os corpos metálicos: o ouro, a prata, a platina, o mercúrio, o chumbo, o estanho, o zinco, o ferro, o cobre, o arsênico, o sódio, o potássio, o cálcio, o alumínio, etc.
[16] Tal é a situação dos negativistas do mundo dos Espíritos, logo que se abrem a seus olhos os horizontes deste mundo, depois de se haverem despojado de seus veículos materiais. Compreendem então o vácuo das teorias pelas quais pretendiam tudo explicar, unicamente pela matéria. Entretanto, esses horizontes ainda têm para eles, mistérios que não se revelam senão sucessivamente, à medida que eles se elevam pela purificação. Porém, desde seus primeiros passos neste mundo novo, são forçados a reconhecer sua cegueira, e quanto estavam longe da verdade.
[17] Nós nos reportamos sempre ao que conhecemos, e não compreendemos mais aquilo que escapa à percepção de nossos sentidos, assim como o cego não pode compreender os efeitos da luz e a utilidade dos sonhos. Portanto, pode suceder que em outros ambientes, o fluido cósmico apresente outras propriedades, combinações das quais não temos nenhuma ideia, efeitos apropriados a necessidades que nos são desconhecidas, dando lugar a percepções novas, ou a outros modos de percepção. Por exemplo, não compreendemos que seja possível ver sem os olhos do corpo e sem a luz; mas quem nos garante que não existam outros agentes além da luz, aos quais alguns organismos adequados sejam correspondentes? A visão sonambúlica, que não é impedida pela distância, nem por obstáculos materiais, nos oferece um exemplo. Suponhamos que, num mundo qualquer, os seres sejam normalmente aquilo que nossos sonâmbulos são, excepcionalmente: não terão necessidade de nossa luz, nem de nossos olhos, e portanto verão aquilo que nós não poderemos ver. Sucede o mesmo com outras sensações. As condições de vitalidade e de perceptibilidade, as sensações e as necessidades, variam conforme o meio ambiente.
[18] Se se formulasse a pergunta: qual é o princípio dessas forças, e como pode ele estar na substância mesma que o produziu, responderíamos que a mecânica nos oferece numerosos exemplos. A elasticidade que faz deter uma mola, não está na própria mola, e não depende do modo de agregação das moléculas? O corpo que obedece à força centrífuga recebe seu impulso do movimento primitivo que lhe foi transmitido.
[19] Esta teoria da Lua, inteiramente nova, explica, pela lei da gravitação, a razão pela qual esse astro apresenta sempre a mesma face voltada para a Terra. Seu centro de gravidade, em lugar de estar no centro da esfera, encontrando-se sobre um dos pontos de sua superfície, e por conseguinte atraído em direção à Terra por uma força maior que as partes mais leves, a Lua produziria o efeito das figuras chamadas João-teimoso, que se levantam constantemente sob sua base; por outro modo, os planetas, cujo centro de gravidade está a uma distância igual a de sua superfície, giram regularmente ao redor de seu eixo. Os fluidos vivificantes, gasosos ou líquidos, por consequência de seu peso específico, encontram-se acumulados no hemisfério superior constantemente oposto à Terra; o hemisfério inferior, o único que vemos, será desprovido de tais elementos, e por conseguinte impróprio à vida, enquanto que ela haverá no outro. Se, pois, o hemisfério superior for habitado, seus habitantes jamais terão visto a Terra, a não ser em excursões ao outro hemisfério, o que lhes será impossível, se ali não houver as condições necessárias de possibilidades de vida.
Embora seja racional e científica esta teoria, como ainda não pode ser verificada por qualquer observação direta, não pode ser aceita senão a título de hipótese, e como ideia que poderá servir de baliza para a Ciência. Porém, não se pode deixar de notar que, até o presente, é a única que dá uma explicação satisfatória às particularidades que aquele corpo celeste apresenta.
[20] Mais de 3 trilhões e 400 bilhões de léguas.
[21] É o que se chama, em Astronomia, estrelas duplas. São dois sóis que giram um em torno do outro, como um planeta o faz ao redor de seu sol. De que estranho e magnífico espetáculo devem gozar os habitantes dos mundos que compõem estes sistemas iluminados por um duplo sol! Mas, também, quanto devem ser diferentes as condições de vida ali!
Numa comunicação dada ulteriormente, o Espírito de Galileu acrescenta: "Há, mesmo, sistemas mais complicados nos quais diferentes sóis, face a face um do outro, desempenham o papel de satélites. Produzem-se, então, efeitos de luz maravilhosos, para os habitantes dos globos que eles iluminaram; tanto mais que, apesar de sua aproximação aparente, tais mundos habitados podem circular entre eles e receber, seguidamente, as ondas de luz diversamente coloridas, cuja reunião recompõe a luz branca."
[22] Em Astronomia se dá o nome de nebulosas irresolúveis àquelas das quais ainda não pudemos distinguir as estrelas que as compõem. A princípio, elas haviam sido consideradas como amontoados de matéria cósmica, em vias de condensação para formar mundos, porém atualmente se pensa que esta aparência é devida ao afastamento, e que, com instrumentos bastante poderosos, elas seriam todas resolúveis.
Uma comparação familiar pode dar uma ideia, embora imperfeita, das nebulosas irresolúveis: são grupos de faíscas projetadas por fogos de artifício, no momento de sua explosão. Cada uma das faíscas representaria para nós uma estrela, e o conjunto seria a nebulosa, ou grupo de estrelas reunidas num ponto do espaço, e submetidas a uma lei comum de atração e de movimento. Vistas de uma certa distância, estas faíscas mal se distinguem, e o seu grupo tem a aparência de uma pequena nuvem de fumaça. Esta comparação não será exata; trata-se de massa de matéria cósmica condensada.
Nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas; nela se contam aproximadamente 30 milhões de estrelas ou sóis, os quais não ocupam menos de algumas centenas de trilhões de léguas em extensão, e entretanto, não é a maior. Suponhamos somente uma média de 20 planetas habitados circulando ao redor de cada sol; isso nos daria um total aproximado de 600 milhões de mundos unicamente para nosso grupo.
Se pudéssemos nos transportar de nossa nebulosa para uma outra, ali estaríamos como no meio de nossa Via Láctea, porém com um céu estrelado de modo inteiramente diverso do nosso; e esta Via Láctea, apesar das suas dimensões colossais, em relação a nós, ao longe nos apareceria como um pequeno floco lenticular, perdido no infinito. Porém antes de atingir a nossa nebulosa, seríamos como o viajante que deixa uma cidade e percorre um vasto país desabitado, antes de atingir outra cidade; teríamos percorrido espaços incomensuráveis, desprovidos de estrelas e de mundos, aquilo que Galileu chama de desertos do espaço. À medida que avançássemos, veríamos nossa nebulosa como que a fugir detrás de nós, ao mesmo tempo que, à nossa frente, se apresentaria aquela em cuja direção nos dirigíssemos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de faíscas do fogo de artifício. Transportando-nos no pensamento a regiões do espaço, situadas adiante do arquipélago de nossa nebulosa, veríamos por toda a nossa volta milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, cada um deles encerrando milhões de sóis e centenas de milhões de mundos habitados.
Tudo aquilo que pode nos identificar com a imensidade da extensão e da estrutura do Universo, é útil ao engrandecimento das ideias, tão restringidas pelas crenças vulgares. Deus cresce a nossos olhos, à medida que melhor compreendemos a grandeza dessas obras e nosso ínfimo lugar. Como se vê, estamos longe dessa crença implantada pela Gênese mosaica, que faz de nossa pequena Terra imperceptível, a criação principal de Deus, e de seus habitantes, os únicos objetos de sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos que creem que tudo foi feito para eles no Universo, e dos que ousam discutir a existência do Ser supremo. Daqui a alguns séculos, será motivo de admiração que uma religião feita para glorificar a Deus, o haja rebaixado a proporções tão mesquinhas, e que ela haja repelido, como sendo concebidas pelo Espírito do mal, as descobertas que não podiam ter outro resultado, senão aumentar nossa admiração pela onipotência divina, ao nos iniciar nos mistérios grandiosos da criação; ainda será motivo de maior admiração, quando se souber que tais ensinamentos foram repelidos, porque deviam emancipar o espírito dos homens, e obstar à preponderância dos que se diziam os representantes de Deus sobre a Terra.
[23] Isto é efeito do tempo que a luz tarda para atravessar o espaço. Sendo de 70.000 léguas por segundo a sua velocidade, ela gasta do Sol à Terra 8 minutos e 13 segundos. Resulta disso que, passando-se um fenômeno na superfície do Sol, só o percebemos 8 minutos mais tarde e, pela mesma razão, o veremos ainda 8 minutos depois do seu desaparecimento. Se, em virtude de sua distância, a luz de uma estrela leva mil anos para chegar até nós, não podemos ver essa estrela senão mil anos depois de sua formação. (Vede, para explicação e descrição completa desse fenômeno, a Revue Spirite de março e maio de 1867, págs. 93 e 151; exposição de Lumen, por Camille Flammarion).
· Fazem-se críticas indevidas a Kardec no tocante à Teoria da Lua. Mas este capítulo foi tirado de comunicações de Galileu, dadas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas através da psicografia do astrônomo Camille Flamarion. Kardec adverte tratar-se apenas de uma teoria que, embora original e com aspecto científico, ainda não fora confirmada. Registra-a por ser a única, na época, a dar uma possível explicação do fenômeno de rotação lunar. Seu critério é justo e não implica endosso de sua parte a essa ideia errônea. As comunicações mediúnicas, mormente sobre questões científicas, não podem ser aceitas sem comprovações. Os Espíritos são homens desencarnados e estão muitas vezes apegados a teorias que elaboraram na vida terrena. O mesmo se dá com a Teoria da Incrustação para formação da Terra, hoje evidentemente absurda, mas na época aceita por muitos estudiosos. Kardec as menciona como informação sobre as ideias da época, mas sem admiti-las como comprovadas (J. Herculano Pires).
[24] Fóssil, do latim fossilia, fossilis, derivado de fossa, e do verbo fodere, escavar, perfurar a terra. Em Geologia, esta palavra indica corpos ou restos de corpos organizados, provenientes de seres que viviam anteriormente aos tempos históricos. Por extensão, diz-se igualmente das substâncias minerais que trazem os traços da presença de seres organizados tais como as impressões deixadas por vegetais ou animais.
A palavra petrificação só se refere a corpos transformados em pedra, pela infiltração nos tecidos orgânicos, de matérias siliciosas ou calcárias. Todas as petrificações são necessariamente de fósseis, porém nem todos os fósseis são petrificações.
Os objetos que se revestem de uma camada pedregosa, embora sejam mergulhados em certas águas carregadas de substâncias calcárias, como as do regato de Saint-Allyre, perto de Clermont, em Auvergne, não são petrificações propriamente ditas, mas simples incrustações.
Os monumentos, inscrições e objetos provenientes de fabricação humana, pertencem à Arqueologia.
[25] Ao ponto em que Georges Cuvier levou a ciência paleontológica, um só osso basta para determinar o gênero, a espécie, a forma de um animal, seus hábitos, e para o reconstituir por inteiro.
[26] A turfa se formou pela mesma maneira, pela decomposição dos vegetais, em terrenos pantanosos; porém, com esta diferença: que ela é muito mais recente, e sem dúvida sob outras condições; não teve tempo de se carbonizar.
[27] Na baia de Fundy (Nova Escócia), o Sr. Lyell encontrou debaixo de depósitos de 400 metros de espessura, 68 níveis diferentes, apresentando traços evidentes de diversos solos de florestas, cujos troncos ainda se apresentavam revestidos com suas raízes (L. Figuier).
Admitindo que cada um desses níveis leva 1.000 anos para se formar, isso representa já 68.000 anos de idade, só para essa camada hulhífera.
[28] O primeiro fóssil desse animal foi descoberto em 1823, na Inglaterra. Foi também encontrado na França e na Alemanha, mais tarde.
[29] Camadas de calcários originados de conchas foram encontradas nos Andes, na América do Sul, a 5.000 metros acima do nível do mar.
[30] É um de tais blocos erráticos, que serve de pedestal à estátua de Pedro o Grande, em São Petersburgo; sua composição demonstra que proveio, evidentemente, das montanhas da Noruega.
[31] Em 1771, o naturalista russo Pallas encontrou, no meio dos gelos do Norte, o corpo inteiro de um mamute, revestido de sua pele, e conservando uma parte de suas carnes. Em 1799, descobriu-se outro, igualmente encerrado num enorme bloco de gelo, na embocadura do rio Lena, na Sibéria, o qual foi descrito pelo naturalista Adams. Os jakutas, moradores da vizinhança, despedaçaram suas carnes para alimentar seus cães. A pele estava coberta de crinas longas e o pescoço era revestido de espessa pelagem. A cabeça, sem as presas, que mediam mais de 3 metros, pesava mais de 400 libras. Seu esqueleto está no museu de S. Petersburgo. Nas ilhas e nas praias do mar glacial encontra-se quantidade tão grande de presas, que constituem objeto de comércio considerável, sob o nome de marfim fóssil, na Sibéria.
[32] Grande número de tais cavernas é conhecido, e destas, algumas têm considerável extensão. No México há uma que se prolonga por diversas léguas; uma das mais notáveis é a de Gailenreuth, no Wurtemberg. Há diversas na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Sicília e em outras regiões da Europa.
[33] Ver "L'Homme antidiluvien", de Boucher de Perthes; "Des outils de pirre", do mesmo autor e "Discours sur les révolutions du globe" por Georges Cuvier, anotado pelo Dr. Hoefer.
[34] Encontra-se uma dissertação completa e no nível da ciência moderna, sobre a natureza do Sol e dos cometas, nos "Estudos e conferências sobre a astronomia", de Camille Flammarion.
[35] Para maiores detalhes sobre o assunto, e quanto à lei do decréscimo do calor, ver: "Lettres sur les révolutions du globe", pelo Dr. Bertrand, antigo aluno da Escola Politécnica: (2ª carta). Esta obra, do nível da ciência moderna, escrita com simplicidade e sem espírito sectário, oferece um estudo geológico de grande interesse.
[36] O Sr. Michel, de Figagnières (Varone), autor da "Chave da vida".
[37] Quando um tal sistema se liga a toda uma cosmogonia, é lícito perguntar sobre qual base racional pode repousar o resto.
A concordância que se pretende estabelecer, por este sistema, entre a Gênese bíblica e a ciência, é inteiramente ilusória, pois que é contraditada pela própria ciência.
O autor da carta acima reproduzida, homem de grande saber, seduzido por momentos por essa teoria, bem cedo percebeu seus pontos vulneráveis, e não tardou a combatê-la com as armas da ciência.
[38] O último século (Século XVIII) oferece um exemplo notável de um fenômeno deste gênero. A seis dias de caminho da cidade do México encontrava-se, em 1750, uma região fértil e bem cultivada, onde crescia em abundância o arroz, o milho e bananas. No mês de junho, gigantescos tremores de terra agitaram o solo, e tais tremores se repetiram sem cessar durante dois meses inteiros. Na noite de 28 para 29 de setembro a Terra teve violenta convulsão: um terreno de diversas léguas de extensão se elevou pouco a pouco e terminou por atingir uma altura de 400 pés, sobre uma superfície de 10 léguas quadradas. O terreno ondulava como as águas do mar sob o sopro da tempestade; milhares de montículos se elevavam e desapareciam seguidamente; enfim uma rachadura de quase 3 léguas se abriu; fumaça, fogo e pedras abrasadas, e cinzas, foram lançadas a uma altura prodigiosa. Seis montanhas surgiram desta enorme fenda, entre as quais o vulcão ao qual se deu o nome de Jorullo se eleva hoje a 550 metros acima da antiga planície. No momento em que começava o abalo do solo, os dois rios de Cuitimba e o Rio São Pedro, refluindo, inundaram toda a planície ocupada hoje pelo Jorullo; porém, no terreno que se erguia sempre, abriu-se uma rachadura que os engoliu. As águas reapareceram a oeste, sobre um ponto muito afastado de seu antigo leito. (Louis Figuier, La terra avant le deluge, pág. 370).
[39] A lenda indiana referente ao dilúvio relata, segundo o livro dos Vedas, que Brahma, transformado em peixe, dirigiu-se ao piedoso monarca Vaivaswata, e lhe disse: "Chegou o momento da dissolução do universo; logo, tudo o que existe sobre a Terra será destruído. Será preciso que construas um navio no qual embarcarás depois de haver tomado contigo grãos de todos os vegetais. Tu me esperarás sobre tal navio, e eu virei a ti, e trarei como sinal um chifre sobre a cabeça, o que me fará ser reconhecido." O santo obedeceu; construiu um navio, embarcou nele, e prendeu um cabo muito forte, no chifre do peixe. O navio foi rebocado durante muitos anos com extrema rapidez, pelo meio das trevas, numa tempestade pavorosa, e por fim abordou no cume do monte Himalaia (Himawat). Brahma recomendou em seguida a Vaivaswata que criasse todos os seres e repovoasse a Terra.
A analogia dessa lenda com o relato bíblico de Noé é evidente; da Índia ela passou ao Egito, tal como uma multidão de outras crenças. Ora, como o livro dos Vedas é anterior ao de Moisés, o relato que aí se encontra, do dilúvio, não pode ser apenas uma imitação deste último. É pois possível que Moisés, que havia estudado as doutrinas dos padres egípcios, dali retirasse material para compor sua narrativa.
[40] A precessão dos equinócios produz outra mudança, aquela que se opera na posição dos signos do zodíaco.
Na duração de um ano, a Terra gira em redor do Sol; à medida que ela avança, o Sol se encontra a cada mês face a uma nova constelação. Estas constelações são doze, a saber: Carneiro, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Balança, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. São chamadas constelações zodiacais ou sinais do zodíaco, e formam um círculo no plano do equador terrestre. Segundo o mês de nascimento de um indivíduo, dizia-se que nascera sob o signo tal: daí os prognósticos da astrologia. Porém, em consequência da precessão dos equinócios, sucede que os meses não correspondem mais às mesmas constelações; assim, quem nasce no mês de julho, não está mais no signo de Leão, mas no de Câncer. Cai assim a ideia supersticiosa ligada à influência dos signos. (Cap. V, nº 12).
[41] O deslocamento gradual das linhas isotérmicas, fenômeno reconhecido pela ciência de maneira tão positiva quanto o deslocamento do mar, é um fato material que confirma essa teoria.
[42] Entre os fatos mais recentes que provam o deslocamento do mar, podem-se citar o seguinte:
No golfo de Gasconha, entre o velho Soulac e a torre de Cordouan, quando o mar está calmo, percebem-se no fundo da água, trechos de muralha: são restos da antiga cidade de Noviomagnus, invadida pelas águas em 80. O rochedo de Cordouan, que naquela época estava ligado à margem, está agora a 12 quilômetros.
No Mar da Mancha, sobre a costa do Havre, o mar ganha terreno cada dia, e mina as penedias de Sainte-Adresse, as quais pouco a pouco desmoronam. A 2 kms da costa, entre Sainte Adresse e o cabo de Hève, existe o banco de l'Éclat, que outrora era visível e reunido à terra firme. Antigos documentos constatavam que sobre este local, no qual hoje se navega, havia a cidade de Sain Denis Chef de Caux. Tendo o mar invadido os terrenos, no século XIV, a igreja foi tragada em 1378. Dizem que, com o mar calmo, ainda se veem os seus restos no fundo da água.
Em quase toda a extensão do litoral da Holanda, o mar só é contido a poder de diques, que se rompem de tempos a tempos. O antigo lago Flevo, reunido ao mar em 1225, forma hoje o golfo de Zuyderzee. Esta irrupção do oceano tragou diversas cidades.
Segundo isto, os territórios de Paris e da França serão algum dia novamente ocupados pelo mar, conforme já sucedeu por diversas vezes, segundo o comprovam as observações geológicas. As partes montanhosas formarão então ilhas, como atualmente o são as de Jersey, Guernesey e a Inglaterra, as quais outrora eram ligadas ao continente.
Então, será possível navegar por cima de regiões que hoje percorremos em estradas de ferro; os navios abordarão em Montmartre, no monte Laveriano, aos outeiros de Saint-Cloud e de Meudon; os bosques e as florestas onde hoje se pode passear, serão sepultados pelas águas, serão cobertos de limo e povoados por peixes em lugar de pássaros.
O dilúvio bíblico não pode ter tido esta coisa, pois a invasão das águas foi súbita, e sua permanência de curta duração, enquanto que, de outro modo, essa permanência houvera sido de diversos milhares de anos, e ainda duraria, sem que os homens se tivessem percebido dela.
[43] O cometa de 1861 atravessou a rota da Terra a vinte horas de distância adiante desta; a Terra esteve, pois, mergulhada na sua atmosfera sem que disso resultasse nenhum acidente.
[44] Em seu movimento de translação ao redor do Sol, a velocidade da Terra é de 400 léguas por minuto. Sua circunferência sendo de 9.000 léguas, em seu movimento de rotação em redor de seu eixo, faz que cada ponto do equador percorra 9.000 léguas em 24 horas, ou 6,3 léguas por minuto.
[45] O quadro abaixo, com a análise de algumas substâncias, mostra a diferença das propriedades que resulta unicamente da diferença na proporção dos elementos constitutivos. Considerem-se em 100 partes:
Carbono
Hidrogênio
Oxigênio
Azoto
Açúcar de cana
42.470
6.900
50.630
"
Açúcar de uva
36.710
6.780
56.510
"
Álcool
51.980
13.700
34.329
"
Óleo de oliva
77.210
13.366
9.430
"
Óleo de nozes
79.774
10.570
9.123
0,534
Gordura animal
78.996
11.790
9.305
"
Fibrina
53.330
7.021
19.685
19.934
[46] "Revue Spirite", julho de 1868, pág. 204: Desenvolvimento da teoria da geração espontânea.
[47] A exposição Universal de 1867 apresentou antiguidades do México, as quais não deixam nenhuma dúvida sobre as relações que os povos desse país tiveram com os antigos Egípcios. Leon Mechedin, numa notícia afixada no templo mexicano da Exposição, assim se exprimia: "É conveniente não publicar antes do tempo oportuno, as descobertas feitas, do ponto de vista da história dos homens, pela recente expedição científica do México; todavia, nada se opõe a que o público saiba, desde já, que a exploração feita assinalou a existência de um grande número de cidades apagadas pelo tempo, mas que a picareta e o incêndio podem tirar de sua mortalha. A escavações descobriram, por toda parte, três camadas de civilização que pareciam dar ao mundo americano uma antiguidade fabulosa."
É assim que, a cada dia, a ciência vem dar do desmentido dos fatos à doutrina que limita a 6000 anos a aparição do homem sobre a Terra, e pretende fazê-lo descender de uma única origem ou tronco.
[48] Quando, na "Revue Spirite", de janeiro de 1862, publicamos um artigo sobre a interpretação da doutrina dos anjos decaídos, não havíamos apresentado aquela teoria senão como uma hipótese, sem outra autoridade senão a de uma opinião pessoalmente controvertível, pois que, na época, nos faltavam elementos bastante completos para uma afirmação absoluta; nós a publicamos a título de ensaio, com a finalidade de provocar o exame do assunto, bem determinados a abandoná-lo ou a modificá-lo se para tal houvesse lugar. Hoje, essa teoria sofreu a prova do controle universal; não somente ela foi acolhida pela grande maioria dos Espíritos como a mais racional e a mais conforme à soberana justiça de Deus, como também ela foi confirmada pela generalidade das instruções dadas pelos Espíritos acerca do assunto. O mesmo sucedeu no que diz respeito à origem da raça adâmica.
[49] Embora muito grosseiro o erro de tal crença, ela ainda é incutida no cérebro das crianças, como se se tratasse de uma verdade sagrada. Só a tremer ousam os educadores aventurar-se a uma tímida interpretação. Como podem pretender que, mais tarde, essa atitude não faça incrédulos?
[50] A palavra hebraica "haadam", homem, de que se fez Adão, e a palavra "haadamá", terra, têm a mesma radical.
[51] Paraíso, do latim Paradisus, do grego Paradeisos, jardim, pomar, lugar plantado de árvores. A palavra hebraica empregada na Gênese é hagan, que tem o mesmo significado.
Em seguida a alguns versículos damos a tradução literal do texto hebraico o que torna mais fiel a explicação do pensamento primitivo. O sentido alegórico assim é ressaltado mais claramente.
[52] Do hebreu “cherub”, “keroub”, boi “charab” lavrar, anjos do segundo coro da primeira hierarquia das quais eram representados com quatro asas, quatro faces e pés de bois.
[53] Hoje é bem reconhecido hoje que a palavra hebraica “haadam” não é um nome próprio, mas que significa “o homem em geral, a Humanidade, o que destrói toda a estrutura erguida sobre a personalidade de Adão.
[54] Em nenhum texto, o fruto é indicado por “a maçã”. Essa palavra se encontra apenas nas versões infantis. A palavra do texto hebreu é peri que tem as mesmas acepções que em francês, sem especificação de espécie e pode ser tomada em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Entre os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem várias acepções, cada um a entende como quer, desde que a interpretação não seja contrária à gramática. A palavra peri foi traduzida em latim por malum que se se refere à maçã e a todas as espécies de frutos. É derivado do grego mélon, particípio do verbo mélo, interessar, tomar cuidado, atrair.
[55] Isso levaria a pensar que a mediunidade pelo copo de água era conhecida dos egípcios? (Revue Spirite, junho de 1868, página 161)
[56] A palavra nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação. É, talvez, também por isso que as esfinges, de origem assíria, eram representadas com uma figura de negro.
[57] Essa ideia não é nova. La Peyrère, sábio teólogo do século XVII, em seu livro Pré-adamistas, escrito em latim e publicado em 1655, tirou do próprio texto original da Bíblia, alterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era povoada antes da vinda de Adão. Essa opinião é hoje a de vários eclesiásticos esclarecidos.
[58] O Livro dos Médiuns, cap. V. Revue Spirite; dezembro, 1865, página 370; agosto, 1865, pág. 231.
· Kardec tratou dos milagres e das predições do Cristo, neste livro, para completar seus estudos de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Nesse livro modelar, Kardec seguiu um esquema seguro e claro de interpretação e aplicação do Evangelho, de acordo com a realidade histórica, restabelecendo o sentido real dos ensinos de Jesus, com exclusão das influências mitológicas dos textos (escritos na era mitológica) e exclusão das deformações dogmáticas dos teólogos. Isso está bem explicado por ele mesmo no referido livro. Os milagres e as profecias já haviam sido tratados, de maneira geral, no O Livro dos Médiuns. Ele aproveitou a publicação de A Gênese para tratar especificamente dos fenômenos relatados pelos evangelistas. Sua posição é, como sempre, científica, seguindo a orientação doutrinária da fé-raciocinada, que vale dizer da fé baseada na razão. As pesquisas atuais da Parapsicologia confirmaram plenamente a legitimidade da posição espírita em face desses fatos. Só os adversários do Espiritismo e os materialistas ferrenhos tentam confundir o público a respeito. Kardec foi o iniciador da pesquisa dos fenômenos paranormais no mundo contemporâneo. Foi a sua firme atitude nesse campo que obrigou os cientistas a entrar na pesquisa do paranormal, em geral para desmentir Kardec, mas sempre acabando por confirmá-lo. Do Espiritismo nasceram todas as chamadas Ciências Psíquicas de natureza realmente científica, como a Parapsicologia alemã do século passado, a Ciência Psíquica inglesa, a Metapsíquica de Richet, a Física Transcendental de Frederic Zollner, a Ciência da Personalidade de Frederic Myers e a Parapsicologia atual. O mundo deve a Kardec a descoberta da alma, em plano científico, de sua sobrevivência à morte física, da natureza extrafísica do pensamento e da existência real do corpo espiritual, que os físicos e biólogos soviéticos chamaram de corpo-bioplásmico, ao descobri-lo na Universidade de Kirov, na União Soviética (J. Herculano Pires).
[59] A denominação de fenômeno psíquico exprime mais exatamente o pensamento que fenômeno espiritual, visto que tais fenômenos repousam sobre as propriedades e os atributos da alma, ou, melhor, dos fluidos perispirituais que são inseparáveis da alma. Essa qualificação os liga mais intimamente à ordem dos fatos naturais regidos por leis; pode-se, pois, admiti-los como efeitos físicos, sem os admitir a título de milagres.
[60] Exemplos de espíritos que ainda creem estar neste mundo: "Revue Spirite", dez. 1859, pág. 310; nov., 1864, pág. 338; abril, 1865, pág. 117.
[61] Revue Spirite, julho de 1859, pág. 184. — O Livro dos Médiuns, cap. VIII.
[62] Fatos de dupla vista e de lucidez sonambúlica relatados na "Revue Spirite": janeiro de 1858, pág. 25; novembro de 1858, pág. 213; julho de 1861, pág. 197; novembro de 1865, pág. 352.
[63] Exemplos de letargia e de catalepsia: "Revue Spirite", Madame Schwabenhaus, setembro de 1858, pág. 255; A jovem cataléptica da Suabia, janeiro de 1866, pág. 18.
[64] É assim que se podem explicar as visões da Irmã Elmerich, a qual, reportando-se ao tempo da paixão do Cristo, diz ter visto coisas materiais que jamais existiram, senão nos livros que ela leu; as de Madame Cantanille ("Revue Spirite", agosto de 1866, pág. 240), e uma parte das de Swedenborg.
[65] Ver mais adiante, cap. XVI, Teoria da presciência, ns. 1, 2 e 3.
[66] Revue Spirite, junho de 1866, pág. 172; setembro de 1866, pág. 294 O Livro dos Espíritos, cap. VIII, nº 400.
[67] Exemplos: "Revue Spirite", O Dr. Cardon, agosto de 1863, pág. 251. A mulher da Córsega, maio de 1866, pág. 134.
[68] Exemplos: "Revue Spirite", fevereiro de 1863, pág. 64; abril de 1865, pág. 113; setembro de 1865, pág. 264.
[69] Exemplos de curas instantâneas relatadas na "Revue Spirite": o príncipe de Hohenlohe, dezembro de 1866, pág. 368; Jacob, outubro e novembro de 1866, páginas 312 e 345; outubro e novembro de 1867, páginas 306 e 339; Simonet, agosto de 1867, pág. 232; Caid Hassan, outubro de 1867, pág. 303; o Cura Gassner, nov. 1867, pág. 331.
[70] O Livro dos Médiuns, cap. VI e VII.
[71] Exemplo de aparições vaporosas ou tangíveis, e de agêneres: "Revue Spirite", janeiro de 1858, pág. 24; outubro de 1858, pág. 291; fevereiro de 1859, pág. 38; março de 1859, pág. 80; janeiro de 1859, pág. 11; novembro de 1859, pág. 303; agosto de 1859, pág. 210; abril de 1860, pág. 117; maio de 1860, pág. 150; julho de 1861, pág. 199; abril de 1866, pág. 120; o trabalhador Martin, apresentado a Luiz XVII, detalhes completos; dezembro de 1866, pág. 353.
[72] Exemplos de aparições de pessoas vivas: "Revue Spirite", dezembro de 1858, págs. 329 e 331; fevereiro de 1859, pág. 41; agosto 1859, página 197; novembro 1860, pág. 356.
[73] Exemplo a teoria da transfiguração, "Revue Spirite", março de 1859, pág. 62 (O Livro dos Médiuns, cap. VII, pág. 142).
[74] Só se devem aceitar com extrema reserva os relatos de aparições puramente individuais, as quais, em certos casos, poderiam ser o efeito de imaginações super-excitadas, e por vezes uma invenção feita com finalidade interessada. Convém pois obter um relato escrupuloso das circunstâncias, da honorabilidade da pessoa, assim como do interesse que ela pudesse ter, de abusar da credulidade de indivíduos demasiado confiantes.
[75] Tal é o princípio do fenômeno dos transportes; fenômeno muito real, porém que convém não aceitar senão com extrema reserva, pois é um dos que mais se prestam à imitação e a trapaças. Devem ser tomadas em séria consideração, a honorabilidade irrecusável da pessoa que as obtém, seu desinteresse absoluto material e moral, e o concurso de circunstâncias acessórias. Sobretudo deve-se desconfiar da facilidade demasiado grande com a qual tais efeitos são produzidos, e conservar como suspeitos aqueles que se renovam com demasiada frequência, e, por assim dizer, à vontade; os prestidigitadores produzem os efeitos mais extraordinários.
O soerguimento de uma pessoa é um fato menos positivo, porém talvez mais raro, porque é mais difícil de ser imitado. É notório que o Sr. Home foi levitado mais de uma vez, até o teto da sala, do qual fez a volta. Diz-se que São Cupertino tinha a mesma faculdade, o que não é mais milagroso para um do que para o outro.
[76] Exemplos de manifestações materiais e de perturbações pelos Espíritos: "Revue Spirite", a jovem filha dos Panoramas, janeiro, 1858, pág. 13; Mademoiselle Clarion, fev. 1858, pág. 44; Espírito batedor de Bergzabern, relato completo, maio, junho, julho de 1858, págs. 125, 153, 184; Dibbelsdorf, agosto de 1858, pág. 219; o padeiro de Dieppe, março de 1860, pág. 76; Rua de Noyers, agosto de 1860, pág. 236; Espírito batedor de l'Aube, janeiro de 1861, pág. 23; idem, no século XVI, jan. 1864, pág. 32; Poitiers, maio de 1864, pág. 156, e maio de 1865, pág. 134; Irmã Maria, junho de 1864, pág. 185; Marselha, abril de 1865, pág. 121; Fives, agosto de 1865, pág. 225; os ratos d' Equihem, fevereiro de 1866, pág. 55.
[77] A aptidão de certas pessoas para as línguas que sabem, por assim dizer, sem tê-las aprendido, não tem outra causa senão uma recordação intuitiva do que elas já souberam numa outra existência. O exemplo do poeta Méry, relatado na "Revue Spirite" de novembro de 1864, pág. 328, é prova disso. É evidente que, se o Sr. Méry tivesse sido médium em sua juventude, teria escrito o latim tão facilmente quanto sua língua natal, o francês, e teriam declarado isso um prodígio.
[78] Exemplos de curas de obsessões e de possessões; "Revue Spirite", dezembro, 1863, pág. 373; janeiro de 1864, pág. 11; junho de 1864, pág. 168; janeiro de 1865, pág. 5; junho de 1865; pág. 172; fevereiro de 1866, pág. 38; junho de 1867, pág. 174.
[79] Foi uma epidemia desse tipo que atacou a vila de Morzine, na Saboia (ver o relato completo dessa epidemia na "Revue Spirite" de dezembro de 1862, pág. 353; janeiro, fevereiro, abril e maio de 1863, páginas 1, 33, 101, 133.
[80] Nem todos os teólogos estão de acordo com opiniões tão absolutas sobre a doutrina demoníaca. Vede a de um eclesiástico de quem o clero não poderá contestar o valor. Encontra-se a seguinte passagem nas "Conferências acerca da religião", de Monsenhor Freyssinous, bispo de Hermópolis, vol. II, pág. 41, Paris, 1825:
"Se Jesus houvesse operado seus milagres pela virtude do demônio, o demônio teria pois trabalhado para destruir seu império, e teria empregado seu poder contra si mesmo. Certamente, um demônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude, seria um estranho demônio. Eis porque Jesus, para repelir a absurda acusação dos Judeus, dizia: "Se opero prodígios em nome do demônio, o demônio então está dividido contra si mesmo, e procura então destruir-se!" e tal resposta não padecerá réplica."
É exatamente o argumento que os Espíritas opõem aos que atribuem ao demônio os bons conselhos que recebem dos Espíritos. O demônio agiria como um ladrão profissional que entregasse tudo quanto roubou, e exortasse os outros ladrões a se tornarem pessoas honestas.
[81] Uma prova de tal costume encontra-se nos Atos dos Apóstolos, cap. V, vers. 5 e seguintes:
"Ananias, tendo ouvido aquelas palavras, caiu e entregou o Espírito; e todos os que disso ouviram falar, foram tomados de grande medo. Logo, alguns jovens vieram buscar o seu corpo, e, tendo-o levado, o enterraram. Decorridas cerca de três horas, sua mulher (Safira), que nada sabia do ocorrido, entrou. — E Pedro lhe disse..., etc. — No mesmo momento ela caiu a seus pés e entregou o Espírito. Os jovens, entrando, encontraram-na morta; e levando-a, a enterraram ao pé de seu marido.
[82] O seguinte fato prova que a decomposição algumas vezes se antecipa à morte. No convento do Bom Pastor, fundado em Toulon pelo abade Marin, capelão dos cárceres, para as decaídas arrependidas, encontrou-se uma jovem que suportava os maiores sofrimentos com a calma e a impassibilidade de uma vítima expiatória. No meio das dores, ela parecia sorrir a uma visão celeste; como Santa Teresa, pedia maiores sofrimentos; sua carne estava em frangalhos; a gangrena lhe devastava os membros; por sábia previdência, os médicos haviam recomendado fazer o sepultamento imediatamente após a morte. Coisa estranha! Logo que ela exalou o último suspiro, todo o processo de decomposição parou; as exalações cadavéricas cessaram; durante trinta e seis horas ela permaneceu exposta às orações e à veneração da comunidade.
[83] O Lago de Genesaré ou Tiberíade
[84] A explicação seguinte é tirada textualmente de uma instrução dada a tal respeito por um Espírito.
[85] Há constantemente na superfície do Sol, manchas fixas, as quais seguem seu movimento de rotação e têm fornecido base para determinar a duração desse movimento. Porém, tais manchas aumentaram de número, por vezes, em extensão e em intensidade, e é então que se produz uma diminuição na luz e no calor. Tal aumento no número das manchas parece coincidir com certos fenômenos astronômicos e a posição relativa de certos planetas, o que resulta no seu retorno periódico. A duração desse escurecimento é muito variável; às vezes não passa de duas a três horas, porém, no ano de 535, houve um que durou quatorze meses.
[86] Os numerosos fatos contemporâneos de curas, aparições, possessões, dupla vista e outros, que são relatados na "Revue Spirite", e lembrados nas notas acima, oferecem, até nas circunstâncias de detalhe, uma analogia tão frisante com os que são relatados no Evangelho, que a semelhança dos efeitos e das causas torna-se evidente. Pergunta-se, pois, porque o mesmo fato teria hoje uma causa natural, e sobrenatural antes; diabólico para alguns, e divina para outros. Se tivesse sido possível colocá-los uns a par dos outros aqui, a comparação teria sido mais fácil; porém sua quantidade e os desenvolvimentos que a maior parte exigiria, não o permitiram.
[87] O historiador judeu Josefo é o único que dele fala, dizendo, aliás, pouca coisa.
[88] Não tratamos do mistério da encarnação, do qual aqui não podemos nos ocupar, e que será examinado ulteriormente.
[89] Todas as doutrinas filosóficas e religiosas trazem o nome da individualidade fundadora; o mosaísmo, o cristianismo, o maometismo, o budismo, o cartesianismo, o furierismo, san-simonismo, etc. A palavra Espiritismo, ao contrário, não lembra nenhuma personalidade; ela encerra uma ideia geral, que indica, ao mesmo tempo, o caráter e a fonte múltipla da doutrina.
[90] Esta expressão: a abominação da desolação, não somente é sem sentido, mas presta-se ao ridículo. A tradução de Ostervald diz: "A abominação que causa a desolação", o que é muito diferente; o sentido então torna-se perfeitamente claro, pois compreende-se que as abominações devem trazer a desolação como castigo. Quando, disse Jesus, a abominação vier ao lugar santo, a desolação também ali virá, e isso será um sinal de que os tempos estão próximos.
[91] Extrato de duas comunicações dadas na Sociedade de Paris, e publicadas na "Revue Spirite" de outubro de 1868, pág. 313. São o corolário das de Galileu, referidas no capítulo VI, e um complemento ao Capítulo IX, acerca das revoluções do globo.
[92] A terrível epidemia que, de 1866 a 1868, dizimou a população da Ilha Maurícia, foi precedida por uma chuva tão extraordinária e tão abundante de estrelas cadentes, em novembro de 1866, que seus habitantes ficaram aterrorizados. A partir desse momento a doença, que grassava há alguns meses de modo benigno, tornou-se um verdadeiro flagelo devastador. Sem dúvida houve um sinal no céu, e talvez neste sentido se pode entender as estrelas caindo do céu, de que fala o Evangelho, como um dos sinais dos tempos. (Pormenores sobre a epidemia da Ilha Maurícia, "Revue Spirite" julho de 1867, pág. 208, novembro de 1868, pág. 321).