Revista Espírita 1862

Revista Espírita 1862

Allan Kardec

REVISTA ESPÍRITA

Jornal de Estudos Psicológicos

Contém:

O relato das manifestações materiais ou inteligentes dos Espíritos, aparições, evocações, etc., bem como todas as notícias relativas ao Espiritismo. — O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e o seu futuro. — A história do Espiritismo na Antiguidade; suas relações com o magnetismo e com o sonambulismo; a explicação das lendas e das crenças populares, da mitologia de todos os povos, etc.

Publicada sob a direção de ALLAN KARDEC

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente.

O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito.

ANO QUINTO — 1862

TRADUÇÃO DE EVANDRO NOLETO BEZERRA

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA





Janeiro de 1862

Ensaio de Interpretação sobre a Doutrina dos Anjos Decaídos[1]

A questão das origens sempre excitou a curiosidade, sobretudo no que respeita à procedência do homem, e em tal proporção que hoje é impossível às criaturas sensatas aceitarem ao pé da letra o relato bíblico, nele vendo apenas uma dessas alegorias de que é pródigo o estilo oriental. Aliás, a Ciência vem oferecer-lhe a prova ao demonstrar, por meios irrefutáveis, a impossibilidade material da formação do globo em seis vezes vinte e quatro horas. Ante a evidência dos fatos, escritos em caracteres irrecusáveis nas camadas geológicas, a Igreja teve de se submeter à opinião dos sábios e com eles concordar que os seis dias da Criação representam. seis períodos de extensão indeterminada, como fizera outrora em relação ao movimento da Terra. Se, pois, o texto bíblico é susceptível de interpretação quanto a este ponto capital, também poderá sê-lo em relação a outros pontos, notadamente sobre a época do aparecimento do homem na Terra, sua origem e o sentido que deve ser atribuído à qualificação de anjos decaídos.

Como o princípio das coisas está nos segredos de Deus, que no-lo não revela senão à medida que o julga conveniente, ficamos reduzidos a conjecturas. Muitos sistemas foram imaginados para resolver esta questão, mas nenhum, até hoje, satisfaz completamente à razão. Tentaremos, também, levantar uma ponta do véu. Seremos mais felizes do que os nossos antecessores? Ignoramo-lo; só o futuro dirá. A opinião que apresentamos é, pois, uma opinião pessoal; parece concordar com a razão e a lógica, o que, aos nossos olhos, lhe dá certo grau de probabilidade.

Antes de tudo, constatamos que só é possível descobrir alguma parcela da verdade com o auxílio da teoria espírita; ela já resolveu uma imensidão de problemas até agora insolúveis, e é com a ajuda das balizas que ela nos oferece que vamos tentar remontar à cadeia dos tempos. O sentido literal de certas passagens dos livros sacros, contraditado pela Ciência, repelido pela razão, produziu muito mais incrédulos do que se pensa, dada a obstinação de fazer daquilo um artigo de fé. Se uma interpretação racional os fizesse aceitar, evidentemente reaproximaria da Igreja os que dela se afastaram.

Antes de prosseguir, é essencial que nos entendamos sobre as palavras. Quantas disputas não deveram a sua perpetuação à ambiguidade de certas expressões, que cada um tomava no sentido de suas ideias pessoais! Nós o demonstramos, em O Livro dos Espíritos, a propósito do vocábulo alma. Dizendo claramente em que acepção a tomávamos, cortamos pela raiz qualquer controvérsia. A palavra anjo está no mesmo caso; empregam-na indiferentemente, no bom e no mau sentido, dizendo: os anjos bons e maus, o anjo da luz e o anjo das trevas, donde se segue que, em sua acepção geral, significa apenas Espírito. Evidentemente é neste último sentido que deve ser entendido, ao se falar de anjos decaídos e de anjos rebeldes. Conforme a Doutrina Espírita, nisto concordando com vários teólogos, os anjos não são seres de criação privilegiada, isentos, por um favor especial, do trabalho imposto aos outros, mas de Espíritos chegados à perfeição por seus esforços e por seus méritos. Se fossem seres criados perfeitos, sendo a revolta contra Deus um sinal de inferioridade, os que se revoltassem não poderiam ser anjos. Também nos diz a doutrina que os Espíritos progridem, mas não retrogradam, porquanto jamais perdem as qualidades adquiridas. Ora, a rebelião por parte de seres perfeitos seria uma retrogradação, desde que ela só se concebe partindo de seres ainda atrasados.

Para evitar qualquer equívoco, conviria reservar a qualificação de anjos para os Espíritos puros e chamar os demais simplesmente de Espíritos bons ou maus. Como, entretanto, prevaleceu o emprego dessa palavra para os anjos decaídos só o tomaremos na sua acepção geral. Ver-se-á, neste caso, que a ideia de queda e de rebelião é perfeitamente admissível.

Não conhecemos, e provavelmente jamais conheceremos, o ponto de partida da alma humana. Tudo quanto sabemos é que os Espíritos são criados simples e ignorantes; que progridem intelectual e moralmente; que, em virtude do livre-arbítrio, uns tomaram o bom caminho, outros um caminho errado; que, uma vez posto o pé no atoleiro, nele se afundaram cada vez mais; que, depois de uma série ilimitada de existências corporais, realizadas na Terra e em outros mundos, depuram-se e alcançam a perfeição, que os aproxima de Deus.

Um ponto de difícil compreensão é a formação dos primeiros seres vivos na Terra, cada um em sua espécie, desde a planta até o homem. A esse respeito, a teoria contida em O Livro dos Espíritos se nos afigura a mais racional, conquanto só incompletamente e de maneira hipotética resolva esse problema, que reputamos insolúvel, tanto para nós, quanto para a maioria dos Espíritos, a quem não é dado penetrar o mistério das origens. Se os interrogamos a respeito, os mais sábios respondem que não o sabem; mas outros, menos modestos, tomam a iniciativa e a postura de reveladores, ditando sistemas, produto de ideias pessoais, que apresentam como verdade absoluta. É contra a mania dos sistemas de certos Espíritos, em relação ao princípio das coisas, que devemos nos precaver. O que, aos nossos olhos, prova sabedoria dos que ditaram O Livro dos Espíritos, é a reserva que souberam guardar sobre questões dessa natureza. Em nossa opinião não é prova de sabedoria decidir essas questões de maneira absoluta, como fazem alguns, sem se inquietarem com impossibilidades materiais resultantes dos dados fornecidos pela Ciência e pela observação. O que dizemos da aparição dos primeiros homens na Terra se estende à formação dos corpos, porque, uma vez formado o corpo, é mais fácil conceber que o Espírito venha tomar conta dele. Considerando os corpos, o que nos propomos a examinar aqui é o estado dos Espíritos que os animaram, a fim de chegar, se possível, a definir, de modo mais racional do que se tem feito até agora, a doutrina da queda dos anjos e do paraíso perdido.

Se não admitirmos a pluralidade das existências corpóreas, forçoso é concordar que a alma é criada ao mesmo tempo que o corpo. Porque, de duas uma: ou a alma que anima o corpo ao nascer já viveu, ou não viveu ainda; entre as duas hipóteses não há meio-termo. Ora, a segunda hipótese, aquela de que a alma não tenha vivido, enseja uma porção de problemas insolúveis, tais como a diversidade de aptidões e de instintos, incompatíveis com a justiça de Deus, a sorte das crianças que morrem em tenra idade, a dos cretinos, dos idiotas, etc., enquanto tudo se explica naturalmente se admitirmos que a alma já viveu e traz, ao encarnar em um novo corpo, o que havia adquirido anteriormente. É assim que as sociedades progridem gradativamente; sem isto, como explicar a diferença existente entre o atual estado social e o dos tempos de barbárie? Se as almas fossem criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que hoje nascem seriam absolutamente novas, tão primitivas quanto as que viviam há milhares de anos; acrescente-se que entre elas não haveria nenhuma conexão, nenhuma relação necessária; que seriam completamente independentes umas das outras. Por que, então, as almas de hoje seriam mais bem favorecidas por Deus que as antepassadas? Por que compreenderiam melhor? Por que têm instintos mais depurados, hábitos mais suaves? Por que têm a intuição de certas coisas, sem as terem aprendido? Desafiamos que saiam dessa dificuldade, a menos que se admita tenha Deus criado almas de diversas qualidades, segundo os tempos e os lugares, proposição inconcebível com ideia de uma justiça soberana. Dizei, ao contrário, que as almas de hoje já viveram em épocas recuadas; que foram bárbaras como o seu século, mas progrediram; que em cada nova existência trazem as aquisições das existências anteriores; que, por conseguinte, as almas dos tempos civilizados não foram criadas mais perfeitas, mas se aperfeiçoaram com o tempo. Só assim tereis a única explicação plausível da causa do progresso social.

Tiradas da teoria da reencarnação, estas considerações são essenciais para a compreensão de um fato de que falaremos daqui a pouco.

Embora os Espíritos possam reencarnar-se em diferentes mundos, parece que, em geral, realizam um certo número de migrações corporais no mesmo globo e no mesmo meio, a fim de poderem aproveitar melhor a experiência adquirida; não saem desse meio senão para entrar num pior, por punição, ou num melhor, como recompensa. Disso resulta que, durante um certo período, a população do globo é composta mais ou menos pelos mesmos Espíritos, que ali reaparecem em diversas épocas, até atingirem um grau de depuração suficiente para merecerem habitar mundos mais adiantados.

Conforme o ensino dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e imigrações dos Espíritos encarnados na Terra ocorrem de vez em quando, individualmente; porém, em certas épocas, se realizam em massa, em consequência das grandes revoluções que os fazem desaparecer em quantidades consideráveis, sendo substituídos por outros Espíritos que, de alguma sorte, na Terra ou numa parte da Terra, constituem uma nova geração.

O Cristo pronunciou uma frase notável que, como muitas outras tomadas ao pé da letra, não foi compreendida, pois ele quase sempre falava por imagens e parábolas. Anunciando as grandes transformações no mundo físico e no mundo moral, disse Ele: Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça [2]. Ora, a geração do tempo do Cristo passou há mais de dezoito séculos sem que essas coisas tivessem acontecido. Disso devemos concluir que o Cristo ou se enganou — o que não é admissível — ou que suas palavras tinham um sentido oculto e foram mal interpretadas.

Se agora nos reportarmos ao que dizem os Espíritos, não apenas a nós, mas pelos médiuns de todos os países, chegamos ao cumprimento dos tempos preditos, a uma época de renovação social, isto é, a uma época de uma dessas grandes emigrações dos Espíritos que habitam a Terra. Deus, que os havia enviado para se melhorarem, os deixou aqui o tempo necessário para progredirem. Fez-lhes conhecer suas leis, primeiro por Moisés, depois pelo Cristo; advertiu-os pelos profetas; em suas reencarnações sucessivas puderam aproveitar esses ensinos; agora os tempos são chegados e aqueles que não aproveitaram a luz, que violaram as leis de Deus e ignoraram o seu poder deixarão a Terra, onde, doravante, estariam deslocados do meio pelo progresso moral que se realiza e ao qual não poderiam trazer senão obstáculos, quer como homens, quer como Espíritos. A geração a que o Cristo se referia, não podendo ser a dos homens que viviam em seu tempo, corporalmente falando, deve ser entendida pela geração dos Espíritos que na Terra percorreram os diversos períodos de suas encarnações e que irão deixá-la. Serão substituídos por uma nova geração de Espíritos que, mais avançados moralmente, farão reinar entre si a lei de amor e de caridade ensinada pelo Cristo e cuja felicidade não será perturbada pelo contato dos maus, dos orgulhosos, dos egoístas, dos ambiciosos e dos ímpios. Pareceria mesmo, no dizer dos Espíritos, que entre as crianças que nascem atualmente, muitas são a encarnação de Espíritos dessa nova geração. Quanto aos da antiga geração, que houverem bem merecido, mas que, no entanto, não tiverem ainda atingido um grau de depuração suficiente para alcançarem os mundos mais adiantados, poderão continuar a habitar a Terra e aqui passar ainda algumas encarnações; mas, ao invés de ser isto uma punição, será uma recompensa, visto que serão mais felizes por progredirem. O tempo em que desaparece uma geração de Espíritos para dar lugar a outra pode ser considerado como o fim do mundo, isto é, do mundo moral.

Em que se tornarão os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios Espíritos nos dizem que aqueles irão habitar mundos novos, onde encontrarão seres ainda mais atrasados que os daqui, aos quais estão encarregados de fazer progredir, transmitindo-lhes o produto dos conhecimentos que já adquiriram. O contato do meio bárbaro em que se acham ser-lhes-á uma cruel expiação e uma fonte de incessantes sofrimentos, físicos e morais, dos quais terão tanto mais consciência quanto mais desenvolvida for a sua inteligência; mas essa expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que lhes oferecerá os meios de resgatar o passado, conforme a maneira pela qual a desempenharem. Aí sofrerão uma série de encarnações, durante um período de tempo mais ou menos longo, no fim do qual os que tiverem merecimento serão retirados para mundos melhores, talvez a Terra, que, então, será uma morada de felicidade e de paz, enquanto os da Terra, por sua vez, ascenderão gradualmente até o estado de anjos ou puros Espíritos.

É muito demorado, dirão alguns. Não seria mais agradável ir diretamente da Terra ao Céu? Sem dúvida, mas com esse sistema tendes a alternativa de ir, de uma só tacada, da Terra para o Inferno, e pela eternidade das eternidades; ou, então, admitir que a soma das virtudes necessárias para ir diretamente da Terra ao Céu, sendo muito rara, poucos homens estarão seguros de as possuir. Disso resulta que maior é a probabilidade de se ir para o inferno do que para o paraíso. Não é preferível fazer uma caminhada mais longa e estar seguro de chegar ao fim? No estado atual da Terra ninguém se preocupa de a ela voltar, e nada a isso obriga, pois depende de cada um, enquanto aqui se encontra, progredir de tal modo que possa merecer ascender a orbes mais adiantados. Nenhum prisioneiro, saindo da prisão, preocupa-se em voltar para ela; o meio é muito simples: apenas não cair em nova falta. Também o soldado acharia muito cômodo tornar-se marechal de um só golpe; todavia, conquanto houvesse sido alçado ao mais alto posto, nem por isto estaria dispensado de conquistar as esporas.

Remontemos agora ao curso dos tempos; e do presente, como ponto conhecido, procuremos deduzir o desconhecido, ao menos por analogia, se não tivermos a certeza de uma demonstração matemática.

A questão de Adão, como tronco único da espécie humana na Terra é, como se sabe, muito controvertida, porque as leis antropológicas lhe demonstram a impossibilidade, sem falar dos documentos autênticos da história chinesa, que provam que a população do globo remonta a uma época muito anterior à atribuída a Adão pela cronologia bíblica. Então a história de Adão é pura invencionice? Não é provável; é uma imagem que, como todas as alegorias, deve encerrar uma grande verdade, cuja chave só poderá ser dada pelo Espiritismo. Em nossa opinião, a questão principal não é saber se a personagem de Adão realmente existiu, nem em que época viveu, mas se a raça humana, designada como sua posteridade, é uma raça decaída. A solução dessa questão não é destituída de conteúdo moral, porque, esclarecendo-nos quanto ao passado, pode orientar a nossa conduta para o futuro.

Antes de mais, notemos que, aplicada ao homem, a ideia da queda, sem a reencarnação, é um contra-senso, assim como a responsabilidade que carregássemos pela falta de nosso primeiro pai. Se a alma de cada homem é criada ao nascer, é que não existia antes; não terá, desse modo, nenhuma relação, nem direta, nem indireta, com a que cometeu a primeira falta, o que nos leva a indagar como poderia ser responsável por sua própria queda. A dúvida sobre este ponto conduz naturalmente à dúvida ou, mesmo, à incredulidade sobre muitos outros, porquanto, se falso o ponto de partida, igualmente falsas devem ser as consequências. Tal o raciocínio de muita gente. Pois bem! esse raciocínio cairá se considerarmos o espírito, e não a letra do texto bíblico, e se nos reportarmos aos princípios mesmos da Doutrina Espírita, destinados, conforme já foi dito, a reavivar a fé que se extingue.

Notemos, ainda, que a ideia dos anjos rebeldes, dos anjos decaídos e do paraíso perdido se acha em quase todas as religiões e, como tradição, entre quase todos os povos. Deve, pois, fundamentar-se numa verdade. Para compreender o verdadeiro sentido que se deve ligar à qualificação de anjos rebeldes, não é necessário supor uma luta real entre Deus e os anjos, ou Espíritos, desde que o vocábulo anjo é aqui tomado numa acepção geral. Admitindo-se sejam os homens Espíritos encarnados, o que são os materialistas e os ateus senão anjos ou Espíritos em revolta contra a Divindade, pois que negam a sua existência e não reconhecem seu poder, nem suas leis? Não é por orgulho que pretendem que tudo aquilo de que são capazes vem deles mesmos, e não de Deus? Não é o cúmulo da rebelião pregar o nada depois da morte? Não são muito culpados os que se servem da inteligência, de que se ufanam, para arrastar os semelhantes ao precipício da incredulidade? Até certo ponto não praticam também um ato de revolta os que, sem negar a Divindade, desconhecem os verdadeiros atributos de sua essência? Os que se cobrem com a máscara da piedade para cometer más ações? Os que a fé no futuro não os desliga dos bens deste mundo? Os que em nome de um Deus de paz violentam a primeira de suas leis: a lei de caridade? Os que semeiam perturbação e ódio pela calúnia e pela maledicência? Enfim aqueles, cuja vida, voluntariamente inútil, se escoa na ociosidade, sem proveito para si próprios, nem para os seus semelhantes? A todos serão pedidas contas, não só do mal que tiverem feito, mas do bem que tiverem deixado de fazer. Pois bem! todos esses Espíritos, que tão mal empregaram as suas encarnações, uma vez expulsos da Terra e enviados a mundos inferiores, entre hordas ainda na infância da barbárie, o que serão, senão anjos decaídos, remetidos à expiação? A terra que deixam não será para eles um paraíso perdido, em comparação ao meio ingrato onde ficarão relegados durante milhares de séculos, até o dia em que tiverem merecido a libertação?

Se remontarmos, agora, à origem da raça atual, simbolizada na pessoa de Adão, encontraremos todos os caracteres de uma geração de Espíritos expulsos de um outro mundo e exilados, por razões semelhantes, na Terra, já povoada por homens primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie, e que tais exilados tinham por missão fazê-los progredir, trazendo para o seu meio as luzes de uma inteligência já desenvolvida. Não é, com efeito, o papel até aqui representado pela raça adâmica? Relegando-a para esta terra de trabalho e de sofrimento, Deus não teria razão para dizer: “No suor do rosto comerás o teu pão”? Se, por causas semelhantes às que vemos hoje, ela mereceu tal castigo, não será justo dizer que se perdeu por orgulho? Na sua mansuetude não lhe poderia prometer que lhe enviaria um Salvador, isto é, aquele que deveria iluminar o caminho a seguir para alcançar a felicidade dos eleitos? Este Salvador foi enviado na pessoa do Cristo, que ensinou a lei do amor e da caridade como a verdadeira âncora da salvação.

Aqui se apresenta uma importante consideração. A missão do Cristo é facilmente compreendida admitindo-se que são os mesmos os Espíritos que viveram antes e depois de sua vinda, e que puderam aproveitar-se de seu ensino, ou do mérito de seu sacrifício; sem a reencarnação, porém, é mais difícil compreender-se a utilidade desse mesmo sacrifício para Espíritos criados posteriormente à sua vinda, pois Deus os teria criado manchados por faltas cometidas por aqueles com os quais não tiveram nenhuma relação.

Esta raça de Espíritos parece ter completado seu tempo na Terra. Nesse número, uns aproveitaram o tempo para progredir e mereceram ser recompensados; outros, por sua obstinação em cerrar os olhos à luz, esgotaram a mansuetude do Criador e mereceram castigo. Assim será cumprido este preceito do Cristo: “Os bons ficarão à minha direita e os maus à minha esquerda”.

Um fato parece apoiar a teoria que atribui uma preexistência aos primeiros habitantes desta raça na Terra: o de que Adão, tido como o tronco, é representado com um desenvolvimento intelectual peculiar, bem superior ao das raças selvagens atuais; que em pouco tempo os seus primeiros descendentes mostraram aptidão para trabalhos de arte muito avançados. Ora, o que sabemos do estado dos Espíritos em sua origem indica o que teria sido Adão, do ponto de vista intelectual, caso sua alma tivesse sido criada ao mesmo tempo que o seu corpo. Admitindo, por exceção, que Deus lhe tivesse dado uma alma mais perfeita, restaria explicar por que os selvagens da Nova Holanda, por exemplo, já que saem do mesmo tronco, são infinitamente mais atrasados que o pai comum. Ao contrário, tudo prova, tanto pelo físico quanto pelo moral, que pertencem a outra raça de Espíritos mais próximos de sua origem e que ainda necessitam de um grande número de migrações corpóreas antes de atingirem os graus menos avançados da raça adâmica. A nova raça que vai surgir, fazendo reinar por toda a parte a lei do Cristo — lei de justiça, de amor e de caridade — apressará o seu adiantamento. Os que escreveram a história da antropologia terrestre se apegaram principalmente aos caracteres físicos; o elemento espiritual foi quase sempre negligenciado e o é necessariamente pelos escritores que nada admitem fora da matéria. Quando este for levado em conta no estudo das ciências, uma luz inteiramente nova será lançada sobre uma porção de questões ainda obscuras, porquanto o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, desempenhando um papel preponderante, tanto nos fenômenos físicos quanto nos fenômenos morais.

Eis, em pequena escala, um exemplo surpreendente de analogia com o que se passa, em escala maior, no mundo dos Espíritos, e que nos ajudará a compreendê-lo:

No dia 24 de maio de 1861, a fragata Ifigênia transportou à Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. À chegada, o comandante baixou-lhes uma ordem do dia concebida assim:

“Pondo os pés nesta terra longínqua, por certo já compreendestes o papel que vos está reservado.

“A exemplo dos bravos soldados da nossa marinha, que servem sob as vossas vistas, ajudar-nos-eis a levar com brilho o facho da civilização ao seio das tribos selvagens da Nova Caledônia. Não é uma nobre e bela missão, pergunto? Desempenhá-la-eis dignamente.

“Escutai a palavra e os conselhos dos vossos chefes. Estou à frente deles. Entendei bem as minhas palavras.

“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos suboficiais e cabos constitui garantia certa de que todos os esforços serão tentados para fazer-vos excelentes soldados; digo mais: para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se o quiserdes.

“A nossa disciplina é severa e assim tem de ser. Colocada em nossas mãos, ela será firme e inflexível, ficai certos, do mesmo modo que, justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação...”

Aí tendes um punhado de homens expulsos, pelo seu mau proceder, de um país civilizado, e mandados, por punição, para o meio de um povo bárbaro. Que lhes diz o chefe? — “Infringistes as leis do vosso país; nele vos tornastes causa de perturbação e escândalo e fostes expulsos; mandam-vos para aqui, mas aqui podeis resgatar o vosso passado; podeis, pelo trabalho, criar-vos aqui uma posição honrosa e tornar-vos cidadãos honestos. Tendes uma bela missão a cumprir: levar a civilização a estas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos distinguir os que procederem bem.”

Para aqueles homens, exilados no seio da selvajaria, a mãe-pátria não é um paraíso que eles perderam pelas suas próprias faltas e por se rebelarem contra a lei?

Naquela terra distante, não são eles anjos decaídos? A linguagem do chefe não é idêntica à de que usou Deus falando aos Espíritos exilados na Terra: “Desobedecestes às minhas leis e, por isso, eu vos expulsei do mundo onde podíeis viver ditosos e em paz. Aqui, estareis condenados ao trabalho; mas, podereis, pelo vosso bom procedimento, merecer perdão e reconquistar a pátria que perdestes por vossa falta, isto é, o Céu”?

À primeira vista, a ideia de queda parece em contradição com o princípio segundo o qual os Espíritos não podem retrogradar. Deve-se, porém, considerar que não se trata de um retrocesso ao estado primitivo. O Espírito, ainda que numa posição inferior, nada perde do que adquiriu; seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, seja qual for o meio onde se ache colocado. Ele está na situação do homem do mundo condenado à prisão por seus delitos. Certamente, esse homem se encontra degradado, decaído, do ponto de vista social, mas não se torna nem mais estúpido, nem mais ignorante.

Será crível, perguntamos agora, que esses homens mandados para a Nova Caledônia vão transformar-se subitamente em modelos de virtude? Que vão abjurar repentinamente seus erros do passado? Para supor tal coisa, fora necessário desconhecer a Humanidade. Pela mesma razão, os Espíritos que vão ser expulsos da Terra, uma vez transplantados para a terra do exílio, não se despojarão instantaneamente do seu orgulho e de seus maus instintos; ainda por muito tempo conservarão as tendências que traziam, um resquício da velha levedura. O mesmo se deu com os Espíritos da raça adâmica exilados na Terra. Ora, não é esse o pecado original? A mancha que trazem ao nascer é a da raça de Espíritos culpados e punidos a que pertencem, mancha que podem apagar pelo arrependimento, pela expiação e pela renovação de seu ser moral. Considerado como responsabilidade de uma falta cometida por outrem, o pecado original é uma insensatez e a negação da justiça de Deus. Ao contrário, considerado como consequência e vestígio da imperfeição inicial do indivíduo, não só a razão o admite, mas se considera de plena justiça a responsabilidade dela decorrente.

Esta interpretação dá uma razão de ser toda natural ao dogma da imaculada Conceição, do qual tanto zombou o cepticismo. O dogma estabeleceu que a mãe do Cristo não era manchada pelo pecado original. Como pode ser isto? É muito simples: Deus enviou um Espírito puro, que não pertencia à raça culpada e exilada, para encarnar na Terra e desempenhar a sua augusta missão, do mesmo modo que, de vez em quando, envia Espíritos superiores que encarnam a fim de impulsionar o progresso e apressar o desenvolvimento do orbe. Na Terra tais Espíritos agem como o verdadeiro pastor, que vai moralizar os condenados em suas prisões e lhes mostrar o caminho da salvação.

Certamente algumas pessoas acharão esta interpretação um pouco ortodoxa. Algumas, até, poderão protestar que se trata de heresia. Mas não é um fato comprovado que muitos não veem no relato do Gênesis, na história da maçã e da costela de Adão senão uma simples imagem? Que não podendo ligar um sentido preciso à doutrina dos anjos decaídos, dos anjos rebeldes e do paraíso perdido, consideram todas essas coisas como fábulas? Se uma interpretação lógica os leva a ver uma verdade disfarçada sob a alegoria, não é melhor que a negação absoluta? Admitindo-se que tal solução não estivesse, em todos os pontos, na mais rigorosa ortodoxia, não seria preferível acreditar nalguma coisa a não crer em coisa alguma? Se a crença no texto literal afasta o homem de Deus e a crença na interpretação o aproxima dEle, esta não vale mais que a outra? Não vimos, pois, destruir o princípio, miná-lo em seus fundamentos, como fizeram alguns filósofos; procuramos descobrir-lhe o sentido oculto e, ao contrário, vimos consolidá-lo e dar-lhe uma base racional. Seja como for, não se poderá negar a esta interpretação um caráter de grandeza que certamente não possui o texto literal. Esta teoria abarca, ao mesmo tempo, a universalidade dos mundos, o infinito no passado e no futuro; dá a tudo a sua razão de ser pelo encadeamento de todas as coisas, pela solidariedade que estabelece entre todas as partes do Universo. Não é mais conforme à ideia que fazemos da majestade e da bondade de Deus, que o entendimento que circunscreve a Humanidade a um ponto do espaço e a um instante na eternidade?


Publicidade das Comunicações Espíritas

A questão da publicidade das comunicações espíritas é o complemento da organização geral que tratamos em nosso número anterior. À medida que se alarga o círculo dos espíritas, multiplicam-se os médiuns e, com eles, o número de comunicações. De algum tempo para cá essas comunicações têm tido um desenvolvimento notável em relação ao estilo, aos pensamentos e à amplitude dos assuntos tratados; cresceram com a própria ciência e os Espíritos regulam o nível de seu ensino pelo desenvolvimento da ideias, tanto nas províncias e no estrangeiro, quanto em Paris, conforme o atestam as numerosas mostras que nos enviam, algumas das quais já publicadas na Revista.

Dando essas comunicações, os Espíritos têm em vista a instrução geral e a propagação dos princípios da doutrina. Esse objetivo não seria alcançado se, conforme dissemos, elas ficassem escondidas nas pastas dos que as recebem. É, pois, útil espalhá-las pela via da publicidade. Disso resultará uma outra vantagem muito importante: provar a concordância do ensino espontâneo dado pelos Espíritos sobre todos os pontos fundamentais e neutralizar a influência dos falsos sistemas, provando o seu isolamento.

Trata-se, pois, de examinar o modo de publicidade que melhor pode alcançar esse objetivo. Para isso, dois pontos devem ser considerados: o meio que oferece mais chances de extensão da publicidade, e as condições mais adequadas a produzir no leitor uma impressão favorável, seja pela escolha judiciosa dos assuntos, seja pela disposição material. Por não levar em conta certos requisitos, por vezes de pura forma, as melhores obras frequentemente morrem no nascedouro. Isto é fruto da experiência; certos editores têm, a respeito, um tato que lhes dá o hábito do gosto do público e lhes permite julgar infalivelmente as probabilidades de sucesso de uma publicação, abstração feita do mérito intrínseco da obra.

O desenvolvimento que tomam as comunicações espíritas nos coloca na impossibilidade material de inseri-las todas em nossa Revista. Para abranger o panorama por inteiro, fora necessário lhes dar uma extensão tal que nos obrigaria a vendê-la por um preço inalcançável a muita gente. Torna-se, pois, necessário divisar um meio de as suprir nas melhores condições para todos. Para começar, examinemos os prós e os contras dos diferentes sistemas que poderiam ser empregados.

1º Publicações periódicas locais — Apresentam dois inconvenientes: o primeiro, de serem quase sempre restritas à localidade; o segundo é que uma publicação periódica, devendo ser alimentada e distribuída em datas fixas, necessita de um material burocrático e de despesas regulares, que devem ser providos de qualquer modo, sob pena de interrupção. Se os jornais de localidade, que se dirigem ao grande público, muitas vezes têm dificuldade para sobreviver, com mais forte razão uma publicação dirigida a um público restrito, porquanto seria iludir-se com a vã esperança de contar muitos assinantes de fora, sobretudo se tais publicações se fossem multiplicando.

2º Publicações locais não periódicas — Uma sociedade, um grupo, os grupos de uma mesma cidade poderiam, como fizeram em Metz, reunir suas comunicações em brochuras independentes umas das outras e publicá-las em datas indeterminadas. Do ponto de vista financeiro este modo é incomparavelmente preferível ao precedente, porque não implica compromissos e sempre se é livre de parar quando quiser. Mas há sempre o inconveniente da restrição da publicidade. Para espalhar essas brochuras fora do círculo local, haveria necessidade de gastos com anúncios, ante os quais muitas vezes a gente recua, ou uma livraria central, com numerosos correspondentes que deles se encarregassem. Mas aqui se apresenta outra dificuldade. Os livreiros, em geral, não se ocupam de bom grado com as obras que eles próprios não editam; por outro lado, não querem entulhar seus correspondentes com publicações para eles sem importância e de saída incerta, muitas vezes feitas em más condições de venda pelo formato e pelo preço e que, além do inconveniente de descontentar os correspondentes, obrigá-los-ia a arcar com as despesas de devolução. São considerações que a maioria dos autores, estranhos ao ofício, não compreendem, sem falar dos que, achando suas obras excelentes, admiram-se de que nenhum editor se empenhe em publicá-las. Aqueles que as imprimem por conta própria deveriam ter em mente que, a despeito das vantagens que ofereçam aos editores, a obra terá de aguardar os interessados se, dadas as peculiaridades do ofício, não estiver em condições negociáveis.

Pedimos desculpas aos nossos leitores por entrar em detalhes tão materiais a propósito das coisas celestes, mas é precisamente no interesse da propagação das boas coisas que queremos nos premunir contra as ilusões da inexperiência.

3º Publicações individuais dos médiuns — Todas as reflexões acima se aplicam naturalmente às publicações isoladas que certos médiuns poderiam fazer das comunicações que recebem. Mas, além da maior parte deles não o poder fazer, elas têm outro inconveniente: é que, em geral, têm um cunho de uniformidade que as torna monótonas e prejudicaria tanto mais a sua venda quanto mais se multiplicassem. Só seriam atraentes se, tratando de determinado assunto, formassem um todo e apresentassem um conjunto, fossem obras de um só ou de vários Espíritos.

Essas considerações não são absolutas e certamente poderá haver exceções, mas não podemos deixar de convir que repousam sobre um fundo de verdade. Aliás, aquilo que dizemos não visa impor nossas ideias, que cada um é livre para considerar ou recusar. Apenas, como não se publica algo senão esperando um resultado, sentimo-nos na obrigação de expor as causas de decepções.

Os inconvenientes que acabamos de assinalar nos parecem completamente superados pela publicação central e coletiva que os Srs. Didier & Cie vão empreender, sob o título de Biblioteca do Mundo Invisível. Compreenderá uma série de volumes, formato grande in-18, de sete cadernos de impressão, ou cerca de 250 páginas, ao preço uniforme de 2 francos. Cada volume terá o seu número de ordem, mas será vendido separadamente, de sorte que os aficionados estarão livres para escolher aquilo que mais e melhor lhes convier, sem a obrigação de adquiri-los na sua totalidade. Esta coleção, que não tem limites fixos, oferecerá os meios de publicar, nas melhores condições possíveis, os trabalhos mediúnicos obtidos nos diversos centros, com a vantagem de uma publicidade muito vasta, por meio dos correspondentes. O que esta casa não fizer por meio de brochuras isoladas, fá-lo-á por meio de uma coleção que pode adquirir grande importância.

O nome de Biblioteca do Mundo Invisível é o título geral da coleção. No entanto, cada volume terá um título especial para designar a procedência e o assunto, beneficiando o autor sem que este tenha de se imiscuir no produto das obras que lhe são estranhas. É uma publicação coletiva, mas sem vínculos recíprocos entre os produtores, na qual cada um entra por sua conta e risco, aproveitando-se da publicidade comum.

Nessa coleção os editores não se comprometem absolutamente em publicar tudo quanto lhes seja apresentado. Ao contrário, se reservam expressamente o direito de proceder a uma escolha rigorosa. Caso aceitos, e desde que satisfaçam às condições de formato e preço, os volumes publicados a expensas dos autores poderão fazer parte da coleção.

Pessoalmente, somos de todo estranhos ao conjunto dessa publicação e à sua administração; ela nada tem de comum com a Revista Espírita, nem com as nossas obras especiais sobre a matéria. Aqui lhe damos a nossa aprovação e o nosso apoio moral porque a julgamos útil e porque a consideramos a melhor via aberta aos médiuns, grupos e sociedades para suas publicações. Nela colaboraremos como os outros, por nossa própria conta, só assumindo a responsabilidade pelo que levar o nosso nome.

Além das obras especiais que pudermos fornecer a essa coleção, dar-lhe-emos, sob o título particular de Carteira Espírita, alguns volumes compostos de comunicações escolhidas, quer entre as que são obtidas em nossas reuniões de Paris, quer entre as que nos são enviadas por médiuns e pelos grupos franceses e estrangeiros que se correspondem conosco e não quiseram fazer publicações pessoais. Emanando de fontes diferentes, essas publicações terão o atrativo da variedade. A elas juntaremos, conforme as circunstâncias, as observações necessárias à sua compreensão e desenvolvimento. A ordem, classificação e todas as disposições materiais serão objeto de particular atenção.

Não visando tais publicações o nosso benefício pessoal, nossa intenção é aplicar os direitos que nos couberem, pelos cuidados que lhes daremos em benefício da distribuição gratuita de nossas obras sobre o Espiritismo, às pessoas que não puderem adquiri-las ou qualquer outro emprego julgado útil à propagação da doutrina, segundo condições que forem fixadas posteriormente.

Esse plano parece responder a todas as necessidades e não duvidamos que seja acolhido com simpatia por todos os sinceros amigos da doutrina.


Controle do Ensino Espírita

A organização que propusemos para a formação dos grupos espíritas tem como objetivo preparar o caminho que deve facilitar as relações mútuas entre eles. Entre as vantagens que resultarão de tais relações, deve-se colocar em primeira linha a unidade de doutrina, que será a sua consequência natural. Esta unidade já se acha em grande parte realizada e as bases fundamentais do Espiritismo são hoje admitidas pela imensa maioria dos adeptos. Mas ainda há questões duvidosas, seja porque não tenham sido resolvidas, seja porque o foram em sentido diverso pelos homens e, até mesmo, pelos Espíritos.

Se por vezes os sistemas são produtos dos cérebros humanos, sabe-se que, a tal respeito, certos Espíritos nada ficam a dever. Com efeito, veem-se alguns que engendram as mais absurdas ideias com maravilhosa habilidade, encadeando-as com muita arte e delas fazendo um conjunto mais engenhoso que sólido, mas que poderia falsear a opinião de pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar, ou que são incapazes de o fazer pela insuficiência de seus conhecimentos. Sem dúvida as ideias falsas acabam caindo ante a experiência e a lógica inflexível; mas, antes disso, podem lançar a incerteza. Também é sabido, conforme sua elevação, que os Espíritos podem ter, sobre certos pontos, uma maneira de ver mais ou menos justa; que as assinaturas das comunicações nem sempre são uma garantia de autenticidade, e que os Espíritos orgulhosos procuram, às vezes, fazer passar utopias, protegidos por nomes respeitáveis, com os quais se paramentam. É, incontestavelmente, uma das principais dificuldades da ciência prática, e contra a qual muitos se chocaram.

Em caso de divergência, o melhor critério é a conformidade dos ensinos por diferentes Espíritos e transmitidos por médiuns completamente estranhos entre si. Quando o mesmo princípio for proclamado ou condenado pela maioria, é preciso dar-nos conta da evidência. Se há um meio de chegar à verdade, seguramente é pela concordância e pela racionalidade das comunicações, auxiliadas pelos meios que temos à nossa disposição para constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos. Ao deixar de ser individual para se tornar coletiva, a opinião adquire um maior grau de autenticidade, já que não pode ser considerada como resultado de uma influência pessoal ou local. Os que ainda se acham em dúvida terão uma base para fixar as ideias, porquanto será irracional pensar que aquele que em seu ponto de vista está só, ou quase só, tenha razão contra todos.

O que acima de tudo contribuiu para o crédito da doutrina de O Livro dos Espíritos foi precisamente o fato de ser ela o produto de um trabalho semelhante, que repercute em toda parte. Como o dissemos, nem é obra de um único Espírito, que poderia ser sistemático, nem de um único médium, que poderia ser enganado, mas, ao contrário, um ensino coletivo, dado por uma grande diversidade de Espíritos e de médiuns, e os princípios que encerra são confirmados mais ou menos por toda parte. Dizemos mais ou menos considerando que, pela razão acima explicada, há Espíritos que procuram fazer prevaleçam suas ideias pessoais. É, pois, inútil submeter ideias divergentes ao controle que propomos. Se a doutrina ou algumas teorias que professamos fossem reconhecidas unanimemente como errôneas, submeter-nos-íamos sem murmuração, sentindo-nos felizes que outros tenham encontrado a verdade; mas se, ao contrário, elas forem confirmadas, hão de permitir creiamos estar com a verdade.

A Sociedade Espírita de Paris, compreendendo toda a importância de semelhante trabalho e tendo, ela mesma, primeiro que se esclarecer e depois provar que não pretende absolutamente arvorar-se em árbitro absoluto das doutrinas que professa, submeterá aos diversos grupos que com ela se correspondem as questões que julgar mais úteis à propagação da verdade. Essas questões serão comunicadas, seja por correspondência particular, seja por intermédio da Revista Espírita.

Compreende-se que para ela, e em razão da maneira séria por que encara o Espiritismo, a autoridade das comunicações depende das condições em que se realizam as reuniões, do caráter dos membros e do objetivo a que se propõem. Oriundas de grupos formados sobre as bases indicadas em nosso artigo sobre a organização do Espiritismo, as comunicações terão tanto mais peso a seus olhos quanto melhores forem as condições desses grupos.

Submetemos aos nossos correspondentes as questões que se seguem, enquanto aguardam as que lhes dirigiremos ulteriormente.


Questões e Problemas Propostos aos Vários Grupos Espíritas[3]

1º — Formação da Terra

Existem dois sistemas sobre a origem e a formação da Terra. Segundo a opinião mais comum, a que parece geralmente adotada pela Ciência, seria o produto da condensação gradual da matéria cósmica sobre um ponto determinado do espaço. O mesmo teria ocorrido com os demais planetas.

Conforme outro sistema, preconizado nos últimos tempos e segundo a revelação de um Espírito, a Terra teria sido formada pela incrustação de quatro satélites de um antigo planeta desaparecido. Tal adjunção teria resultado da própria vontade da alma desses planetas. Um quinto satélite, nossa Lua, ter-se-ia recusado, em virtude de seu livre-arbítrio, a essa associação. Os vazios deixados entre eles pela ausência da Lua teriam formado as cavidades preenchidas pelos mares. Cada um desses planetas teria trazido consigo seres catalépticos — homens, animais e plantas — que lhe eram peculiares.

Saídos de sua letargia, depois de operada a adjunção e restabelecido o equilíbrio, esses seres teriam povoado o globo atual. Tal seria a origem das raças-mãe do homem da Terra: a raça negra na África, a amarela na Ásia, a vermelha na América e a branca na Europa.

Qual destes dois sistemas pode ser considerado como expressão da verdade?

A propósito deste assunto, bem como dos outros, solicitamos uma solução explícita e racional.

Observação — É verdade que esta e outras questões se afastam do ponto de vista moral, que é a meta essencial do Espiritismo. Eis por que seria um equívoco fazê-las objeto de preocupações constantes. Sabemos, aliás, no que respeita ao princípio das coisas, que os Espíritos, por não saberem tudo, só dizem o que sabem ou o que pensam saber. Mas como há pessoas que poderiam tirar da divergência desses sistemas uma indução contra a unidade do Espiritismo, precisamente porque são formulados pelos Espíritos, é útil poder comparar as razões pró e contra, no interesse da própria doutrina, e apoiar no assentimento da maioria o julgamento que se pode fazer do valor de certas comunicações.

2º — Alma da Terra

Encontramos a seguinte proposição numa brochura intitulada Resumo da Religião Harmônica.

“Deus criou o homem, a mulher e todos os mais belos e melhores seres, mas concedeu a todos os astros o poder de criar seres de ordem inferior, a fim de completar o seu mobiliário, quer pela combinação de seu próprio fluido fecundante, conhecido em nosso globo pelo nome de aurora boreal, quer com a combinação desse fluido com o de outros astros. Ora, a alma do globo terrestre, desfrutando, como as almas humanas, de seu livre-arbítrio, isto é, da faculdade de escolher o caminho do bem ou do mal, deixou-se arrastar por este último. Daí as criações imperfeitas e más, tais os animais ferozes e venenosos e os vegetais peçonhentos. Mas a Humanidade fará desaparecer esses seres nocivos quando, ao se pôr de acordo com a alma da Terra para marchar pelo caminho do bem, ocupar-se de maneira mais inteligente da gestão do globo terrestre, no qual será criado um mobiliário mais perfeito.”

O que há de verdadeiro nesta proposição, e o que se deve entender por alma da Terra?

3º — Sede da alma humana

Lê-se na mesma obra a passagem seguinte, citada como extrato de A Chave da Vida, página 751:

“A alma é de natureza luminosa, divina. Tem a forma do ser humano que anima. Reside num espaço situado na substância cerebral mediana, que reúne os dois lobos do cérebro por sua base. No homem harmonioso e na unidade, a alma, diamante resplandecente, é cingida por uma branca coroa luminosa: a coroa da harmonia.”

O que há de verdadeiro nesta proposição?

4º — Morada das Almas

Na mesma obra:

“Enquanto habitam as regiões planetárias, os Espíritos são obrigados a reencarnar para progredirem. Desde que chegam às regiões solares, não mais necessitam da reencarnação e progridem indo habitar outros sóis de ordem superior, de onde passam às regiões celestes. A Via-Láctea, de luz tão suave, é a morada dos anjos ou Espíritos superiores.”

Isto é verdade?

5º — Manifestação dos Espíritos

Conforme a doutrina ensinada por um Espírito, nenhum Espírito humano pode manifestar-se ou comunicar-se com os homens, nem servir de intermediário entre Deus e a Humanidade, considerando-se que sendo Deus onipotente e onipresente, não necessita de auxiliares para a execução de sua vontade, pois tudo faz por si mesmo. Em todas as comunicações ditas espíritas, só Deus se manifesta, tomando a forma nas aparições, e a linguagem nas comunicações escritas, dos Espíritos que evocamos e aos quais julgamos falar. Em consequência, estando morto o homem, não poderá mais haver relações entre ele e os que ficaram na Terra, até que, por uma série de reencarnações sucessivas, durante as quais progridem, tenham atingido o mesmo grau de adiantamento no mundo dos Espíritos. Como só Deus pode manifestar-se, segue-se que as comunicações grosseiras, triviais, blasfematórias e mentirosas também são dadas por Ele — mas como prova — do mesmo modo que as dá boas, a fim de instruir. Naturalmente o Espírito que ditou esta teoria faz-se passar pelo próprio Deus, formulando, sob esse nome, uma extensa doutrina filosófica, social e religiosa.

Que se deve pensar de tal sistema, de suas consequências e da natureza do Espírito que o ensina?

6º — Anjos rebeldes, anjos decaídos e paraíso perdido

Que pensar da teoria formulada a respeito disto, no artigo acima publicado pelo Sr. Allan Kardec?


O Sobrenatural

PELO SR. GUIZOT

(2º artigo — Ver o número de dezembro de 1861)

Em nosso último número publicamos o eloquente e extraordinário capítulo do Sr. Guizot, a propósito do sobrenatural, do qual nos propúnhamos fazer algumas observações críticas que em nada diminuem a nossa admiração pelo ilustre e sábio escritor.

O Sr. Guizot acredita no sobrenatural. Sobre este, como sobre outros pontos de vista, importa nos entendamos quanto às palavras. Em sua acepção própria, sobrenatural significa o que está acima da Natureza, fora das leis da Natureza. O sobrenatural propriamente dito não está submetido a leis; é uma exceção, uma derrogação das leis que regem a Criação; numa palavra, é sinônimo de milagre. No sentido próprio essas duas palavras passaram à linguagem figurada, servindo para designar tudo quanto seja extraordinário, surpreendente, insólito. Diz-se de uma coisa que causa admiração que ela é miraculosa, como se diz que uma grande extensão é incomensurável, que um grande número é incalculável e que uma longa duração é eterna, embora, a rigor, possamos mensurar uma, calcular a outra e prever um termo para a última. Pela mesma razão, qualifica-se de sobrenatural aquilo que, à primeira vista, parece sair dos limites do possível. O vulgo é sempre levado a tomar o vocábulo ao pé da letra naquilo que não compreende. Se por isto se entende o que se afasta das causas conhecidas, estamos de acordo; mas, então, o vocábulo não tem mais sentido preciso, porquanto aquilo que era sobrenatural ontem já não o é hoje. Quantas coisas, outrora consideradas como tais, não fez a Ciência entrar no domínio das leis naturais! Seja qual for o progresso que tenhamos feito, podemos nos gabar de conhecer todos os segredos de Deus? A Natureza já nos disse a última palavra sobre todas as coisas? Diariamente não temos desmentidos a essa orgulhosa pretensão? Se, pois, aquilo que ontem era sobrenatural já não o é hoje, podemos logicamente inferir que o sobrenatural de hoje poderá não mais o ser amanhã. Para nós, o vocábulo sobrenatural é tomado no seu mais absoluto sentido próprio, isto é, para designar qualquer fenômeno contrário às leis da Natureza. O caráter do fato sobrenatural ou miraculoso é de ser excepcional. Desde que se repete, é que está submetido a uma lei, conhecida ou não, e entra na ordem geral[4].

Se restringirmos a natureza ao mundo material, visível, é evidente que as coisas do mundo invisível serão sobrenaturais. Mas estando o mundo invisível, ele também, submetido a leis, parece-nos mais lógico definir a Natureza como o conjunto das obras da Criação, regidas pelas leis imutáveis da Divindade. Se, como o demonstra o Espiritismo, o mundo invisível é uma das forças, um dos poderes que reagem sobre a matéria, representa um papel importante na Natureza, razão por que os fenômenos espíritas, para nós, não são sobrenaturais, nem maravilhosos, nem miraculosos. Por aí se vê que, longe de ampliar o círculo do maravilhoso, o Espiritismo tende a restringi-lo e, mesmo, fazê-lo desaparecer.

Dissemos que o Sr. Guizot acredita no sobrenatural, mas no sentido miraculoso, o que de modo algum implica a crença nos Espíritos e em suas manifestações. Ora, do fato de, para nós, os fenômenos espíritas nada terem de anormal, não se segue que Deus não tenha podido, em determinados casos, derrogar as suas leis, desde que é Todo-Poderoso. Tê-lo-ia feito? Não é aqui o lugar de examinar a questão. Para isto seria necessário discutir, não o problema, mas cada fato isoladamente. Ora, colocando-nos do ponto de vista do Sr. Guizot, isto é, da realidade dos fatos miraculosos, vamos tentar combater a consequência que daí ele tira, a saber, que a religião não é possível sem o sobrenatural e, ao contrário, provar que de seu sistema resulta o aniquilamento da religião.

O Sr. Guizot parte do princípio de que todas as religiões se fundam no sobrenatural. Isto é certo se, como tal, entendermos o que não se compreende; mas se remontarmos ao estado dos conhecimentos humanos na época da fundação de todas as religiões conhecidas veremos quão limitado era o saber dos homens em Astronomia, Física, Química, Geologia, Fisiologia, etc. Se, nos tempos modernos, bom número de fenômenos, hoje perfeitamente conhecidos e explicados, passaram por maravilhosos, com mais forte razão assim deveria ser nos tempos recuados. Acrescentemos que a linguagem figurada, simbólica e alegórica, em uso entre todos os povos do Oriente, prestava-se naturalmente às ficções, cujo verdadeiro sentido a ignorância não permitia descobrir. Acrescentemos, ainda, que os fundadores das religiões, homens superiores ao povo e sabendo muito mais que ele, tiveram, para impressionar as massas, de cercar-se de um prestígio sobre-humano, que alguns ambiciosos utilizaram para explorar a credulidade. Vede Numa; vede Maomé e tantos outros. Direis que são impostores. Seja! Tomemos as religiões saídas da lei mosaica: todas adotam a criação segundo o Gênesis. Ora, haverá, com efeito, algo mais sobrenatural do que essa formação da Terra, tirada do nada, arrancada do caos, povoada por todos os seres vivos, homens, animais e plantas, todos formados e adultos, e isto em seis vezes vinte e quatro horas, como num golpe de mágica? Não será a derrogação mais formal das leis que regem a matéria e a progressão dos seres? Por certo Deus podia fazê-lo; mas o fez? Ainda há bem poucos anos isto era afirmado como artigo de fé; mas eis que a Ciência repõe o fato imenso da origem do mundo na ordem das coisas naturais, provando que tudo se realizou segundo leis eternas. Sofreu a religião por não ter mais como base um fato maravilhoso por excelência? Incontestavelmente muito teria sofrido no seu crédito caso se tivesse obstinado em negar a evidência, ao passo que ganhou enveredando pelo direito comum.

Um fato muito menos importante, malgrado as perseguições a que deu origem, é Josué parando o Sol para prolongar o dia em mais duas horas. Não importa se foi o Sol ou a Terra que parou: nem por isso o fato deixa de ser menos sobrenatural. É uma derrogação de uma das leis mais capitais, a da força que arrasta os mundos. Pensaram em sair da dificuldade reconhecendo que é a Terra que gira, mas não haviam levado em conta a maçã de Newton, a mecânica celeste de Laplace e a lei da gravitação. Se o movimento da Terra for suspenso, não por duas horas, mas por alguns minutos, cessará a força centrífuga e a Terra precipitar-se-á sobre o Sol. O equilíbrio das águas na sua superfície é mantido pela continuidade do movimento; cessando este, tudo é posto em desordem. Ora, a história do mundo não menciona o menor cataclismo nessa época. Não contestamos que Deus possa ter favorecido Josué, prolongando a claridade do dia. Que meio teria empregado? Ignoramo-lo. Tivesse sido uma aurora boreal, um meteoro ou um outro fenômeno e nada teria alterado a ordem das coisas; mas seguramente não foi aquele tomado, durante séculos, como artigo de fé. Que outrora tenham acreditado, é muito natural; mas hoje isto é impossível, a menos que se renegue a Ciência.

Entretanto, dirão que a religião se apoia sobre muitos outros fatos, que nem são explicados, nem explicáveis. Inexplicados, sim; inexplicáveis é outra questão. Sabemos, acaso, que descobertas e conhecimentos o futuro nos reserva? Já não vemos, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, reproduzirem-se os êxtases, as visões, as aparições, a visão a distância, as curas instantâneas, as levitações, as comunicações orais e outras, com seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, outrora considerados como maravilhosos e hoje demonstrados como pertencentes à ordem das coisas naturais, conforme a lei constitutiva dos seres? Os livros sagrados estão repletos de fatos qualificados de sobrenaturais; como, porém, os encontramos análogos e até mais maravilhosos em todas as religiões pagãs da Antiguidade, se a verdade de uma religião fosse depender do número e da natureza de tais fatos, não saberíamos muito qual delas seria a mais importante.

Como prova do sobrenatural o Sr. Guizot cita a formação do primeiro homem, que foi criado adulto porque, segundo ele, sozinho e no estado de infância não teria podido alimentar-se. Mas se Deus fez uma exceção criando-o adulto, não poderia ter feito outra, facultando à criança os meios de viver, e isto sem se afastar da ordem estabelecida? Sendo os animais anteriores ao homem, não poderia realizar, em relação à primeira criança, a fábula de Rômulo e Remo?

Dizemos a primeira criança, quando deveríamos dizer as primeiras crianças, porquanto a questão de um tronco único para a espécie humana é muito controvertida. Com efeito, as leis antropológicas demonstram a impossibilidade material que a posteridade de um só homem tenha podido, em alguns séculos, povoar a Terra inteira e transformar-se em raças negra, amarela e vermelha, pois demonstrado está que essas diferenças se prendem à constituição orgânica, e não ao clima.

O Sr. Guizot sustenta uma tese perigosa ao afirmar que nenhuma religião é possível sem o sobrenatural. Se ele faz repousar as verdades do Cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dá-lhe um apoio frágil, cujas pedras se desprendem a cada dia. Damos-lhe um fundamento mais sólido: as leis imutáveis de Deus. Este fundamento desafia o tempo e a Ciência, porque o tempo e a Ciência virão sancioná-la. A tese do Sr. Guizot leva diretamente à conclusão de que, num tempo dado, não haverá mais religião possível, nem mesmo a cristã, se se demonstrar como natural o que é tomado como sobrenatural. Foi isto que ele quis provar? Não; mas é a consequência de seu argumento e para ela marchamos a largos passos. Porque, por mais que se faça, por mais que se amontoem raciocínios, não se chegará a manter a crença que um fato é sobrenatural, quando ficou provado que não o é.

Sob esse aspecto somos muito menos cépticos que o Sr. Guizot e dizemos que Deus não é menos digno de nossa admiração, do nosso reconhecimento e do nosso respeito por não haver derrogado suas leis, grandes, sobretudo, por sua imutabilidade, e que não há necessidade do sobrenatural para lhe render o culto que lhe é devido e, conseguintemente, por ter uma religião que encontrará tanto menos incrédulos quanto mais for, em todos os pontos, sancionada pela razão. Em nosso modo de ver, nada tem o Cristianismo a perder com esta sanção; ele não pode senão lucrar. Se, na opinião de muitos, algo o prejudicou, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural. Fazei vejam os homens a grandeza e o poder de Deus em todas as suas obras; mostrai a eles a sua sabedoria e a sua admirável previdência, desde a germinação da plantinha até o mecanismo do Universo: maravilhas não faltarão. Substituí em seu espírito a ideia de um Deus ciumento, colérico, vingativo e implacável, pela de um Deus soberanamente justo, bom e misericordioso, que não condena a suplícios eternos e sem esperanças por faltas temporárias; que, desde a infância, seja nutrido por essas ideias, que crescerão com a razão, e os fareis crentes mais firmes e sinceros do que se os embalásseis com alegorias, impostas ao pé da letra e que, mais tarde repelidas, conduzi-lo-iam a duvidar de tudo, e mesmo à negação total. Se quiserdes manter a religião pelo só prestígio do maravilhoso, não haverá senão um meio: manter os homens na ignorância. Vede se isso é possível. À força de mostrar a ação de Deus somente nos prodígios e nas exceções, deixamos de mostrá-la nas maravilhas que espezinhamos.

Certamente objetarão com o nascimento miraculoso do Cristo, que não poderia ser explicado pelas leis naturais, e que é uma das provas mais retumbantes de seu caráter divino. Não cabe aqui examinar esta questão. Mas, ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar suas leis. O que questionamos é a necessidade absoluta dessa derrogação para o estabelecimento de uma religião qualquer.

Dirão que o magnetismo e o Espiritismo, reproduzindo fenômenos tidos por miraculosos, são contrários à religião atual, porque tendem a retirar desses fatos o seu caráter sobrenatural. Mas, que fazer, se os fatos são reais? Não os impedirão, visto que tais fatos não constituem privilégio de um homem, mas se repetem no mundo inteiro. Outro tanto se poderia dizer da Física, da Química, da Astronomia, da Geologia, da Meteorologia; numa palavra, de todas as ciências. A tal respeito diremos que o cepticismo de muita gente não tem outra fonte senão a impossibilidade, para eles, desses fatos excepcionais. Negando a base sobre a qual se apoiam negam tudo o mais. Provai-lhes a possibilidade e a realidade desses fatos; reproduzi-os aos seus olhos e eles serão forçados a acreditar. — Mas isto é tirar do Cristo o seu caráter divino! — Então preferis que eles não creiam em coisa alguma a acreditar nalguma coisa? Então só haverá esse meio para provar a divindade da missão do Cristo? Seu caráter não se destaca cem vezes melhor da sublimidade de sua doutrina e do exemplo que deu de suas virtudes? Se não veem esse caráter senão nos atos materiais que ele realizou, outros não os fizeram semelhantes, como Apolônio de Tiana, seu contemporâneo? Por que, então, o Cristo o superou? Porque fez um milagre muito maior do que transformar a água em vinho, do que alimentar quatro mil homens com cinco pães, curar epilépticos, devolver a vista aos cegos e fazer andar os paralíticos. Esse milagre é o de ter mudado a face do mundo; é a revolução operada pela simples palavra de um homem saído do estábulo, durante três anos de pregação, sem nada haver escrito, auxiliado apenas por alguns pescadores obscuros e ignorantes. Eis o verdadeiro prodígio, aquele em que precisamos estar cegos para não ver a mão de Deus. Que os homens se persuadam desta verdade, pois é a melhor maneira de os converter em crentes definitivos.


Poesias de Além-Túmulo

Queríamos Versos de Béranger

(Sociedade Espírita do México, 20 de abril de 1859)

Depois que me afastei de nossa pátria bela,

E outros países vi, ouço alguém me deter:

Voltai, voltai, ouvi a quem vos apela,

Nós queremos ter mais versos de Béranger.

Deixai, pois, repousar esta musa risonha;

Ela já habita o céu com seus campos abertos,

Para louvar seu Deus com voz que alegre sonha

Cada dia ao juntar-se aos celestes concertos.

Ela cantara outrora as mais frívolas árias;

Por seu bom coração, Deus a si o chamou,

Não tendo achado más as suas canções várias.

Ele amava, ele orava e nunca a alguém odiou.

Se eu pude flagelar a raça capuchinha

Com seu bom coração os franceses têm rido.

Se a voltar a este mundo o bom Deus me destina,

A zombar-lhes ainda eu serei compelido.

Nota — Aqui o Espírito Béranger, deixando-nos entregue à nossa prece, deu-nos os versos seguintes:

O quê! Me assassinais, leviana e humana raça!

Versos! Meus versos sempre! O pobre Béranger

Bastante os feito tem sobre a terra em que passa

E contra eles seu fim devia proteger.

Mas não, pois que ele é nada, e se lhe cumpra a sorte!

Em morrendo, esperava o bom Deus impedisse-o.

Se me quereis punir, ai de mim! Que o suporte

O pobre Béranger a que votais suplício.

Béranger

Ensaio ainda uma de Minhas Canções

(Sociedade Espírita do México)

I

Filho querido de uma terra amada,

Lembro-me sempre de você aqui.

Sob outros céus, alma regenerada

Amor, beleza e mocidade vi

Da vida, enfim, no seu topo me inundo,

Eterno globo de reencarnações;

E eu, pobre Espírito deste outro mundo,

Ensaio alguma de minhas canções.

II

Eu vi chegar esta diva criatura

Que de emoção envolve o nome seu;

Mas em seus olhos não mais que a ternura,

Pôde sentir sem medo este olhar meu.

E adormeci, e a amiga em tom profundo,

Dá-me ao partir enternecidos sons;

E eu, pobre Espírito deste outro mundo,

Ensaio algumas de minhas canções.

III

Oh, ide em paz! Deitai-vos no jazigo,

Mortos felizes, deixai de acordar;

Olhos fechados são telas de abrigo

Que se abrirão a um sol belo e a brilhar.

Sorride, pois, que a morte lá no fundo

Quer-vos brindar com messes e orações;

E eu, pobre Espírito deste outro mundo,

Ensaio alguma de minhas canções.

IV

Ei-los caídos, gigantes da glória;

Escravos, reis, todos serão iguais,

Que para todos nós maior vitória

Só cabe àquele que amar souber mais.

Lá vemos esse que amor, gemebundo,

Nos pede, ou que deixamos com aflições.

E eu, pobre Espírito deste outro mundo,

Ensaio alguma de minhas canções.

V

Adeus, amigos. Adentro esse espaço

Que à vossa voz possa eu sempre vencer;

A imensidade é um eterno enlaço

Que brevemente vireis percorrer.

Sim, e com voz jovial em tom jucundo,

Juntos direis então minhas lições;

E eu, pobre Espírito deste outro mundo,

Ensaio alguma de minhas canções.

Béranger

Observação — De passagem por Paris, o presidente da Sociedade Espírita do México houve por bem confiar-nos uma coletânea de comunicações dessa Sociedade, autorizando-nos a escolher o que julgássemos útil. Pensamos que nossos leitores não protestarão por essa primeira escolha que fizemos. Verão, pelas mostras, que belas comunicações são dadas em todos os países. Devemos acrescentar que o médium que obteve os dois fragmentos acima é uma senhora inteiramente alheia à poesia.


Bibliografia

O ESPIRITISMO NA SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES OU A DOUTRINA ESPÍRITA POPULARIZADA

A brochura que anunciamos sob esse título, em nosso último número, será lançada a 15 de janeiro; mas, em vez de 25 centavos, preço indicado, será vendida a 15 centavos o exemplar isolado, e a 10 centavos para compra de 20 exemplares, ou 2 francos, sem o porte.

O objetivo desta publicação é dar, num panorama muito sucinto, um histórico do Espiritismo e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos, a fim de que se lhe possa compreender o objetivo moral e filosófico. Pela clareza e simplicidade do estilo, procuramos pô-la ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas para ajudarem a sua propagação.

REVELAÇÕES DE ALÉM-TÚMULO

Pela Sra. H. Dozon, médium. Evocador, Sr. H. Dozon, ex-tenente dos lanceiros da guarda, cavaleiro da Legião de Honra. — Um volume grande in-18; preço: 2 fr. 25 c. Livraria Ledoyen, 31, galerie d’Orléans, Palais-Royal.

Trata-se de uma coletânea de comunicações obtidas pela Sra. Dozon, médium, membro da Sociedade Espírita de Paris, durante e após grave e dolorosa enfermidade que, como ela mesma diz, teria abatido sua coragem, não fossem a sua fé no Espiritismo e a evidente assistência de seus amigos e guias espirituais, que a sustentaram nos momentos mais difíceis. Por isso, a maioria das comunicações traz a marca das circunstâncias em que foram dadas. Seu objetivo evidente era levantar o moral abatido, meta completamente alcançada. Seu caráter é essencialmente religioso, só respirando a mais pura, a mais doce e a mais consoladora moral. Algumas são de notável elevação de pensamentos. Lamentamos apenas que a rapidez com que o volume foi impresso não tenha permitido fazer toda a correção material desejável.

Se a Biblioteca do Mundo Invisível, que anunciamos, estivesse em vias de publicação, nela esta obra poderia encontrar uma honrosa posição.


Testamento em Favor do Espiritismo

Ao Sr. Allan Kardec, presidente da Sociedade Espírita de Paris

Meu caro senhor e muito honrado chefe espírita,

Estou anexando meu testamento hológrafo, em envelope lacrado em cera verde, com orientação do que deverá ser feito após a minha morte. Desde o momento em que conheci e compreendi o Espiritismo, seu objetivo, sua meta final, tive a ideia e tomei a resolução de fazer meu testamento. Tinha programado neste inverno, depois de minha volta do campo, esta obra de minhas últimas vontades. No lazer e na solidão do campo pude recolher-me e, à luz desse divino facho do Espiritismo, aproveitei todos os ensinamentos que recebi, sob todos os pontos de vista, dos Espíritos do Senhor, para me guiar no cumprimento desta obra da maneira mais útil aos meus irmãos da Terra, quer sentados no meu lar doméstico, quer à minha volta ou longe de mim, conhecidos e desconhecidos, amigos ou inimigos, e da maneira mais agradável a Deus. Lembrei-me do que esse respeitável Sr. Jobard, de Bruxelas, cuja morte súbita nos anunciastes, vos escrevia, na sua linguagem profunda e, ao mesmo tempo, divertida e espirituosa, relativamente a uma sucessão de vinte milhões, dos quais se dizia espoliado: que esta soma colossal teria sido uma alavanca poderosa para ativar de um século a nova era que se inicia. O dinheiro, que muitas vezes e do ponto de vista terreno dizem ser o ponto nevrálgico das batalhas, é, com efeito, o mais temível, o mais poderoso instrumento, tanto para o bem quanto para o mal aqui na Terra. Então eu disse a mim mesmo: “Posso e devo consagrar a essa nova era uma notável porção do modesto patrimônio que adquiri para a realização de minhas provas, com o suor de meu rosto, à custa de minha saúde, através da pobreza, da fadiga, do estudo e do trabalho, durante trinta anos de vida militante de advogado, um dos mais ocupados nas audiências e no escritório.

Reli a carta de 1º de novembro de 1832 que, depois de sua viagem a Roma, Lamennais escreveu à condessa de Senfft, e na qual, expressando sua decepção após tantos esforços e tantas lutas consagrados à procura da verdade, encontrei estas palavras, se não proféticas, pelo menos inspiradas, anunciando esta era nova.

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(Seguem-se várias citações, que a falta de espaço não nos permite reproduzir)

O envelope contém o seguinte sobrescrito:

“Dentro deste envelope, lacrado com cera verde, está meu testamento hológrafo. O envelope só deverá ser aberto e o selo quebrado após a minha morte, durante sessão geral da Sociedade Espírita de Paris. Nessa sessão será feita a leitura integral do testamento, pelo presidente da Sociedade que estiver em exercício naquela ocasião. O dito envelope e o selo mencionado serão rompidos pelo presidente. O presente envelope selado, contendo o meu testamento e que vai ser entregue ao Sr. Allan Kardec, atual presidente da dita sociedade, será por ele guardado nos arquivos da referida Sociedade. Um original desse mesmo testamento será encontrado, na época de minha morte, na sala de estudo da Sra.***; um outro original será, na mesma época, encontrado em minha casa. O depósito ao Sr. Allan Kardec é mencionado nos outros originais.”

Tendo sido a carta comunicada à Sociedade Espírita de Paris, em sua sessão de 20 de dezembro de 1861, seu presidente, o Sr. Allan Kardec, foi encarregado de agradecer, em nome da sociedade, às generosas intenções do testador em favor do Espiritismo, e de o felicitar pela maneira por que compreende a sua finalidade e o seu alcance.

Embora o autor da carta não tenha recomendado omitir seu nome, caso se julgasse conveniente publicá-la, compreende-se que, em tais circunstâncias e num ato dessa natureza, a mais absoluta reserva é uma obrigação rigorosa.


Carta ao Dr. Morhéry, a Propósito da Srta. Godu

Nos últimos tempos, muitas pessoas têm comentado os estranhos fenômenos operados pela Srta. Godu, notadamente os que dizem respeito à produção de diamantes e de grãos preciosos por meios não menos estranhos. A propósito, o Dr. Morhéry nos escreveu uma longa carta descritiva e algumas pessoas admiraram-se de que não a tivéssemos comentado. A razão disso é que não apreciamos nenhum fato com entusiasmo, examinando friamente as coisas antes de as aceitar, pois a experiência nos tem ensinado quanto devemos desconfiar de certas ilusões. Se tivéssemos publicado sem exame todas as maravilhas que nos foram relatadas com maior ou menor boa-fé, nossa revista talvez tivesse se tornado mais divertida; devemos, porém, conservar-lhe o caráter sério que sempre teve. Quanto à nova e prodigiosa faculdade que se teria revelado na Srta. Godu, acreditamos sinceramente que a de médium curador era mais preciosa e mais útil à Humanidade e, mesmo, à propagação do Espiritismo. Contudo, nada negamos, e aos que pensam, com tal notícia, que deveríamos tomar o primeiro trem para nos certificarmos, responderemos que, se a coisa é real, não deixará de ser oficialmente constatada; que, então, haverá sempre oportunidade de comentá-la, e nosso amor-próprio não sofrerá se formos o primeiro a proclamá-la. Aliás, eis um trecho da resposta que demos ao Dr. Morhéry:

“(...) É certo que não publiquei todos os relatórios que me enviastes sobre as curas operadas pela Srta. Godu, mas, por outro lado, disse o bastante para chamar a atenção para ela. Se falasse constantemente do caso, poderia dar a impressão de estar a serviço de interesses particulares. Aconselhava a prudência que o futuro viesse confirmar o passado. Quanto aos fenômenos que relatais na última carta, são tão estranhos que não me arriscarei a publicá-los senão quando tiver a sua confirmação de maneira irrecusável. Quanto mais anormal é um fato, tanto mais exige circunspeção. Não vos surpreendais, pois, que eu a tenha, e bastante, nesta circunstância. Aliás, é também a opinião do comitê da Sociedade, ao qual submeti a vossa carta. Decidiu ele, por unanimidade, que antes mesmo de falar do caso, conviria aguardar o seu desdobramento. Até o momento esse fato é de tal modo contrário a todas as leis naturais e, mesmo, a todas as leis conhecidas do Espiritismo, que o primeiro sentimento que provoca, mesmo entre os espíritas, é o de incredulidade. Falar dele antecipadamente e antes de poder apoiá-lo com provas autênticas, seria excitar sem proveito a verve dos gracejadores de mau gosto.”

Nota — Adiamos para o próximo número a publicação de diversas evocações e dissertações espíritas de grande interesse.

Allan Kardec



[1] N. do T.: Essa teoria é aqui apresentada como simples hipótese e a título de ensaio, tendo em vista provocar o exame da questão. Faltava, então, a Allan Kardec, elementos bastantes para uma afirmação peremptória. Mais tarde, já havendo passado pela prova do controle universal, foi ela inserida em A Gênese, capítulo XI, item 43 e seguintes, integrando, definitivamente, o corpo doutrinário do Espiritismo. É por isso que dissemos, na introdução ao volume I (1858 — Notas do Tradutor), que a Revista Espírita era uma espécie de tribuna livre, na qual Allan Kardec sondava a reação dos homens e a impressão dos Espíritos acerca de determinados assuntos, ainda hipotéticos e mal compreendidos, enquanto lhes aguardava a confirmação.

[2] N. do T.: Mateus, 24:34; Marcos, 13:30; e Lucas, 21:32.

[3] 7 N. do T.: Aqui Allan Kardec já começa a esboçar algumas teorias que, desenvolvidas posteriormente, passarão a integrar o último livro da Codificação Espírita. (Vide A Gênese, capítulo VIII).

[4] N. do T.: Primeiros germes do capítulo XIII de A Gênese: — Caracteres dos milagres — Os milagres no sentido teológico.

Fevereiro de 1862

Votos de Boas-Festas

Várias centenas de cartas nos foram dirigidas por ocasião do Ano-Novo, de sorte que nos é materialmente impossível responder a cada uma em particular. Rogamos, pois, aos nossos honrados correspondentes aceitarem aqui a expressão da nossa sincera gratidão pelos testemunhos de simpatia com que nos prodigalizaram. Entre elas, contudo, uma há que, por sua natureza, exige uma resposta especial: é a dos espíritas de Lyon, subscrita por cerca de duzentas assinaturas. Aproveitamos a oportunidade para acrescentar, a seu pedido, alguns conselhos gerais. A Sociedade Espírita de Paris, à qual já demos conhecimento, julgando que podia ser útil a todos, não só nos solicitou a publicá-la na Revista, como decidiu pela sua impressão separada, a fim de ser distribuída a todos os seus sócios. Todos os que tiveram a gentileza de nos escrever, por certo participarão dos sentimentos de reciprocidade que aí exprimimos e que se dirigem, sem exceção, a todos os espíritas, franceses e estrangeiros, que nos honram com o título de seu chefe e de seu guia na nova estrada que se lhes descortina. Não é, pois, somente aos que nos escreveram por ocasião do Ano-Novo que nos estamos dirigindo, mas a todos os que, a cada instante, nos dão provas tão comoventes de seu reconhecimento pela felicidade e pelas consolações que haurem na doutrina, cientes que estão das nossas dificuldades e dos esforços empregados com vistas a favorecer a sua propagação; a todos, enfim, que acreditam sirvam os nossos trabalhos para alguma coisa na marcha progressiva do Espiritismo.

RESPOSTA DIRIGIDA AOS ESPÍRITAS LIONESES POR OCASIÃO DO ANO-NOVO

Meus caros irmãos e amigos de Lyon,

A mensagem coletiva que houvestes por bem me enviar pela passagem do Ano-Novo causou-me viva satisfação, provando que conservastes de mim uma boa recordação. Mas o que mais me alegrou nesse ato espontâneo foi ter encontrado, entre as numerosas assinaturas que ali figuram, representantes de quase todos os grupos, porque é um sinal da harmonia que deve reinar entre eles. Sinto-me feliz por terdes compreendido perfeitamente o objetivo dessa organização, cujos resultados já podeis apreciar, porquanto agora vos deve ser evidente que uma sociedade única teria sido quase impossível.

Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que formulais; eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são estes que Deus ouve. Ficai satisfeitos, porque ele os acolhe diariamente, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, em meus dias, com extraordinária rapidez. Considero como um grande favor do céu poder testemunhar o bem que ela já fez. Essa certeza, da qual diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, paga-me com juros todas as penas e fadigas. Não peço a Deus senão uma graça: a de me dar força física suficiente para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de terminar. Mas, haja o que houver, terei sempre a consolação da certeza de que a semente das ideias novas, agora espalhadas por toda parte, é imperecível. Mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, a mim já é dado ver os primeiros frutos. Só lamento que a exiguidade de meus recursos pessoais não me tenha permitido pôr em execução os planos que tracei, a fim de que o avanço ocorresse de maneira ainda mais rápida. No entanto, se em sua sabedoria Deus o quis de outro modo, legarei esses planos aos meus sucessores que, sem dúvida, haverão de ser mais felizes. Apesar da penúria de recursos materiais, o movimento que se opera na opinião pública ultrapassou toda a expectativa. Crede, meus irmãos, que nisto o vosso exemplo teve influência. Recebei, pois, nossos cumprimentos pela maneira por que sabeis compreender e praticar a doutrina. Sei o quanto são grandes as provas que muitos de vós tendes de suportar; só Deus lhes conhece o termo neste mundo. Mas, também, quanta força contra a adversidade nos dá a fé no futuro! Oh! lastimai os que acreditam no nada após a morte, porquanto, para eles, o mal presente não tem compensação. O incrédulo infeliz é como o doente que não espera nenhuma cura; o espírita, ao contrário, é aquele que, doente hoje, sabe que amanhã estará bem.

Pedis que continue com os meus conselhos. Eu os dou com muito gosto aos que creem necessitar deles e os reclamam. Mas só a esses. Aos que julgam muito saber e sentem-se dispensados das lições da experiência, nada direi; apenas desejo que um dia não se lamentem por haverem sobrestimado as próprias forças. Tal pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro espírito do Espiritismo. Ora, pecando pela base, só por isto provam que se afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos; aproveito, pois, a circunstância para vos dirigir algumas palavras, a fim de provar que, de longe como de perto, sou todo vosso.

No ponto em que hoje as coisas se acham, e levando-se em conta a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode-se dizer que as principais dificuldades estão vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em bases que doravante desafiam os esforços de seus adversários. Pergunta-se como pode ter adversários uma doutrina que nos torna felizes e melhores. Isto é muito natural. Nos seus primórdios, o estabelecimento das melhores coisas sempre fere interesses. Não tem sido assim com todas as invenções e descobertas que revolucionaram a indústria? Não tiveram inimigos obstinados as que hoje são consideradas como benefícios e das quais não poderíamos nos privar? Toda lei que reprime abusos não tem contra si os que vivem do abuso? Como queríeis que uma doutrina, que conduz ao reino da caridade efetiva, não fosse combatida pelos que vivem do egoísmo? E sabeis o quanto são estes numerosos na Terra. No princípio esperavam matá-lo pela zombaria; hoje veem que tal arma é impotente e, sob o fogo cerrado dos sarcasmos, ele continuou sua rota sem se deter. Não penseis que se confessarão vencidos. Não; o interesse material é mais tenaz. Reconhecendo que é uma potência, com a qual agora é preciso contar, vão desferir ataques mais sérios, mas que só servirão para melhor provar a fraqueza deles. Uns o atacarão abertamente, em palavras e em ações, e o perseguirão até na pessoa de seus aderentes, tentando desencorajá-los a força de intrigas, enquanto outros, sub-repticiamente, por vias indiretas, procurarão miná-lo secretamente. Ficai avisados de que a luta não terminou. Estou prevenido de que tentarão um supremo esforço; mas não temais: a garantia do sucesso está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação. Empunhai-a bem alto, porque ela é a cabeça de medusa para os egoístas.

A tática já posta em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha e tende como certo que aquele que procura, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode estar animado de boas intenções. Eis por que vos exorto a guardar a maior prudência na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos.

A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, não há recolhimento possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos. Se houver fraternidade não haverá sentimentos de malquerença; mas não pode haver fraternidade com egoístas, com ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos, que se escandalizam e se melindram por tudo; com ambiciosos, que se decepcionam quando não têm a supremacia, e com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida e, com ela, a dissolução. É o que gostariam os inimigos e é o que tentarão fazer. Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, faz-se mister que nele reine um sentimento fraternal. Todo grupo que se formar sem ter por base a caridade efetiva, não terá vitalidade, ao passo que os que se fundarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, embora não podendo viver sob o mesmo teto, moram em lugares diversos. Entre eles a rivalidade seria uma insensatez; não poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porquanto esta não pode ser entendida de duas maneiras. Assim, reconhecereis o verdadeiro espírita pela prática da caridade em pensamentos, palavras e ações; e vos digo que aquele que em sua alma nutrir sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme, mente a si mesmo se aspira a compreender e a praticar o Espiritismo.

O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como destroem os povos e a sociedade em geral. Lede a História e vereis que os povos sucumbem sob a opressão desses dois mortais inimigos da felicidade dos homens. Quando se apoiarem nas bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz entre si e com eles próprios, cada um respeitando os direitos e os bens dos vizinhos. Eis a era nova predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e para a qual todo espírita deve trabalhar, cada um em sua esfera de atividade. É uma tarefa que lhes compete e da qual serão recompensados conforme a maneira por que a tenham realizado, pois Deus saberá distinguir os que, no Espiritismo, não buscaram senão a sua satisfação pessoal, daqueles que ao mesmo tempo trabalharam pela felicidade de seus irmãos.

Devo ainda vos chamar a atenção para outra tática de nossos adversários: a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua competência e que poderiam, com toda razão, despertar susceptibilidades e desconfianças. Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa. Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que ainda é jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor uma firmeza inabalável aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso.

Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um, ao templo do vosso culto, e assim provareis que vos caluniam, quando vos acusarem de impiedade.

Na impossibilidade material em que me acho de manter relações com todos os grupos, pedi a um de vossos confrades que me representasse especialmente em Lyon, como o fiz alhures: é o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento conheceis tão bem quanto a pureza de seus sentimentos. Além disso, sua posição independente lhe dá mais folga para a tarefa de que se quer encarregar; tarefa pesada, mas ante a qual não recuará. O grupo por ele formado em sua casa o foi sob os meus auspícios e conforme minhas instruções, quando de minha última viagem. Ali encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. Verei com viva satisfação todos os que me honram com a sua confiança a ele se ligarem, como a um centro comum. Se alguns quiserem fazer um grupo à parte, evitai olhá-los com aversão; e, se vos atirarem pedras, não as recolhais, nem as devolvais: entre eles e vós Deus será o juiz dos sentimentos de cada um. Que aqueles que se julgam os únicos certos o provem por maior caridade e maior abnegação, porquanto a caridade não poderia estar do lado daquele que não cumpre o primeiro preceito da doutrina. Se estiverdes em dúvida, fazei sempre o bem: os erros do espírito sempre pesam menos na balança de Deus que os erros do coração.

Repetirei aqui o que já disse em outras oportunidades: em caso de divergência de opinião, o meio fácil de sair da incerteza é ver qual a opinião que reúne o maior número de partidários, pois há nas massas um bom-senso inato que não se deixa enganar. O erro só seduz alguns espíritos enceguecidos pelo amor-próprio e por um falso julgamento, mas a verdade acaba sempre vitoriosa. Tende certeza de que o erro deserta das fileiras que se esclarecem, e que há uma obstinação irracional em crer que um só tenha razão contra todos. Se os princípios que professo só encontrassem alguns ecos isolados e fossem repelidos pela opinião geral, eu seria o primeiro a reconhecer que me havia enganado. Mas vendo crescer incessantemente o número dos aderentes, em todas as classes da sociedade e em todos os países do mundo, devo acreditar na solidez das bases sobre as quais repousam. Eis por que vos digo com toda a segurança: marchai firmemente na via que vos é traçada; dizei aos vossos antagonistas que, se quiserem que os sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão e que, ao mesmo tempo, seja uma garantia para a ordem social. Pela vossa união, frustrareis os cálculos dos que vos quisessem dividir. Provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos torna mais moderados, mais brandos, mais pacientes e mais indulgentes. Esta é a melhor resposta a ser dada aos detratores, ao mesmo tempo que a vista dos resultados benéficos é o mais poderoso meio de propaganda.

Eis, meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais acrescento os meus votos de Boas-Festas para o ano que começa. Não sei que provas Deus nos destina este ano, mas sei que, sejam quais forem, as suportarei com firmeza e resignação, pois sabeis, para vós, como para o soldado, que a recompensa é proporcional à coragem.

Quanto ao Espiritismo, pelo qual mais vos interessais que por vós mesmos, e cujo progresso, pela minha posição, posso julgar melhor que ninguém, sinto-me feliz em vos dizer que o ano se inicia sob os mais favoráveis auspícios e, sem dúvida, verá crescer o número de adeptos numa proporção impossível de ser prevista. Mais alguns anos como estes que se passaram e o Espiritismo terá arrebanhado três quartas partes da população.

Deixai que vos cite um fato entre milhares.

Num Departamento vizinho de Paris existe uma pequena cidade onde o Espiritismo penetrou apenas há seis meses. Em poucas semanas tomou um desenvolvimento considerável; uma oposição formidável foi logo organizada contra os seus partidários, ameaçando até mesmo os seus interesses privados. Eles enfrentaram tudo com uma coragem e um desinteresse dignos dos maiores elogios; entregaram-se à Providência e a Providência não lhes faltou. Essa cidade conta uma população operária numerosa, em cujo meio as ideias espíritas, graças à oposição que fizeram, manifestam-se rapidamente. Ora, um fato digno de nota é que as mulheres e as jovens, em vez de aguardarem os habituais presentes do Ano-Novo, preferiram adquirir as obras necessárias à sua instrução, de modo que, só para essa cidade, encarregou-se um livreiro de as expedir às centenas. Não é prodigioso ver simples operários reservarem suas economias para comprar livros de moral e de filosofia, em lugar de romances e bugigangas? homens preferindo esta leitura às alegrias ruidosas e degradantes dos cabarés? Ah! é que aqueles homens e aquelas mulheres, sofredores como vós, agora compreendem que não é aqui que se realiza a sua sorte; ergue-se a cortina e eles entreveem os esplêndidos horizontes do futuro. Esta cidadezinha é Chauny, no Departamento do Aisne. Novos filhos na grande família, eles vos saúdam, companheiros de Lyon, como seus irmãos mais velhos, formando, desde agora, um dos elos da cadeia espiritual que já une Paris, Lyon, Metz, Sens, Bordeaux e outras, e que em breve ligará todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternidade; porque em toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos preconceitos de seitas, castas e nacionalidades.

Vosso dedicado irmão e amigo,

Allan Kardec


O Espiritismo é Provado por Milagres?

Um eclesiástico nos enviou a seguinte pergunta:

“Todos os que receberam de Deus a missão de ensinar a verdade aos homens provaram-na por meio de milagres. Por quais milagres provais a verdade de vosso ensinamento?”

Não é a primeira vez que dirigem essa pergunta, seja a nós, seja a outros espíritas. Parece que lhe emprestam grande importância e que de sua solução depende a sentença que deve condenar ou absolver o Espiritismo. Nesse caso forçoso é convir que é crítica nossa posição, pois nos assemelhamos a um pobre diabo que não dispõe de um centavo na algibeira e a quem é exigida a bolsa ou a vida. Assim, confessamos humildemente que não temos milagre, por menor que seja, a oferecer. Dizemos mais: o Espiritismo não se apoia em nenhum fato miraculoso; seus adeptos não fizeram, nem têm a pretensão de fazer, qualquer milagre; não se julgam suficientemente dignos para que, à sua voz, Deus mude a ordem eterna das coisas. O Espiritismo constata um fato material, o da manifestação das almas ou Espíritos. Tal fato é real? Sim ou não? Eis a questão. Ora, admitindo esse fato como verdadeiro nada há de miraculoso. Como as manifestações desse gênero, isto é, as visões, aparições e outras, ocorreram em todos os tempos — assim o atestam os historiadores sacros e profanos — aquelas de outrora passaram por sobrenaturais. Hoje, porém, que lhe conhecemos a causa e sabemos que são produzidas em virtude de certas leis, sabemos também que lhes falta o caráter essencial dos fatos miraculosos: o da exceção à lei comum.

Essas manifestações, atualmente observadas com mais cuidado do que na Antiguidade, sobretudo quando examinadas sem prevenções e com o auxílio de investigações tão minuciosas quanto as que são feitas nos estudos científicos, têm como consequência provar, de maneira irrecusável, a existência de um princípio inteligente fora da matéria, sua sobrevivência ao corpo, sua individualidade depois da morte, sua imortalidade e seu futuro feliz ou desgraçado; por conseguinte, provar a base de todas as religiões.

Se a verdade só fosse provada por milagres, poderíamos perguntar por que os sacerdotes do Egito, que estavam em erro, reproduziam diante do Faraó os prodígios de Moisés? Por que Apolônio de Tiana, que era pagão, curava pelo toque, restituía a vista aos cegos, a palavra aos mudos, predizia os acontecimentos futuros e via o que se passava a distância? O próprio Cristo não disse: “Haverá falsos profetas que farão prodígios?”. Um dos nossos amigos, depois de uma prece fervorosa a seu Espírito protetor, foi curado quase instantaneamente de uma moléstia muito grave e muito antiga, que havia resistido a todos os remédios. Para ele o fato foi realmente miraculoso, mas, como crê nos Espíritos, um padre a quem narrou o fato lhe disse que o diabo também pode fazer milagres. “Neste caso — objetou o amigo — se foi o diabo quem me curou, é a ele que devo agradecer.”

Assim, os prodígios e os milagres não são privilégio exclusivo da verdade, desde que o próprio diabo pode fazê-los. Como, então, distinguir os bons dos maus? Todas as religiões idólatras, sem excetuar a de Maomé, apoiam-se em fatos sobrenaturais. Isto prova que os fundadores dessas religiões conheciam segredos naturais, ignorados pelo vulgo. Aos olhos dos selvagens da América, Cristóvão Colombo não passava por um ser sobre-humano por haver predito um eclipse? Não poderia ter-se feito passar por um enviado de Deus? Para provar o seu poder, necessitaria Deus desfazer o que havia feito? Fazer mover para a direita o que deve girar para a esquerda? Provando o movimento da Terra pelas leis da Natureza, Galileu não estava mais certo do que os que pretendiam que, por uma derrogação dessas mesmas leis, ele precisara deter o Sol? Já sabemos o quanto lhe custou, a ele e a tantos outros, por haver demonstrado um erro. Dizemos que Deus é maior pela imutabilidade de suas leis que pela sua abrogação; e se lhe aprouve fazê-lo em determinadas circunstâncias, não é isto o único sinal da verdade. Pedimos ao leitor que se reporte ao que dissemos a respeito em nosso artigo do mês de janeiro, quando tratamos do sobrenatural. Voltemos às provas da verdade do Espiritismo.

Há duas coisas no Espiritismo: o fato da existência dos Espíritos e de suas manifestações, e a doutrina daí resultante. O primeiro ponto não pode ser posto em dúvida senão pelos que não viram ou não quiseram ver. Quanto ao segundo, a questão é de saber se essa doutrina é justa ou falsa. É uma questão de apreciação.

Se os Espíritos só manifestassem a sua presença por meio de ruídos, movimentos, ou seja, por movimentos físicos, isto não provaria grande coisa, pois não saberíamos se são bons ou maus. O que, sobretudo, é característico nesse fenômeno, o que é capaz de convencer os incrédulos, é poder reconhecer parentes e amigos entre os Espíritos. Mas como podem os Espíritos atestar a sua presença, a sua individualidade e permitir o julgamento de suas qualidades, senão falando? Sabe-se que a escrita pelos médiuns é um dos meios que eles empregam. Desde que têm um meio de exprimir suas ideias, podem dizer tudo o que querem; conforme o seu adiantamento, dirão coisas mais ou menos boas, justas e profundas. Deixando a Terra, não abdicaram do livre-arbítrio; como todos os seres pensantes têm suas opiniões; como entre os homens, os mais adiantados dão ensinamentos de alta moralidade, conselhos marcados pela mais profunda sabedoria. São esses ensinamentos e conselhos que, recolhidos e ordenados, constituem a Doutrina Espírita, ou dos Espíritos. Se quiserdes, considerai essa doutrina não como uma revelação divina, mas como a expressão de uma opinião pessoal de tal ou qual Espírito; a questão é saber se é boa ou má, justa ou falsa, racional ou ilógica. A quem recorrer para isto? Ao julgamento de um indivíduo? mesmo de alguns indivíduos? Não; porque, dominados pelos preconceitos, pelos juízos antecipados ou pelos interesses pessoais, eles podem enganar-se. O único, o verdadeiro juiz é o público, porque aí não há interesse de camarilha, e porque nas massas há um bom-senso inato que não se engana. Diz a lógica sadia que a adoção de uma ideia, ou de um princípio, pela opinião geral é uma prova de que repousa sobre um fundo de verdade.

Os espíritas nunca dizem: “Eis uma Doutrina saída da boca do próprio Deus, revelada a um só homem por meios prodigiosos e que deve ser imposta ao gênero humano.” Ao contrário, dizem: “Eis uma doutrina que não é nossa e cujo mérito não reivindicamos. Adotamo-la porque a achamos racional. Atribuí-lhe a origem que quiserdes: de Deus, dos Espíritos, ou dos homens; examinai-a; se ela vos convier, adotai-a; caso contrário, ponde-a de lado.” Impossível ser menos absoluto. O Espiritismo, pois, não vem usurpar a religião; ele não se impõe; não vem forçar as consciências, quer dos católicos, quer dos protestantes ou dos judeus. Apresenta-se e diz: “Aceitai-me, se me achais bom.” É culpa dos espíritas se o acham bom? se nele encontram a solução do que em vão procuravam alhures? se dele extraímos consolações que nos tornam felizes, que dissipam os terrores do futuro, acalmam as angústias da dúvida e dão coragem para o presente? Ele não se dirige àqueles a quem bastam as crenças católicas, ou outras, mas àqueles aos quais elas não satisfazem completamente, ou que delas desertaram. Em vez de não crer mais em nada, ele os leva a crer em alguma coisa, e a crer com fervor. O Espiritismo não quer ser posto de lado: reconduz, pelos meios que lhe são próprios, os que se afastam. Se os repelirdes, eles serão forçados a ficar de fora. No íntimo da vossa alma e da vossa consciência, dizei se para eles seria preferível serem ateus.

Perguntam em que milagre nos apoiamos para julgarmos boa a Doutrina Espírita. Julgamo-la boa, não só porque é nossa opinião, mas também a de milhões de outros, que pensam como nós; porque leva a crença àqueles que não acreditavam; porque torna boas as pessoas que eram más; porque dá coragem nas misérias da vida. O milagre? é a rapidez de sua propagação, inaudita nos fastos das doutrinas filosóficas; é ter feito em poucos anos a volta ao mundo e se haver implantado em todos os países e em todas as classes da sociedade; é ter progredido, a despeito de tudo quanto foi feito para detê-la; é ter derrubado as barreiras que lhe opõem e encontrar um acréscimo de força nessas mesmas barreiras. É isto o caráter de uma utopia? Uma ideia falsa pode encontrar alguns partidários, mas não terá senão uma existência efêmera e circunscrita; perde terreno em vez de o conquistar, ao passo que o Espiritismo ganha, em vez de perder. Quando o vemos germinar em toda parte, acolhido como um benefício da Providência, é porque lá está o dedo da Providência. Eis o verdadeiro milagre, e o julgamos suficiente para garantir o seu futuro. Direis que aos vossos olhos ele não tem um caráter providencial, mas um caráter diabólico. Sois livres de ter essa opinião; o essencial é que ele marche. Apenas diremos que se uma coisa se estabelecesse universalmente pelo poder do demônio, e malgrado os esforços dos que dizem agir em nome de Deus, isto poderia levar certas pessoas a crer que o demônio é mais poderoso que a Providência. Pedis milagres! Eis um que nos envia um dos nossos correspondentes da Argélia:

“O Sr. P..., antigo oficial, era um dos mais rudes incrédulos; tinha o fanatismo da falta de religião e, antes de Proudhon, já dizia: Deus é o mal; em outras palavras, não admitia nenhum Deus e só reconhecia o nada. Quando o vi em busca do vosso O Livro dos Espíritos, imaginei que ele fosse coroar a sua leitura com alguma elucubração satírica, como era costume seu fazer contra os padres e, até, contra o Cristo. Não me parecia possível que um ateísmo tão inveterado pudesse ser curado algum dia e, no entanto, O Livro dos Espíritos fez esse milagre. Se conhecêsseis aquele homem como eu conheço, ficaríeis orgulhoso de vossa obra e encararíeis o fato como o vosso maior sucesso. Aqui todos se admiram. Entretanto, quando se é iniciado na palavra da verdade, não há de que se surpreender, naturalmente após a reflexão.”

Não faz mal acrescentar que o nosso correspondente é um jornalista que, ele também, professava opiniões muito pouco espiritualistas e, menos ainda, espíritas. Teriam ido pegá-lo à força para lhe impor a crença em Deus e na alma? Não; não é provável que ele se prestasse a isso. Fascinaram-no à vista de alguns fenômenos prodigiosos? Também não, porquanto ele nada viu como manifestações; apenas leu, compreendeu, encontrou raciocínios lógicos e acreditou. Direis que esta e tantas outras obras sejam obra do diabo? Se assim é, o diabo tem uma estranha política de dar armas contra si mesmo e é muito inábil deixando escapar os que ele mantinha em suas garras. Por que não fizestes esse milagre? Sereis, então, menos fortes que o diabo para fazer crer em Deus? Outra questão, por favor. Enquanto era ateu e blasfemador, aquele senhor estava danado para a eternidade? — Sem nenhuma dúvida. — Agora que, em vossa opinião, ele foi convertido a Deus por intermédio do demônio, ainda é danado? Suponhamos que, crendo em Deus, em sua alma e na vida futura feliz ou infeliz ele se torne, em virtude dessa crença, melhor do que era e não adote inteiramente ao pé da letra a interpretação de todos os dogmas; que, até mesmo, repila alguns deles: ainda é danado? Se disserdes: “sim”, a crença em Deus para nada lhe serve; se disserdes “não”, em que se torna a máxima “Fora da Igreja não há salvação?” Diz o Espiritismo: “Fora da caridade não há salvação” . Credes que aquele senhor vacilará entre as duas? Uma o queima, a outra o salva; a escolha não parece duvidosa.

Tais ideias, como toda ideia nova, contrariam certas pessoas, certos hábitos e, mesmo, certos interesses, como as estradas de ferro contrariaram os alugadores de cavalos de posta e os que tinham medo; como uma revolução contraria certas opiniões; como a imprensa contrariou os copistas; como o Cristianismo contrariou os sacerdotes pagãos. Mas, que fazer quando uma coisa se estabelece, queiramos ou não, por sua própria força e é aceita pela generalidade? Forçoso é tomar seu partido e, como Maomé, dizer que o que é deve ser. Que faríeis se o Espiritismo se tornasse crença universal? Repeliríeis todos os que o admitem? Direis que isto não acontecerá, que tal fato é impossível. Mas... o que faríeis se isto acontecesse?

Pode-se deter esse impulso? Para isso seria preciso deter não um homem, mas os Espíritos, e impedi-los de falar; queimar não um livro, mas as ideias; impedir que os médiuns escrevam e se multipliquem.

Um dos nossos correspondentes nos escreveu, de uma cidade do Departamento do Tarn: “Nosso cura faz a propaganda por nós; do púlpito lança impropérios contra o Espiritismo que, diz ele, não passa de obra do demônio. Quase que me apontou como o sumo-sacerdote da doutrina em nossa cidade, o que agradeço do fundo do coração, pois assim ele me fornece ocasião para falar do assunto com aqueles que ainda não o conhecem e que me abordam para saber o que é. Hoje os médiuns abundam entre nós.” O resultado é idêntico em toda parte onde quiseram gritar contra. Atualmente a ideia espírita está lançada; é acolhida porque agrada; vai do palácio à choupana e se pode julgar do efeito das tentativas futuras pelas que têm sido feitas para o sufocar.

Em resumo, para se estabelecer, o Espiritismo não reivindica a ação de nenhum milagre; não quer mudar em nada a ordem das coisas; procurou e encontrou a causa de certos fenômenos, indevidamente reputados de sobrenaturais; em vez de apoiar-se no sobrenatural, o repudia por conta própria; dirige-se ao coração e à razão. A lógica lhe abriu o caminho; a lógica o conduzirá a porto seguro.

Isto é uma antecipação da resposta que devemos à brochura do cura Marouzeau.

Deixemos agora que falem os Espíritos. Apresentada a questão acima, eis algumas das respostas obtidas, por meio de diferentes médiuns:

“Venho falar-vos da realidade da Doutrina Espírita e contrapô-la aos milagres, cuja ausência parece servir de arma aos seus detratores. Necessários nos primeiros tempos da Humanidade, com vistas a chocar os Espíritos que importava submeter, quase todos os milagres são hoje explicados pelas descobertas das ciências físicas e de outras ciências, tornando-se inúteis agora e até perigosos, pois suas manifestações só despertarão a incredulidade ou a zombaria. Enfim chegou o reino da inteligência, não ainda na sua expressão triunfante, mas nas suas tendências. Que quereis? Ver novamente as varinhas transformadas em serpentes, os enfermos se erguerem e os pães se multiplicarem? Não; não vereis isto. Mas vereis os incrédulos se enternecerem e dobrarem os joelhos enrijecidos diante do altar. Este milagre vale bem o da água a brotar do rochedo. Vereis o homem desolado, vergando ao peso da desgraça, deixar de lado a pistola carregada, exclamar: ‘Meu Deus, sede bendito, porque a vossa vontade eleva minhas provas ao nível do amor que vos devo.’ Enfim, por toda parte, vós que bateis os fatos com os textos e o espírito com a letra, vereis a luminosa verdade estabelecer-se sobre as ruínas dos vossos mistérios apodrecidos.”

Lázaro (Médium: Sra. Costel)

“Numa de minhas últimas meditações, se não me engano lida aqui, demonstrei que a Humanidade está progredindo atualmente. Até o Cristo ela tinha um corpo; era por certo esplêndida; tinha tido esforços heroicos e virtudes sublimes; Mas, onde estava a sua ternura, a sua mansuetude? Haveria a respeito muitos exemplos na Antiguidade. Abri um poema antigo: onde a mansidão? Onde a ternura? Encontrareis a sua expansão no poema, já quase inteiramente cristão, da Dido de Vergílio, espécie de heroína melancólica que Tasso ou Ariosto teriam tornado interessante nos seus cantos cheios de alegria cristã.

“Cristo veio, pois, falar ao coração da Humanidade. Mas, como sabeis, o próprio Cristo disse que tinha vindo em carne no meio do paganismo e prometeu vir no meio do Cristianismo. Há no indivíduo a educação do coração, como há a da inteligência. O mesmo se dá com a Humanidade. Assim, o Cristo é o grande educador. Sua ressurreição é o símbolo de sua fusão espiritual em todos; e esta fusão, esta expansão dele mesmo, apenas começais a sentir. O Cristo não vem mais fazer milagres; vem falar ao coração diretamente, em vez de falar aos sentidos. Passava adiante dos que pediam um milagre no céu e alguns passos à frente improvisava o seu magnífico sermão da montanha. Aos que ainda pedem milagres, o Cristo responde por todos os Espíritos sábios e esclarecidos: Credes mais nos vossos olhos, nos vossos ouvidos, nas vossas mãos que no vosso coração? Minhas chagas atualmente estão fechadas; o Cordeiro foi sacrificado; a carne arruinada; o materialismo viu; agora é a vez do Espírito. Deixo os falsos profetas; não me apresento ante os poderosos da Terra, como Simão, o mágico, mas vou aos que realmente têm sede, fome e sofrem no coração, e não aos que são espiritualistas apenas como verdadeiros e puros materialistas.”

Lamennais (Médium: Sr. A. Didier)

“Perguntam-nos quais os milagres que fazemos. Parece-me que de alguns anos a esta parte as provas são bem evidentes. O progresso do espírito humano mudou a face do mundo civilizado; tudo progrediu, e os que quiseram ficar na retaguarda desse movimento são como os párias das sociedades novas.

“Tal como hoje se acha preparada para os acontecimentos, que falta à sociedade, senão tudo quanto choca a razão e a esclarece? É possível que em certas épocas tenha Deus querido comunicar-se por inteligências superiores, como Moisés e outros. Desses grandes homens datam as grandes épocas, mas o espírito dos povos progrediu depois. As grandes figuras dos predestinados enviados por Deus lembravam uma lenda miraculosa; depois um fato, muitas vezes simples em si mesmo, torna-se maravilhoso ante a multidão impressionável e preparada para emoções que só a Natureza sabe oferecer a seus filhos ignorantes.

“Mas hoje necessitais de milagres? — Tudo se transformou à vossa volta; a Ciência, a filosofia, a indústria desenvolveram tudo quanto vos cerca, e pensais que nós, os Espíritos, não tenhamos participado de nenhum modo dessas modificações profundas? — Estudando, comentando, aprendeis e meditais melhor; os milagres não são mais do vosso tempo e deveis elevar-vos acima dos preconceitos que vos ficaram na memória, como tradições. Nós vos daremos a verdade e sempre o nosso concurso. Nos vós esclareceremos, a fim de vos tornardes melhores e fortes; crede e amai e o milagre procurado haverá de produzir-se em vós. Conhecendo e compreendendo melhor o objetivo desta vida, sereis transformados sem fenomenologia física.

“Procurais apalpar, tocar a verdade, e ela vos cerca e vos penetra. Sede, pois, confiantes em vossas próprias forças e o Deus de bondade que vos dava o espírito tornará tremenda a vossa força. Por ele afastareis as nuvens que obscurecem a vossa inteligência e compreendereis que o Espírito é todo imortalidade, todo poder. Postos em relação com esta lei de Deus chamada progresso, não mais procurareis, no prestígio dos grandes nomes, que são como mitos da Antiguidade, uma resposta e um escolho contra o Espiritismo, que é a revelação verdadeira, a fé, a ciência nova que consola e fortifica.”

Baluze (Médium: Sr. Leymarie)

“Para provar a verdade da Doutrina Espírita, pedem milagres. E quem reclama esta prova da verdade? Aquele que deveria ser o primeiro a crer e a ensinar...

“O maior dos milagres vai operar-se em breve. Padres do catolicismo, escutai; quereis milagres e ei-los que se operam... A cruz do Cristo desabava sob os golpes do materialismo, da indiferença e do egoísmo; ei-la que se levanta, bela e resplandecente, sustentada pelo Espiritismo! Dizei-me se não é o maior dos milagres uma cruz que se reergue, tendo em cada braço a Esperança e a Caridade? — Em verdade, padres da Igreja, crede e vede: os milagres vos rodeiam!... Como chamais essa volta comum à crença casta e pura do Evangelho, já que todas as filosofias haverão de ligar-se ao Espiritismo? o Espiritismo será a glória e o facho que iluminará o Universo inteiro. Oh! então o milagre será manifesto e retumbante, pois na Terra não haverá senão uma só e mesma família. Quereis milagres! Vede essa pobre mulher sofredora e sem pão. Como tirita na sua mansarda; o hálito com que pretende aquecer dois filhinhos que morrem de fome é mais frio e mais glacial que o vento a se precipitar em seu tugúrio miserável. Por que, então, tanta calma e serenidade no semblante, diante de tanta miséria? Ah! é que ela viu brilhar uma estrela ardente acima de sua cabeça; a luz celeste espalha-se no seu refúgio; não chora mais: espera! Não amaldiçoa mais: apenas pede a Deus que lhe dê coragem para suportar a prova!... E eis que as portas da mansarda se abrem e a Caridade vem aí depositar aquilo que a sua mão benfeitora pode espalhar!...

“Que doutrina dará mais sentimento e entusiasmo ao coração? O Cristianismo plantou o estandarte da igualdade na Terra e o Espiritismo empunha o da fraternidade!... Eis o mais celeste e o mais divino dos milagres que se pode produzir!... Padres, cujas mãos por vezes são manchadas pelo sacrilégio, não peçais milagres físicos, pois as vossas frontes poderão esfacelar-se contra a pedra que pisais para subir ao altar!...

“Não, o Espiritismo não se prende a fenômenos físicos, nem se apoia em milagres que falam aos olhos, mas dá fé ao coração. Dizei-me: não consistirá nisto o seu maior milagre?...”

Santo Agostinho (Médium: Sr. Véry)

Nota — Evidentemente isto não se aplica senão aos padres que conspurcaram o santuário, como Verger e outros.


O Vento

FÁBULA ESPÍRITA

Quanto maior a repercussão da crítica,

tanto maior bem poderá fazer, ao chamar a

atenção dos indiferentes. (Allan Kardec)

Queria o vendaval reinar sobre a planície

Em seu impulso impetuoso,

E atormentava toda a superfície,

Até um secular olmo enorme e nodoso.

Dos fecundos ramais — dizia ele — a semente

Podia a terra encher, germinar e crescer;

Previmos uma luta, e aguardamos pra ver

Que impedimento houvesse ao meu poder ingente.

E aos verdes penachos pequenos

Os seus golpes desfolhavam;

Em rápidos bulcões vão-se nos ares plenos

Os grãos que, entretanto, escapavam

Ao sopro que se esforça em seus vôos levar,

E ao solo porém vão parar.

Ah! Contra as leis do Amor e da Sabedoria,

Diante do Espiritismo, árvore da verdade,

O vento da incredulidade

Sopra e ulula em vão, dia a dia.

Faz nascer e crescer o que julga oprimir:

E o ajuda a semear... nunca ao bom germe delir.

C. Dombre (de Marmande)


A Reencarnação na América

Muitas vezes as pessoas se admiram de que a doutrina da reencarnação não tenha sido ensinada na América, e os incrédulos não deixam de aproveitar o fato para acusarem os Espíritos de contradição. Não repetiremos aqui as explicações que nos foram dadas e que publicamos a respeito, limitando-nos a lembrar que nisto os Espíritos mostraram a sua prudência habitual; quiseram que o Espiritismo surgisse num país de liberdade absoluta, quanto à emissão de opiniões. O ponto essencial era a adoção do princípio e para isto não quiseram ser incomodados de maneira alguma. O mesmo não haveria de dar-se com todas as suas consequências, sobretudo com a reencarnação, que se teria chocado contra os preconceitos da escravidão e da cor. A ideia de que um negro pudesse tornar-se um branco; de que um branco poderia ter sido um negro; de que um senhor tivesse sido um escravo poderia parecer de tal forma monstruosa que seria suficiente para que o resto fosse rejeitado. Assim, os Espíritos preferiram sacrificar momentaneamente o acessório ao principal e sempre nos disseram que, mais tarde, a unidade se faria sobre este como sobre todos os outros pontos. De fato, é o que começa a ocorrer. Várias pessoas daquele país nos disseram que agora essa doutrina conta ali numerosos partidários; que certos Espíritos, depois de fazer com que fosse pressentida, vêm confirmá-la. Eis o que a respeito nos escreveu de Montreal (Canadá), o Sr. Fleury Lacroix, natural dos Estados Unidos.

“(...) A questão da reencarnação, da qual fostes o primeiro promotor visível, aqui nos tomou de surpresa. Hoje, porém, estamos reconciliados com ela, com esse filho do vosso pensamento. Tudo se tornou compreensível por esta nova claridade e agora a estrada eterna se nos descortina um pouco mais longe. Entretanto, isto nos parecia absurdo, como dizíamos no começo; mas se hoje negamos, amanhã acreditamos — eis a Humanidade. Felizes os que querem saber, porque a luz se fará para eles; infelizes os outros, porquanto permanecerão nas trevas.”

Assim, foi a lógica e a força do raciocínio que os levou a essa doutrina; e, também, porque nela encontraram a única chave que poderia resolver problemas até então insolúveis. Todavia, o nosso honrado correspondente equivoca-se quanto a um fato importante, ao atribuir-nos a iniciativa desta doutrina, que chama de filho do nosso pensamento. É uma honra que não nos pertence: além de ser ensinada a nós, a reencarnação foi ensinada pelos Espíritos a outros indivíduos, antes da publicação de O Livro dos Espíritos. Além disso, seu princípio foi claramente exposto em várias obras anteriores, não apenas nas nossas e até nas que surgiram antes do aparecimento das mesas girantes; entre outras em Céu e Terra, de Jean Raynaud, e num encantador livrinho do Sr. Louis Jourdan, intitulado Preces de Ludovico, publicado em 1849, sem contar que esse dogma era professado pelos druidas, aos quais, por certo, nós não ensinamos[1]. Quando ele nos foi revelado ficamos surpresos e o acolhemos com reserva e desconfiança; chegamos mesmo a combatê-lo durante algum tempo, até que sua evidência nos fosse demonstrada. Assim, nós o aceitamos e não o inventamos, o que é bem diferente.

Isto responde à objeção de um de nossos assinantes, o Sr. Salgues (de Angers), antagonista confesso da reencarnação, o qual pretende que os Espíritos e os médiuns que a ensinam sofrem a nossa influência, pois aqueles que com ele se comunicam dizem o contrário. Aliás, o Sr. Salgues alega contra a reencarnação objeções especiais, das quais faremos, oportunamente, objeto de exame particular. Enquanto esperamos, constatamos um fato: o número de seus partidários cresce sem cessar, enquanto o dos adversários diminui. Se tal resultado se deve à nossa influência, atribuem-nos uma muito grande, visto que ela se estende da Europa à América, da Ásia à África e até à Oceania. Se a opinião contrária é a verdadeira, como se explica que não tenha prevalecido? Seria o erro, então, mais poderoso que a verdade?


Novos Médiuns Americanos em Paris

No que respeita às manifestações físicas, por certo os médiuns americanos suplantam em número e em força os do velho continente. A propósito, a sua reputação está de tal forma estabelecida, principalmente depois do Sr. Home, que só o título parece prometer prodígios. Para muita gente, o Sr. Squire não era designado senão como o médium americano. Um charlatão, que alguns anos atrás percorria cidades e feiras para dar representações, fazia-se passar por médium americano, embora fosse perfeitamente francês. Eis que nos chegam dois novos, que de médium só têm o nome, e dos quais jamais teríamos falado, porquanto sua arte é estranha ao nosso assunto, se a sua chegada, anunciada com tanto estardalhaço, não tivesse causado uma certa sensação, pela natureza de suas pretensões. Para a edificação de nossos leitores, e para não sermos acusados de parcialidade, transcrevemos textualmente os seus prospectos, de que Paris acaba de ser inundada.

“Divertimentos dos salões parisienses. — Novidade, nada senão novidade!!! — Saraus para as famílias e reuniões privadas, dadas pelos Médiuns Americanos, Sr. C. Eddwards Girroodd, de Kingstown (Lago Ontário), Alto Canadá, e Sra. Júlia Girroodd, apelidada pela imprensa inglesa e americana a Graciosa Sensitiva.

“Um álbum de mais de duzentas páginas, cada uma das quais é uma carta de felicitações, assinada pelos maiores nomes da França, tanto da nobreza, da magistratura, do exército, da literatura, quanto por dezesseis arcebispos e bispos da França e por um grande número de eclesiásticos de alta distinção, encontra-se à disposição das pessoas que, querendo dar um sarau, desejassem previamente assegurar-se do bom-gosto, da riqueza e da novidade de suas experiências.

“O Sr. e a Sra. Girroodd, os únicos na França a fazer experiências, ainda não passaram três meses em Paris e já deram quarenta e duas sessões nos principais salões da capital, nas Tulherias (12 de maio de 1861), e na residência de vários membros da família imperial.

“Colocaram imediatamente suas experiências muito acima de tudo que até hoje tinha sido visto como recreação de saraus.

“Ao contrário do costume dos senhores físicos, sua prestidigitação não exige o menor preparativo ou arranjo particular e os artistas operam facilmente em meio de um círculo de espectadores atentos, sem temer um só minuto ver destruir a ilusão.

“Os prestígios não passam de insignificante parte de seus variados talentos. O Mundo dos Espíritos obedece às suas vozes: Visões — Êxtase — Fascinação — Magnetismo — Eletrobiologia — Espíritos batedores — Espiritualismo, etc., etc., tudo quanto a ciência e o charlatanismo inventaram, que assombra os crédulos de nossos dias, até lhes dar uma fé robusta em tudo quanto não passa de hábil malabarismo, onde a gente é comparsa sem o saber. Numa palavra, o Sr. e a Sra. Girroodd, depois de se terem mostrado como feiticeiros — mas feiticeiros de fino trato — sábios como Merlin o Encantador, demonstrarão, se necessário, os segredos de sua ciência.

“A fé cristã só terá a ganhar ao ver claramente que tudo quanto ela não ensinou não passa de brilhante charlatanismo.

“Para as pequenas reuniões ou saraus para crianças, o Sr. Girroodd contratou, para todo o inverno, um dos mais hábeis físicos da capital e um ventríloquo cognominado O Homem das Bonecas Falantes, que darão sessões a preços reduzidos.”

Como se vê, esse senhor e essa senhora têm, nada mais, nada menos, a pretensão de matar o Espiritismo, e se fazem passar como defensores da fé cristã, sem dúvida muito surpreendida de encontrar na prestidigitação um auxiliar. Isto, porém, parece aumentar uma certa clientela.

Eles se dizem médiuns e não se preocupam em omitir o título de americanos, passaporte indispensável, como os nomes em i para os músicos, e isto para provar que não existem médiuns, pois, segundo dizem, podem reproduzir, auxiliados pela habilidade, pela mecânica e por meios que lhes são particulares, tudo quanto fazem os médiuns. Isto prova uma coisa: tudo pode ser imitado. A ilusão é uma questão de habilidade. Mas porque uma coisa pode ser imitada, deve-se concluir que não existe? A prestidigitação imitou, a ponto de enganar, a lucidez sonambúlica; deve-se por isso deduzir que não haja sonâmbulos? Fizeram cópias de Rafael tão perfeitas que foram tomadas como originais; isto significa que Rafael não teria existido? O Sr. Robert-Houdin transforma a água em vinho e faz sair, de um chapéu não preparado, milhares de objetos, capazes de encher uma caixa grande. Isto prejulga os milagres das Bodas de Caná e a multiplicação dos pães? Entretanto, ele faz ainda melhor, pois, de uma só garrafa, faz sair meia dúzia de licores diferentes e deliciosos.

Todas as manifestações físicas se prestam maravilhosamente à imitação e, por isso, são exploradas pelo charlatanismo. Os charlatães ultrapassam de longe os Espíritos, sobretudo nos casos de transportes, pois os produzem à vontade e no momento certo, o que não é conseguido nem pelos Espíritos, nem pelos melhores médiuns. Aliás, é preciso fazer justiça àquele cavalheiro e àquela dama, por não procurarem absolutamente enganar o público. Não se fazem passar pelo que não são e se apresentam claramente como hábeis imitadores, no que são mais respeitáveis do que aqueles que falsamente se dizem médiuns; e o são mesmo, muito mais que os verdadeiros médiuns que, para produzirem mais efeitos e suplantar seus concorrentes, acrescentam o subterfúgio à realidade. É verdade que a franqueza muitas vezes é uma boa política; passar por vulgares prestidigitadores já está bem gasto, mas querer provar que os médiuns são escamoteadores é um atrativo de novidade que os curiosos pagarão generosamente.

Como dissemos, sua habilidade nada prejulga contra a realidade dos fenômenos; longe de os prejudicar, será de grande utilidade. Antes de tudo, é uma trombeta a mais que chamará a atenção e fará pensar no Espiritismo as pessoas que dele não tinham ouvido falar. Como em todas as críticas, quererão ver o pró e o contra. Ora, o resultado da comparação não deixa margem a dúvidas. Uma utilidade ainda maior é a de prevenir contra a possibilidade de fraude e subterfúgios dos falsos médiuns. Provando a possibilidade da imitação, sua credibilidade pode ser arruinada. Se tal habilidade pudesse causar algum mal, seria à confiança que neles depositam, talvez um pouco levianamente, e nos prodígios que certos médiuns obtêm com tanta facilidade do outro lado do Atlântico, pois não está dito que o Sr. e a Sra. Girroodd tenham o privilégio de seus segredos. Se um dia nos for dado assistir a uma de suas sessões, teremos prazer em relatá-la, para instrução de nossos leitores.

Quando dizemos que tudo pode ser imitado, devemos excetuar as condições verdadeiramente normais em que se podem produzir as manifestações espíritas. Daí poder-se dizer que todo fenômeno que se afasta dessas condições deve ser considerado suspeito. Ora, para julgar sensatamente uma coisa, é necessário tê-la estudado. As próprias manifestações inteligentes não estão a salvo do charlatanismo. Umas há que, por sua natureza e pelas circunstâncias em que são obtidas, desafiam a mais consumada habilidade de imitação, por exemplo, a evocação de pessoas mortas, revelando verdadeiras particularidades de sua existência, desconhecidas do médium e dos assistentes e, melhor ainda, essas dissertações de muitas páginas, escritas de um jacto, sem rasuras, com rapidez, eloquência, correção, profundidade, erudição e sublimidade de pensamentos, sobre assuntos dados, fora dos conhecimentos e da capacidade do médium, e que este nem mesmo compreende. Para executar tais habilidades seria necessário um gênio universal. Ora, os gênios universais são raros e, aliás, não dão espetáculos. Entretanto, é o que se vê todos os dias, não por um indivíduo privilegiado, mas por milhares de indivíduos de todas as idades, sexos, condição social e grau de instrução, cuja honorabilidade e desinteresse absoluto são a melhor garantia de sinceridade, porquanto o charlatanismo não dá nada de graça. Se o Sr. e a Sra. Girroodd quisessem aceitar uma luta seria neste terreno que os chamaríamos, deixando-lhes com muito gosto o das manifestações físicas.

Nota — Uma pessoa que se diz bem informada assegura-nos que Edwards Girroodd deve traduzir-se por Edouard Girod, e Kingstown, lago Ontário e Alto Canadá, por Saint-Flour, Cantal.


Subscrição em Favor dos Operários Lioneses

A Sociedade Espírita de Paris não podia esquecer seus irmãos de Lyon na sua aflição. Desde novembro apressou-se em subscrever 260 francos numa loteria beneficente organizada por vários grupos desta cidade. Mas o Espiritismo não é exclusivo; para ele todos os homens são irmãos e se devem mútuo apoio, sem acepção de crença. Querendo, pois, dar seu óbolo à obra comum, abriu na sede da Sociedade — 59, Rua e Passagem Sant’Ana — uma subscrição cujo produto será depositado na caixa da subscrição geral do jornal Siècle.

Uma carta de Lyon, dirigida ao Sr. Allan Kardec, informa que um espírita anônimo acaba de enviar, diretamente e para tal fim, uma soma de 500 francos. Que esse generoso benfeitor, cujo incógnito respeitamos, receba aqui o agradecimento de todos os membros da Sociedade.

Um Espírito que se faz conhecer sob o nome característico e gracioso de Cárita, e cuja missão parece ser a de estimular a beneficência em socorro do infortúnio, houve por bem ditar a respeito a epístola que se segue e que nos foi enviada de Lyon. Como nós, os leitores certamente a colocarão no número das mais encantadoras produções de além-túmulo. Possa ela despertar a simpatia de todos os espíritas por seus irmãos sofredores! Todas as comunicações de Cárita são marcadas pelo mesmo sinete de bondade e de simplicidade. Evocada na Sociedade de Paris, disse ter sido Santa Irene, imperatriz.

AOS ESPÍRITAS PARISIENSES QUE ENVIARAM 500 FRANCOS PARA OS POBRES DE LYON, OBRIGADA!

“Obrigada a vós, cujo coração generoso soube compreender nosso apelo, e que viestes em auxílio de vossos irmãos infelizes. Obrigada! Vossa oferenda vai cicatrizar muitas feridas, anestesiar muitas dores. Obrigada, pois soubestes adivinhar que com esse fruto de ouro que enviastes a fome será momentaneamente apaziguada e as lareiras, apagadas durante muito tempo, voltarão a ser aquecidas.

“Obrigada, sobretudo pela delicada atenção com que soubestes disfarçar vossa boa ação sob o manto do anonimato. Mas se ocultastes o generoso pensamento de serdes úteis aos vossos semelhantes, como a violeta se oculta sob a folhagem, há um juiz, um senhor para o qual vossos corações não têm segredos e que sabe de onde partiu esse orvalho beneficente que veio refrescar mais de uma fronte abrasadora, expulsando a miséria tão temida pelas pobres mães de família. Deus, que tudo vê, conhece o segredo do anônimo e se encarregará de recompensar os que tiveram a inspiração de socorrer as pobres vítimas de circunstâncias independentes de sua vontade. Deus, meus amigos, gosta deste incenso de vossos corações que, sabendo partilhar as dores alheias, também sabe como se pratica a caridade. Ele aprecia principalmente esse devotamento e essa abnegação que se esquiva ante um agradecimento pomposo, preferindo abrigar a sua modéstia sob simples iniciais. Mas ele ligou, a todas as bênçãos que o vosso socorro fará nascer, o nome do benfeitor, porquanto, como bem o sabeis, esses transportes de alegria experimentados pelos corações socorridos sobem para Deus; e como ele vê que esses eflúvios, partidos da gratidão, são o resultado dos vossos benefícios, anota, no grande livro do espírito generoso que os fez nascer, a recompensa que lhe cabe.

“Se vos fosse dado ouvir essas doces emoções, essas tímidas demonstrações de simpatia que deixam escapar os infelizes à vista da mais insignificante moeda, maná celeste caído na sua pobre mansarda; se fosse dado presenciar os gritos infantis do pequenino que compreende que o pão está assegurado por alguns dias, seríeis muito felizes e diríeis: ‘A caridade é doce e vale a pena ser praticada.’ É que, como podeis ver, pouca coisa é necessária para transformar lágrimas em alegria, sobretudo em casa de trabalhador que não está habituado a ver a felicidade visitá-lo com tanta frequência. Se essa pobre formiga que recolhe, migalha a migalha, o pão diário encontrar em seu caminho um pão inteiro, justamente no momento em que perdia a esperança de dar à família o alimento cotidiano, então essa fortuna inesperada lhe parecerá tão incompreensível que, não encontrando expressões para demonstrar a sua felicidade, deixará escapar algumas palavras isoladas, às quais se seguem lágrimas de enternecimento. Socorrei, pois, os pobres, meus amigos, esses operários que só têm como última esperança a morte num asilo qualquer ou a mendicidade num canto de rua.

Socorrei-os tanto quanto puderdes, a fim de que, quando Deus vos reunir, seguindo a extensa avenida que conduz ao imenso portal, em cujo frontispício estão gravadas as palavras Amor e Caridade, possa Deus, reunindo os benfeitores e beneficiados, dizer a todos vós: Soubestes dar; fostes felizes em receber. Vamos, entrai! Que a caridade que vos guiou vos introduza neste mundo radioso que reservo aos que têm como divisa ‘Amai-vos uns aos outros’.”

Cárita

Observação — A quem farão acreditar que o demônio ditou tais palavras? Em todo o caso, se é o demônio que impele à caridade, nós jamais correremos risco em fazê-la.


Ensinos e Dissertações Espíritas

A Fé, a Esperança e a Caridade

(Bordeaux. Médium: Sra. Cazemajoux)

A Fé

Sou a irmã mais velha da Esperança e da Caridade; chamo-me Fé.

Sou grande e forte. Aquele que me possui não teme nem o ferro, nem o fogo: é à prova de todos os sofrimentos físicos e morais. Irradio sobre vós com um facho cujos jatos cintilantes se refletem no fundo de vossos corações e vos comunico a força da vida. Dizem, entre vós, que transporto montanhas; eu, porém, vos digo: Venho erguer o mundo, porquanto o Espiritismo é a alavanca que me deve auxiliar. Uni-vos a mim; venho convidar-vos: sou a Fé.

Sou a Fé! Moro com a Esperança, a Caridade e o Amor no mundo dos Espíritos Puros. Muitas vezes deixei as regiões sublimadas e vim à Terra para vos regenerar, dando-vos a vida do Espírito. Mas, excetuando os mártires dos primeiros tempos do Cristianismo e, de vez em quando, alguns fervorosos sacrifícios ao progresso da ciência, das letras, da indústria e da liberdade, só encontrei entre os homens indiferença e frieza, retomando tristemente o meu vôo para o céu. Julgais-me em vosso meio, mas vos enganais, porque a Fé sem obras é um simulacro de Fé. A verdadeira Fé é vida e ação.

Antes da revelação espírita a vida era estéril; era uma árvore que, ressequida pelos raios, não produzia nenhum fruto. Reconhecem-me por meus atos: ilumino as inteligências, aqueço e fortaleço os corações; afasto para longe de vós as influências enganosas e vos conduzo a Deus pela perfeição do espírito e do coração. Vinde abrigar-vos sob a minha bandeira; sou poderosa e forte: eu sou a Fé.

Sou a Fé e o meu reino começa entre os homens; reino pacífico, que os tornará felizes no presente e na eternidade. A aurora do meu advento entre vós é pura e serena; seu sol será resplandecente e seu crepúsculo virá docemente embalar a Humanidade nos braços de eternas felicidades. Espiritismo! derrama sobre os homens o teu batismo regenerador. Eu lhes faço um apelo supremo: eu sou a Fé.

Georges,

Bispo de Périgueux

A Esperança

Meu nome é esperança. Sorrio à vossa entrada na vida; sigo-vos passo a passo e não vos deixo senão nos mundos onde para vós se realizam as promessas de felicidade, incessantemente murmuradas aos vossos ouvidos. Sou vossa fiel amiga; não repilais minhas inspirações: eu sou a Esperança.

Sou eu que canto pela voz do rouxinol e que faço ecoar nas florestas essas notas lamentosas e cadenciadas que vos fazem sonhar com o céu; sou eu que inspiro à andorinha o desejo de aquecer os seus amores no abrigo de vossas moradas; brinco na brisa ligeira que acaricia os vossos cabelos; espalho aos vossos pés o suave perfume das flores dos vossos jardins, e quão pouco pensais nessa amiga que vos é tão devotada! Não a repilais: é a Esperança.

Tomo todas as formas para me aproximar de vós. Sou a estrela que brilha no azul; o cálido raio de sol que vos vivifica; embalo as vossas noites com sonhos alegres; expulso para longe as negras preocupações e os pensamentos sombrios; guio os vossos passos para a senda da virtude; acompanho-vos nas visitas aos pobres, aos aflitos, aos moribundos e vos inspiro palavras afetuosas, que consolam. Não me repilais: eu sou a Esperança!

Eu sou a esperança! Sou eu que, no inverno, faço crescer na casca dos carvalhos o musgo espesso com que os passarinhos constroem seus ninhos; sou eu que, na primavera, coroo a macieira e a amendoeira de flores brancas e rosas e as espalho sobre a terra como uma juncada celeste, que faz aspirar aos mundos felizes; sobretudo estou convosco quando sois pobres e sofredores; minha voz ressoa incessantemente aos vossos ouvidos.

Não me repilais: eu sou a Esperança. Não me repilais, porque o anjo do desespero me faz uma guerra obstinada e se consome em vãos esforços para tomar o meu lugar junto de vós. Nem sempre sou a mais forte e, quando ele consegue me afastar, vos envolve com as suas fúnebres asas, desvia os vossos pensamentos de Deus e vos arrasta ao suicídio. Uni-vos a mim para afastar sua funesta influência e vos deixai embalar docemente em meus braços, porque eu sou a Esperança.

Felícia,

Filha do médium

A Caridade

Eu sou a Caridade. Em nada me assemelho à caridade cujas práticas seguis. Aquela que entre vós usurpou o meu nome é fantasista, caprichosa, exclusiva, orgulhosa; venho vos prevenir contra os defeitos que, aos olhos de Deus, diminuem o mérito e o brilho de suas boas ações. Sede dóceis às lições que o Espírito de Verdade vos dá por minha voz. Segui-me, meus fiéis: eu sou a Caridade.

Segui-me. Conheço todos os infortúnios, todas as dores, todos os sofrimentos, todas as aflições que assediam a Humanidade. Sou a mãe dos órfãos, a filha dos idosos, a protetora e sustentáculo das viúvas; penso as chagas infectadas; curo todas as doenças; dou roupas, pão e um abrigo aos que não os têm; subo às mais miseráveis águas-furtadas, às mais humildes mansardas; bato à porta dos ricos e poderosos, porque, onde quer que viva uma criatura humana, sempre existirá, sob a máscara da felicidade, as mais amargas e acerbas dores. Oh! quão grande é a minha tarefa! Não poderei cumpri-la se não vierdes em meu auxílio. Vinde a mim: eu sou a Caridade.

Não tenho preferência por ninguém. Jamais digo aos que necessitam de mim: “Tenho os meus pobres; procurai alhures.” Oh! falsa caridade, quantos males provocas! Amigos, nós nos devemos a todos. Crede-me: não recuseis vossa assistência a ninguém; socorrei-vos uns aos outros com bastante desinteresse para não exigir nenhum reconhecimento de parte dos que tiverdes socorrido. A paz do coração e da consciência é a doce recompensa de minhas obras: eu sou a verdadeira Caridade.

Ninguém conhece na Terra o número e a natureza de meus benefícios. Só a falsa caridade fere e humilha aqueles a quem alivia. Acautelai-vos contra esse funesto desvio; as ações desse gênero não têm nenhum mérito perante Deus e atraem sobre vós a sua cólera. Só Ele deve saber e conhecer os generosos impulsos de vossos corações quando vos tornais os dispensadores de seus benefícios. Guardai-vos, pois, amigos, de dar publicidade à prática da assistência mútua; não mais lhe deis o nome de esmola. Crede em mim: eu sou a Caridade.

Tenho tantos infortúnios a aliviar que muitas vezes fico com o colo e as mãos vazios; venho dizer-vos que espero em vós. O Espiritismo tem por divisa Amor e Caridade; e todos os verdadeiros espíritas quererão, no futuro, conformar-se a esse sublime preceito pregado pelo Cristo há dezoito séculos. Segui-me, pois, irmãos; eu vos conduzirei ao reino de Deus, nosso pai. Eu sou a Caridade.

Adolfo,

Bispo de Argel

INSTRUÇÕES DADAS POR NOSSOS GUIAS A RESPEITO DAS TRÊS COMUNICAÇÕES ACIMA

Meus caros amigos, deveis ter imaginado que um de nós havia dado os ensinamentos sobre a fé, a esperança e a caridade, e tivestes razão.

Felizes por ver Espíritos tão elevados vos dar, com tanta frequência, conselhos que vos devem guiar em vossos trabalhos espirituais, não menos doce e pura é a nossa alegria, quando vimos ajudar a tarefa do vosso apostolado espírita.

Podeis, pois, atribuir ao Espírito Georges a comunicação sobre a Fé; a da Esperança a Felícia: aí encontrareis o estilo poético que tinha durante sua vida; e a da Caridade a Dupuch, bispo de Argel, que na Terra foi um de seus fervorosos apóstolos.

Ainda teremos de tratar da caridade sob outro ponto de vista. Fá-lo-emos dentro de alguns dias.

Vossos Guias

Esquecimento das Injúrias

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sra. Costel)

Minha filha, o esquecimento das injúrias é a perfeição da alma, como o perdão das feridas feitas à verdade é a perfeição do Espírito. A Jesus foi mais fácil perdoar os ultrajes de sua Paixão do que o último de vós perdoar uma leve zombaria. A grande alma do Salvador, habituada à doçura, não concebia amargura nem vingança; as nossas, atingidas por coisas insignificantes, esquecem o que é grande. Diariamente os homens imploram o perdão de Deus, que desce sobre eles como orvalho benfazejo; mas seus corações esquecem essa palavra sem cessar repetida na prece. Em verdade vos digo: o fel interior corrompe a alma; é a pedra volumosa que a fixa ao solo e retarda a sua elevação. Quando fordes repreendidos, entrai em vós mesmos; examinai vosso pecado interior, aquele que o mundo ignora; medi a sua profundidade e curai a vossa vaidade pelo conhecimento de vossa miséria. Se, mais grave, a ofensa atingir o coração, lamentai o infeliz que a cometeu, como lamentais o ferido cuja chaga, aberta, deixa escorrer o sangue; a piedade é devida àquele que aniquila seu ser futuro. No Jardim das Oliveiras Jesus conheceu a dor humana, mas sempre ignorou as amarguras do orgulho e a pequenez da vaidade; foi encarnado para mostrar aos homens o protótipo da beleza moral que lhes devia servir de modelo: não vos afasteis jamais. Modelai as vossas almas como a cera mole e fazei que a vossa argila transformada se torne um mármore imperecível, em que Deus, o grande escultor, possa inscrever o seu nome.

Lázaro

Sobre os Instintos

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sra. Costel)

Ensinar-te-ei o verdadeiro conhecimento do bem e do mal, que o espírito confunde com tanta frequência. O mal é a revolta dos instintos contra a consciência, esse tato interior e delicado, que é o tato moral. Quais os limites que o separam do bem, que ele contorna por toda parte? O mal não é complexo: é uno e emana do ser primitivo, que quer a satisfação do instinto à custa do dever. O instinto, primitivamente destinado a desenvolver no homem animal o cuidado de sua conservação e de seu bem-estar, é a única origem do mal, porque, persistindo mais violento e mais severo em certas naturezas, ele as impele a se apoderarem do que desejam ou a concentrar o que possuem. O instinto, a que os animais obedecem cegamente, e que é a sua própria virtude, deve ser incessantemente combatido pelo homem que quer elevar-se e substituir o grosseiro utensílio da necessidade pelas armas finamente buriladas da inteligência. Entretanto, haverás de convir que nem sempre o instinto é mau, devendo-lhe a Humanidade, não raras vezes, sublimes inspirações, como na maternidade e em certos atos de abnegação, nos quais substitui a reflexão com presteza e segurança. Minha filha, tua objeção é precisamente a causa do erro em que caem os homens, prontos a desconhecerem a verdade, sempre absoluta nas suas consequências. Sejam quais forem os resultados de uma causa má, os exemplos jamais devem levar a concluir contra as premissas estabelecidas pela razão. O instinto é mau porque é puramente humano e a Humanidade não deve pensar senão em se despojar, em deixar a carne para elevar-se ao Espírito. E se o mal caminha ao lado do bem, é que o seu princípio muitas vezes tem resultados opostos a si mesmo, e que o fazem desconhecer o homem leviano e arrastado pela sensação. Nada de verdadeiramente bom pode emanar do instinto: um impulso sublime não é devotamento, assim como uma inspiração isolada não é gênio. O verdadeiro progresso da Humanidade é sua luta e seu triunfo contra a essência mesma de seu ser. Jesus foi enviado à Terra para o provar humanamente. Pôs a descoberto a verdade, bela fonte escondida na areia da ignorância. Não perturbeis mais a limpidez da linfa divina pelos compostos do erro. E, crede, os homens que não são bons e devotados senão instintivamente, o são mal, porque sofrem uma cega dominação que, de repente, pode precipitá-los no abismo.

Lázaro

Observação — Apesar do nosso respeito pelo Espírito Lázaro, que nos tem brindado com tantas e tão belas dissertações, permitimo-nos discordar de sua opinião no que concerne às últimas proposições. Pode-se dizer que há dois tipos de instinto: o instinto animal e o instinto moral. O primeiro, como diz muito bem Lázaro, é orgânico; é dado aos seres vivos para a sua conservação, bem como a de sua progênie; é cego e quase inconsciente, porque a Providência quis dar um contrapeso à sua indiferença e à sua negligência. Já não é assim com o instinto moral, que é privilégio do homem e que pode ser assim definido: Propensão inata para fazer o bem ou o mal. Ora, essa propensão se prende ao estado de maior ou menor avanço do Espírito. O homem, cujo Espírito já é depurado, faz o bem sem premeditação e como algo muito natural; daí por que se admira de ser louvado. Assim, não é justo dizer que “os homens que não são bons e devotados senão instintivamente, o são mal, porque sofrem uma cega dominação que, de repente, pode precipitá-los no abismo.” Os que instintivamente são bons e devotados denotam um progresso realizado; nos que o são intencionalmente, o progresso está por se realizar, razão por que há trabalho e luta entre os dois sentimentos. No primeiro, a dificuldade está vencida; no segundo, é preciso vencê-la. O primeiro é como o homem que sabe ler, e lê sem dificuldade, quase sem perceber; o segundo é como o que soletra. Porque um chegou mais tarde, terá menos mérito que o outro?


Meditações Filosóficas e Religiosas Ditadas pelo Espírito Lamennais

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. A. Didier)

A Cruz

Em meio às revoluções humanas, em meio a todos os distúrbios, a todos as irrupções do pensamento, eleva-se uma cruz alta e simples, fixada num altar de pedra. Um jovenzinho esculpido na pedra tem nas mãos uma bandeirola, sobre a qual se lê esta palavra: Simplicitas. Filantropos, filósofos, deístas e poetas: vinde ler e contemplar essa palavra; é todo o Evangelho, toda a explicação do Cristianismo. Filantropos, não inventeis a filantropia: não existe senão a caridade; filósofos, não inventeis uma sabedoria: só há uma; deístas, não inventeis um Deus: só existe um; poetas, não perturbeis o coração do homem. Filantropos, quereis quebrar as cadeias materiais que mantêm cativa a Humanidade; filósofos, elevais Panteões; poetas, idealizais o fanatismo. Para trás! Sois deste mundo, e o Cristo disse: “Meu reino não é deste mundo.” Oh! sois por demais deste mundo de lama, para compreenderdes estas sublimes palavras; e se algum juiz bastante poderoso vos disser: “Sois filhos de Deus?” vossa vontade morreria no fundo da garganta e não podereis responder como o Cristo, em face da Humanidade: “Vós o dissestes.” — “Vós todos sois deuses”, disse o Cristo, quando a língua de fogo desce sobre as vossas cabeças e penetra os vossos corações; sois todos deuses, quando percorreis a Terra em nome da caridade; mas sois filhos do mundo quando contemplais os sofrimentos atuais da Humanidade e não pensais em seu futuro divino. Homem! que aquela palavra seja lida por teu coração e não por teus olhos de carne. O Cristo não erigiu um Panteão: ergueu uma cruz.

Bem-Aventurados os Pobres de Espírito

As diversas ações meritórias do Espírito após a morte são principalmente as do coração, mais que as da inteligência. Bem-aventurados os pobres de espírito não quer apenas dizer bem-aventurados os imbecis, mas também os que, cumulados de dons intelectuais, não o empregaram para o mal, pois é uma arma muito poderosa para arrastar as massas. Entretanto, como dizia ultimamente Gérard de Nerval[2], a inteligência desconhecida na Terra terá grande mérito perante Deus. Com efeito, o homem poderoso em inteligência, lutando contra todas as circunstâncias infelizes que o vêm assaltar, deve regozijar-se com estas palavras: “Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”, o que não deve ser entendido unicamente na ordem material, mas, também, nas manifestações do Espírito e nas obras da inteligência humana. As qualidades do coração são meritórias, porque as circunstâncias que as podem impedir são muito pequenas, muito raras, muito fúteis. A caridade deve brilhar por toda parte, apesar de tudo, para todos, como o Sol brilha para todo o mundo. O homem pode impedir que a inteligência de seu próximo se manifeste, mas não dispõe de nenhum poder sobre o coração. As lutas contra a adversidade, as angústias da dor podem paralisar os impulsos do gênio, mas são incapazes de neutralizar os da caridade.

A Escravidão

Escravidão! Quando se pronuncia este nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho. Quando um padre vos fala de escravidão, está se referindo à escravidão da alma, que avilta o Espírito do homem e o faz esquecer a sua consciência, isto é, sua liberdade. Oh! sim, esta escravidão da alma é horrível e diariamente excita a eloqüência de mais de um pregador. Mas a escravidão do hilota, a escravidão do negro, que se torna aos seus olhos? Diante desta questão o sacerdote mostra a cruz e diz: “Esperai!” Com efeito, para esses infelizes, é a consolação a oferecer, e ela lhes diz: “Quando o vosso corpo for dilacerado pelo chicote até a morte, não penseis mais na Terra; pensai no Céu.”

Tocamos aqui uma dessas questões graves e terríveis que transtornam a alma humana e a precipitam na incerteza. Estará o negro à altura dos povos da Europa, e a prudência humana, ou, antes, a justiça humana deverá mostrar-lhe a emancipação como o meio mais seguro de alcançar o progresso da civilização? Nesta questão os filantropos apresentam o Evangelho e dizem: Jesus falou de escravos? Não; mas Jesus falou da resignação e disse estas sublimes palavras: “Meu reino não é deste mundo.” John Brown, quando contemplo o teu cadáver na forca, sinto-me tomado de profunda piedade e de apaixonada admiração; mas a razão, esta brutal razão que incessantemente nos faz buscar os porquês, leva-nos a nos perguntar a nós mesmos: “Que teríeis feito depois da vitória?”

Allan Kardec



[1] Vide a Revista Espírita de abril de 1858, O Espiritismo entre os druidas; artigo que contém as Tríades.

[2] Alusão a uma comunicação de Gérard de Nerval.


Março de 1862

Aos Nossos Correspondentes

Paris, 1º de março de 1862

Senhores,

Conheceis o provérbio: Ninguém é obrigado a fazer o impossível. Pois hoje me socorro desse princípio e venho apelar junto a vós. Há seis meses, a despeito da melhor vontade do mundo, tem-me sido materialmente impossível pôr em dia a correspondência, que se acumula além de todas as previsões. Encontro-me, assim, na condição de um devedor, que busca acordo com os credores sob pena de suspender o pagamento. À medida que algumas dívidas são pagas, chegam novas e mais numerosas obrigações, de sorte que o débito, ao invés de diminuir, aumenta sem cessar. Neste momento já me encontro em presença de um passivo de mais de duzentas cartas. Ora, sendo a média diária de dez, não vislumbro nenhum meio de me liberar, a não ser obtendo de vossa parte um sursis ilimitado.

Longe de mim lamentar-me pelo número de cartas que recebo, pois isto é uma prova irrecusável do progresso da doutrina e em sua maioria exprimem sentimentos que me sensibilizam profundamente, constituindo-se para mim arquivos de preço inestimável. Muitas, aliás, encerram úteis ensinamentos, que jamais ficarão perdidos e, cedo ou tarde, serão utilizados, conforme as circunstâncias, pois são imediatamente classificados segundo a sua especialidade.

Só a correspondência seria suficiente para absorver todo o meu tempo e, contudo, ela apenas constitui a quarta parte das ocupações necessárias à tarefa que empreendi, tarefa cujo desenvolvimento, no início de minha carreira espírita, eu estava longe de prever. Assim, várias publicações importantes se acham paradas por falta do tempo necessário para trabalhá-las; e acabo de receber, dos meus guias espirituais, um convite premente para delas me ocupar sem tardança, pondo tudo de lado em favor das causas urgentes. Vejo-me forçado, pois, a menos que falhe na realização da obra tão felizmente iniciada, a operar uma espécie de liquidação epistolar para o passado e limitar-me, quanto ao futuro, às respostas estritamente necessárias, além de pedir, coletivamente, aos meus distintos correspondentes, que aceitem a expressão da minha viva e sincera gratidão pelos testemunhos de simpatia que hão por bem me dar.

Entre as cartas que me são dirigidas, muitas contêm pedidos de evocação ou controles de evocações feitas alhures; muitas vezes pedem informações sobre aptidão para a mediunidade, ou sobre coisas de interesse material. Aqui lembrarei o que já disse noutra parte sobre a dificuldade e, mesmo, sobre os inconvenientes dessas espécies de evocações, feitas na ausência das pessoas interessadas, únicas aptas a verificar a sua exatidão e fazer as perguntas necessárias, ao que devemos acrescentar que os Espíritos se comunicam mais facilmente e com melhor boa vontade àqueles que lhes são afeiçoados do que a estranhos, que lhes são indiferentes. Eis por que, pondo de lado toda consideração relativa às minhas ocupações, só atenderei a pedidos desta natureza em circunstâncias excepcionais e, em todos o caso, jamais no que concerne a interesses materiais. Muitas vezes uma porção de perguntas seriam evitadas se, a respeito, tivessem lido atentamente as instruções contidas em O Livro dos Médiuns, capítulo 26.

Por outro lado, as evocações pessoais não podem ser feitas nas sessões da Sociedade senão quando oferecem assunto de estudo instrutivo e de interesse geral; fora disto, só podem ocorrer em sessões especiais. Ora, para satisfazer a todos os pedidos, uma sessão diária de duas horas seria insuficiente. Deve-se levar em conta, além disso, que todos os médiuns, sem exceção, que nos prestam o seu concurso, o fazem por mera cortesia; não admitem outras condições e, como têm as suas próprias obrigações, nem sempre estão disponíveis, seja qual for a sua boa vontade. Compreendo todo o interesse que cada um liga às questões que lhe dizem respeito e me sentiria feliz se pudesse corresponder a todas. Mas se considerarem que minha posição me põe em contato com milhares de pessoas, compreenderão minha impossibilidade de o fazer. É preciso imaginar que certas evocações não exigem menos de cinco ou seis horas de trabalho, tanto para as fazer quanto para as transcrever e passar a limpo, e que todas as que me foram pedidas formariam dois volumes como O Livro dos Espíritos. Aliás, os médiuns se multiplicam diariamente e é muito raro não encontrar um na família ou entre os conhecidos, quando se não o é pessoalmente, o que é sempre preferível para as coisas íntimas. Não se trata senão de experimentar em boas condições, das quais a primeira é a de se compenetrar bem, antes de qualquer tentativa, das instruções sobre a prática do Espiritismo, caso se queira evitar decepções.

À medida que a doutrina cresce, minhas relações se multiplicam e aumentam os deveres de minha posição, o que me obriga a negligenciar um pouco os detalhes, em benefício dos interesses gerais, porque o tempo e as forças do homem têm limites e eu confesso que as minhas, de algum tempo a esta parte, têm-me faltado e não posso ter o repouso que, por vezes, me seria tanto mais necessário quanto não conto senão comigo para dedicar-me às minhas ocupações.

Peço aceiteis, senhores, o renovado penhor de meu afetuoso devotamento.

Allan Kardec


Genealogia Espírita

Entre os argumentos que certas pessoas contrapõem à doutrina da reencarnação, um há que merece ser examinado, porque, à primeira vista, parece bastante especioso. Dizem que ela tenderia a romper os laços de família, multiplicando-os; aquele que concentrasse sua afeição sobre o pai deveria partilhá-la com tantos pais quantas tivessem sido as encarnações. Como, então, uma vez no mundo dos Espíritos, se reconhecer no meio dessa progenitura? Por outro lado, em que se torna a filiação dos antepassados, se aquele que crê descender em linha direta de Hugo Capeto ou de Godofredo de Bulhões viveu várias vezes? se, depois de ter sido um grão-senhor, pode tornar-se um plebeu? Eis, assim, toda uma linhagem derrubada!

A isto responderemos, para começar, que de duas uma: ou é, ou não é. Se for, todas as recriminações pessoais não impedirão que seja, porquanto Deus, para regular a ordem das coisas, não pede conselho a ninguém, pois, de outro modo, cada um quereria que o mundo fosse governado a seu talante. Quanto à multiplicidade dos laços de família, diremos que certos pais não têm senão um filho, enquanto outros têm doze ou mais. Já se pensou em acusar Deus de os obrigar a dividir a afeição em várias partes? E esses filhos, que por sua vez têm filhos, tudo isto não forma uma família numerosa, cujo avô e bisavô se vangloria, em vez de lamentar-se? Vós, que fazeis remontar vossa genealogia a cinco ou seis séculos, não deveríeis, uma vez no mundo dos Espíritos, partilhar vossa afeição entre todos os vossos ascendentes? Se vos atribuís uma dúzia de avós, muito bem! tereis o dobro ou o triplo — eis tudo. Tendes, pois, uma ideia muito acanhada dos vossos sentimentos afetuosos, pois temeis que não sejam suficientes para amar a várias pessoas! Tranquilizai-vos, porém. Vou provar que com a reencarnação vossa afeição será menos dividida do que se não existisse. Com efeito, suponhamos que na vossa genealogia contásseis cinquenta avós, igual número de ascendentes diretos e colaterais, o que é pouco, se remontardes às cruzadas. Pela reencarnação, é possível que alguns dentre eles tenham vindo várias vezes e, assim, em lugar de cinquenta Espíritos que contáveis na Terra, só encontraríeis a metade no outro mundo.

Passemos à questão da filiação. Com o vosso sistema chegais a um resultado completamente diverso daquele que esperais. Se não houver preexistência, anterioridade da alma, a alma ainda não viveu; portanto, a vossa alma foi criada ao mesmo tempo que o vosso corpo; nesse estado de coisas, não tem nenhuma relação com nenhum dos vossos antepassados. Suponhamos que descendeis em linha reta de Carlos Magno; o que há de comum entre vós e ele? Que foi o que vos transmitiu intelectual e moralmente? Nada, absolutamente nada. Por que vos apegais a ele? Por uma série de corpos que apodreceram todos, destruídos e dispersos, não há razão para vos sentirdes orgulhosos. Com a preexistência da alma, ao contrário, podeis ter tido com os vossos antepassados relações reais, sérias e mais lisonjeiras para o amor-próprio. Portanto, sem a reencarnação existe apenas um parentesco corporal, pela transmissão de moléculas orgânicas da mesma natureza que a dos cavalos puro-sangue. Com a reencarnação há um parentesco espiritual. Qual dos dois sistemas é melhor?

Por certo objetareis que com a reencarnação um Espírito estranho pode introduzir-se na vossa linhagem e que, em vez de nela contar apenas gentis-homens, se podem encontrar sapateiros. É perfeitamente certo; mas isto não quer dizer nada. São Pedro não passava de um pobre pescador. Não seria de uma casa bastante digna, a ponto de nos fazer corar por tê-lo em nossa família?

E, depois, entre esses antepassados de nomes famosos, todos terão tido uma conduta edificante, a nosso ver a única coisa de que, até certo ponto, nos poderíamos honrar, embora seu mérito nada tenha com o nosso? Que se perscrute a vida privada desses paladinos, desses grandes barões, que roubavam sem escrúpulos os transeuntes e que, em nossos dias, seriam pura e simplesmente levados à barra dos tribunais por seus grandes feitos; de certos grão-senhores, para quem a vida de um vilão não valia uma peça de caça, pois mandavam enforcar um homem por causa de um coelho? Tudo isto eram pecadilhos, que não manchavam brasões. Mas, casar-se com pessoa de condição inferior, introduzir na família um sangue plebeu era um crime imperdoável. Ah! por mais que se faça, quando soar a hora da partida — e soa para os grandes e para os pequenos — terão de deixar na Terra as roupas bordadas, e os pergaminhos de nada servirão diante do juiz supremo, que pronuncia essa sentença terrível: Aquele que se exaltar será humilhado! Se bastasse descender de qualquer grande homem para ter seu lugar previamente marcado no céu, a gente o compraria barato, porque à custa do mérito alheio. A reencarnação dá uma nobreza mais meritória, a única aceita por Deus, qual seja a de haver animado uma série de homens de bem. Felizes os que puderem depor aos pés do Eterno o tributo dos serviços prestados à Humanidade em cada uma de suas existências, porquanto a soma dos méritos será proporcional ao número de suas existências. Mas aquele que se prevalecer apenas da glória de seus antepassados, Deus dirá: Por que vós mesmos não vos ilustrastes?

Um outro sistema poderia, aparentemente, conciliar as exigências do amor-próprio com o princípio da não-reencarnação: é aquele pelo qual o pai não transmitisse ao filho apenas o corpo, mas, também, uma porção de sua alma. Desse modo, se descendêsseis de Carlos Magno, vossa alma poderia ter seu tronco na dele. Muito bem! Vejamos, contudo, a que consequência chegamos. Em virtude de tal sistema, a alma de Carlos Magno teria o seu tronco na de seu pai e, assim, pouco a pouco chegaríamos a Adão. Se a alma de Adão é o tronco de todas as almas do gênero humano, as quais transmitem aos sucessores algumas porções de si mesma, as almas atuais resultariam de um fracionamento que ultrapassaria todas as subdivisões homeopáticas. Disso resultaria que a alma do pai comum deveria ser mais completa e mais inteira que a dos descendentes. Resultaria, ainda, que Deus teria criado apenas uma alma, que se subdividia ao infinito e, assim, cada um de nós não seria uma criação direta de Deus. Aliás, esse sistema deixaria um imenso problema a ser resolvido: o das aptidões especiais. Se o pai transmitisse ao filho os princípios de sua alma, transmitir-lhe-ia necessariamente suas virtudes e vícios, seus talentos e sua inépcia, como lhe transmite certas enfermidades congênitas. Como, então, explicar por que homens virtuosos ou de gênio têm filhos maus ou cretinos e vice-versa? Por que uma linhagem seria mesclada de bons e de maus? Dizei, ao contrário, que cada alma é individual, que tem existência própria e independente, que progride, em virtude de seu livre-arbítrio, por uma série de existências corporais, em cada uma das quais adquire algo de bom e deixa algo de mal, até que tenha atingido a perfeição, e tudo se explica, tudo se conforma à razão, à justiça de Deus, mesmo em proveito do amor-próprio.

O Sr. Salgues (de Angers), de quem falamos em nosso número anterior, não é partidário da reencarnação. Depois do aparecimento de O Livro dos Espíritos escreveu-nos uma longa carta, na qual combatia esta doutrina com argumentos baseados na sua incompatibilidade com os laços de família. Nessa carta, datada de 18 de setembro de 1857, dá-nos a sua genealogia, que remonta, sem interrupção, aos carolíngeos, e pergunta em que se tornará essa gloriosa filiação com a mistura de Espíritos pela reencarnação. Dela extraímos a seguinte passagem:

“Mas, então, para que serviriam os quadros genealógicos? Tenho o meu, completo, regular: de um lado, desde os antepassados de Carlos Magno e, do outro, desde a filha do emir Muza, um dos descendentes abassidas de Maomé, décima geração, por seu casamento com Garcia, príncipe de Navarra, pai, com ela, de Garcia Ximenes, rei de Navarra; e, enfim, essa genealogia continuou, em razão de alianças, por soberanos de quase todas as cortes da Europa, até a época de Afonso VI, rei de Castela, depois nas casas de Comminges, de Lascaris Vintemille, de Montmorency, de Turenne e, finalmente, dos condes e senhores Palhasse de Salgues, no Languedoc. Tudo isto se pode constatar na Arte de verificar datas, os Beneditinos de Saint-Maur, no Dicionário da nobreza da França, no Armorial, no padre Anselmo, Noreri, etc. Mas se nos ligamos aos nossos pais somente pela matéria carnal, que recebeu o nosso Espírito, não há em toda parte lacunas e notáveis soluções de continuidade? É um caminho traçado na areia que se perde em milhares de direções. Que nos seja então permitido crer que, se o Espírito não se transmite, a alma é para o homem o que o aroma é para a flor. Ora, Swedenborg não diz nos Arcanos que nada se perde na Natureza? e que o aroma das flores reproduz novas flores em outras regiões, além daquela de onde saiu? É, pois, pela alma, que não é Espírito, que talvez existisse uma cadeia semi-espiritual de gerações. Se tivesse agradado ao meu Espírito saltar oito ou dez gerações de vez em quando, onde reconheceria meus antepassados?”

Como se vê, o Sr. Salgues não se apega senão à procedência do corpo. Mas como conciliar as relações de Espírito a Espírito com a não-preexistência da alma? Se, nessa filiação, houvesse entre eles relações necessárias, como o descendente de tantos soberanos seria hoje um simples proprietário angevino? Aos olhos do mundo não seria uma retrogradação? Não pomos em dúvida a autenticidade de sua genealogia, e o felicitamos por ela, já que isso lhe dá prazer, mas diremos que o estimamos mais por suas virtudes pessoais do que pelas de seus antepassados.

A autoridade de Swedenborg é aqui muito contestável, quando atribui ao aroma a reprodução das flores. Este óleo essencial, volátil, que lhe dá o aroma, jamais teve a faculdade reprodutora, que reside unicamente no pólen. Falta justeza à comparação, porque se a alma apenas se distingue, por seu perfume, sobre a alma que lhe sucede, não a cria; contudo, deveria transmitir-lhe suas próprias qualidades e, nesta hipótese, não vemos por que o descendente de Carlos Magno não teria enchido o mundo com o brilho de suas ações, enquanto Napoleão não se apoiaria senão sobre uma alma vulgar. Que se diga que Napoleão descende de Carlos Magno ou, melhor ainda, que foi Carlos Magno, que veio no século dezenove continuar a obra começada no oitavo, compreende-se; mas, com o princípio da unicidade da existência nada liga Carlos Magno a seus descendentes, a não ser esse aroma, transmitido pouco a pouco sobre almas não criadas. E, então, como explicar por que, entre os seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por que Napoleão é um gênio maior do que os seus obscuros antepassados? Façam o que quiserem: sem a reencarnação nós nos chocamos a cada passo contra dificuldades insolúveis, que só a preexistência da alma resolve, de maneira ao mesmo tempo simples, lógica e completa, visto dar a razão de tudo.

Uma outra questão é o fato conhecido de que as famílias se abastardam e degeneram quando as alianças não saem da linha direta. Dá-se nas raças humanas o mesmo que nas raças animais. Por que, então, a necessidade de cruzamentos? Em que se torna a unidade do tronco? Não há aí uma mistura de Espíritos, uma intrusão de Espíritos estranhos à família? Um dia trataremos esta grave questão com todos os desenvolvimentos que ela comporta.


Conversas de Além-Túmulo

Sr. Jobard

Depois de sua morte, o Sr. Jobard comunicou-se várias vezes na Sociedade, em sessões a que diz assistir quase sempre. Antes de as publicar, preferimos esperar ter uma série de manifestações, formando um conjunto que permitisse melhor apreciá-las. Tínhamos a intenção de o evocar na sessão de 8 de novembro quando, informado do nosso desejo, manifestou-se espontaneamente. (Vide o seu necrológio, publicado na Revista Espírita do mês de dezembro de 1861.)

(Sociedade Espírita de Paris, 8 de novembro de 1861

— Médium: Sra. Costel)

Ditado espontâneo

Eis-me aqui, eu que ides evocar e quero manifestar-me, primeiramente por este médium, que em vão solicitei até agora.

Antes de mais, quero contar minhas impressões no momento da separação de minha alma. Senti um abalo estranho; de repente lembrei-me do meu nascimento, de minha juventude, de minha idade madura. Toda a minha vida delineou-se claramente em minha memória. Experimentava um piedoso desejo de encontrar-me nas regiões reveladas por nossa querida crença; depois, todo esse tumulto se acalmou. Eu estava livre e meu corpo jazia inerte. Ah! meus caros amigos, que encanto desvencilhar-se do peso do corpo! Que deleite abarcar o espaço! Contudo, não imagineis que de repente me tenha tornado um eleito do Senhor; não, estou entre os Espíritos que, tendo aprendido pouco, devem ainda muito aprender. Não demorei a me lembrar de vós, meus irmãos no exílio e, eu vo-lo asseguro, toda a minha simpatia, todos os meus votos vos envolveram. Tive logo o poder de me comunicar e o teria feito por este médium, que teme ser enganada; mas que ela sossegue, pois nós a amamos.

Quereis saber quais os Espíritos que me receberam? quais as minhas impressões? Meus amigos foram todos os que nós evocamos, todos os irmãos que compartilharam dos nossos trabalhos. Vi o esplendor, mas não o posso descrever. Apliquei-me em distinguir o que era verdadeiro nas comunicações, pronto a retificar todas as asserções errôneas; enfim, pronto para ser o cavaleiro da verdade no outro mundo, como o fui no vosso. Assim, conversaremos muito e isto não passa de um preâmbulo para mostrar ao caro médium meu desejo de ser evocado por ela, e a vós minha boa vontade para responder às perguntas que ireis me dirigir.

Jobard

ENTREVISTA

1. Em vida tínheis recomendado que vos chamásseis quando houvésseis deixado a Terra. Fazemo-lo não só para nos conformar ao vosso desejo, mas, sobretudo, para vos renovar o testemunho de nossa mui viva e sincera simpatia e, também, no interesse de nossa instrução, porquanto, melhor que ninguém, estais em condições de nos dar ensinamentos precisos sobre o mundo em que vos encontrais. Assim, ficaremos felizes se vos dignardes responder às nossas perguntas.

Resp. — A esta hora o que mais importa é a vossa instrução. Quanto à vossa simpatia, eu a vejo e não a compreendo mais apenas pelos ouvidos, o que constitui um grande progresso.

2. Para fixar nossas ideias e não falar vagamente, assim como para a instrução das pessoas estranhas à Sociedade e presentes à sessão, perguntaremos, antes de mais, em que lugar estais aqui e como nós vos veríamos, se o pudéssemos?

Resp. — Estou perto do médium. Ver-me-íeis com a aparência do Jobard que se assentava à vossa mesa, porque os vossos olhos mortais não descerrados só podem ver os Espíritos sob sua aparência mortal.

3. Teríeis a possibilidade de vos tornardes visível para nós? Em caso contrário, o que se opõe a isto?

Resp. — A disposição que vos é inteiramente pessoal. Um médium vidente me veria; os outros não me percebem.

4. Este lugar é o que ocupáveis em vida, quando assistíeis às nossas sessões e que vos tínhamos reservado. Aqueles, pois, que vos viram, devem imaginar que vos veem tal qual éreis então. Se aí não estais com o corpo material, estais com o corpo fluídico, que tem a mesma forma; se não vos vemos com os olhos do corpo, vemos com os do pensamento; se não vos podeis comunicar pela palavra, podeis fazê-lo pela escrita com a ajuda de um intérprete. Portanto, nossas relações convosco não estão interrompidas pela vossa morte e podemos conversar convosco tão fácil e completamente como outrora. É exatamente assim que são as coisas?

Resp. — Sim, e o sabeis há muito tempo. Muitas vezes ocuparei este lugar, mesmo sem o perceberdes, porquanto o meu Espírito habitará entre vós.

5. Não faz muito tempo, estáveis sentado neste mesmo lugar. As condições em que agora estais vos parecem estranhas? Que efeito essa mudança produziu em vós?

Resp. — Elas não me parecem estranhas, pois não senti perturbação e meu Espírito desencarnado desfruta de uma clareza que não deixa na sombra nenhuma das questões que encara.

6. Recordai-vos de haver estado nas mesmas condições antes da vossa última existência e encontrais algo mudado?

Resp. — Lembro-me de minhas existências anteriores e acho que estou melhorado. Veja e assimilo o que percebo. Quando de minhas precedentes encarnações, Espírito perturbado, só divisava lacunas terrestres.

7. Lembrai-vos de vossa penúltima existência, da que precedeu o Sr. Jobard?

Resp. — Em minha penúltima existência fui um operário mecânico, atormentado pela miséria e pelo desejo de aperfeiçoar o meu trabalho. Como Jobard, realizei os sonhos do pobre operário e louvo a Deus por sua bondade infinita, ao fazer germinar a planta, cuja semente havia depositado em meu cérebro.

(11 de novembro. Sessão particular — Médium: Sra. Costel)

8. Evocação.

Resp. — Estou aqui, encantado por ter oportunidade de te falar (ao médium) e a vós também.

9. Parece-nos que tendes um fraco pelo médium.

Resp. — Não me censureis, porque foi preciso que me tornasse Espírito para o testemunhar.

10. Já vos comunicastes alhures?

Resp. — Pouco me comuniquei. Em muitos lugares um Espírito toma o meu nome; algumas vezes eu estava perto dele, mas não podia manifestar-me diretamente. Minha morte é tão recente que ainda sofro certas influências terrestres. É preciso uma simpatia perfeita, a fim de que eu possa exprimir o pensamento. Em pouco tempo agirei indistintamente; não o posso ainda, repito. Quando morre um homem um pouco conhecido, chamam-no de todos os lados; milhares de Espíritos se apressam em revestir-se de sua individualidade; foi o que me aconteceu em muitas circunstâncias. Asseguro-vos que logo depois da libertação poucos Espíritos podem comunicar-se, mesmo por um médium de sua preferência.

11. Vossas ideias se modificaram um pouco de sexta-feira para cá?

Resp. — São absolutamente as mesmas de sexta-feira.

Pouco me ocupei das questões puramente intelectuais, no sentido em que as tomais. Como o poderia eu, deslumbrado, arrastado pelo maravilhoso espetáculo que me cerca? O mais poderoso laço do Espiritismo, que vós homens não podeis conceber, só pode atrair meu ser para a Terra, que abandono não com alegria, pois seria uma impiedade, mas com profundo reconhecimento pela libertação.

12. Vedes os Espíritos que aqui estão conosco?

Resp. — Vejo principalmente Lázaro e Erasto; depois, mais afastado, o Espírito de Verdade, planando no espaço; mais adiante, uma multidão de Espíritos amigos que vos cercam, pressurosos e benevolentes. Sede felizes, amigos, porque as boas influências vos disputam às calamidades do erro.

13. Ainda uma pergunta, por obséquio. Conheceis as causas de vossa morte?

Resp. — Não me faleis disto ainda.

Observação — A Sra. Costel diz ter recebido uma comunicação em sua casa, pela qual lhe anunciavam que o Sr. Jobard tinha morrido porque queria ultrapassar o limite atualmente fixado ao Espiritismo. Assim, sua partida teria sido precipitada por este motivo. Pessoalmente, o Sr. Jobard ainda não se explicou a respeito. Várias outras comunicações parecem corroborar a opinião acima. Mas o que ressalta de certos fatos é uma espécie de mistério sobre as causas de sua morte precipitada que, conforme dizem, será explicada mais tarde.

(Sociedade, 22 de novembro de 1861)

14. Quando vivo, partilháveis a opinião de que a formação da Terra se dera pela incrustação de quatro planetas, que se haviam soldado; ainda conservais a mesma crença?

Resp. — É um erro. As novas descobertas geológicas provam as convulsões da Terra e sua formação sucessiva. Como todos os planetas, a Terra teve sua vida própria e Deus não necessita dessa grande desordem ou dessa agregação de planetas. A água e o fogo são os únicos elementos orgânicos da Terra.

15. Também pensáveis que os homens podiam entrar em catalepsia durante um tempo ilimitado e, que dessa maneira, o gênero humano tinha sido trazido à Terra.

Resp. — Ilusão de minha imaginação, que sempre ultrapassava os limites. A catalepsia pode ser longa, mas não indefinida. Tradições, lendas ampliadas pela imaginação oriental. Meus amigos: já sofri muito ao repassar as ilusões de que se nutria o meu Espírito. Não vos enganeis mais. Muito tinha aprendido e, posso dizê-lo, minha inteligência, pronta para assenhorear-se de seus vastos e diversos estudos, tinha guardado da última encarnação o amor ao maravilhoso e ao conjunto tirado da imaginação popular.

(Bordeaux, 24 de novembro de 1861 — Médium: Sra. Cazemajoux)

16. Evocação.

Resp. — Teremos sempre de recomeçar? Muito bem! eis-me aqui. Que desejais?

17. Acabamos de saber de vossa morte. Como um dos campeões de nossa doutrina, poderíeis responder a algumas de nossas perguntas?

Resp. — Olha, eu não sei bem com quem estou, mas os Espíritos me dizem que este médium recebeu algumas mensagens inseridas na Revista e que me agradaram. É preciso, por minha vez, que eu lhe dê algumas. Não faz muito tempo que me ausentei da Terra; dentro de alguns anos a ela voltarei para retomar o curso da missão que aí deveria cumprir, pois ela foi interrompida pelo anjo da libertação.

18. Falais de uma missão que deveríeis realizar na Terra. Poderíeis torná-la conhecida?

Resp. — Missão de progresso intelectual e moral em estado de germe. A doutrina ou ciência espírita contém os elementos fecundos que devem desenvolver, fazer crescer e amadurecer as modernas ideias de liberdade, de unidade e de fraternidade. É por isso que não se deve temer lhe dar um vigoroso impulso, que a fará transpor os obstáculos com uma força que nada poderá dominar.

19. Marchando mais rápido que o tempo não é de temer prejudicar a doutrina?

Resp. — Derrubaríeis os adversários. Vossa lentidão lhes deixa ganhar terreno. Não gosto do passo vagaroso e pesado da tartaruga; prefiro o voo audacioso do rei dos ares.

Observação — Isto é um erro. Os partidários do Espiritismo ganham terreno diariamente, enquanto seus adversários o perdem. O Sr. Jobard é sempre entusiasta; não compreende que, com prudência, se alcança o objetivo com mais segurança, ao passo que nos arriscamos a comprometer a sua causa quando nos atiramos violentamente contra os obstáculos. A. K.

20. Então, como explicar os desígnios de Deus, em vos arrancando da Terra de maneira tão súbita, se tinha em vós o instrumento necessário à marcha rápida da Humanidade para o progresso moral e intelectual?

Resp. — Oh! que alavanca seria uma parte dos espíritas com minhas ideias! Mas não; o medo os paralisa!

21. Podeis nos explicar os desígnios de Deus vos chamando antes do término de vossa missão?

Resp. — Não me aborreci; vejo e aprendo para estar mais forte quando soar a hora da luta. Redobrai de fervor e zelo pela nobre e santa causa da Humanidade. Uma só existência não é suficiente para ver realizar-se a crise que deve transformar a sociedade e muitos dentre vós, que preparais os caminhos, revivereis depois de algum tempo para ajudar novamente a obra santa e bendita. Creio que já vos disse o bastante por esta noite. Mas estou à vossa disposição; voltarei, porque sois bom e fervoroso adepto. Adeus. Nesta noite quero assistir à sessão de nosso caro mestre Allan Kardec.

22. Não respondestes à pergunta sobre os desígnios de Deus vos chamando antes do término de vossa missão.

Resp. — Somos instrumentos adequados para ajudar seus desígnios. Ele nos dobra à sua vontade e nos põe novamente em cena quando julga útil. Submetamo-nos, pois, aos seus desígnios sem procurar aprofundá-los, porque ninguém tem direito de rasgar o véu que oculta aos Espíritos os decretos imutáveis. Adeus!

Jobard

(Passy, 20 de dezembro de 1861 — Médium: Sra. Dozon)

23. Evocação.

Resp. — Não sei por que me evocais. Nada sou para vós; assim, nada vos devo. Também nada responderei sem o Espírito de Verdade, que me diz que foi Kardec quem vos pediu para que eu viesse até vós. Pois bem! aqui estou. Que vos devo dizer?

24. Com efeito, o Sr. Allan Kardec nos pediu que vos evocássemos, com vistas a controlar diversas comunicações vossas, comparando-as entre si. É um estudo, e esperamos que vos presteis a isso, no interesse da ciência espírita, descrevendo a vossa situação e as vossas impressões desde que deixastes a Terra.

Resp. — Eu não estava certo de tudo na vida terrestre; começo a saber. Depurando-se da perturbação, minhas ideias chegam a uma nova claridade e, desde já, volto dos erros de minhas crenças. Isto é uma graça da bondade de Deus, mas um pouco tardia. O Sr. Allan Kardec não tinha total simpatia por meu Espírito, e assim devia ser: ele é positivo na sua fé. Muitas vezes eu sonhava e rebuscava, ao lado da realidade. Não sei ao certo o que eu queria, a não ser uma vida melhor do que a que tinha. O Espiritismo me veio mostrá-la e o mais esclarecido dos espíritas me ergueu o véu da vida dos Espíritos. Foi A Verdade quem o inspirou; O Livro dos Espíritos fez uma verdadeira revolução em minha alma e um bem impossível de dizer. Mas houve em meu Espírito dúvidas sobre muitas coisas que a mim se mostram hoje sob uma luz completamente diversa. Já vos dissera no começo desta comunicação: desembaraçando-se da perturbação, o Espírito mostra-me o que eu não via. O Espírito se afasta; seu desprendimento ainda não é total; entretanto, já se comunicou várias vezes. Mas — coisa bizarra, talvez para vós — é a mudança que se faz aos olhos dos evocadores nas comunicações do Espírito Jobard.

Em seguida o mesmo médium recebeu a comunicação espontânea:

Jobard era um Espírito pesquisador, querendo subir, sempre subir. As ideias espíritas pareciam-lhe um panorama por demais acanhado. Jobard representava o espírito de curiosidade; queria saber, sempre saber. Essa necessidade, essa sede o impeliram a pesquisas que excediam os limites daquilo que Deus quer que saibais. Não tenteis, pois, arrancar o véu que cobre os mistérios de seu poder! Jobard empunhou o arco e foi fulminado. Isto é um ensinamento: buscai o Sol, mas não sejais audaciosos a ponto de o fixar, pois ficareis cegos. Deus não vos dá bastante, enviando-vos os Espíritos? Deixai, pois, à morte o poder que Deus lhe concedeu: o de erguer o véu a quem o merece. Então podereis olhar a Deus, Sol dos céus, sem serdes enceguecidos nem fulminados pelo poder que vos diz: “Não vades mais longe.” Eis o que vos devo dizer.

A Verdade

(Sociedade, 3 de janeiro de 1862 — Médium: Sra. Costel)

Nota — O Sr. Jobard manifestou-se várias vezes em casa do Sr. e da Sra. P..., membros da Sociedade. Uma vez, e sem que tivessem pensado nele, ele se mostrou espontaneamente a uma sonâmbula, que o descreveu de maneira muito exata e disse seu nome, embora jamais o tivesse conhecido. Tendo-se estabelecido uma conversa entre ele e o Sr. P..., por intermédio da sonâmbula, o Sr. Jobard lembrou diversas particularidades, de modo a não deixar qualquer dúvida quanto à sua identidade. Uma coisa, sobretudo, os havia chocado: é que, na única ocasião que o viram na Sociedade, ele mantivera os olhos fixos neles, como se procurasse pessoas conhecidas, circunstância que haviam esquecido e que o Espírito Jobard lhes recordou, por intermédio da sonâmbula. O Sr. e a Sra. P..., que jamais haviam tido contato com ele em vida, desejavam saber o motivo da simpatia que lhes parecia manifestar. Foi com esse propósito que ele ditou a seguinte comunicação:

“Incrédulo! tu tinhas necessidade dessa confirmação da sonâmbula para acreditar em minha identidade! Ingrato! esqueceste-me durante muito tempo sob o pretexto de que os outros se recordam mais. Porém, deixemos as censuras e falemos. Abordemos o assunto para o qual me fizestes evocar. Posso explicar facilmente por que minha atenção se havia excitado à vista daquele casal que me era estranho, mas que uma espécie de instinto, de dupla vista, de presciência me levava a reconhecer. Depois de minha libertação vi que nos tínhamos conhecido precedentemente e eu voltei para eles: é a palavra.

“Começo a viver espiritualmente, mais tranqüilo e menos perturbado pelas evocações por vias indiretas que choviam sobre mim. A moda impera, mesmo entre os Espíritos. Quando a moda Jobard ceder lugar a um outro e eu tiver entrado no nada do esquecimento humano, então pedirei aos amigos sérios — e com isto entendo as inteligências que não esquecem — que me evoquem. Então aprofundaremos questões tratadas muito superficialmente, e o vosso Jobard, completamente transfigurado, vos poderá ser útil, o que ele deseja de todo o coração.”

Jobard

(Ao médium, Sra. Costel) — “Volto. Desejas saber por que manifesto preferência por ti. Quando eu era mecânico, tu eras poeta, e te conheci no hospital onde morreste, senhora!

Jobard

(Montreal — Canadá, 19 de dezembro de 1861)

O Sr. Henri Lacroix nos escreve de Montreal que havia dirigido três cartas ao Sr. Jobard, mas este não recebeu senão duas, pois a terceira chegara tarde demais. Só a primeira foi respondida. Tendo tomado conhecimento de sua morte pelos jornais, o Sr. Lacroix recebeu comunicações de vários Espíritos, assinadas por Voltaire, Volney, Franklin, garantindo que a notícia era falsa e que o Sr. Jobard se encontrava muito bem. A Revista Espírita acaba de afastar suas dúvidas, confirmando o acontecimento. Foi então que o Espírito Jobard, ao ser evocado, deu a seguinte comunicação, cuja exatidão pede o Sr. Lacroix que controlemos.

“Meu caro mestre: como dizeis, morri, mas não estou morto, pois vos falo. Aqueles que se incumbiram de vos dizer que eu não havia falecido talvez quisessem pregar-vos uma peça. Não os conheço ainda, mas os conhecerei e saberei o motivo por que agiram assim. Escrevei a Kardec e eu vos responderei. Penso que não poderei responder pela mesa, mas, em todo o caso, tentai e farei o que puder. As duas cartas que recebi de vossa parte contribuíram fortemente para me causar a morte. Mais tarde sabereis como.”

Jobard

Evocado a respeito, a 10 de janeiro, na Sociedade de Paris, o Sr. Jobard respondeu que se reconhecia como o autor da comunicação, mas que o suposto retrato, feito a seguir, não era ele, nem dele, o que acreditamos sem dificuldade, pois não se parece nem um pouco com ele.

P. — Como puderam contribuir para a vossa morte as duas cartas que recebestes?

Resp. — Não posso e nem quero dizer aqui senão uma coisa: a leitura dessas duas cartas após a refeição determinou a congestão que me levou, ou, se preferis, que me libertou.

Observação — Enquanto o médium escrevia esta resposta, e antes que fosse lida, outro médium recebeu de seu guia particular a seguinte resposta:

“Explicação difícil, que ele não dará em detalhes. Há coisas que Jobard não pode dizer aqui.”

P. — O Sr. Lacroix deseja saber por que razão vários Espíritos vieram espontaneamente desmentir a notícia de vossa morte.

Resp. — Se ele tivesse prestado mais atenção, teria reconhecido facilmente o embuste. Quantas vezes será preciso repetir que devemos desconfiar, quase de modo absoluto, das comunicações espontâneas dadas a propósito de um fato, afirmando ou negando com intenção deliberada! Os Espíritos só enganam os que se deixam enganar.”

Observação — Durante esta resposta outro médium escreveu o seguinte:

“Espíritos que gostam de tagarelar sem se importarem com a verdade. Há Espíritos que são como os homens; tomam conhecimento de uma notícia, afirmando-a ou desmentindo-a com a mesma facilidade.”

É evidente que os nomes que assinaram o desmentido da morte do Sr. Jobard são apócrifos. Para o reconhecer, bastava considerar que Espíritos como Franklin, Volney e Voltaire têm coisas mais sérias com que se ocupar e que semelhantes detalhes são incompatíveis com o caráter deles. Só isto já deveria inspirar a dúvida quanto à sua identidade e, conseguintemente, sobre a veracidade das comunicações. Nunca repetiremos em demasia: somente um estudo prévio, completo e atento da ciência espírita pode oferecer os meios de frustrar as mistificações dos Espíritos enganadores, a que estão expostos todos os noviços que não possuem a necessária experiência.

P. — Só respondestes à primeira carta do Sr. Lacroix. Ele deseja obter resposta das duas últimas, sobretudo da terceira que, como diz, tinha um cunho particular que só por vós poderia ser compreendida.

Resp. — Ele a terá mais tarde. No momento não o posso. Seria inútil provocá-la; de outro modo, ele poderia estar certo de que não seria eu que responderia.

(Sociedade Espírita de Paris, 21 de fevereiro de 1862

— Médium: Srta. Estefânia)

Quando a Sociedade abriu a subscrição em favor dos operários de Lyon, um sócio depositou 50 francos, dos quais 25 por sua conta e 25 em nome do Sr. Jobard. A propósito, este último deu a seguinte comunicação:

“Ainda uma vez vou responder, meu caro Kardec. Estou sensibilizado e reconhecido por não ter sido esquecido entre meus irmãos espíritas. Obrigado ao coração generoso que vos levou a oferta que eu vos teria feito se ainda habitasse no vosso mundo. Naquele onde agora vivo não há necessidade de moeda. Assim, foi preciso tirá-la da bolsa da amizade para dar provas materiais de que estava tocado pelo infortúnio dos meus irmãos de Lyon. Bravos trabalhadores, que ardentemente cultivais a vinha do Senhor, quanto deveis crer que a caridade não é uma palavra vã, pois os pequenos e os grandes vos demonstraram simpatia e fraternidade. Estais na grande via humanitária do progresso; possa Deus nela vos manter e possais vós ser mais felizes. Os Espíritos amigos vos sustentarão e triunfareis!”

Jobard

Subscrição para erigir um monumento à memória do Sr. Jobard

Tendo os jornais anunciado uma subscrição para erigir um monumento ao Sr. Jobard, o Sr. Allan Kardec comunicou o fato à Sociedade na sessão de 31 de janeiro último, acrescentando que se propunha a falar do assunto na Revista, mas que tinha achado melhor adiar o anúncio dessa subscrição, considerando que teria pouca possibilidade de sucesso, a exemplo daquela em favor dos operários; que refletissem que mais valeria dar pão aos vivos do que pedras aos mortos.

Interrogado sobre o que pensava, o Sr. Jobard respondeu: “Certamente. Mas refleti: quereis saber se gosto de estátuas. Começai por dar vosso dinheiro aos pobres; e se, por acaso, nos vossos bolsos restarem algumas moedas de 5 francos, mandai erigir uma estátua; isto sempre dará para um artista viver.”

Em consequência, a Sociedade receberá os donativos que lhe forem feitos para esse fim e depositará os valores no escritório do jornal La Propriété industrielle, rue Bergère, 21, onde a subscrição está aberta.

Carrière — Constatação de Identidade

Como se sabe, a identidade dos Espíritos que se manifestam é uma das dificuldades do Espiritismo; e os meios empregados para a verificação muitas vezes conduzem a resultados negativos. A este respeito, as melhores provas são as que se originam da espontaneidade das comunicações. Embora essas provas, quando bem caracterizadas, não sejam raras, é bom constatá-las: primeiro, para a própria satisfação, e como objeto de estudo; depois, para responder aos que lhes negam a possibilidade, provavelmente porque, ou foram malconduzidas e não alcançaram sucesso, ou porque têm ideias preconcebidas. Repetiremos o que já dissemos alhures: a identidade dos Espíritos que viveram em épocas recuadas e que nos vêm transmitir ensinamentos é quase impossível de verificar, não se devendo ligar aos nomes senão uma importância relativa. Aquilo que eles dizem é bom ou mau, racional ou ilógico, digno ou indigno do nome que assinam? Eis toda a questão. Já o mesmo não se dá com os Espíritos contemporâneos, cujos hábitos e caráter nos são conhecidos, os quais podem provar a sua identidade por particularidades e detalhes, particularidades que são raramente obtidas quando se lhes pedem e que é preciso saber esperar. Tal é o fato relatado na carta a seguir:

“Bordeaux, 25 de janeiro de 1862.

“Meu caro Sr. Kardec,

“Sabeis que temos o hábito de vos submeter todos os nossos trabalhos, confiando inteiramente nas vossas luzes e na vossa experiência para os apreciar. Assim, quando para nós se trata de casos de admirável identidade, limitamo-nos a vo-los narrar em todos os seus detalhes.

“O Sr. Guipon, inspetor de contabilidade da Companhia de Estradas de Ferro do Sul, membro do grupo diretor da Sociedade Espírita de Bordeaux, escreveu-me a seguinte carta, datada de 14 do corrente:

“Meu caro Sr. Sabò,

“Permiti que lhe peça evocar, em sessão, o Espírito Carrière, sub-chefe de equipe da estação ferroviária de Bordeaux, morto no comando de uma manobra em 18 de dezembro último. Incluso e em envelope à parte os detalhes dos fatos que desejo sejam constatados e que, imagino, seriam para nós sério assunto de estudo e de instrução. Rogo o obséquio de não abrirdes o envelope senão depois da evocação.”

L. Guipon

A 18 do mesmo mês, numa reunião de cerca de dez pessoas distintas de nossa cidade, fizemos a evocação solicitada:

1. Evocação do Espírito Carrière.

Resp. — Eis-me aqui.

2. Qual a vossa posição no mundo dos Espíritos?

Resp. — Não sou nem feliz, nem infeliz. Aliás, estou muitas vezes na Terra; mostro-me a alguém que não fica muito contente por me ver.

3. Com que objetivo vos manifestais a essa pessoa?

Resp. — Ah! vede, eu ia morrer; tinha medo e tinham medo de mim. Procuravam um Cristo em toda parte para me ajudar a transpor a difícil passagem da vida à morte, e a pessoa a quem me mostro tinha um, mas recusou-se a emprestar, para que o colocassem sobre os meus lábios moribundos e depositar entre as minhas mãos, como penhor de paz e amor. Pois bem! ela terá de me ver por muito tempo em volta do Cristo; aí me verá sempre. Agora vou embora. Sinto-me mal aqui. Deixai que eu parta. Adeus.

Imediatamente depois dessa evocação abri o envelope selado, que continha os seguintes detalhes:

“Por ocasião da morte de Carrière, sub-chefe de equipe em Bordeaux, morto em 18 de dezembro último, o Sr. Beautey, chefe da estação ferroviária P. V., mandou transportar o corpo para a estação de passageiros e ordenou a um homem da equipe que fosse ao seu domicílio, a fim de pedir à sra. Beautey a imagem de um Cristo para colocar sobre o cadáver. Esta senhora respondeu que o Cristo estava quebrado e, por conseguinte, não o podia emprestar.

“Por volta de 10 de janeiro corrente a Sra. Beautey confessou ao marido que o Cristo que ela recusara não estava quebrado; que não o quisera emprestar para não ter que experimentar novamente as emoções consequentes a um acidente semelhante, ocorrido há algum tempo e mais ou menos nas mesmas condições. Em seguida acrescentou que, doravante, jamais recusaria algo a um morto e assim se justificou: — Durante toda a noite da morte daquele homem, ele ficou visível para mim; vi-o durante muito tempo, postado em volta do Cristo, depois ao seu lado.

“A Sra. Beautey, que nunca vira nem ouvira falar daquele homem, descreveu-o com tanta exatidão a seu marido que este o reconheceu como se tivesse estado presente. Aliás, não é a primeira vez que, em estado de vigília, a Sra. Beautey vê Espíritos. Entretanto, um fato chamou a atenção: o Espírito Carrière a impressionou bastante, o que não lhe acontecia ao ver outros Espíritos. — (Assinado) Guipon.”

Mais abaixo se acha a seguinte citação:

“Esta narrativa é perfeitamente exata.”

“Assinado: Beautey, chefe de estação.”

Julguei dever relatar o caso de identidade que acabo de expor, muito raro, aliás, ocorrido seguramente com a permissão de Deus, que se serve de todos os meios para ferir a incredulidade e a indiferença.

Se julgardes útil publicar esse interessante episódio, encontrareis adiante as assinaturas das pessoas que assistiram à sessão. Elas me encarregam de vos dizer que seus nomes podem ser declinados claramente e que, nestas circunstâncias, conservar o incógnito seria um erro. Os nomes próprios que figuram nos minuciosos detalhes da evocação de Carrière também podem ser publicados.

Vosso servo devotado,

A. Sabò

Atestamos que os detalhes relatados na presente carta são verídicos em todos os pontos e não hesitamos em os confirmar com a nossa assinatura.

A. Sabò, chefe da contabilidade da Companhia de Estradas de Ferro do Sul, 13, rue Barennes. — Ch. Collignon, capitalista, rue Sauce, 12. — Émilie Collignon, capitalista. — L’Angle, empregado das contribuições indiretas, rue Pèlegrin, 28. — Viúva Cazemajoux. — Guipon, inspetor da contabilidade e das receitas das estradas de ferro do Sul, 119, chemin de Bègles. — Ulrichs, negociante, rue des Chartrons, 17. — Chain, negociante. — Jouanni, empregado do Sr. Arman, construtor de navios, rue Capenteyre, 26. — Gourgues, negociante, chemin de Saint-Genès, 64. — Belly, mecânico, rue Lafurterie, 39. — Hubert, capitão do 88º de linha. — Puginier, tenente do mesmo regimento.

Como de costume, os incrédulos não deixarão de levar o caso à conta da imaginação. Dirão, por exemplo, que a Sra. Beautey tinha o espírito abalado pela recusa e que o remorso a fez acreditar que via Carrière. Convenhamos que isto é possível; mas os negadores, que pouco se preocupam em analisar antes de julgar, não examinam se alguma circunstância escapa à sua teoria. Como explicarão a descrição por ela feita, de um homem que jamais vira? “É um acaso”, dirão. — Quanto à evocação, também direis que o médium apenas traduziu o seu pensamento, ou o dos assistentes, considerando-se que as circunstâncias eram ignoradas? É ainda o acaso? — Não; mas entre os assistentes havia o Sr. Guipon, autor da carta lacrada e conhecedor do fato. Ora, seu pensamento pôde ser transmitido ao médium, pela corrente de fluidos, uma vez que os médiuns estão sempre num estado de superexcitação febril, mantida e provocada pela concentração dos presentes e por sua própria vontade. Nesse estado anormal que, segundo o Sr. Figuier, não passa de um estado biológico, há emanações que escapam do cérebro e dão percepções excepcionais, provenientes da expansão dos fluidos, que estabelecem relações entre as pessoas presentes e, mesmo ausentes. Vedes, pois, por esta explicação, tão clara quanto lógica, que não há necessidade de recorrer à intervenção de vossos supostos Espíritos, que só existem na vossa imaginação. — Confessamos com toda humildade que tal raciocínio ultrapassa a nossa inteligência, e perguntamos se vós mesmos o compreendeis bem.


Ensinos e Dissertações Espíritas

A Reencarnação

(Enviado de Haia — Médium: barão de Kock)

A doutrina da reencarnação é uma verdade que não pode ser contestada; desde que o homem só quer pensar no amor, na sabedoria e na justiça de Deus, não pode admitir nenhuma outra doutrina.

É verdade que nos livros sagrados só se encontram estas palavras: “Depois da morte, o homem será recompensado segundo suas obras”. Mas não se presta suficiente atenção a uma infinidade de citações, que vos dizem ser absolutamente inadmissível que o homem atual seja punido pelas faltas e pelos crimes dos que viveram antes de Cristo. Não posso voltar a tantos exemplos e demonstrações dados pelos que acreditam na reencarnação; vós mesmos o podeis fornecer, os Espíritos bons os ajudarão e será um trabalho agradável. Podeis acrescentar isto aos ditados que vos dei e vos darei ainda, se Deus o permitir. Estais convencidos do amor de Deus pelos homens; ele só deseja a felicidade de seus filhos. Ora, o único meio que têm de um dia alcançar essa suprema felicidade está inteiramente nas reencarnações sucessivas.

Já vos disse que o que Kardec escreveu sobre os anjos decaídos é pura verdade. Os Espíritos que povoam vosso globo, na maioria sempre o habitaram. Se são os mesmos que retornam há tantos séculos, é que pouquíssimos mereceram a recompensa prometida por Deus.

O Cristo disse: “Esta raça será destruída e em breve esta profecia será cumprida.” Se se acredita num Deus de amor e de justiça, como admitir-se que os homens que vivem atualmente e mesmo os que viveram há dezoito séculos, possam ser culpados pela morte do Cristo sem aceitar a reencarnação? Sim, o sentimento de amor a Deus, o das penas e recompensas da vida futura, a ideia da reencarnação são inatas no homem desde séculos. Vede toda a História, vede os escritos dos sábios da Antiguidade e vos convencereis de que esta doutrina em todos os tempos foi admitida por todos os homens que compreendem a justiça de Deus. Agora compreendeis o que é a nossa Terra e como é chegado o momento em que serão realizadas as profecias do Cristo.

Lamento que encontreis tão poucas pessoas que pensam como vós. Vossos compatriotas não pensam senão nas grandezas e no dinheiro, a fim de criarem um nome; repelem tudo quanto possa entravar suas paixões infelizes. Porém, que isto não vos desencoraje; trabalhai pela vossa felicidade, pelo bem daqueles que talvez se arrependam de seus erros; perseverai na vossa obra; pensai sempre em Deus, no Cristo, e a beatitude celeste será a vossa recompensa. Se se quiser examinar a questão sem preconceito, refletir sobre a existência do homem nas diferentes condições da sociedade e coordenar essa existência com o amor, a sabedoria e a justiça de Deus, toda a dúvida concernente ao dogma da reencarnação deve logo desaparecer. Efetivamente, como conciliar esta justiça e esse amor com uma existência única, onde todos nascem em posições tão diferentes? Onde um é rico e poderoso, enquanto o outro é pobre e miserável? Em que um goza de saúde, ao passo que o outro é afligido de males de toda a sorte? Aqui se encontram a alegria e a vivacidade; mais longe, tristeza e dor; em uns a inteligência é mais desenvolvida; em outros, apenas se eleva acima dos brutos. Pode-se crer que um Deus todo amor tenha feito nascer criaturas condenadas por toda a vida ao idiotismo e à demência? Que tenha permitido que crianças na primavera da vida fossem arrebatadas à ternura dos pais? Ouso mesmo perguntar se se poderia atribuir a Deus o amor, a sabedoria e a justiça à vista desses povos mergulhados na ignorância e na barbárie, comparados às nações civilizadas, onde imperam as leis, a ordem, onde se cultivam as artes e as ciências? Não basta dizer: “Em sua sabedoria, Deus assim regulou todas as coisas.” Não; a sabedoria de Deus, que antes de tudo é amor, deve tornar-se clara para o entendimento humano. O dogma da reencarnação tudo esclarece. Este princípio, dado pelo próprio Deus, não se pode opor aos princípios das Santas Escrituras; longe disso, explica os princípios dos quais emanam para o homem o melhoramento moral e a perfeição. Este futuro, revelado pelo Cristo, está de acordo com os atributos infinitos de Deus. Disse o Cristo: “Os homens todos não são apenas filhos de Deus, mas, também, irmãos e irmãs da mesma família.” Ora, essas expressões devem ser bem compreendidas.

Um bom pai terrestre dará a algum de seus filhos aquilo que recusa aos outros? Lançará um no abismo da miséria, enquanto cumula o outro de riquezas, honras e dignidades? Acrescentai ainda que o amor de Deus, sendo infinito, não poderia ser comparado ao do homem por seus filhos. As diferentes posições do homem têm uma causa, e essa causa tem por princípio o amor, a sabedoria, a bondade e a justiça de Deus. Assim, a sua razão de ser só se encontra na doutrina da reencarnação.

Deus criou todos os Espíritos iguais, simples, inocentes, sem vícios e sem virtudes, mas com o livre-arbítrio de regular suas ações conforme um instinto, que se chama consciência, e que lhes dá o poder de distinguir o bem e o mal. Cada Espírito está destinado a alcançar a mais elevada perfeição, atrás de Deus e do Cristo. Para atingi-la, deve adquirir todos os conhecimentos pelo estudo de todas as ciências, iniciar-se em todas as verdades e depurar-se pela prática de todas as virtudes. Ora, como essas qualidades superiores não podem ser obtidas numa única vida, todos devem percorrer várias existências, a fim de adquirirem os diversos graus do saber.

A vida humana é a escola da perfeição espiritual e uma série de provas. É por isso que o Espírito deve conhecer todas as condições da sociedade e, em cada uma delas, aplicar-se em cumprir a vontade divina. O poder e a riqueza, assim a pobreza e a humildade, são provas; dores, idiotismo, demência, etc., são punições pelo mal cometido numa existência anterior.

Do mesmo modo que pelo livre-arbítrio o indivíduo se encontra em condições de realizar as provas a que está submetido, também pode falir. No primeiro caso, a recompensa não se fará esperar, consistindo numa progressão na perfeição espiritual. No segundo caso, recebe a punição, isto é, deve reparar em nova vida o tempo perdido na vida anterior, da qual não soube tirar vantagem para si mesmo.

Antes de sua reencarnação, os Espíritos planam nas esferas celestes: os bons gozando a felicidade, os maus entregando-se ao arrependimento, expostos à dor de serem desamparados por Deus. Mas, conservando a lembrança do passado, o Espírito se recorda das infrações aos mandamentos divinos e Deus lhe permite escolher, em nova existência, suas provas e sua condição, o que explica por que, muitas vezes, encontramos nas classes inferiores da sociedade sentimentos elevados e entendimento desenvolvido, ao passo que nas classes superiores encontramos tendências ignóbeis e Espíritos embrutecidos. Pode-se falar de injustiça quando o homem, que empregou mal a sua vida, pode reparar suas faltas numa outra existência e alcançar sua meta? Não estaria a injustiça na condenação imediata e sem apelação? A Bíblia fala de castigos eternos, mas isto não se deveria entender por uma só existência, tão triste, e tão curta; para este instante, para este piscar em relação à eternidade. Deus quer dar a felicidade eterna como recompensa do bem, mas é preciso merecê-la e uma vida única, de curta duração, não basta para alcançá-la.

Muitos perguntam por que Deus, durante tanto tempo, teria ocultado aos homens um dogma cujo conhecimento é útil à sua felicidade. Teria amado aos homens menos do que agora?

O amor de Deus é de toda a eternidade. Para os esclarecer enviou sábios, profetas e Jesus-Cristo, o Salvador. Não é uma prova de seu infinito amor? Mas como receberam os homens esse amor? Melhoraram?

O Cristo disse: “Eu poderia ainda vos dizer muitas coisas, mas não seríeis capazes de compreendê-las, devido à vossa imperfeição.” Se tomarmos as Santas Escrituras no seu verdadeiro sentido intelectual, aí encontraremos muitas citações que parecem indicar que o Espírito deve percorrer várias vidas antes de chegar ao fim. Também não se encontram nas obras dos filósofos antigos as mesmas ideias sobre a reencarnação dos Espíritos?

O mundo progrediu bastante, sob o aspecto material, nas ciências, nas instituições sociais; mas, do ponto de vista moral ainda está muito atrasado. Os homens desconhecem a lei de Deus e não ouvem mais a voz do Cristo. Eis por que, em sua bondade e como último recurso para chegar a conhecer os princípios da felicidade eterna, Deus lhes dá a comunicação direta com os Espíritos e o ensino da doutrina da reencarnação, palavras repletas de consolação e que brilham nas trevas dos dogmas de tantas religiões diferentes.

À obra! E que a busca se realize com amor e confiança. Lede sem preconceitos; refleti sobre tudo quanto Deus, desde a criação do mundo, se dignou fazer pelo gênero humano e sereis confirmados na fé que a reencarnação é uma verdade santa e divina.

Observação — Não tínhamos a honra de conhecer o Sr. barão de Kock. Esta comunicação, que concorda com todos os princípios do Espiritismo, não é, pois, o produto de nenhuma influência pessoal.

O Realismo e o Idealismo na Pintura

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. A. Didier)

I

A pintura é uma arte que tem por objetivo retraçar as cenas terrestres mais belas e mais elevadas e, algumas vezes, simplesmente imitar a Natureza pela magia da verdade. É uma arte que, por assim dizer, não tem limites, sobretudo em vossa época. A arte de vossos dias não deve ser apenas a personalidade; deve ser, se assim me posso exprimir, a consequência de tudo o que foi na História, e as exigências da cor local, longe de entravar a personalidade e a originalidade do artista, ampliam-lhe a vista, formam e depuram seu gosto e o fazem criar obras interessantes para a arte e para os que nela querem ver uma civilização caída e ideias esquecidas. A chamada pintura histórica de vossas escolas não está em consonância com as exigências do século; e — ouso dizê-lo — há mais futuro para um artista em suas pesquisas individuais sobre a arte e sobre a História do que nessa via onde dizem que comecei a pôr o pé. Só uma coisa poderá salvar a arte de vossa época: um novo impulso e uma nova escola que, aliando os dois princípios que dizem tão contrários — o realismo e o idealismo — induza os jovens a compreender que se os mestres assim são chamados, é porque viviam com a Natureza e sua imaginação poderosa inventava onde era preciso inventar, mas obedecia onde era preciso obedecer.

Para as pessoas ignorantes da ciência da arte, muitas vezes as disposições substituem o saber e a observação. Assim, em vossa época veem-se em toda parte homens de uma imaginação deveras interessante, é certo, mesmo artistas, mas não pintores. Estes não serão contados na História senão como desenhistas muito engenhosos. A rapidez no trabalho, a apreciação crítica do pensamento se adquire paulatinamente pelo estudo e pela prática e, a despeito de se possuir essa imensa faculdade de pintar depressa, ainda é necessário lutar, sempre lutar. Em vosso século materialista a arte — não o digo sob todos os pontos de vista, felizmente — materializa-se ao lado dos esforços verdadeiramente surpreendentes dos homens célebres da pintura moderna. Por que essa tendência? É o que indicarei na próxima comunicação.

II

Como disse em minha última comunicação, para bem compreender a pintura seria necessário ir, sucessivamente, da prática à ideia, da ideia à prática. Quase toda a minha vida passou-se em Roma. Quando eu contemplava as obras dos mestres, esforçava-me por captar em meu espírito a ligação íntima, as relações e a harmonia do mais elevado idealismo e do mais verdadeiro realismo. Raramente vi uma obra-prima que não reunisse esses dois grandes princípios. Nelas via o ideal e o sentimento da expressão, ao lado de uma verdade tão brutal que dizia a mim mesmo: é bem a obra do espírito humano; é bem a obra, concebida e depois realizada; é bem a alma e o corpo: é a vida integral. Via que os mestres de ideias e compreensão débeis, o eram em suas formas, em suas cores, em seus efeitos. A expressão de suas cabeças era incerta e a de seus movimentos, banal e sem grandeza. É necessária uma longa iniciação na Natureza para bem compreender os seus segredos, os seus caprichos e as suas sublimidades. Não é o pintor quem o quer; além do trabalho de observação, que é imenso, é preciso lutar no cérebro e na prática contínua da arte; num dado momento é necessário trazer à obra que se quer produzir os instintos e o sentimento das coisas adquiridas e das coisas pensadas; numa palavra, sempre esses dois grandes princípios: alma e corpo.

Nicolas Poussin

Os Obreiros do Senhor

(Cherbourg, fevereiro de 1861 — Médium: Sr. Robin)

Aproxima-se o tempo em que se cumprirão as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem outro móvel, senão a caridade! Seus dias de trabalho serão pagos pelo cêntuplo do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam dito a seus irmãos: “Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra”, porquanto o Senhor lhes dirá: “Vinde a mim, vós que sois bons servidores, vós que soubestes impor silêncio aos vossos ciúmes e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!” Mas, ai daqueles que, por efeito das suas dissensões, houverem retardado a hora da colheita, pois a tempestade virá e eles serão levados no turbilhão! Clamarão: “Graça! graça!” O Senhor, porém, lhes dirá: “Como implorais graças, vós que não tivestes piedade dos vossos irmãos e que vos negastes a estender-lhes as mãos, que esmagastes o fraco, em vez de o amparardes? Como suplicais graças, vós que buscastes a vossa recompensa nos gozos da Terra e na satisfação do vosso orgulho? Já recebestes a vossa recompensa, tal qual a quisestes. Nada mais vos cabe pedir; as recompensas celestes são para os que não tenham buscado as recompensas da Terra.”

Deus procede, neste momento, ao censo dos seus servidores fiéis e já marcou com o dedo aqueles cujo devotamento é apenas aparente, a fim de que não usurpem o salário dos servidores animosos, pois aos que não recuarem diante de suas tarefas é que ele vai confiar os postos mais difíceis na grande obra da regeneração pelo Espiritismo. Cumprir-se-ão estas palavras: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus.”

O Espírito de Verdade

Instrução Moral

(Paris; Grupo Faucheraud — Médium: Sr. Planche)

Venho a vós pobres extraviados que deslizais numa terra escorregadia, cuja súbita inclinação não espera senão que deis alguns passos para vos precipitardes no abismo. Como bom pai de família, venho vos estender a mão caridosa para vos salvar do perigo. Meu maior desejo é conduzir-vos para a casa paterna e divina, a fim de vos fazer sentir o amor de Deus e do trabalho, pela fé e pela caridade cristã, pela paz e pelos prazeres e doçuras do lar. Como vós, meus caros filhos, conheci alegrias e sofrimentos e sei todas as dúvidas dos vossos Espíritos e as lutas dos vossos corações. É para vos premunir contra vossos defeitos e vos mostrar os escolhos contra os quais podereis vos aniquilar que serei justo, mas severo.

Do alto das esferas celestes que percorro, meu olhar mergulha com alegria em vossas reuniões e é com vivo interesse que acompanho as vossas santas instruções. Mas, ao mesmo tempo que minha alma se regozija por um lado, experimenta por outro um desgosto bem amargo, quando penetra em vossos corações e ainda aí vê tanto apego às coisas terrestres. Para a maioria, o santuário de nossas lições é tido como sala de espetáculo e esperais sempre de nossa parte alguns fatos maravilhosos. Não estamos encarregados de vos fazer milagres; nossa missão é trabalhar os vossos corações, abrindo neles grandes sulcos para lançar a mancheias a semente divina. Dedicamo-nos incessantemente a torná-la fecunda, porque sabemos que suas raízes devem atravessar a terra de um a outro pólo, cobrindo-lhe toda a superfície. Os frutos que daí saírem serão tão belos, tão suaves e tão grandes que subirão até os céus.

Felizes os que tiverem sabido colhê-los para se saciar, porque os Espíritos bem-aventurados virão ao seu encontro, cingirão a sua fronte com a auréola dos eleitos, fá-lo-ão subir os degraus do trono majestoso do Eterno e lhe dirão que participe da felicidade incomparável, dos prazeres e das delícias sem-fim das falanges celestes.

Infeliz daquele a quem foi dado ver a luz e ouvir a palavra de Deus e que tiver fechado os olhos e tapado os ouvidos; o Espírito das trevas o envolverá com suas lúgubres asas e o transportará para o seu tenebroso império, a fim de o fazer expiar, durante séculos, por tormentos sem conta, sua desobediência ao Senhor. É o momento de aplicar a sentença de morte do profeta Oséias: Coedam eos secundum auditionem coetus eorum (Eu os farei morrer conforme o que tiverem ouvido). Que estas breves palavras não sejam uma fumaça a evolar-se nos ares, mas, sim, que cativem a vossa atenção, para que as mediteis e reflitais seriamente. Apressai-vos por aproveitar os poucos instantes que vos restam para os consagrar a Deus. Um dia, viremos vos pedir conta do que tiverdes feito dos nossos ensinos e como tereis posto em prática a doutrina sagrada do Espiritismo.

A vós, pois, espíritas de Paris, que muito podeis por vossa posição social e por vossa influência moral, a vós, digo, a glória e a honra de dar o exemplo sublime das virtudes cristãs. Não espereis que o infortúnio venha bater à vossa porta. Ide à frente de vossos irmãos sofredores, dai ao pobre o óbolo do dia, enxugai as lágrimas da viúva e do órfão com palavras doces e consoladoras. Levantai o ânimo abatido do velho, curvado ao peso dos anos e sob o jugo de suas iniquidades, fazendo luzir em sua alma as asas douradas da esperança numa vida futura melhor. Por toda parte, à vossa passagem, prodigalizai o amor e a consolação. Assim, elevando as vossas boas obras à altura dos vossos pensamentos, merecereis dignamente o título glorioso e brilhante que mentalmente vos conferem os espíritas da província e do estrangeiro, cujos olhos estão fixados sobre vós e que, tocados de admiração à vista das ondas de luz que escapam de vossas assembleias, vos chamarão o sol da França.

Lacordaire

A Vinha do Senhor

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. E. Vézy)

Todos, enfim, virão trabalhar na vinha. Já os vejo; chegam, numerosos; ei-los que acorrem. Vamos, à obra, filhos! Quer Deus que todos vós trabalheis.

Semeai, semeai, e um dia colhereis com abundância. Vede no Oriente esse belo Sol; como se ergue radioso e deslumbrante! Vem vos aquecer e fazer crescer os frutos da videira. Vamos, filhos! as vindimas serão esplêndidas e cada um de vós virá beber a taça do vinho sagrado da regeneração. É o vinho do Senhor, que será derramado no banquete da fraternidade universal! Aí todas as nações serão reunidas numa só e mesma família e cantarão louvores a um mesmo Deus. Armai-vos, pois, do arado e do machado, se quiserdes viver eternamente; amarrai as cepas, para que não caiam e se mantenham erguidas, e suas ramas subirão ao céu. Algumas terão cem côvados e os Espíritos dos mundos etéreos virão espremer os bagos e se refrescar; o suco será de tal modo poderoso que dará força e coragem aos fracos. Será o leite nutritivo das crianças.

Eis a vindima que se vai fazer; ela já se faz; preparam-se os vasos que devem conter o licor sagrado; aproximai os lábios, vós que quereis provar, porquanto esse licor vos inebriará de um êxtase celeste, e vereis Deus em vossos sonhos, enquanto esperais que a realidade suceda ao sonho.

Filhos! essa vinha esplêndida que deve erguer-se para Deus é o Espiritismo. Adeptos fervorosos: é preciso mostrá-la poderosa e forte; e vós, crianças, é necessário que ajudeis os fortes a mantê-la e a propagá-la. Cortai os brotos e plantai-os em outro campo; eles produzirão novas vinhas e outros brotos em todos os países do mundo.

Sim, eu vo-lo digo: enfim, todo o mundo beberá do suco da videira, e o bebereis no reino do Cristo, com o Pai celeste! Sede, pois, saudáveis e dispostos e não leveis uma vida austera. Deus não vos pede que vivais em austeridade e privações; não pede que vos cubrais com o cilício: quer apenas que vivais conforme a caridade e o coração. Ele não quer mortificações que destroem o corpo; quer que cada um se aqueça ao seu sol e, se fez raios mais frios que outros, foi para dar a compreender a todos quanto é forte e poderoso. Não; não vos cubrais com cilício; não fustigueis vossa carne aos golpes da disciplina. Para trabalhar na vinha é preciso ser robusto e poderoso; o homem deve ter o vigor que Deus lhe deu. Ele não criou a Humanidade para a transformar em raça bastarda e macilenta; ele a fez como manifestação de sua glória e de seu poder.

Vós que quereis viver a verdadeira vida, estais nos caminhos do Senhor quando tiverdes dado o pão aos infelizes, o óbolo aos sofredores e a vossa prece a Deus. Então, quando a morte vos fechar as pálpebras, o anjo do Senhor proclamará os vossos benefícios e vossa alma, transportada nas brancas asas da caridade, subirá para Deus tão bela e tão pura quanto um lírio a desabrochar pela manhã sob um sol primaveril.

Orai, amai e fazei a caridade, meus irmãos. A vinha é grande, o campo do Senhor é imenso. Vinde, vinde: Deus e o Cristo vos chamam e eu vos abençoo.

Santo Agostinho

Caridade para com os Criminosos

Problema moral

“Acha-se em perigo de morte um homem; para o salvar tem um outro que expor a vida. Sabe-se, porém, que aquele é um malfeitor e que, se escapar, poderá cometer novos crimes. Deve, não obstante, o segundo arriscar-se para o salvar?”

A resposta que se segue foi obtida na Sociedade Espírita de Paris, no dia 7 de fevereiro de 1862, pelo médium Sr. A. Didier:

Questão muito grave é esta e que naturalmente se pode apresentar ao espírito. Responderei, na conformidade do meu adiantamento moral, pois o de que se trata é de saber se se deve expor a vida, mesmo por um malfeitor. O devotamento é cego; socorre-se um inimigo; deve-se, portanto, socorrer o inimigo da sociedade, a um malfeitor, em suma. Julgais que será somente à morte que, em tal caso, se corre a arrancar o desgraçado? É, talvez, a toda a sua vida passada. Imaginai, com efeito, que, nos rápidos instantes que lhe arrebatam os derradeiros alentos de vida, o homem perdido volve ao seu passado, ou que, antes, este se ergue diante dele. A morte, quiçá, lhe chega cedo demais; a reencarnação poderá vir e ser-lhe terrível. Lançai-vos, então, ó homens; lançai-vos todos vós a quem a ciência espírita esclareceu; lançai-vos, arrancai-o à sua condenação e, talvez, esse homem, que teria morrido a blasfemar, se atirará nos vossos braços. Todavia, não tendes que indagar se o fará, ou não; socorrei-o, porquanto, salvando-o, obedeceis a essa voz do coração, que vos diz: “Podes salvá-lo, salva-o!”

Lamennais

Observação — Por uma singular coincidência recebemos, alguns dias mais tarde, a seguinte comunicação, obtida no grupo espírita do Havre, tratando mais ou menos do mesmo assunto.

Escrevem-nos que, em consequência de uma conversa a propósito do assassino Dumollard, o Espírito Elisabeth de França, que já havia dado várias comunicações, apresentou-se espontaneamente e ditou o que se segue:

A verdadeira caridade constitui um dos mais sublimes ensinamentos que Deus deu ao mundo. Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros seguidores da sua doutrina. Deveis amar os desgraçados, os criminosos, como criaturas, que são, de Deus, às quais o perdão e a misericórdia serão concedidos, se se arrependerem, como também a vós, pelas faltas que cometeis contra sua Lei. Considerai que sois mais repreensíveis, mais culpados do que aqueles a quem negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós.

Não julgueis, oh! não julgueis absolutamente, meus caros amigos, porquanto o juízo que proferirdes ainda mais severamente vos será aplicado e precisais de indulgência para os pecados em que sem cessar incorreis. Ignorais que há muitas ações, que são crimes aos olhos do Deus de pureza e que o mundo nem sequer como faltas leves considera?

A verdadeira caridade não consiste apenas na esmola que dais, nem, mesmo, nas palavras de consolação que lhe aditeis. Não, não é apenas isso o que Deus exige de vós. A caridade sublime, que Jesus ensinou, também consiste na benevolência de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo. Podeis ainda exercitar essa virtude sublime com relação a seres para os quais nenhuma utilidade terão as vossas esmolas, mas que algumas palavras de consolo, de encorajamento, de amor, conduzirão ao Senhor supremo.

Estão próximos os tempos, repito-o, em que nesse planeta reinará a grande fraternidade, em que os homens obedecerão à lei do Cristo, lei que será freio e esperança e conduzirá as almas às moradas ditosas. Amai-vos, pois, como filhos do mesmo Pai; não estabeleçais diferenças entre os outros infelizes, porquanto quer Deus que todos sejam iguais; a ninguém desprezeis. Permite Deus que entre vós se achem grandes criminosos, para que vos sirvam de ensinamentos. Em breve, quando os homens se encontrarem submetidos às verdadeiras leis de Deus, já não haverá necessidade desses ensinos: todos os Espíritos impuros e revoltados serão relegados para mundos inferiores, de acordo com as suas inclinações.

Deveis, àqueles de quem falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira caridade. Não vos cabe dizer de um criminoso: “É um miserável; deve-se expurgar da sua presença a Terra; muito branda é, para um ser de tal espécie, a morte que lhe infligem.” Não, não é assim que vos compete falar. Observai o vosso modelo: Jesus. Que diria ele, se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão. Em realidade, não podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis orar por ele, assistir-lhe o Espírito durante o tempo que ainda haja de passar na Terra. Pode ele ser tocado de arrependimento, se orardes com fé. É tanto vosso próximo, como o melhor dos homens; sua alma, transviada e revoltada, foi criada, como a vossa, à imagem do Deus perfeito. Assim, orai por ele; não o julgueis: não tendes esse direito. Só Deus o julgará.

Elisabeth de França

Allan Kardec

Abril de 1862

Frenologia Espiritualista e Espírita — Perfectibilidade da Raça Negra[1]

A raça negra é perfectível? Segundo algumas pessoas, esta questão é julgada e resolvida negativamente. Se assim é, e se esta raça é votada por Deus a uma eterna inferioridade, segue-se que é inútil nos preocuparmos com ela e que devemos nos limitar a fazer do negro uma espécie de animal doméstico, preparado para a cultura do açúcar e do algodão. Entretanto a Humanidade, tanto quanto o interesse social, requer um exame mais cuidadoso. É o que tentaremos fazer. Mas como uma conclusão desta gravidade, num ou noutro sentido, não pode ser tomada levianamente e deve apoiar-se em raciocínio sério, pedimos permissão para desenvolver algumas considerações preliminares, que nos servirão para mostrar, mais uma vez, que o Espiritismo é a única chave possível de uma multidão de problemas, insolúveis com o auxílio dos dados atuais da Ciência. A frenologia nos servirá de ponto de partida. Exporemos sumariamente as suas bases fundamentais para melhor compreensão do assunto.

Como se sabe, a frenologia apóia-se no princípio de que o cérebro é o órgão do pensamento, como o coração o é da circulação, o estômago da digestão e o fígado da secreção da bile. Este ponto é admitido por todos, pois ninguém há que possa atribuir o pensamento a outra parte do corpo. Cada um sente que pensa pela cabeça e não pelo braço e pela perna. Mais ainda: sente-se instintivamente que a sede do pensamento está na fronte; é aí, e não no occipício, que se leva a mão para indicar que um pensamento acaba de surgir. Para todo o mundo o desenvolvimento da parte frontal leva a presumir mais inteligência do que quando ela é baixa e deprimida. Por outro lado, as experiências anatômicas e fisiológicas demonstraram claramente o papel especial de certas partes do cérebro nas funções vitais, e a diferença dos fenômenos produzidos pela lesão de tal ou qual parte. As pesquisas da Ciência não podem deixar dúvida a respeito; as do Sr. Flourens, sobretudo, provaram à evidência a especialidade das funções do cerebelo.

Assim, é admitido como princípio que as diferentes partes do cérebro não exercem as mesmas funções. Além disso, é reconhecido que, originando-se do cérebro, os cordões nervosos, tal como os filamentos de uma raiz, se ramificam em todas as partes do corpo e são afetados de maneira diferente, conforme a sua destinação. É assim que o nervo óptico, que alcança o olho e se abre na retina é afetado pela luz e pelas cores e transmite essas sensações ao cérebro numa porção especial; que o nervo auditivo é afetado pelos sons, os nervos olfativos pelos odores. Se um desses nervos perder a sensibilidade por uma causa qualquer, não haverá mais a sensação: fica-se cego, surdo ou privado do odor. Esses nervos têm, pois, funções distintas e não podem de modo algum se substituir, embora o exame mais minucioso não mostre a mínima diferença na sua contextura.

Partindo desses princípios, a frenologia vai longe: localiza todas as faculdades morais e intelectuais, atribuindo a cada uma um lugar especial no cérebro. É assim que confere a um órgão o instinto de destruição que, levado ao excesso, se torna crueldade e ferocidade; a outro a firmeza, cujo excesso, sem o contrapeso do julgamento, produz a obstinação; a outro o amor da progênie; finalmente, a outros, a memória das localidades, dos números, das formas, do sentimento poético, da harmonia dos sons, das cores, etc., etc. Aqui não é o lugar de fazer a descrição anatômica do cérebro. Diremos apenas que, se fizermos uma secção longitudinal na massa, reconheceremos que da base partem feixes fibrosos que vão desabrochar na superfície, apresentando mais ou menos o aspecto de um cogumelo cortado na sua altura. Cada feixe corresponde a uma das circunvoluções da superfície externa, de onde se segue que o desenvolvimento da circunvolução corresponde ao desenvolvimento do feixe fibroso. Sendo cada feixe, de acordo com a frenologia, a sede de uma sensação ou de uma faculdade, conclui ela que a energia da sensação ou da faculdade é proporcional ao desenvolvimento do órgão.

No feto a caixa óssea do crânio ainda não se acha formada; inicialmente não passa de uma película, de uma membrana muito flexível, que se modela, conseguintemente, nas partes salientes do cérebro e lhes conserva a impressão, à medida que se endurece pelos depósitos de fosfato de cálcio, que é a base dos ossos. Das saliências do crânio a frenologia conclui o volume do órgão, e do volume do órgão conclui o desenvolvimento da faculdade.

Tal é, em breves palavras, o princípio da ciência frenológica. Embora o nosso objetivo não seja desenvolvê-la aqui, ainda são necessárias algumas palavras quanto ao modo de apreciação. Enganar-se-ia redondamente quem acreditasse poder deduzir o caráter absoluto de uma pessoa pela simples inspeção das saliências do crânio. As faculdades se contrabalançam reciprocamente, se equilibram, se corroboram ou se atenuam umas às outras, de tal sorte que, para julgar um indivíduo, é preciso levar em conta o grau de influência de cada uma, em razão do seu desenvolvimento, depois pesar na balança o temperamento, o meio, os hábitos e a educação.

Suponhamos um homem com o órgão da destruição muito pronunciado, com atrofia dos órgãos das faculdades morais e afetivas: será miseravelmente feroz. Mas se à destruição aliar a benevolência, a afeição, as faculdades intelectuais, a destruição será neutralizada e terá o efeito de lhe dar mais energia; poderá ser um homem muito honrado, ao passo que o observador superficial, que o julgasse apenas pela inspeção do primeiro órgão, o tomaria por um assassino. Concebem-se, assim, todas as modificações de caráter que podem resultar do concurso das outras faculdades, como a astúcia, a circunspeção, a auto-estima, a coragem, etc. A só sensação da cor fará o colorista, mas não fará o pintor; só a da forma não fará o desenhista; as duas reunidas apenas farão um bom copista se, ao mesmo tempo, não houver o sentimento da idealidade ou da poesia, e as faculdades reflexivas e comparativas. Basta isto para mostrar que as observações frenológicas práticas apresentam grande dificuldade e repousam sobre considerações filosóficas, que não estão ao alcance de todos. Estabelecidas estas preliminares, encaremos a coisa de outro ponto de vista.

Dois sistemas radicalmente opostos dividiram, desde o início, os frenologistas em materialistas e espiritualistas. Não admitindo nada fora da matéria, dizem os primeiros que o pensamento é um produto da substância cerebral; que o cérebro secreta o pensamento, como as glândulas salivares secretam a saliva, como o fígado secreta a bile. Ora, como a quantidade de secreção geralmente é proporcional ao volume e à qualidade do órgão secretor, dizem que a quantidade de pensamentos é proporcional ao volume e à qualidade do cérebro; que cada parte do cérebro, secretando uma ordem particular de pensamentos, os diversos sentimentos e as diversas aptidões estão na razão direta do órgão que os produz. Não refutaremos esta monstruosa doutrina, que faz do homem uma máquina, sem responsabilidade por seus atos maus, sem méritos pelas suas boas qualidades, e que apenas deve o seu gênio e as suas virtudes ao acaso de sua organização[2]. Com semelhante sistema toda punição é injusta e todos os crimes são justificados.

Os espiritualistas dizem, ao contrário, que os órgãos não são a causa das faculdades, mas os instrumentos da manifestação das faculdades; que o pensamento é um atributo da alma e não do cérebro; que a alma, possuindo por si mesma aptidões diversas, a predominância de tal ou qual faculdade impele o desenvolvimento do órgão correspondente, como o exercício de um braço induz o desenvolvimento dos músculos desse braço. Daí se segue que o desenvolvimento de um órgão é o efeito, e não a causa.

Assim, um homem não é poeta porque tenha o órgão da poesia: ele tem o órgão da poesia porque é poeta, o que é muito diferente. Mas aqui se apresenta uma outra dificuldade, ante a qual forçosamente tropeçam os frenologistas: se for espiritualista, dirá que o poeta tem o órgão da poesia porque é poeta; mas não nos diz por que ele é poeta, porque o é, em vez de seu irmão, embora educado nas mesmas condições; e, assim, em relação a todas as outras aptidões. Só o Espiritismo o explica.

Com efeito, se a alma fosse criada ao mesmo tempo que o corpo, a do sábio do Instituto seria tão nova quanto a do selvagem. Então, por que há na Terra selvagens e membros do Instituto? Direis que depende do meio em que vivem. Seja. Dizei, então, por que homens nascidos nos meios mais ingratos e mais refratários tornam-se gênios, ao passo que outros, que recebem a Ciência desde a infância, são imbecis? Os fatos não provam à evidência que há homens instintivamente bons ou maus, inteligentes ou estúpidos? É preciso, pois, que haja na alma um germe. De onde vem ele? Pode dizer-se razoavelmente que Deus os fez de todos os tipos, uns chegando sem esforço e outros nem sequer com um trabalho obstinado? Seria isso justiça e bondade? Evidentemente, não. Uma única solução é possível: a preexistência da alma, sua anterioridade ao nascimento do corpo, o desenvolvimento adquirido conforme o tempo vivido e as várias migrações percorridas. Unindo-se ao corpo, a alma traz, pois, o que adquiriu, suas qualidades boas ou más. Daí as predisposições instintivas, de onde se pode dizer com certeza que aquele que nasceu poeta já cultivou a poesia; que o que nasceu músico cultivou a música; o que nasceu celerado, já foi mais celerado. Tal é a fonte das faculdades inatas que produzem, nos órgãos afetados à sua manifestação, um trabalho interior, molecular, que provoca o seu desenvolvimento.

Isto nos conduz ao exame da importante questão da inferioridade de certas raças e de sua perfectibilidade.

Antes de mais, admitamos como princípio que todas as faculdades, todas as paixões, todos os sentimentos, todas as aptidões estão em a Natureza; que são necessárias à harmonia geral, posto que Deus nada faz de inútil; que o mal resulta do abuso, assim como da falta de contrapeso e de equilíbrio entre as diversas faculdades. Porque as faculdades não se desenvolvem simultaneamente, resulta que o equilíbrio não pode se estabelecer senão com o tempo; que essa falta de equilíbrio produz os homens imperfeitos, nos quais o mal domina momentaneamente.

Tomemos para exemplo o instinto da destruição. Ele é necessário porque na Natureza é preciso que tudo seja destruído para se renovar. Por isso todas as espécies vivas são, ao mesmo tempo, agentes destruidores e reprodutores. Mas o instinto de destruição isolado é um instinto cego e brutal; impera entre os povos primitivos, entre os selvagens cuja alma ainda não adquiriu qualidades reflexivas próprias a regular a destruição em justa medida. Numa única existência, poderá o selvagem adquirir as qualidades que lhe faltam? Seja qual for a educação que lhe derdes desde o berço, dele fareis um São Vicente de Paulo, um sábio, um orador, um artista? Não; é materialmente impossível. E, no entanto, o selvagem tem uma alma. Qual a sorte dessa alma depois da morte? É punida pelos atos bárbaros que ninguém reprimiu? É colocada em igualdade com o homem de bem? Um não é mais racional que o outro. É, então, condenada a ficar eternamente num estado misto, que nem é felicidade, nem infelicidade? Isto não seria justo, porque se ela não é mais perfeita, não dependeu dela. Só podeis sair deste dilema admitindo a possibilidade de progresso. Ora, como pode a alma progredir, a não ser tendo novas existências? Dir-se-á que poderá progredir como Espírito, sem voltar à Terra. Mas, então, por que nós, civilizados, esclarecidos, nascemos na Europa e não na Oceania? em corpos brancos, ao invés de corpos negros? Por que um ponto de partida tão diferente, se só se progride como Espírito? Por que Deus nos liberou da longa rota percorrida pelos selvagens? Seriam nossas almas de natureza diversa das suas? Por que tentar torná-los cristãos? Se os tornais cristãos, é que os olhais como vosso igual perante Deus. E se é vosso igual perante Deus, por que Deus vos concede privilégios? Por mais que façais, não chegareis a nenhuma solução, a menos que admitais para nós um progresso anterior e para os selvagens um progresso ulterior. Se a alma do selvagem deve progredir posteriormente, é que nos alcançará; se progredimos anteriormente, é que fomos selvagens, pois se for diferente o ponto de partida, não haverá mais justiça, e se Deus não for justo, já não será Deus. Eis, pois, forçosamente, duas existências extremas: a do selvagem e a do homem ultracivilizado; mas, entre esses dois extremos, não haverá nenhum ponto intermediário? Segui a escala dos povos e vereis que é uma corrente ininterrupta, sem solução de continuidade.

Ainda uma vez, todos esses problemas são insolúveis sem a pluralidade das existências. Dizei que os zelandeses renascerão num povo um pouco menos bárbaro, e assim por diante até a civilização, e tudo se explica; que se, em vez de seguir os degraus da escala os transpuser de um salto e chegar sem transição entre nós, dará o hediondo espetáculo de um Dumollard, que para nós é um monstro e que nada teria apresentado de anormal entre os povos da África central, de onde talvez tenha saído. É assim que, ao nos restringirmos numa existência única, tudo é obscuridade, tudo é problema sem saída, ao passo que com a reencarnação, tudo é claridade, tudo é solução.

Voltemos à frenologia. Ela admite órgãos especiais para cada faculdade e julgamos que esteja certa. Mas vamos mais longe. Vimos que cada órgão cerebral é formado de um feixe de fibras; pensamos que cada fibra corresponda a uma nuança de faculdade. Isto não passa de uma hipótese, é verdade, mas que poderá abrir caminho a novas observações. O nervo auditivo recebe os sons e os transmite ao cérebro. Mas se o nervo é homogêneo, como percebe sons tão variados? É, pois, lícito admitir que cada fibra nervosa é afetada por um som diferente, com o qual, de certo modo, vibra em uníssono, como as cordas de uma harpa. Todos os tons estão na Natureza. Imaginemos uma centena deles, do mais agudo ao mais grave. O homem que possuísse cem fibras correspondentes os perceberia a todos; o que só possuísse a metade, não perceberia senão a metade dos sons, pois os outros lhe escapariam e deles não teria nenhuma consciência. Dá-se o mesmo com as cordas vocais para exprimir os sons, com as fibras ópticas para a percepção das diversas cores, com as fibras olfativas para registrar todos os odores. O mesmo raciocínio pode aplicar-se aos órgãos de todos os gêneros de percepções e de manifestações.

Todos os corpos animados encerram, incontestavelmente, o princípio de todos os órgãos; uns, porém, em certos indivíduos, se acham num estado de tal forma rudimentar que não são susceptíveis de desenvolvimento; é exatamente como se não existissem. Assim, nessas pessoas, não pode haver percepções nem manifestações correspondentes a esses órgãos; numa palavra elas são, para tais faculdades, como os cegos em relação à luz e os surdos para a música.

O exame frenológico dos povos pouco inteligentes constata a predominância das faculdades instintivas e a atrofia dos órgãos da inteligência. Aquilo que é excepcional nos povos avançados é a regra em certas raças. Por quê? Será uma injusta preferência? Não; é sabedoria. A Natureza é sempre previdente; nada faz de inútil. Ora, seria inútil dar um instrumento completo a quem não tenha os meios para dele se servir. Os Espíritos selvagens são ainda crianças, se assim podemos nos exprimir. Neles muitas faculdades ainda estão latentes. O que faria o Espírito de um hotentote no corpo de um Arago? Seria como alguém que nada sabe de música diante de um piano excelente. Por uma razão inversa, o que faria o Espírito Arago no corpo de um hotentote? Seria como Liszt diante de um piano contendo apenas algumas cordas desafinadas, das quais o seu talento não conseguiria jamais tirar sons harmoniosos. Arago entre os selvagens, com todo o seu gênio, será tão inteligente quanto o pode ser um selvagem, e nada mais; jamais será, numa pele negra, membro do Instituto. Seu Espírito induziria o desenvolvimento dos órgãos? Órgãos fracos, sim; órgãos rudimentares, não[3].

A Natureza, portanto, apropriou os corpos ao grau de desenvolvimento dos Espíritos que neles devem encarnar; eis por que os corpos das raças primitivas possuem menos cordas vibrantes que os das raças adiantadas. Há, pois, no homem dois seres bem distintos: o Espírito, ser pensante; o corpo, instrumento das manifestações do pensamento, mais ou menos completo, mais ou menos rico em cordas, conforme as necessidades.

Chegamos agora à perfectibilidade das raças. Por assim dizer, essa questão é resolvida pela precedente: apenas temos que deduzir algumas consequências. Elas são perfectíveis para o Espírito que se desenvolve através de suas várias migrações, em cada uma das quais adquire pouco a pouco as faculdades que lhe faltam; mas, à proporção que essas faculdades se ampliam, necessita de um instrumento apropriado, como uma criança que cresce precisa de roupas maiores. Ora, sendo insuficientes os corpos constituídos para o seu estado primitivo, necessitam encarnar em melhores condições, e assim por diante, à medida que progridem.

Assim, as raças são perfectíveis pelo corpo, pelo cruzamento com raças mais aperfeiçoadas, que trazem novos elementos, aí enxertando, por assim dizer, os germes de novos órgãos. Esse cruzamento se faz pelas migrações, as guerras e as conquistas. Sob esse ponto de vista, há raças, como há famílias, que se abastardam, se não misturarem sangues diversos. Então não se pode dizer que haja raça primitiva pura, porquanto, sem cruzamento, essa raça será sempre a mesma, pois seu estado de inferioridade se prende à sua natureza; degenerará, em vez de progredir, o que resultará no seu desaparecimento, ao cabo de certo tempo.

Diz-se a respeito dos negros escravos: “São seres tão brutos, tão pouco inteligentes, que seria trabalho perdido querer instrui-los. É uma raça inferior, incorrigível e profundamente incapaz.” A teoria que acabamos de dar permite encará-los sob outra luz. Na questão do aperfeiçoamento das raças, deve-se sempre levar em conta dois elementos constitutivos do homem: o elemento espiritual e o elemento corporal. É preciso conhecer um e outro, e só o Espiritismo nos pode esclarecer sobre a natureza do elemento espiritual, o mais importante, por ser o que pensa e que sobrevive, enquanto o elemento corporal se destrói.

Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior[4], isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos.

Sob o mesmo envoltório, isto é, com os mesmos instrumentos de manifestação do pensamento, as raças são perfectíveis somente em estreitos limites, pelas razões que desenvolvemos. Eis por que a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá o nível das raças caucásicas; mas, na qualidade de Espírito, é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores instrumentos. Por isso as raças selvagens, mesmo em contato com a civilização, permanecerão sempre selvagens; porém, à medida que as raças civilizadas se espalham, as selvagens diminuem, até desaparecerem completamente, como aconteceu com a raça dos Caraíbas, dos Guanches e outras. Os corpos desapareceram; quanto aos Espíritos, em que se transformaram? Muitos deles, talvez, se encontrem entre nós.

Já dissemos e vamos repetir: o Espiritismo descortina novos horizontes a todas as ciências. Quando os cientistas levarem em consideração o elemento espiritual nos fenômenos da Natureza, ficarão surpresos de ver que as dificuldades contra as quais tropeçam a cada passo são removidas como por encanto. Mas é provável que, para muitos, seja necessário renovar o hábito. Quando voltarem, terão tido tempo de refletir e trarão novas ideias. Acharão as coisas muito mudadas aqui na Terra; as ideias espíritas, que hoje repelem, terão germinado por toda parte e serão a base de todas as instituições sociais. Eles próprios serão educados e sustentados nessa crença, que abrirá ao seu gênio novo campo para o progresso da ciência. Enquanto esperam, e enquanto aqui ainda se encontram, procuram a solução do problema: Por que a autoridade de seu saber, e suas negativas, não detêm, sequer por um instante, a marcha cada dia mais rápida das ideias novas?


Consequências da Doutrina da Reencarnação sobre a Propagação do Espiritismo

O Espiritismo marcha com rapidez, fato que ninguém poderá negar. Ora, quando uma coisa se propaga é porque convém; assim, se o Espiritismo também se propaga é porque igualmente convém. Há várias causas para isto. A primeira é, sem contradita, como já explicamos em diversas circunstâncias, a satisfação moral que proporciona aos que o compreendem e praticam. Mas esta mesma causa recebe em parte a sua força do princípio da reencarnação. É o que tentaremos demonstrar.

Qualquer homem que reflita não pode deixar de preocupar-se com o seu futuro depois da morte, o que bem vale a pena. Quem é quem não liga à sua situação na Terra durante alguns anos mais importância do que durante alguns dias? Mais ainda: durante a primeira parte da vida a gente trabalha, extenua-se de fadiga e se impõe toda sorte de privações para, na outra metade, assegurar-se um pouco de repouso e de bem estar. Se temos tanto cuidado por alguns anos eventuais, não é racional tê-los ainda mais pela vida de além-túmulo, cuja duração é ilimitada? Por que razão a maioria trabalha mais pelo presente passageiro do que pelo futuro sem-fim? É que acreditamos na realidade do presente e duvidamos do futuro. Ora, só se duvida daquilo que não se compreende. Que se compreenda o futuro e tudo cessará. Aos olhos mesmos daqueles que, no estado das crenças vulgares, estão mais bem convencidos da vida futura, esta se apresenta de maneira tão vaga, que nem sempre basta a fé para fixar as ideias; aquela tem mais as características de uma hipótese que as de uma realidade. O Espiritismo vem remover essa incerteza pelo testemunho dos que viveram e por provas de certo modo materiais.

Toda religião repousa necessariamente na vida futura e todos os dogmas convergem forçosamente para esse fim único. É visando atingir esse fim que eles são praticados; e a fé nos dogmas está na razão direta da eficácia que se lhes atribui para o alcançar. A teoria da vida futura é, pois, a pedra angular de toda doutrina religiosa. Se essa teoria pecar pela base; se abrir o campo a objeções sérias; se se contradisser; se se puder demonstrar a impossibilidade de certas partes, tudo vai abaixo. Antes de mais vem a dúvida, à qual sucede a negação absoluta, e os dogmas são arrastados no naufrágio da fé. Pensaram em escapar ao perigo proscrevendo o exame e fazendo da fé cega uma virtude. Mas pretender impor a fé cega neste século é desconhecer o tempo em que vivemos; refletimos, mau grado nosso; examinamos pela força das coisas; queremos saber como e porquê. O desenvolvimento da indústria e das ciências exatas nos ensina a olhar o terreno sobre o qual pisamos, razão por que se sondamos aquele onde, conforme dizem, marcharemos depois da morte; se não o encontramos sólido, isto é, lógico, racional, não nos preocuparemos com ele. Por mais que façam, não conseguirão neutralizar essa tendência, porque inerente ao desenvolvimento intelectual e moral da Humanidade. Segundo uns, é um bem; segundo outros, um mal. Seja qual for a maneira pela qual a encaramos, temos de nos acomodar, queiramos ou não, porquanto não pode ser de outra maneira.

A necessidade de se dar conta e de compreender diz respeito às coisas materiais e às coisas morais. Indubitavelmente, a vida futura não é uma coisa palpável, como uma estrada de ferro e uma máquina a vapor; mas pode ser compreendida pelo raciocínio. Se o raciocínio, em virtude do qual buscamos demonstrá-la não satisfizer à razão, abandonamos as premissas e as conclusões.

Interrogai aqueles que negam a vida futura e todos dirão que foram conduzidos à incredulidade pelo próprio quadro que lhes faziam, com seus cortejos de demônios, labaredas e sofrimentos sem-fim.

Todas as questões morais, psicológicas e metafísicas se ligam de maneira mais ou menos direta à questão do futuro. Disso resulta que dessa última questão depende, de alguma sorte, a racionalidade de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. O Espiritismo vem, por sua vez, não como uma religião, mas como doutrina filosófica, trazer a sua teoria, apoiada no fato das manifestações. Ele não se impõe; não exige confiança cega; entra no número dos concorrentes e diz: Examinai, comparai e julgai; se achardes algo melhor do que isto que vos dou, tomai-o. Ele não diz: Venho destruir os fundamentos da religião e substituí-la por um culto novo. Diz: Não me dirijo aos que creem e se acham satisfeitos com suas crenças, mas aos que abandonam as vossas fileiras pela incredulidade e que não os soubestes ou pudestes reter. Venho dar-lhes, sobre as verdades que repelem, uma interpretação capaz de satisfazer sua razão e que os leva a aceitá-la. E a prova de que o consigo é o número dos que tiro do atoleiro da incredulidade. Todos vos dirão: Se me tivessem ensinado essas coisas assim desde a infância, jamais teria duvidado; agora creio, porque compreendo. Deveis repeli-los, porque aceitam o espírito e não a letra? o princípio, e não a forma? Sois livres; se vossa consciência faz disto um dever, ninguém pensará em violentá-la; mas não digo apenas que isto seria um erro; digo mais: seria uma imprudência.

Como dissemos, a vida futura é o objetivo essencial de toda doutrina moral. Sem a vida futura, a moral carece de base. O triunfo do Espiritismo está precisamente na maneira pela qual apresenta o futuro; além das provas que oferece, o quadro que apresenta é tão claro, tão simples, tão lógico, tão conforme à justiça e à bondade de Deus, que involuntariamente dizemos: Sim, é bem assim que deve ser; é assim que eu imaginava; e, se não havia acreditado, é porque me tinham mostrado a vida futura de outro modo.

Mas, o que é que dá à teoria do futuro um tal poder? o que é que lhe granjeia tantas simpatias? É, dizemos nós, a sua lógica inflexível, que resolve todas as dificuldades até então insolúveis; e isto ela o deve ao princípio da pluralidade das existências. Com efeito, suprimi este princípio e milhares de problemas, cada qual mais insolúvel, se apresentarão imediatamente. A cada passo nos chocaremos contra inúmeras objeções. Essas objeções não eram suscitadas antigamente, isto é, ninguém pensava nelas. Mas hoje, que a criança se fez homem, quer ir ao fundo das coisas; quer ver claro o caminho por onde é conduzido; sonda e pesa o valor dos argumentos que lhe apresentam e, se estes não lhe satisfazem à razão ou o deixam no vago e na incerta, rejeita-os, aguardando coisa melhor. A pluralidade das existências é uma chave que descortina horizontes novos, que dá uma razão de ser a uma multidão de coisas incompreendidas e que explica o inexplicável. Ela concilia todos os acontecimentos da vida com a justiça e a bondade de Deus. Daí por que os que haviam chegado a duvidar dessa justiça e dessa bondade agora reconhecem o dedo da Providência onde o tinham ignorado. Efetivamente, sem a reencarnação, a que atribuir as ideias inatas? como justificar o idiotismo, o cretinismo, a selvageria, ao lado do gênio e da civilização? a profunda miséria de uns, ao lado da felicidade de outros? as mortes prematuras e tantas outras coisas? Do ponto de vista religioso, certos dogmas, como o do pecado original, o da queda dos anjos, a eternidade das penas, a ressurreição da carne, etc., encontram neste princípio uma interpretação racional, levando à aceitação do seu espírito justamente por aqueles que repeliam a letra.

Em resumo, o homem atual quer compreender. O princípio da reencarnação ilumina o que estava obscuro. Eis por que dizemos que este princípio é uma das causas que faz com que o Espiritismo seja acolhido favoravelmente.

Dir-se-á que a reencarnação não é necessária para crer nos Espíritos e em suas manifestações; e a prova disto é que há crentes que não a admitem. É verdade. Também não dissemos que não se possa ser bom espírita sem crer na reencarnação. Não somos daqueles que atiram pedras aos que não pensam como nós. Apenas dizemos que eles não abordaram todos os problemas levantados pelo sistema unitário, sem o que teriam reconhecido a impossibilidade de lhes dar uma solução satisfatória. A ideia da pluralidade das existências a princípio foi acolhida com assombro, com desconfiança; depois, pouco a pouco as pessoas se familiarizaram com ela, à medida que reconheciam a impossibilidade de, sem ela, saírem das inúmeras dificuldades suscitadas pela psicologia e pela vida futura. Uma coisa é certa: esse sistema ganha terreno diariamente, enquanto o outro o perde. Hoje, na França, os adversários da reencarnação — falamos dos que estudaram a ciência espírita — são em número imperceptível, em comparação com os seus partidários. Na própria América, onde são mais numerosos, por causas que explicamos em nosso número anterior, o princípio começa a popularizar-se, de modo que podemos concluir que não está longe o tempo em que, sob esse ponto, não haverá nenhuma dissidência.


Epidemia Demoníaca na Saboia

Algum tempo atrás os jornais falaram de uma monomania epidêmica que se manifestou numa parte da Alta Saboia e contra a qual falharam todos os socorros da medicina e da religião. O único meio que produziu resultados mais ou menos satisfatórios foi a dispersão dos indivíduos em diferentes cidades. A respeito, recebemos do capitão B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, atualmente em Annecy, a seguinte carta:

“Annecy, 7 de março de 1862.

“Senhor Presidente,

“Querendo ser útil à Sociedade, tenho a honra de vos remeter uma brochura que me foi enviada por um de meus amigos, o Dr. Caille, encarregado pelo Ministro de acompanhar o inquérito feito pelo Sr. Constant, inspetor das casas de alienados sobre os casos muito numerosos de demonomania, observados na comuna de Morzine, distrito de Thonon (Haute-Savoie). Até hoje, esta infeliz população se acha sob a influência da obsessão, apesar dos exorcismos, dos tratamentos médicos, das medidas tomadas pelas autoridades e dos internamentos nos hospitais do Departamento. Os casos diminuíram um pouco mas não cessaram, permanecendo o mal, por assim dizer, em estado latente. Querendo exorcizar esses infelizes, na maioria crianças, o cura mandou trazê-las à igreja, conduzidas por homens vigorosos. Mal havia pronunciado as primeiras palavras latinas, produziu-se uma cena horrorosa: gritos, saltos furiosos, convulsões, etc., a tal ponto que mandaram buscar os soldados e uma companhia de infantaria para restabelecer a ordem.

“Não consegui obter todas as informações que gostaria de poder vos dar hoje, mas os fatos me parecem bastante graves para merecerem vosso exame. O Dr. Arthaud, de Lyon, médico alienista, leu o relatório da Sociedade médica desta cidade, o qual foi publicado pela Gazette médicale de Lyon e que podereis obter através de vosso correspondente. No hospital desta cidade temos duas mulheres de Morzine que estão em tratamento. O Dr. Caille concluiu por uma afecção nervosa epidêmica, que escapa a toda espécie de tratamento e de exorcismo. Só o isolamento produziu bons resultados. Durante as crises, todos esses infelizes obsedados pronunciam palavras obscenas; dão saltos prodigiosos por cima das mesas, trepam em árvores, nos telhados e, às vezes, profetizam.

“Se esses fatos se apresentaram nos séculos dezesseis e dezessete, nos conventos e nos campos, não é menos certo que no nosso século dezenove eles oferecem, a nós, espíritas, um assunto de estudo, do ponto de vista da obsessão epidêmica, generalizando-se e persistindo durante anos, pois há cerca de cinco anos que o primeiro caso foi observado.

“Terei a honra de vos enviar todos os documentos e informações que puder obter.

“Aceitai, etc.

B... ”

As duas comunicações que se seguem nos foram dadas sobre o assunto, na Sociedade Espírita de Paris, por nossos Espíritos habituais.

“Não são médicos, mas magnetizadores, espiritualistas ou espíritas que deveriam ser mandados para dissipar a legião de Espíritos malvados, extraviados no vosso planeta. Digo extraviados porque eles apenas passarão. Mas por muito tempo ainda, a infeliz população sofrerá do ponto de vista moral e físico. Onde está o remédio? perguntais. Surgirá do mal, porque os homens, aterrorizados por essas manifestações, acolherão com êxtase o contato benéfico dos Espíritos bons que os sucederão, como a aurora sucede à noite. Essa pobre população, ignorante de qualquer trabalho intelectual, teria desconhecido as comunicações inteligentes dos Espíritos ou, antes, nem mesmo as teria percebido. A iniciação e os males provocados por essa turba impura abrem olhos fechados, e as desordens, os atos de demência não passam de um prelúdio de iniciação, porquanto todos devem participar da grande luz espírita. Não vos escandalizeis por essa maneira cruel de proceder: tudo tem um fim e os sofrimentos devem fecundar, como fazem as tempestades, que destroem a colheita de uma região, enquanto fertilizam outras.

Georges (Médium: Sra. Costel)

“Os casos de demonomania que agora ocorrem na Sabóia também já ocorreram em muitos outros países, notadamente na Alemanha, mas principalmente no Oriente. Esse fato anormal é mais característico do que pensais. Com efeito, ao observador atento revela uma situação análoga à que se manifestou nos derradeiros anos do paganismo. Ninguém ignora que quando o Cristo, nosso muito amado Mestre, encarnou na Judéia, sob os traços do carpinteiro Jesus, aquela região havia sido invadida por legiões de Espíritos malévolos que, como hoje, se apoderaram, pela possessão, das classes sociais mais ignorantes, dos Espíritos encarnados mais fracos e menos adiantados, numa palavra, dos indivíduos que guardavam os rebanhos ou vagavam nas ocupações da vida rural. Não percebeis uma grande analogia entre a reprodução desses fenômenos idênticos de possessão? Ah! nisso existe um ensinamento muito profundo! e disso deveis concluir que os tempos preditos se aproximam cada vez mais e que o Filho do Homem em breve virá expulsar novamente essa turba de Espíritos impuros que se abateram sobre a Terra, e reavivar a fé cristã, dando a sua alta e divina sanção às revelações consoladoras e aos ensinamentos regeneradores do Espiritismo. Voltando aos casos atuais de demonomania, é preciso lembrar que os sábios, que os médicos do século de Augusto trataram, conforme os processos hipocráticos, os infelizes possessos da Palestina, e que toda a sua ciência se aniquilou ante esse poder desconhecido. Pois bem! ainda hoje todos os vossos inspetores de epidemias, todos os vossos mais distintos alienistas, sábios doutores em materialismo puro, fracassam do mesmo modo ante essa doença exclusivamente moral, diante dessa epidemia puramente espiritual. Mas que importa, meus amigos! vós, que fostes tocados pela graça nova, sabeis quanto esses males passageiros são curáveis pelos que têm fé. Esperai, pois, com confiança, a vinda daquele que já resgatou a Humanidade. A hora se aproxima; o Espírito precursor já está encarnado. Logo veremos o desenvolvimento completo desta doutrina, que tomou por divisa: “Fora da caridade não há salvação.”

Erasto (Médium: Sr. d’Ambel)

Devemos concluir, do que precede, que não se trata de uma afecção orgânica, mas, sim, de uma influência oculta. Custa-nos tanto menos crer, quanto temos tido numerosos casos idênticos isolados, devidos à mesma causa; e o que o prova é que os meios ensinados pelo Espiritismo foram suficientes para fazer cessar a obsessão. Está demonstrado pela experiência que os Espíritos mal-intencionados não só agem sobre o pensamento, mas, também, sobre o corpo, com o qual se identificam e do qual se servem como se fosse o seu; que provocam atos ridículos, gritos, movimentos desordenados que apresentam todas as aparências da loucura ou da monomania. Encontrar-se-á sua explicação em o nosso O Livro dos Médiuns, no capítulo da obsessão, e num próximo artigo citaremos vários fatos que o demonstram de maneira incontestável. Com efeito, é bem uma espécie de loucura, uma vez que se pode dar este nome a todo estado anormal, em que o Espírito não age livremente. Deste ponto de vista, é uma verdadeira loucura acidental.

Faz-se, pois, necessário distinguir a loucura patológica da loucura obsessiva. A primeira resulta de uma desordem nos órgãos da manifestação do pensamento. Notemos que, nesse estado de coisas, não é o Espírito que é louco; ele conserva a plenitude de suas faculdades, como o demonstra a observação; apenas estando desorganizado o instrumento de que se serve para manifestar-se, o pensamento, ou, melhor dizendo, a expressão do pensamento é incoerente.

Na loucura obsessiva não há lesão orgânica; é o próprio Espírito que se acha afetado pela subjugação de um Espírito estranho, que o domina e subjuga. No primeiro caso, deve-se tentar curar o órgão enfermo; no segundo basta livrar o Espírito doente do hóspede importuno, a fim de lhe restituir a liberdade. Casos semelhantes são muito frequentes e muitas vezes tomados como loucura o que não passa de obsessão, para a qual deveriam empregar meios morais e não duchas. Pelo tratamento físico e, sobretudo, pelo contato com os verdadeiros alienados, muitas vezes tem sido determinada uma verdadeira loucura onde esta não existia.

Abrindo novos horizontes a todas as ciências, o Espiritismo vem, também, elucidar a questão tão obscura das doenças mentais, ao assinalar-lhes uma causa que, até hoje, não havia sido levada em consideração — causa real, evidente, provada pela experiência e cuja verdade mais tarde será reconhecida. Mas como fazer que tal causa seja admitida por aqueles que estão sempre dispostos a enviar ao hospício quem quer que tenha a fraqueza de crer que temos uma alma e que esta desempenha um papel nas funções vitais, sobrevive ao corpo e pode atuar sobre os vivos? Graças a Deus, e para o bem da Humanidade, as ideias espíritas fazem mais progresso entre os médicos do que se podia esperar e tudo faz prever que, num futuro não muito remoto, a Medicina saia finalmente da rotina materialista.

Estando provados alguns casos isolados de obsessão física ou de subjugação, fácil é compreender que, semelhante a uma nuvem de gafanhotos, um bando de Espíritos malfazejos pode lançar-se sobre um certo número de indivíduos, deles se apoderar e produzir uma espécie de epidemia moral. A ignorância, a fraqueza das faculdades, a ausência de cultura intelectual naturalmente lhes facultam maior influência. É por isso que eles prejudicam, de preferência, certas classes, embora as pessoas inteligentes e instruídas nem sempre estejam isentas. Como diz Erasto, foi provavelmente uma epidemia desse gênero que imperou no tempo do Cristo, tantas vezes mencionada no Evangelho. Mas por que só a sua palavra bastava para expulsar os chamados demônios? Isto prova que o mal não podia ser curado senão por uma influência moral. Ora, quem pode negar a influência moral do Cristo? Entretanto — dirão — não empregaram o exorcismo, que é uma espécie de remédio moral, e nada foi obtido? Se nada produziu é que o remédio nada vale e que se deve buscar outro: isto é evidente. Estudai o Espiritismo e compreendereis a razão. Somente o Espiritismo, assinalando a verdadeira causa do mal, pode dar os meios de combater os flagelos dessa natureza. Mas quando dizemos para estudá-lo, entendemos por isto um estudo sério, e não na esperança de nele encontrar uma receita banal, para uso do primeiro que aparecer.

O que acontece na Saboia, chamando a atenção, possivelmente apressará o momento em que será reconhecida a parte de ação do mundo invisível nos fenômenos da Natureza. Uma vez entrando neste caminho, a Ciência possuirá a chave de muitos mistérios e verá cair a mais formidável barreira que detém o progresso: o materialismo, que restringe o círculo da observação, em vez de o ampliar.


Respostas à Questão dos Anjos Decaídos

Observação — Recebemos de vários pontos respostas a todas as questões apresentadas no número de janeiro último. Sua extensão não nos permite publicá-las todas ao mesmo tempo. Limitar-nos-emos, hoje, à questão dos anjos rebeldes.

(Bordeaux — Médium: Sra. Cazemajoux)

Meus amigos, a teoria contida no resumo que acabais de ler é a mais lógica e a mais racional. A sã razão não pode admitir a criação de Espíritos puros e perfeitos revoltando-se contra Deus e buscando igualá-lo em poder, majestade e grandeza.

Antes de chegar à perfeição o Espírito, ignorante e fraco, entregue ao seu livre-arbítrio, muitas vezes envereda pela corrupção e mergulha com prazer no oceano da iniquidade. Mas o que causa principalmente a sua perda é o orgulho. Nega a Deus, atribui ao acaso a sua existência, as maravilhas da criação e a harmonia universal. Então, infeliz dele! é um anjo decaído. Em vez de avançar para mundos felizes, é exilado do próprio planeta em que habita, a fim de expiar, em mundos inferiores, sua rebelião incessante contra Deus.

Guardai-vos, irmãos, de os imitar: são anjos perversos. Envidai todos os esforços para não lhes aumentar o número; que o archote da fé espírita vos esclareça quanto aos vossos deveres futuros, a fim de que possais um dia evitar a sorte dos Espíritos rebeldes e subir a escala espiritual que conduz à perfeição.

Vossos guias espirituais

(Haia — Holanda; Médium: barão de Kock)

Sobre este artigo, pouco terei a dizer, a não ser que é sublime verdade. Nada a acrescentar ou a subtrair. Bem-aventurados os que aliarem a fé a essas belas palavras, os que aceitarem esta doutrina escrita por Allan Kardec. Kardec é o homem eleito por Deus para instrução das criaturas do presente. São palavras inspiradas pelos Espíritos do bem, Espíritos muito superiores. Tende fé; lede, estudai toda a doutrina: é um bom conselho que vos dou.

Vosso Guia Protetor

(Sens — Médium: Sr. Pichon)

P. — Que devemos pensar da interpretação da doutrina dos anjos decaídos, que o Sr. Allan Kardec publicou no último número da Revista Espírita?

Resp. — Que é perfeitamente racional, e que nós mesmos não a teríamos explicado melhor.

Arago

(Paris. Comunicação particular — Médium: Srta. Stéphanie)

Está bem definido, mas — é preciso ser franco — há uma coisa que me contraria: por que falar desse dogma da Imaculada Conceição? Tivestes revelações concernentes à mãe do Cristo? Deixai essas discussões à Igreja Católica. Lamento tanto mais essa comparação, quanto mais os padres crerão e dirão que vós lhes quereis fazer a corte.

Um Espírito, amigo sincero do médium e do diretor da Revista Espírita

(Lyon — Médium: Sra. Bouillant)

Outrora acreditávamos que os anjos, depois de haverem habitado o mais radioso dos mundos, se tinham revoltado contra Deus e merecido ser expulsos do Éden, que Deus lhes havia dado como morada. Cantamos sua queda e sua fraqueza e, acreditando nesta fábula do Paraíso Perdido, o tínhamos enfeitado com todas as flores da retórica que conhecíamos. Para nós era um tema que oferecia um encanto especial. Esse primeiro homem e essa primeira mulher, expulsos de seus oásis, condenados a viver na Terra, sujeitos a todos os males que assediam a Humanidade eram para o autor uma grande fonte para desenvolver as suas ideias, e o assunto se prestava sobretudo e perfeitamente às nossas ideias melancólicas. Como os outros, acreditávamos no erro e juntávamos a nossa palavra a todas as que já tinham sido pronunciadas. Mas agora que a nossa existência no espaço nos permitiu julgar as coisas do seu verdadeiro ponto de vista; agora que podemos compreender quanto era absurdo admitir que o Espírito, chegado ao seu mais alto grau de pureza, pudesse retrogradar de repente, revoltar-se contra o seu Criador e com ele entrar em luta; agora que podemos julgar por quantos cadinhos o licor deve ser filtrado para se depurar, a ponto de se tornar essência e quintessência, estamos em condição de vos dizer o que são os anjos decaídos e o que deveis crer do Paraíso Perdido.

Em sua imutável lei do progresso, quer Deus que os homens avancem, avancem incessantemente, de século em século, em épocas por ele determinadas. Quando a maioria dos seres que habitam a Terra se torna muito superior à parte terrestre que ocupa, então Deus ordena uma emigração de Espíritos; aqueles que realizaram sua missão com consciência, vão habitar regiões que lhes são designadas, ao passo que o Espírito recalcitrante e preguiçoso, que destoa do quadro, é obrigado a ficar na retaguarda. Nesta depuração ele é repelido, como fazem os químicos com as substâncias que não passaram pela filtração. Então o Espírito se acha em contato com outros Espíritos que lhe são inferiores e sofre realmente o constrangimento que lhe é imposto.

Lembra-se intuitivamente da felicidade que desfrutava e se acha em meio a seus iguais como uma flor exótica que tivesse sido transplantada repentinamente para um terreno inculto. Compreendendo a sua superioridade, tal Espírito se revolta; procura dominar aqueles que o cercam e esta revolta, esta luta consigo mesmo volta-se contra o Criador que lhe deu a existência, e que ele desconhece. Se seus pensamentos puderem desenvolver-se, ele derramará o que extravasa do seu coração em recriminações amargas, como o condenado na sua prisão, e sofrerá cruelmente até que tenha expiado a preguiça e o egoísmo que o impediram de acompanhar seus irmãos. Eis, meus amigos, quais os anjos decaídos e por que todos lamentam a perda de seu paraíso. Tratai, pois, por vossa vez, de vos apressar, a fim de não serdes abandonados quando soar o sinal de retorno. Lembrai todos que vos deveis a vós mesmos; dizei que vós sois vós e que tendes o vosso livre-arbítrio. Esta personalidade do Espírito vos explica por que o filho de um homem sábio muitas vezes é um idiota e por que a inteligência não pode transformar-se em morgadio. Um grande homem bem poderá dar à sua progênie os contornos de sua fisionomia, mas jamais lhe transmitirá o seu gênio; e podeis estar certos de que todos os gênios que manifestaram os seus talentos entre vós eram filhos de suas próprias obras, porquanto, como disse um grande sábio: “É que as mães dos Patay, dos Letronne e do grande Arago criaram esses homens excepcionais muito inocentemente.” Não, meu amigo, a mãe que gera um talento ilustre não tem a menor influência sobre o Espírito que anima o seu filho: este Espírito já era muito adiantado quando veio reencarnar-se no crisol da depuração. Subi, pois, os degraus da escada, degraus luminosos e brilhantes como sóis, pois Deus os ilumina com a sua luz esplêndida. Lembrai-vos de que agora, que conheceis o caminho, seríeis muito culpados se vos tornásseis anjos decaídos. Aliás, creio que ninguém ousaria lamentar-vos e vos cantar o Paraíso Perdido.

Milton

(Frankfurt — Médium: Sra. Delton)

Nada direi sobre esta interpretação dos anjos rebeldes e dos anjos decaídos, senão que faz parte dos ensinamentos que vos devem ser dados, a fim de que possais restabelecer as coisas mal compreendidas em seu verdadeiro sentido. Não penseis que o autor do artigo o tenha escrito sem assistência, como ele mesmo imaginou; julgou emitir suas próprias opiniões, razão por que ficou desconfiado, quando, na realidade, apenas deu forma às ideias que lhe eram inspiradas.

Sim, ele está certo quando diz que os anjos rebeldes ainda estão na Terra, e que são os imperialistas e os ímpios, os que ousam negar o poder de Deus. Não é o cúmulo do orgulho? Todos vós, que acreditais em Deus e lhes cantais louvores, vos indignais com uma tal audácia da criatura, e tendes razão; mas sondai a vossa consciência e vede se não vos revoltais contra ele, a cada instante, pelo esquecimento de suas santas leis. Praticais a humildade, vós que acreditais na superioridade do vosso mérito? que vos gabais pelos dons que haveis recebido? que vedes com inveja e ciúme a posição do vosso vizinho, os favores que lhe cabem, a autoridade que lhe é concedida? Praticais a caridade, vós que denegris o vosso irmão, que despejais sobre ele a maledicência e a calúnia? Que em vez de lançar um véu sobre os seus defeitos, sentis prazer em os expor aos olhos de todos, a fim de os humilhar? Vós que credes em Deus, sobretudo vós, espíritas, que assim agis, em verdade vos digo: sois mais culpados que o ateu e o materialista, porquanto tendes a luz e não vedes. Sim, também sois anjos rebeldes, porque não obedeceis à lei de Deus e, no dia do juízo, Deus vos perguntará: “Que fizestes dos meus ensinamentos?”

Paulo, Espírito protetor


Conversas Familiares de Além-Túmulo

Girard de Codemberg

(Bordeaux, novembro de 1861)

O Sr. Girard de Codemberg, antigo aluno da Escola Politécnica, é autor de um livro intitulado: O Mundo Espiritual, ou ciência cristã de comunicar intimamente com as potências celestes e as almas felizes [5]. Essa obra contém comunicações excêntricas que denotam manifesta obsessão e cuja publicação os espíritas sérios lamentam profundamente. O autor morreu em novembro de 1858 e foi evocado na Sociedade de Paris em 14 de fevereiro de 1859. Pode-se ver o resultado dessa evocação na Revista Espírita do mês de abril de 1859. A evocação que se segue foi feita em Bordeaux, em novembro de 1861; a coincidência das duas evocações é digna de nota.

P. — Poderíeis responder a algumas perguntas que desejo fazer?

Resp. — É um dever.

P. — Qual a vossa posição no mundo dos Espíritos?

Resp. — Feliz, relativamente à vida que levava na Terra, porquanto ali eu não via o mundo espiritual senão através do nevoeiro dos meus pensamentos, ao passo que agora vejo desdobrar-se à minha frente a grandeza e a magnificência das obras de Deus.

P. — Numa passagem de vossa obra, que tenho em mãos, dissestes: “Perguntam à mesa o nome do meu anjo-da-guarda que, conforme a crença americana, é apenas uma alma feliz, tendo vivido nossa vida terrena e que, por conseguinte, deve ter um nome na sociedade humana.” Essa crença, dizeis, é uma heresia. Que pensais hoje dessa heresia?

Resp. — Disse-vos que tinha visto mal, porque, inexperiente na prática do Espiritismo, aceitei como verdades os princípios que me eram ditados por Espíritos levianos e impostores. Mas, em presença de verdadeiros e sinceros espíritas que aqui se acham reunidos nesta noite, confesso que o anjo-da-guarda, ou Espírito protetor, outra coisa não é senão o Espírito que chegou ao progresso moral e intelectual pelas diversas fases percorridas em suas encarnações nos diferentes mundos, e que a reencarnação, que eu negava, é a mais sublime e a maior prova da justiça de nosso Pai, que está no céu, e que não quer a nossa perda, mas a nossa felicidade.

P. — Em vossa obra falais igualmente do purgatório. Que significado quisestes dar a essa palavra?

Resp. — Eu pensava, com razão, que os homens não podiam alcançar a felicidade sem se purificarem das máculas que a vida material sempre deixa no Espírito. Mas o purgatório, cujo temor me dava uma fé cega, em vez de ser um abismo de fogo, como eu o imaginava, não era senão os mundos inferiores, em cujo número está a Terra, onde todas as misérias a que está sujeita a humanidade se manifestam de mil e uma maneiras. Não está aí a explicação da palavra purgare?

P. — Também dizeis que vosso anjo-da-guarda respondeu, a propósito do jejum: “O jejum é o complemento da vida cristã e a ele te deves submeter.” Que pensais disto agora?

Resp. — O complemento da vida cristã! E os judeus, os muçulmanos, que também jejuam! O jejum não é apropriado exclusivamente à vida cristã; entretanto, algumas vezes é útil, naquilo que pode enfraquecer o corpo e acalmar as revoltas da carne. Crede-me, mais vale uma vida simples e frugal do que todos os jejuns feitos com vistas a dar espetáculo aos homens, mas que em nada corrigem vossas inclinações e tendências para o mal. Vejo que exigis de mim uma retratação completa de meus escritos. Eu vo-la devo, porque alguns fanáticos, que não fazem parte da época em que escrevi, têm uma fé cega naquilo que publiquei como a exata verdade. Não sou punido por isso, porque atuava de boa-fé e escrevia sob a influência temerosa das lições dos primeiros anos, às quais não podia subtrair a vontade de pensar e agir; mas, crede, será muito restrito o número dos que abandonarão o caminho traçado pelo Sr. Allan Kardec para seguir o meu. São pessoas com as quais não se deve contar muito, marcadas pelo anjo da libertação para serem arrastadas no turbilhão renovador que deve transformar a sociedade. Sim, meus amigos, sede espíritas. É Gérard de Codemberg que vos convida a tomardes lugar no grande banquete fraterno, porquanto vós sois e nós somos todos irmãos, e a reencarnação nos torna solidários, apertando entre nós os laços da fraternidade em Deus.

Observação — Este pensamento de que os homens serão expulsos e enviados a mundos inferiores, caso não aproveitem os avisos de Deus no grande movimento que deve operar a renovação da Humanidade, opondo-lhe obstáculos, acha-se hoje reproduzido por todos os lados nas comunicações dos Espíritos. Dá-se o mesmo com este outro: chegamos ao momento desta transformação, cujos sintomas já se fazem sentir. Quanto ao que atribui ao Espiritismo a base dessa transformação, é universal. Tal coincidência tem algo de característico. — A. K.

P. — Dissestes ter evocado a santa Virgem Maria e que dela recebestes conselhos. Essa manifestação foi real?

Resp. — Quantos dentre vós vos julgais inspirados por ela e sois enganados! Sede vós mesmos vossos e meus juízes.

P. — Ao dirigirdes à Virgem a pergunta: — “Há, pelo menos, na sorte das almas punidas, a esperança conservada por vários teólogos da gradação das penas?” —, dissestes ter sido esta a sua resposta: “As penas eternas não têm gradação; são todas as mesmas e as chamas são os seus ministros.” Qual a vossa opinião a respeito?

Resp. — As penas infligidas aos Espíritos maus são reais, mas não eternas. Testemunham os vossos pais e amigos, que acorrem diariamente ao vosso apelo e que vos dão, sob todas as formas, ensinamentos que apenas confirmam a verdade.

P. — Alguém da assistência pergunta se o fogo queima fisicamente ou moralmente.

Resp. — Fogo moral.

Em seguida o Espírito continua espontaneamente:

“Caros irmãos em Espiritismo, sois os escolhidos de Deus para a sua santa propagação. Mais feliz que eu, um Espírito em missão na vossa Terra vos traçou o caminho, no qual deveis entrar com passo firme e determinado. Sede dóceis; nada temais: é o caminho do progresso e da moralidade da raça humana. Para mim, que apenas havia delineado a obra que vosso mestre vos traçou, porque me faltava coragem para me afastar do caminho batido, tenho a incumbência de vos guiar à situação de Espírito, na estrada boa e segura onde entrastes. Poderei, assim, reparar o mal que cometi por ignorância e ajudar com minhas frágeis faculdades a grande reforma da sociedade. Não vos inquieteis com os irmãos que se afastam de vossas crenças. Ao contrário, agi de maneira que não mais se misturem ao rebanho dos verdadeiros crentes, pois são ovelhas sarnentas e deveis evitar o contágio. Adeus. Voltarei com este médium. Até logo.

Girard de Codemberg

Nota — Consultados quanto à identidade do Espírito, nossos guias responderam: “Sim, meus amigos, ele sofre por ver o mal que causa a doutrina errônea que publicou. Mas já havia expiado esse erro na Terra, porque era obsidiado e a doença que o matou foi fruto da obsessão.”

La Bruyère

(Sociedade de Bordeaux — Médium: Sra. Cazemajoux)

1. Evocação.

Resp. — Eis-me aqui.

2. Nossa evocação vos dá prazer?

Resp. — Sim, já que pouquíssimos de vós pensam neste pobre Espírito zombador.

3. Qual a vossa posição no mundo espírita?

Resp. — Feliz.

4. Que pensais da geração dos homens que vivem atualmente na Terra?

Resp. — Penso que não progrediram muito em moralidade, pois se vivesse entre eles eu poderia aplicar os meus Caracteres com a mesma verdade que os assinalou quando eu vivia. Encontro os meus glutões, os meus egoístas, os meus orgulhosos na mesma situação em que os deixei quando morri.

5. Vossos Caracteres gozam de merecida reputação. Qual a vossa opinião atual sobre as vossas obras?

Resp. — Penso que não tinham o mérito que lhas atribuís, porquanto teriam produzido outro resultado. Mas acho que nem todos os que as lêem se comparam a qualquer daqueles retratos, embora a maioria seja de surpreendente verdade. Tendes todos uma pequena dose de amor-próprio, suficiente para aplicar ao próximo os vossos defeitos pessoais e jamais vos reconheceis quando sois pintados com traços verídicos.

6. Acabastes de dizer que os Caracteres poderiam ser hoje aplicados com a mesma verdade. Então não achais os homens mais adiantados?

Resp. — Em geral a inteligência avançou, mas a melhora não deu um passo. Se Molière e eu ainda pudéssemos escrever, não faríamos outra coisa, senão aquilo que fizemos: trabalhos inúteis, que vos advertiriam sem vos corrigir. O Espiritismo será mais feliz. Pouco a pouco vos conformareis à sua doutrina e reformareis os vícios que em vida vos chamamos a atenção.

7. Pensais que a Humanidade ainda seja rebelde às advertências que lhe são dadas pelos Espíritos encarnados em missão na Terra e pelos Espíritos que os vêm ajudar?

Resp. — Não; a época do progresso e da renovação da Terra e de seus habitantes chegou. É por isso que os Espíritos bons vêm prestar-vos o seu concurso. Disse-vos bastante esta noite, mas prepararei um dos meus Caracteres para daqui a alguns dias.

8. Vossos Caracteres não podem ser aplicados também a alguns Espíritos errantes, movidos por idênticos sentimentos?

Resp. — A todos os que ainda têm, no estado de Espírito, essas mesmas paixões que em vida os dominavam. Perdoai-me a franqueza, mas, quando me chamardes, eu vos direi as coisas sem fineza e sem rodeios.

Jean de La Bruyère


Poesias Espíritas

(Sociedade Espírita de Bordeaux — Médium: Sra. Cazemajoux)

Crede nos Espíritos do Senhor

Acreditai em nós; somos centelha,

Raio brilhante do seio de Deus,

Que sobre uma alma nova se assemelha

À ternura do céu aos prantos seus.

Acreditai em nós: chama ligeira

De errante Espírito pelos jazigos

Vem afastar o obstáculo, a barreira

Que entre nós foram assim postos, amigos.

Acreditai em nós; trevas, mentiras

São dispersadas, que é do céu que vimos,

Ternos, alegres repor-vos nas liras

Dos sonhos bons o dulçor que sentimos.

Acreditai em nós; nós que erramos no espaço

Para guiar-vos ao Bem. Crede em nós

Que vos amamos... E cada hora ou passo,

Caros irmãos, nos conduz a vós.

Elisa Mercoeur

As Vozes do Céu

Vozes do céu que suspiram na brisa,

Murmuram no ar e percutem nas ondas;

E da floresta que os montes divisa

Os seus suspiros ecoam nas sondas.

Vozes do céu se agitam na folhagem

Nos verdes prados, dos bosques nos cantos,

Junto da fonte em que é mais pura a aragem

Canta o poeta seus versos em pranto.

Vozes do céu cantam nos arvoredos,

No loiro trigo, nos jardins em flores,

No azul que às nuvens repete segredos,

E no arco-íris de esplêndidas cores.

Vozes do céu, em silêncio elas choram;

Vos recolhei, falam ao coração;

São os Espíritos bons que então oram

E ao Criador enfim vos levarão.

Elisa Mercoeur


Dissertações Espíritas

Os Mártires do Espiritismo

A respeito da questão dos milagres do Espiritismo, que nos tinha sido proposta e que foi tratada em nosso último número, também nos propuseram esta pergunta: “Os mártires selaram com o próprio sangue a verdade do Cristianismo. Onde estão os mártires do Espiritismo?”

Tendes, pois, muita pressa em ver os espíritas na fogueira e atirados às feras, o que leva a supor que boa vontade não vos faltaria se isto ainda pudesse acontecer. Quereis, a todo custo, promover o Espiritismo à categoria de uma religião! Notai que ele jamais teve essa pretensão; nunca se colocou como rival do Cristianismo, do qual declara ser filho; que combate seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo. Ainda uma vez, é uma filosofia que repousa sobre as bases fundamentais de toda religião e na moral do Cristo; se renegasse o Cristianismo, ele se desmentiria e se suicidaria. São seus inimigos que o apresentam como uma nova seita, que lhe deram sacerdotes e sumo-sacerdotes. De tanto gritarem que é uma religião, as pessoas acabarão por crer. É preciso ser uma religião para possuir seus mártires? A Ciência, as artes, o gênio, o trabalho e as ideias novas não tiveram, em todas as épocas, os seus mártires?

Não ajudam a fazer mártires os que apontam os espíritas como reprovados, como párias de quem se deve fugir ao contato? os que sublevam contra eles a populaça ignorante a ponto de lhes tirar os meios de subsistência, esperando vencê-los pela fome, em falta de boas razões? Bela vitória se o conseguissem! Mas a semente está lançada e germina em toda parte; se for abafada num ponto, crescerá em cem outros. Tentai, pois, ceifar a terra inteira!

Deixemos, porém, que falem os Espíritos encarregados de responder à questão.

I

Pedistes milagres e hoje pedis mártires! Já existem os mártires do Espiritismo: entrai nas casas e os vereis. Exigis perseguidos: abri, pois, o coração desses fervorosos adeptos da ideia nova, que lutam contra os preconceitos, com o mundo, muitas vezes até com a família! Como seus corações sangram e se enchem quando seus braços se estendem para abraçar um pai, uma mãe, um irmão ou uma esposa e não recebem, como paga de suas carícias e de seus transportes, senão sarcasmos, sorrisos de desdém e desprezo! Os mártires do Espiritismo são os que, a cada passo, ouvem estas palavras insultuosas: louco, insensato, visionário!... e durante muito tempo terão de suportar essas afrontas da incredulidade e outros sofrimentos ainda mais amargos; mas a sua recompensa será bela, porque se o Cristo mandou preparar um lugar soberbo para os mártires do Cristianismo, o que prepara aos mártires do Espiritismo será ainda mais brilhante. Mártires do Cristianismo na infância, marchavam para o suplício com coragem e resignação, porque não contavam sofrer senão dias, horas e segundos do martírio, aspirando depois a morte como única barreira a transpor para viver a vida celeste. Os mártires do Espiritismo não devem buscar nem desejar a morte; devem sofrer tanto tempo quanto praza a Deus deixá-los na Terra, e não ousam julgar-se dignos dos puros gozos celestes logo que deixam a vida. Oram e esperam, murmurando palavras de paz, de amor e de perdão aos que os torturam, enquanto aguardam novas encarnações nas quais poderão resgatar suas faltas passadas.

O Espiritismo se elevará como um templo soberbo. No começo os degraus serão difíceis de subir; mas, transpostos os primeiros degraus, os Espíritos bons ajudarão a vencer os outros até um lugar plano e reto que conduz a Deus.

Ide, ide, filhos, pregar o Espiritismo! Pedem mártires: vós sois os primeiros que o Senhor marcou, pois sois apontados a dedo e tratados como loucos e insensatos, por causa da verdade! Mas, eu vo-lo digo, em breve vai chegar a hora da luz; então, não mais haverá perseguidores nem perseguidos: sereis todos irmãos e o mesmo banquete reunirá opressores e oprimidos!

Santo Agostinho (Médium: Sr. E. Vézy)

II

O progresso do tempo substituiu as torturas físicas pelo martírio da concepção e do nascimento cerebral das ideias que, filhas do passado, serão as mães do futuro. Quando o Cristo veio destruir o costume bárbaro dos sacrifícios, quando veio proclamar a igualdade e a fraternidade entre a túnica proletária e a toga patrícia, os altares ainda vermelhos fumegavam o sangue das vítimas imoladas; os escravos tremiam ante os caprichos do senhor e os povos, ignorando sua grandeza, esqueciam a justiça de Deus. Nesse estado de rebaixamento moral, as palavras do Cristo teriam sido impotentes e desprezadas pela multidão, se não tivessem sido gritadas pelas suas chagas e tornadas sensíveis pela carne palpitante dos mártires. Para ser cumprida, a misteriosa lei das semelhanças exigia que o sangue derramado pela ideia resgatasse o sangue derramado pela brutalidade.

Hoje, os homens pacíficos ignoram as torturas físicas. Só o seu ser intelectual sofre, porque se debate, comprimido pelas tradições do passado, enquanto aspira novos horizontes. Quem poderá descrever as angústias da geração presente, suas dúvidas pungentes, suas incertezas, seus ardores impotentes e sua extrema lassidão? Inquietos pressentimentos dos mundos superiores, dores ignoradas pela antiguidade material, que só sofria quando não gozava; dores que são a tortura moderna e que transformam em mártires aqueles que, inspirados pela revelação espírita, crerão e não serão acreditados, falarão e serão censurados, marcharão e serão repelidos. Não desanimeis; vossos próprios inimigos vos preparam uma recompensa tanto mais bela quanto mais espinhos houverem semeado em vosso caminho.

Lázaro (Médium: Sra. Costel)

III

Como bem dizeis, em todos os tempos a crença tem produzido mártires. Mas, também — é preciso que se diga — muitas vezes o fanatismo estava de ambos os lados e então, quase sempre, corria sangue. Hoje, graças aos moderadores das paixões, aos filósofos ou, antes, graças a essa filosofia que começou com os escritores do século dezoito, o fanatismo apagou o seu facho e embainhou a espada. Em nosso tempo é difícil imaginar a cimitarra de Maomé, a forca e a roda[6] da Idade Média, suas fogueiras e torturas de toda sorte, assim como não fazemos ideia das feiticeiras e dos magos. Outros tempos outros costumes, diz um sábio provérbio. Como vedes, a palavra costumes tem aqui acepção muito ampla; conforme a sua etimologia latina, significa: hábitos, maneira de viver. Ora, em nosso século, nossa maneira de ser não é de cobrir-se com cilício, ir às catacumbas nem de subtrair suas preces aos procônsules e aos magistrados da cidade de Paris. O Espiritismo, pois, não verá erguer-se o machado, nem a chama das fogueiras devorarem os seus adeptos. A gente se bate a golpes de ideias, a golpes de livros, a golpes de comentários, a golpes de ecletismo e a golpes de teologia, mas a noite de São Bartolomeu não mais se repetirá. Certamente poderá haver algumas vítimas nas nações atrasadas; contudo, somente a ideia será combatida e ridicularizada nos centros civilizados. Assim, pois, nada de machado, de feixe de varas, de óleo fervente; mas atentai para o espírito voltaireano mal compreendido: eis o carrasco. É preciso preveni-lo, mas não temê-lo: ele ri, em vez de ameaçar; lança o ridículo, em vez da blasfêmia e seus suplícios são as torturas do espírito que sucumbe à opressão do sarcasmo moderno. Mas, sem desagradar aos pequenos Voltaires de nossa época, a juventude compreenderá facilmente essas três palavras mágicas: liberdade, igualdade, fraternidade. Quanto aos sectários, estes são mais para temer, porque são sempre os mesmos, malgrado o tempo e apesar de tudo; podem fazer o mal algumas vezes, mas são incoerentes, fingidos, velhos e impertinentes. Ora, vós que passais pela fonte de Juventa, e cuja alma remoça e se revigora, não os temais, porque o seu próprio fanatismo os perderá.

Lamennais (Médium: Sr. A. Didier)

Ataques à Ideia Nova

Como vedes, começam a comentar as ideias espíritas até nos cursos de teologia e a Revista Católica tem a pretensão de demonstrar ex-professo, como dizem, que o Espiritismo atual é obra do demônio, conforme se depreende do artigo Satanismo no Espiritismo moderno, publicado naquela revista. Ah! deixai-os falar e acontecer. O Espiritismo é como o aço, e todas as serpentes possíveis usarão os dentes para o morder. Seja como for, há um fato digno de nota: é que outrora desdenhavam ocupar-se com os que moviam cadeiras e mesas, ao passo que hoje muitos se ocupam com esses inovadores, cujas ideias e teorias se elevaram à altura de uma doutrina. Oh! é que esta doutrina, esta revelação abre brecha em todas as antigas doutrinas, em todas as velhas filosofias, insuficientes para satisfazerem as necessidades da razão humana. Assim, sacerdotes, cientistas, jornalistas, descem à arena empunhando a pena para repelir a ideia nova: o progresso. Ora! que importa! não é uma prova irrefragável da propagação dos nossos ensinamentos? Ah! não se discute, não se combate senão as ideias realmente sérias e bastante partilhadas, que não podem ser tomadas como utopias, como quimeras que emanam de um cérebro doente. Aliás, melhor que ninguém podeis observar com que rapidez o Espiritismo recruta adeptos diariamente, e isto até nas fileiras esclarecidas do Exército, entre oficiais de todas as armas. Não vos inquieteis, pois, com todos esses infelizes que uivam à toa, porquanto já não sabem onde estão: perderam as estribeiras! Suas certezas, suas probabilidades se desvanecem ante o facho do Espiritismo, porque, no fundo de suas consciências, sentem que apenas nós estamos com a verdade. Digo nós porque hoje, Espíritos ou encarnados, só temos um objetivo: a destruição das ideias materialistas e a regeneração da fé em Deus, a quem tudo devemos.

Erasto (Médium: Sr. d’Ambel)

Perseguição

Muito bem, meus filhos! Bravo! Sinto-me feliz por vos ver reunidos, lutando com zelo e persistência. Coragem! trabalhai arduamente no campo do Senhor, porque chegará o momento em que não será apenas a portas fechadas que se pregará a doutrina santa do Espiritismo.

Flagelaram a carne; terão de flagelar o Espírito. Ora, em verdade vos digo: quando isto acontecer, estareis prestes a entoar, juntos, o cântico de ação de graças, e todos estaremos prontos a ouvir um só e mesmo grito de alegria sobre a Terra. Mas — eu vo-lo digo — antes da idade de ouro e do reinado do Espírito, é preciso que haja grande sofrimento, choro e ranger de dentes.

As perseguições já começaram. Espíritas! sede firmes e mantende-vos de pé: estais marcados pela unção do Senhor. Sereis chamados de insensatos, de loucos e de visionários. Não mais ferverão o óleo, nem erguerão cadafalsos e fogueiras; o fogo de que se servirão para vos fazer renunciar às vossas crenças será mais ardente e ainda mais vivo. Espíritas! Despojai-vos do homem velho, pois é a este que farão sofrer. Que vossas novas túnicas sejam brancas; cingi vossas frontes com coroas e preparai-vos para entrar na liça. Sereis amaldiçoados; deixai que vossos irmãos vos digam raca; orai por eles e afastai de suas cabeças o castigo que o Cristo disse reservar aos que disserem raca aos seus irmãos.

Preparai-vos para as perseguições pelo estudo, pela prece, pela caridade. Os servos serão expulsos das casas de seus senhores e tratados como loucos. Mas encontrarão o Samaritano à porta da casa e, não obstante pobres e nus, ainda partilharão entre si as vestes e o último naco de pão. Ante tal espetáculo, os patrões perguntarão: Mas, quem são esses homens que expulsamos de nossas casas? Não dispõem senão de um pedaço de pão para esta noite e o dão!; só possuem um manto para se cobrirem e o dividem com um estranho! Então suas portas se abrirão novamente, pois vós é que sois os servidores do Mestre. Mas desta vez eles vos acolherão e vos abraçarão; suplicarão com insistência que os abençoem e os ensinem a amar. Não mais vos chamarão servos ou escravos, mas vos dirão: Meu irmão, vem assentar-te à minha mesa. Há uma só e mesma família na Terra, como há um só e mesmo pai no Céu.

Ide, ide, meus irmãos! Pregai e, sobretudo, sede unidos: o céu vos está preparado.

Santo Agostinho (Médium: Sr. E. Vézy)


Bibliografia

O Espiritismo na sua expressão mais simples, do qual foram vendidos cerca de dez mil exemplares, está sendo reimpresso com várias correções importantes. Sabemos que já está traduzido em alemão, em russo e em polonês. Concitamos os tradutores a se sujeitarem ao texto da nova edição. Recebemos de Viena (Áustria) a tradução alemã, publicada naquela cidade, onde se forma uma sociedade espírita, sob os auspícios da de Paris.

O segundo volume das Revelações de Além-Túmulo, pela Sra. H. Dozon está no prelo.

Chamamos novamente a atenção dos nossos leitores para a interessante brochura da Srta. Clémence Guérin, intitulada: Ensaio biográfico de Andrew Jackson Davis, um dos principais escritores espiritualistas dos Estados Unidos. — Livraria Ledoyen. Preço, 1 franco.

Allan Kardec



[1] N. do T.: Vide Revista Espírita, julho de 1860: Frenologia e Fisiognomonia.

[2] Vide a Revista de março de 1861: A Cabeça de Garibaldi.

[3] Vide a Revista Espírita de outubro de 1861: Os cretinos.

[4] N. do T.: Allan Kardec, por certo, está se referindo aos Espíritos encarnados nas tribos incultas, selvagens, então existentes em algumas regiões do planeta e que hoje, em contato com outros polos de civilização, vêm evoluindo progressivamente, como sói acontecer com as demais raças, seja qual for a coloração de sua pele.

[5] N. do T.: No original: Le Monde spirituel, ou Science chrétienne de communiquer intimement avec les puissances célestes et les âmes heureuses.

[6] N. do T.: Suplício que consistia em amarrar alguém numa espécie de cruz, quebrar-lhe os membros com uma clava e, em seguida, atar-lhe o corpo a uma roda, que era posta em movimento.


Maio de 1862

Exéquias do Sr. Sanson — Membro da Sociedade Espírita de Paris

Um dos nossos colegas, o Sr. Sanson faleceu em 21 de abril de 1862, depois de mais de um ano de cruéis sofrimentos. Prevendo a morte, enviara uma carta à Sociedade, datada de 27 de agosto de 1860, da qual extraímos a seguinte passagem:

“Caro e distinto Presidente,

“Em caso de surpresa pela desagregação de minha alma e de meu corpo, tenho a honra de vos lembrar um pedido feito há cerca de um ano: o de evocar o meu Espírito o mais imediatamente possível e tantas vezes quanto julgardes conveniente, a fim de que, membro inútil de nossa Sociedade durante a minha presença na Terra, possa servir-lhe em alguma coisa no além-túmulo, dando-lhe os meios de estudar nessas evocações, fase por fase, as diversas circunstâncias que se seguem ao que o vulgo chama a morte, mas que para nós, espíritas, não passa de uma transformação, segundo as vistas impenetráveis de Deus, mas sempre útil ao fim a que se propõe.

“Além desta autorização e pedido de me dar a honra dessa espécie de necropsia espiritual, que meu insignificante avanço como Espírito talvez torne estéril, caso em que a vossa sabedoria por certo vos levará a não prosseguir os ensaios além de um certo número, ouso pedir-vos, pessoalmente, bem como a todos os meus colegas, que supliquem ao Todo-Poderoso permitir aos Espíritos bons que me assistam com seus conselhos benevolentes, em particular a São Luís, nosso presidente espiritual, com vistas a me guiar na escolha e no momento de uma reencarnação; porque, desde já, isto me preocupa bastante. Tremo de me enganar quanto às minhas forças espirituais e de pedir a Deus, cedo demais e muito presunçosamente, um estado corporal no qual não pudesse justificar a bondade divina, o que, em vez de servir ao meu adiantamento, prolongaria a minha estada na Terra ou alhures, caso eu falisse.

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“Contudo, tendo toda confiança na mansuetude e na indulgente equidade de nosso Criador e de seu divino Filho, e, enfim, esperando sofrer com humildade e resignação a expiação de minhas faltas — salvo aquelas que a misericórdia do Eterno julgar por bem perdoar-me — repito: minha grande preocupação é o medo pungente de enganar-me na escolha de uma reencarnação, caso não fosse auxiliado e guiado pelos Espíritos santos e benevolentes, que poderiam julgar-me indigno de sua intervenção se a isso fossem solicitados apenas por mim; no entanto, a comiseração desses benfeitores poderia ser despertada desde que, pela caridade cristã, fossem invocados por todos vós em meu benefício. Assim, tomo a liberdade de recorrer à vossa proteção, caro Presidente, e a todos os meus honrados colegas da Sociedade Espírita de Paris.”

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Para correspondermos ao desejo do nosso colega, de ser evocado o mais cedo possível depois da morte, fomos à câmara ardente com alguns membros da Sociedade e, em presença do corpo, estabeleceu-se a conversa que se segue, uma hora antes da inumação. Éramos movidos por um duplo objetivo: o de satisfazer à sua última vontade e mais uma vez observar a situação da alma num momento tão próximo da morte, e isto num homem eminentemente inteligente e esclarecido, profundamente penetrado das verdades espíritas. Queríamos constatar a influência de tais crenças sobre o estado do Espírito, a fim de colher as suas primeiras impressões. Nossa espera, como se verá, não foi vã; por certo cada um encontrará, como nós, um elevado ensino na descrição que ele faz do próprio instante da transição. Acrescentamos, no entanto, que nem todos os Espíritos estariam aptos a descrever esse fenômeno com tanta lucidez quanto ele o fez. O Sr. Sanson deu-se conta de sua morte e de seu renascimento, circunstância pouco comum e que se devia à elevação de seu Espírito.

1. Evocação.

Resp. — Acorro ao vosso apelo para cumprir a minha promessa.

2. Meu caro Sr. Sanson: cumprimos um dever, que também é um prazer, de vos evocar o mais cedo possível depois da vossa morte, como havíeis desejado.

Resp. — É uma graça especial de Deus, que permite ao meu Espírito poder comunicar-se. Agradeço a vossa boa vontade; mas estou fraco e tremo.

3. Estáveis tão doente que só agora julgamos ser possível perguntar como vos sentis. Ainda acusais dores? Que sensação experimentais, comparando a situação presente com a de dois dias atrás?

Resp. — Minha posição é bem feliz, porquanto nada mais sinto de minhas antigas dores; estou regenerado e em estado de novo, como dizeis. A transição da vida terrena à vida dos Espíritos a princípio me havia deixado tudo incompreensível, porque, às vezes, permanecemos alguns dias sem recobrar a lucidez. Mas, antes de morrer, fiz uma prece a Deus, pedindo-lhe poder falar àqueles a quem amo, e Deus me ouviu.

4. Depois de quanto tempo recobrastes a lucidez?

Resp. — Ao cabo de oito horas. Deus — eu vo-lo repito — me dera uma prova da sua bondade; tinha-me julgado digno e eu jamais lhe serei suficientemente grato por isso.

5. Estais bem certo de que não mais pertenceis ao nosso mundo? Como o constatais?

Resp. — Oh! certamente. Não; eu não sou mais do vosso mundo; mas estarei sempre perto de vós, para vos proteger e sustentar, a fim de pregar a caridade e a abnegação que foram os guias de minha vida; e, depois, ensinarei a fé verdadeira, a fé espírita, que deve exaltar a crença do justo e do bom. Estou forte, muito forte; numa palavra: transformado. Não mais reconheceríeis o velho enfermo, que devia tudo esquecer, deixando longe de si todos os prazeres, toda a alegria. Sou Espírito: minha pátria é o espaço e meu futuro é Deus, a irradiar-se na imensidade. Gostaria muito de poder falar aos meus filhos, pois lhes ensinaria aquilo que sempre tiveram má vontade para crer.

6. Que sensação produziu em vós o vosso corpo, aqui ao lado?

Resp. — Pobre corpo meu, ínfimos despojos, deves retornar ao pó! Quanto a mim, guardo boa lembrança de todos os que me estimavam. Olho esta pobre carne deformada, morada de meu Espírito, prova de tantos anos! Obrigado, meu pobre corpo; purificaste o meu Espírito e o sofrimento, dez vezes santo, deu-me um lugar bem merecido, pois que recobro imediatamente a faculdade de vos falar.

7. Conservastes o juízo até o último instante?

Resp. — Sim, meu Espírito conservou as faculdades. Eu não mais via, mas pressentia; toda a minha vida desdobrou-se ante a minha lembrança e meu último pensamento, minha última prece foi para vos falar, o que agora faço. Depois, pedi a Deus que vos protegesse, a fim de que o sonho de minha vida se realizasse.

8. Tivestes consciência do momento em que o vosso corpo exalava o último suspiro? Que se passou convosco naquele momento? Que sensação experimentastes?

Resp. — A vida se parte e a vista, ou, antes, a visão do Espírito se extingue; deparamo-nos com o vazio, com o desconhecido e, levados não sei por que sortilégio, nos encontramos num mundo onde tudo é alegria e grandeza. Não sentia mais, não me dava conta e, no entanto, uma felicidade inefável me enchia. Não mais sofria a opressão da dor.

9. Tendes ideia... do que pretendo ler junto à vossa sepultura?

Observação — Mal eram pronunciadas as primeiras palavras da pergunta o Espírito respondeu, sem deixar que o quesito fosse completado. E respondeu mais, sem ser perguntado, a uma questão que se havia estabelecido entre os assistentes, quanto à oportunidade de ler esta comunicação no cemitério, tendo em vista certas pessoas que poderiam não compartilhar de tais opiniões.

Resp. — Oh! meu amigo, eu sei, pois vos vi ontem e vos vejo hoje e minha satisfação é muito grande. Obrigado! obrigado!

Falai, a fim de que me compreendam e vos estimem. Nada temais, pois respeitam a morte. Falai, pois, a fim de que os incrédulos tenham fé. Adeus. Falai. Coragem, confiança, e que meus filhos possam converter-se a uma crença respeitável.

Adeus.

J. Sanson

Durante a cerimônia no cemitério ele ditou as seguintes palavras:

“Que a morte não vos apavore, meus amigos; ela é uma etapa para vós, se tiverdes sabido bem viver; uma felicidade, se tiverdes merecido dignamente as vossas provas e as tiverdes cumprido convenientemente. Repito: Coragem e boa vontade! Não ligueis aos bens da Terra senão medíocre valor e sereis recompensados; não se pode gozar muito sem atentar contra o bem-estar alheio, e sem causar a si próprio um imenso mal moral. Que a terra me seja leve!”

Nota — Depois da cerimônia, alguns membros da Sociedade se reuniram e receberam espontaneamente a seguinte comunicação, que estavam longe de esperar:

“Chamo-me Bernardo e vivi em 96[1], em Passy, então um vilarejo. Eu era um pobre coitado. Ensinava e só Deus sabe os dissabores que tive de suportar. Que tormento prolongado! anos inteiros de preocupações e sofrimentos! e eu amaldiçoei a Deus, ao diabo, aos homens em geral e às mulheres em particular; entre estas nenhuma me veio dizer: Coragem, paciência! Foi preciso viver só, sempre só e a maldade me tornou mau. Desde então erro pelos lugares onde vivi, onde morri.

“Eu vos ouvi falar hoje. Vossas preces me sensibilizaram profundamente. Acompanhastes um bom e digno Espírito e tudo quanto dissestes e fizestes me comoveu. Eu estava em numerosa companhia e, em comum, oramos por todos vós, pelo futuro de vossas santas crenças. Orai por nós, que necessitamos de socorro. O Espírito Sansão, que nos acompanhava, prometeu que pensaríeis em nós. Desejo reencarcerar, a fim de que minha prova seja útil e conveniente ao meu futuro no mundo dos Espíritos. Adeus meus amigos; falo assim porque amais os que sofrem. Para vós: bons pensamentos, futuro feliz.”

Como esse episódio se liga à evocação do Sr. Sanson, julgamos por bem mencioná-lo, porque encerra eminente assunto de instrução. Cremos cumprir um dever recomendando esse Espírito às preces de todos os verdadeiros espíritas; elas não poderão senão fortalecê-lo em suas boas resoluções.

A conversa com o Sr. Sanson foi retomada na sessão da Sociedade, na sexta-feira seguinte ao dia 25 de abril e deve ser continuada. Aproveitamos a sua boa vontade e as suas luzes para obter novos esclarecimentos, tão precisos quanto possível, sobre o mundo invisível, comparado com o visível, principalmente sobre a transição de um ao outro, o que interessa a todo o mundo, considerando-se que todas as criaturas, sem exceção, haverão de passar por isso. O Sr. Sanson prestou-se com a sua benevolência habitual. Aliás, como se viu, era seu desejo antes de morrer. Suas respostas formam um conjunto muito instrutivo e de um interesse tanto maior quanto emanam de uma testemunha ocular, que analisa ela mesma suas próprias sensações, exprimindo-se ao mesmo tempo com elegância, clareza e profundidade. Publicaremos a continuação em nosso próximo número.

Um fato importante a ser destacado é que o Sr. Leymarie, médium que serviu de intermediário no dia do enterro e nos dias subsequentes, jamais tinha visto o Sr. Sanson e não conhecia o seu caráter, nem a sua posição, nem os seus hábitos. Não sabia se tinha filhos e, menos ainda, se estes partilhavam ou não de suas ideias sobre o Espiritismo. É, pois, de modo inteiramente espontâneo que o Sr. Leymarie fala do assunto, revelando-se o caráter do morto pelo lápis do médium, sem que a imaginação deste último pudesse influenciar no que quer que fosse.

Um fato não menos curioso, e que prova não serem as comunicações o reflexo do pensamento, é a de Bernardo, em quem nenhum dos assistentes poderia pensar, porque, desde que o médium tomou o lápis, supôs-se que provavelmente seria um desses Espíritos habituais, Baluze ou Sonnet. Neste caso, dever-se-ia perguntar: do pensamento de quem aquela comunicação seria o reflexo?

DISCURSO DO SR. ALLAN KARDEC NO ENTERRO DO SR. SANSON

Senhores e caros colegas da Sociedade Espírita de Paris,

É a primeira vez que conduzimos um de nossos colegas à sua última morada. Este a quem vimos dizer adeus vós o conhecestes e soubestes apreciar as suas eminentes qualidades. Lembrando-as aqui eu não diria senão o que todos já sabeis: coração eminentemente reto, de uma lealdade a toda prova, sua vida foi a de um homem de bem em toda a acepção do termo; penso que ninguém protestará contra este testemunho. Essas qualidades ainda eram realçadas por grande bondade e extrema benevolência. Haverá necessidade de ter praticado ações brilhantes e de deixar um nome à posteridade? Por certo isto não lhe daria um lugar melhor no mundo onde agora se encontra. Se, pois, sobre a sua tumba não vamos deitar uma coroa de louros, todos quantos o conheceram aqui depositam, na sinceridade de sua alma, coroas mais preciosas ainda: as da estima e da afeição.

Como sabeis, senhores, o Sr. Sanson era dotado de uma inteligência pouco comum e de uma grande justeza de apreciação, ainda mais desenvolvida por uma instrução, ao mesmo tempo variada e profunda. De uma simplicidade patriarcal na maneira de viver ele hauria, dos recursos de seu próprio espírito, os elementos de uma incessante atividade intelectual que aplicava em pesquisas, em invenções, sem dúvida muito engenhosas, mas que, infelizmente, não lhe trouxeram nenhum resultado. Era um desses homens que jamais se aborrecem, porque estão sempre a pensar em algo sério. Embora sua posição o tivesse privado daquilo que faz as delícias da vida, seu bom humor jamais se alterava. Creio não exagerar dizendo que ele era o tipo do verdadeiro filósofo, não do filósofo cínico, mas daquele que está sempre contente com o que tem, sem jamais se atormentar pelo que não possui.

Esses sentimentos por certo constituíam o fundo de seu caráter, mas, nos últimos anos, foram singularmente fortalecidos por suas crenças espíritas; elas o auxiliaram a suportar longos e cruéis sofrimentos com uma paciência e uma resignação verdadeiramente cristãs. Não há um só dentre nós que, o tendo visto em seu leito de dor, não se tenha edificado com a sua calma e com a sua inalterável serenidade. Desde muito tempo ele previa o seu fim, mas, longe de se assustar, o esperava como a hora da libertação. Ah! é que a fé espírita proporciona, nesses momentos supremos, uma força da qual só se dá conta aquele que a possui, e essa força o Sr. Sanson a possuía em grau supremo.

O que é, então, a fé espírita? talvez perguntem alguns dos que me ouvem. — A fé espírita consiste na convicção íntima de que temos uma alma; que esta alma, ou Espírito, o que é a mesma coisa, sobrevive ao corpo; que é feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal que fez durante a vida. Dirão que isso é do conhecimento de todos. Sim, exceto dos que creem que tudo se acaba quando morremos, e estes são mais numerosos do que se pensa neste século. Assim, segundo estes últimos, os despojos mortais que temos sob os nossos olhos e que estarão, dentro de alguns dias, reduzidos a pó, será tudo quando restaria daquele a quem pranteamos. Assim, viemos prestar homenagem a quem? a um cadáver; porque de sua inteligência, de seu pensamento, das qualidades que o faziam amar, nada restará, tudo será aniquilado, como sucederá conosco, quando morrermos! Esta ideia do nada que nos aguarda não tem algo de pungente, de glacial?

Quem é que, em presença desse túmulo entreaberto, não sente correr um arrepio nas veias, só de pensar que amanhã, talvez, o mesmo lhe acontecerá e que, depois de umas padejadas de terra, lançadas sobre o seu corpo, tudo estará terminado para sempre? Depois de tudo isto, quem não pensará mais, não sentirá e não amará de modo mais intenso? Mas ao lado dos que negam, há o número maior ainda dos que duvidam, por não terem uma certeza positiva, e para os quais a dúvida é uma tortura.

Todos vós que credes firmemente que o Sr. Sanson tinha uma alma, que pensais em que se tenha ela tornado? onde está? o que faz? Direis: Ah! se pudéssemos saber! jamais a dúvida teria entrado em nosso coração. Sondai bem o fundo dos vossos pensamentos e convencei-vos de que já aconteceu, a vários dentre vós, falando da vida futura, dizer: “E se não fosse assim?” E dizíeis isso porque não a compreendíeis, porque dela fazíeis uma ideia que não podia conciliar-se com a vossa razão.

Pois bem! o Espiritismo vem fazê-la compreendida; vem, por assim dizer, tocá-la com o dedo e fazer com que seja vista; vem torná-la tão palpável, tão evidente, que negá-la seria negar a própria luz.

Em que se tornou, então, a alma do nosso amigo? Está aqui, ao nosso lado, ouvindo-nos e penetrando o nosso pensamento, julgando o sentimento que cada um alberga nesta triste cerimônia. Esta alma não é o que vulgarmente pensam: uma chama, uma centelha, algo vago e indefinido. Não a vereis, conforme as ideias supersticiosas, correr à noite pela terra como um fogo-fátuo. Não; ela tem uma forma, um corpo como em vida; mas um corpo fluídico, vaporoso, invisível aos nossos sentidos grosseiros e que, no entanto, sob determinadas condições, pode tornar-se visível. Quando este envoltório está gasto e não mais pode funcionar, cai, como a casca de um fruto maduro e a alma o abandona como se deixasse uma roupa velha, que já não serve para nada. É este envoltório da alma do Sr. Sanson, é esta velha roupa que o fazia sofrer, que está no fundo da cova: é tudo o que há dele; mas conservou o envoltório etéreo, indestrutível, radioso, que não está sujeito nem às doenças, nem às enfermidades. É assim que está entre nós. Mas não penseis que esteja só; aqui se acham milhares deles no mesmo caso, que assistem às despedidas que fazemos àquele que parte, e que vêm felicitar o recém-chegado por ter-se libertado das misérias terrestres. De sorte que, se neste momento, o véu que os oculta à nossa vista pudesse ser levantado, veríamos toda uma multidão a nos acotovelar, circulando entre nós, e nesse número veríamos o Sr. Sanson, não mais impotente e deitado no seu leito de sofrimento, mas alerta, lépido, locomovendo-se sem esforço, de um local a outro, com a rapidez do pensamento, sem ser detido por nenhum obstáculo.

Estas almas, ou Espíritos, constituem o mundo invisível, em meio ao qual vivemos sem o perceber, de modo que os parentes e amigos que perdemos estão mais perto de nós depois da morte do que se, em vida, estivessem num país estrangeiro.

É a existência desse mundo invisível que o Espiritismo demonstra, pelas relações que com ele é possível estabelecer, e porque aí encontramos aqueles que conhecemos. Já não se trata de uma vaga esperança: é uma prova patente. Ora, a prova do mundo invisível é a prova da vida futura. Adquirida esta certeza, as ideias mudam completamente, porque a importância da vida terrena diminui à medida que cresce a da vida futura. Esta a fé no mundo invisível que possuía o Sr. Sanson. Via e compreendia tão bem que, para ele, a morte era apenas um limiar a transpor, a fim de passar de uma vida de dores e de misérias para uma vida bem-aventurada.

A serenidade de seus últimos instantes era, pois, ao mesmo tempo, o resultado de sua confiança absoluta na vida futura, que ele já entrevia, e uma consciência irreprochável, que lhe dizia nada dever recear. Esta fé tinha sido haurida no Espiritismo, porque — forçoso é reconhecer — antes da época em que conheceu esta doutrina consoladora era céptico, embora não fosse materialista. Mas suas dúvidas cederam ante a evidência dos fatos que testemunhou; desde então, tudo mudou para ele. Colocando-se, pelo pensamento, fora da vida material, não mais a via senão como um dia maravilhoso entre um número infinito de dias felizes. Longe de se lamentar da amargura da vida, bendizia os sofrimentos como provas que deveriam acelerar o seu progresso.

Caro Sr. Sanson, sois testemunha da sinceridade do pesar de todos nós que vos conhecemos e cuja afeição sobrevive à vossa morte. Em nome de todos os meus colegas presentes e ausentes, em nome de todos os vossos parentes e amigos, eu vos digo adeus, mas não um eterno adeus, o que seria uma blasfêmia contra a Providência e uma negação da vida futura. Nós, espíritas, menos que as demais pessoas, não devemos pronunciar esta palavra.

Até à vista, pois, caro Sr. Sanson. Que possais fruir, no mundo em que vos encontrais agora, da felicidade que mereceis e vir estender-nos a mão, quando chegar a nossa vez de nele entrar.

Permiti-me, senhores, pronunciar uma curta prece sobre esta tumba, antes que ela seja fechada:

“Deus Todo-Poderoso, que a vossa misericórdia se estenda sobre a alma do Sr. Sanson, que acabais de chamar. Possam as provas que sofreu na Terra lhe serem levadas em conta, e as nossas preces suavizar e abreviar as penas que talvez ainda tenha de suportar como Espírito!

“Espíritos bons que viestes recebê-la, e sobretudo vós, seu anjo-da-guarda, assisti-a, para auxiliá-la a se desembaraçar da matéria; dai-lhe a luz e a consciência de si mesma, a fim de subtraí-la da perturbação que acompanha a passagem da vida corporal à vida espiritual. Inspirai-lhe o arrependimento das faltas cometidas e que lhe seja permitido o desejo de as reparar, a fim de apressar o seu progresso para a vida eterna bem-aventurada.

“Alma do Sr. Sanson, que acabais de entrar no mundo dos Espíritos, estais presente entre nós; vedes e nos ouvis, porquanto entre vós e nós não há senão o corpo perecível, que há pouco deixastes e que logo será reduzido a pó.

“Esse corpo, instrumento de tantas dores, ainda está lá, ao vosso lado. Vós o vedes como o prisioneiro vê as cadeias de que acaba de se libertar. Abandonastes o vosso invólucro grosseiro, sujeito às vicissitudes e à morte, apenas conservando o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos sofrimentos. Se já não viveis pelo corpo, viveis a vida do Espírito, e esta vida é isenta das misérias que afligem a Humanidade.

“Não mais tendes o véu que oculta aos nossos olhos os esplendores da vida futura; doravante podereis contemplar novas maravilhas, enquanto ainda estamos mergulhados nas trevas.

“Ireis percorrer o espaço e visitar os mundos em completa liberdade, enquanto nos arrastamos penosamente na Terra, retidos pelo nosso corpo material, que se nos assemelha fardo por demais pesado.

“O horizonte do infinito vai desdobrar-se diante de vós e, na presença de tanta grandeza, compreendereis a esterilidade de nossos desejos terrenos, de nossas ambições mundanas e de nossas vãs alegrias, transformadas em delícias pelos homens.

“Entre os homens a morte não passa de uma separação material que dura alguns instantes. Do lugar do exílio, onde ainda nos retém a vontade de Deus, bem como os deveres que devemos cumprir na Terra, nós vos seguimos em pensamento até quando nos for permitido reunir-nos a vós, como agora vos reunis àqueles que vos precederam.

“Se não pudermos ir até vós, podeis vir a nós. Vinde, pois, entre os que vos amam e que amastes; sustentai-os nas provas da vida; velai pelos que vos são caros; protegei-os conforme o vosso poder e abrandai os seus pesares pelo pensamento de que agora estais mais feliz e pela certeza consoladora de que um dia estaremos reunidos num mundo melhor.

“Que, doravante, para a vossa felicidade futura, possais ficar inacessível aos ressentimentos terrenos! Perdoai aos que cometeram faltas para convosco, como eles vos perdoam as que podeis ter cometido para com eles.” Amém.


Conversas Familiares de Além-Túmulo

O Capitão Nivrac

(Morto em 11 de fevereiro de 1862. Evocado a pedido do capitão Blou, seu amigo e membro da Sociedade — Médium: Sr. Leymarie)

O Sr. Nivrac tinha uma inteligência notável e era nutrido por sérios estudos. Em vão o Sr. Blou lhe havia falado do Espiritismo e ofertado todas as obras que tratavam da matéria. Encarava todas essas coisas como utopias e os que lhes davam fé como sonhadores. A 1º de fevereiro ele passeava com um de seus camaradas, zombando desse assunto, como era de seu costume, quando, passando diante da livraria, viram a brochura O Espiritismo na sua expressão mais simples. Uma boa inspiração, diz o Sr. Blou, que a comprou, o que provavelmente não teria feito se eu estivesse presente. Desde esse dia o capitão Nivrac leu O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e alguns números da Revista Espírita. Seu espírito e seu coração ficaram impressionados. Longe de ridicularizar, vinha fazer-me perguntas, tornando-se zeloso propagandista do Espiritismo entre os oficiais, a tal ponto que, durante oito dias, a doutrina nova foi o assunto de todas as conversas. Desejava muito assistir a uma sessão, quando a morte o veio surpreender sem nenhuma causa aparente de doença. Terça-feira, 11 de fevereiro, estando no banho, expirava às quatro horas nos braços do médico. “Não estará aí o dedo de Deus, permitindo que o meu amigo abrisse os olhos à luz antes de morrer?” — pergunta o capitão Blou.

1. Evocação.

Resp. — Compreendo por que desejais falar-me. Sinto-me feliz com esta evocação e é com alegria que venho a vós, pois é um amigo que me pede e nada me podia ser mais agradável.

Observação — O Espírito antecipa-se à pergunta que ia ser feita, que era a seguinte: “Embora não tenhamos o privilégio de vos haver conhecido, pedimos que viésseis em nome do vosso amigo, capitão Blou, nosso colega, e ficaremos muito contentes por conversar convosco, se assim quiserdes.”

2. Sois feliz... (O Espírito não deixa concluir a pergunta, que assim termina: ...por ter conhecido o Espiritismo antes de morrer?)

Resp. — Sou feliz porque acreditei antes de morrer. Lembro-me das discussões que tive contigo, meu amigo, porque repelia todas as doutrinas novas. Para dizer a verdade, eu estava abalado: dizia à minha esposa, à minha família que era loucura dar ouvidos a semelhantes frivolidades e que te julgava maluco; eu o pensava, mas, felizmente, pude crer e esperar. Minha posição é mais feliz, porque Deus me promete um avanço muito desejado.

3. Como pôde uma pequena brochura de algumas páginas exercer mais influência sobre vós que as palavras de um amigo, em quem devíeis confiar?

Resp. — Eu estava abalado, porque a ideia de uma vida melhor está no fundo de todas as encarnações [2]. Acreditava instintivamente, mas as ideias do soldado haviam modificado meus pensamentos; eis tudo. Quando li a brochura fiquei emocionado; achei aquilo o enunciado de uma doutrina tão clara, tão precisa, que Deus me apareceu na sua bondade. O futuro pareceu-me menos sombrio. Acreditei, porque devia crer, e a brochura satisfazia ao meu coração.

4. De que morrestes?

Resp. — Morri de uma comoção cerebral. Deram várias razões; era uma efusão do cérebro. O tempo estava marcado e eu devia partir.

5. Poderíeis descrever as sensações que experimentastes no momento da morte e depois do vosso despertar?

Resp. — A passagem da vida à morte é uma sensação dolorosa, mas rápida. Pressentimos tudo quanto pode acontecer; a vida se apresenta por inteiro, espontaneamente, como uma miragem, e temos vontade de retomar todo o passado, a fim de purificar os maus dias; e este pensamento nos acompanha na transição espontânea da vida à morte, que não passa de uma outra vida. Ficamos como que aturdidos pela luz nova e me vi numa confusão de ideias bastante singular. Eu não era um Espírito perfeito; entretanto, pude dar-me conta e dou graças a Deus por me haver esclarecido antes de morrer.

Observação — Esse quadro da passagem da vida à morte tem uma analogia impressionante com o dado pelo Sr. Sanson. Frisamos que não se tratava do mesmo médium.

6. Vossa situação atual seria diferente, caso não tivésseis conhecido e aceitado as ideias espíritas?

Resp. — Sem dúvida. Mas eu era de uma natureza franca e boa e, conquanto não seja muito adiantado, não é menos certo que Deus recompensa toda decisão boa, até mesmo a última.

7. É inútil perguntar se... O Espírito não deixa concluir a pergunta, que é assim concebida: “Ides ver vossa esposa e filha, mas não vos podeis fazer ouvir. Quereis que lhes transmitamos alguma coisa de vossa parte?

Resp. — Sem dúvida; estou sempre perto dela.

Encorajo-a a ter paciência e lhe digo: Coragem, amiga; enxugai as lágrimas e sorri a Deus, que vos fortalecerá. Pensai que minha existência é um avanço, uma purificação, e que necessito do auxílio de vossas preces. Desejo, com todas as minhas forças, uma nova encarnação e, embora a separação terrestre seja cruel, lembrai que vos amo, que estais só e tendes necessidade de boa saúde e de resignação para vos manter. Mas estarei ao vosso lado para vos encorajar, abençoar e amar.

8. Temos certeza de que vossos camaradas do regimento ficariam muito felizes se recebessem algumas palavras vossas. A esta pergunta junto outra que, talvez, encontre lugar em vossa alocução. Até agora o Espiritismo quase não se propagou no Exército, salvo entre os oficiais. Pensais que também seria útil a sua divulgação entre os soldados? qual seria o resultado?

Resp. — É preciso que a cabeça se torne séria, para que o corpo a siga, e compreendo que os oficiais tenham primeiro aceitado essas soluções filosóficas e sensatas, dadas por O Livro dos Espíritos. Por essas leituras, o oficial compreende melhor o seu dever; torna-se mais sério, menos sujeito a zombar da tranquilidade das famílias; habitua-se à ordem no seu interior e o hábito de comer e beber deixam de constituir os principais móveis de sua vida. Por eles os suboficiais aprenderão e propagarão; saberão poder, se o quiserem. Digo-lhes: avante! sempre avante! É um novo campo de batalha da Humanidade; apenas sem feridas, sem metralha, mas em toda a parte a harmonia, o amor e o dever. E o soldado será um homem liberal no bom sentido; terá coragem e boa vontade, que fazem do operário um bom cidadão, um homem segundo Deus.

Segui, pois, o novo rumo. Sede apóstolos conforme Deus e dirigi-vos ao infatigável propagador da doutrina, autor do opúsculo que me esclareceu.

Observação — A respeito da influência do Espiritismo sobre o soldado, numa outra ocasião foi ditada a seguinte comunicação:

O soldado que se torna espírita é mais fácil de governar, mais submisso, mais disciplinado, porque a submissão lhe será um dever sancionado pela razão, ao passo que, na maioria das vezes, é apenas o resultado do constrangimento. Eles não mais se embrutecerão nos excessos que, mui frequentemente, engendram as sedições e os levam a desconhecer a autoridade. Dá-se o mesmo com todos os subordinados, seja qual for a classe a que pertencerem: operários, empregados e outros. Eles se desobrigarão mais conscienciosamente de suas tarefas quando se derem conta da causa que os colocou em tal posição na Terra, e da recompensa que espera os humildes na outra vida. Infelizmente muito poucos creem na outra vida, o que os leva a dar tudo à vida presente. Se a incredulidade é uma chaga social, o é principalmente nas classes inferiores da sociedade, onde não há o contrapeso da educação e o receio da opinião. Quando os que forem chamados para exercer uma autoridade, seja a que título for, compreenderem o que ganhariam por terem subordinados imbuídos das ideias espíritas, envidarão todos os esforços para os auxiliar neste caminho. Mas paciência! Isto virá.

Lespinasse

Uma Paixão de Além-Túmulo

Maximiliano V..., criança de doze anos, suicida-se por amor

Lê-se no Siècle de 13 de janeiro de 1862:

“Maximiliano V..., rapazola de doze anos, morava com os pais à Rua des Cordiers e estava empregado como aprendiz numa tapeçaria. Esta criança tinha o hábito de ler romances-folhetins. Todos os momentos que podia escapulir do trabalho ele os dedicava à leitura, que lhe superexcitava a imaginação e lhe inspirava ideias acima de sua idade. Assim, imaginou sentir paixão por uma criatura que teve ocasião de ver algumas vezes, a qual estava longe de pensar que tivesse inspirado um tal sentimento. Desesperado por não ver a realização dos sonhos provocados por suas leituras, resolveu matar-se. Ontem, o porteiro da casa que o empregava encontrou-o sem vida num gabinete do terceiro andar, onde trabalhava sozinho. Enforcara-se numa corda que prendera numa viga com um enorme prego.”

As circunstâncias dessa morte, numa idade tão pouco avançada, deram a pensar que a evocação dessa criança poderia fornecer assunto para um ensino útil. Ela foi feita em sessão da Sociedade, ocorrida em 24 de janeiro último. (Médium: Sr. E. Vézy.)

Nesse fato há um difícil problema de moral, quase impossível de resolver pelos argumentos da filosofia ordinária e, ainda menos, da filosofia materialista. Pensam ter tudo explicado dizendo que era uma criança precoce. Mas isto não explica nada; é absolutamente como se dissessem que é dia, porque o Sol se levantou. De onde vem tal precocidade? Por que certas crianças ultrapassam a idade normal para o desenvolvimento das paixões e da inteligência? Eis uma das dificuldades contra as quais vêm se chocar todas as filosofias, porque suas soluções sempre deixam uma questão não resolvida e podemos sempre indagar o porquê do por quê. Admiti a preexistência da alma e o desenvolvimento anterior e tudo se explica da maneira mais natural. Com este princípio remontais à causa e à fonte de tudo.

1. [Ao guia espiritual do médium]. Poderíeis dizer-nos se podemos evocar o Espírito da criança a que nos referimos há pouco?

Resp. — Sim; eu o conduzirei, porque está sofrendo. Que a sua aparição em vosso meio sirva de exemplo e seja uma lição.

2. [A Maximiliano]. Tendes consciência de vossa situação?

Resp. — Ainda não posso definir bem onde estou; há como que um véu sombrio à minha frente; falo, mas não sei como me ouvem e como falo. Contudo, já vejo aquilo que até há pouco era obscuro; sofria, mas desde agora me sinto aliviado.

3. Lembrai-vos bem das circunstâncias da vossa morte?

Resp. — Parecem muito vagas. Sei que me suicidava sem motivo. Entretanto, poeta numa outra encarnação, tinha uma espécie de intuição de minha vida passada; criava sonhos, quimeras; enfim, eu amava.

4. Como pudestes chegar a tal extremo?

Resp. — Acabo de responder.

5. É singular que uma criança de doze anos seja levada ao suicídio, sobretudo por um motivo como esse que vos impeliu.

Resp. — Sois extraordinários! Já não vos disse que, poeta numa outra encarnação, minhas faculdades tinham ficado mais amplas e mais desenvolvidas que nos outros? Oh! ainda na noite em que me encontro agora vejo passar essa sílfide de meus sonhos na Terra, e é isto o castigo que Deus me inflige, de a ver bela e leviana como sempre, passar diante de mim e eu, ébrio de loucura e de amor, quero me atirar... mas, ah! é como se estivesse preso a um anel de ferro... Chamo... mas em vão; ela nem sequer vira a cabeça... Oh! como sofro então!

6. Poderíeis descrever a sensação que experimentastes quando vos reconhecestes no mundo dos Espíritos?

Resp. — Oh! sim, agora que estou em contato convosco.

Meu corpo lá estava, inerte e frio e eu planava à sua volta; desfazia-me em lágrimas. Estais admirados das lágrimas de uma alma. Ah! como são intensas e abrasadoras! Sim, eu chorava, porque acabava de reconhecer a enormidade de minha falta e a grandeza de Deus!... E, contudo, não tinha certeza de minha morte; pensava que meus olhos fossem abrir-se... Elvira! Chamava eu... supondo vê-la... Ah! é que a amo desde muito tempo; amá-la-ei sempre... Que importa, se tiver de sofrer por toda a eternidade, se puder um dia possuí-la em outra encarnação!

7. Que sensação experimentais por estar aqui?

Resp. — Faz-me bem e mal ao mesmo tempo. Bem, porque sei que compartilhais de meu sofrimento; mal, porque, apesar de toda a vontade que tenho de vos agradar, aceitando as vossas preces, não posso, porque então deveria seguir um outro caminho, diferente daquele de meus sonhos.

8. Que podemos fazer que vos seja útil?

Resp. — Orar, visto que a prece é o orvalho divino que nos refresca o coração, a nós, pobres almas em pena e em sofrimento. Orar. No entanto, parece que se me arrancásseis do coração o próprio amor e o substituísseis pelo amor divino, então!... não sei... creio!... Vede! neste instante eu choro... pois bem!... pois bem!... orai por mim!

9. [Ao guia do médium]. Qual o grau de punição para este Espírito por se haver suicidado? Levando-se em conta sua idade, sua ação é tão condenável quanto a dos outros suicidas?

Resp. — A punição será terrível, porque foi mais culpado que os outros. Já possuía grandes faculdades: a força de amar a Deus de maneira poderosa e de fazer o bem. Os suicidas sofrem longos castigos e Deus pune ainda mais os que se matam com grandes ideias na mente e no coração.

10. Dissestes que a punição de Maximiliano V... será terrível. Poderíeis dizer em que consistirá? Parece que ela já começou. Ser-lhe-á reservado mais do que já experimenta?

Resp. — Sem dúvida, pois sofre um fogo que o consome e o devora e que só cessará pelos esforços da prece e do arrependimento.

Observação — Sofre um fogo que o consome e o devora. Não está aí a imagem do fogo do inferno, que nos é apresentado como um fogo material?

11. Há possibilidade de ser atenuada a sua punição?

Resp. — Sim: orando-se por ele, principalmente se Maximiliano se unir às vossas preces.

12. O objeto de sua paixão compartilha de seus sentimentos? Estarão esses dois seres destinados a unir-se um dia? Quais as condições de sua união e quais os obstáculos que agora a impedem?

Resp. — Os poetas amam as mulheres da Terra? Eles o acreditam por um dia, uma hora. O que eles amam é o ideal, uma quimera criada por sua ardente imaginação; amor que não pode ser satisfeito senão por Deus. Todos os poetas têm uma ficção no coração — a beleza ideal que eles acreditam ver passar na Terra; e quando encontram uma bela menina, que jamais deverão possuir, então dizem que a realidade tomou o lugar do sonho. Mas, se tocarem a realidade, cairão das regiões etéreas na matéria e, não mais reconhecendo o ser que sonhavam, criam outras quimeras.

13. [A Maximiliano]. Desejamos ainda fazer algumas perguntas, que talvez contribuam para que vos sintais mais aliviado. Em que época vivestes como poeta? Tivestes um nome conhecido?

Resp. — No reinado de Luís XV. Eu era pobre e desconhecido; amava a uma mulher, um anjo que vi passar num parque, num dia de primavera. Depois, só a revi em sonhos, e meus sonhos prometiam que eu a possuiria um dia.

14. O nome Elvira nos parece muito romântico, o que nos leva a pensar que se trate de um ser imaginário.

Resp. — Sim; era uma mulher. Sei seu nome porque um cavaleiro que passava perto dela a chamou Elvira. Ah! era bem a mulher que minha imaginação havia sonhado. Eu a vejo ainda, sempre bela e encantadora. Ela é capaz de me fazer esquecer a Deus para vê-la e segui-la ainda.

15. Sofreis e podeis sofrer ainda muito tempo. De vós depende abreviar os vossos tormentos.

Resp. — Que me faz o sofrimento! Não podeis avaliar o que é um desejo insatisfeito. Meus desejos serão carnais? E, no entanto, eles me queimam, e as pulsações do coração, ao pensar nela, são mais fortes do que seriam se pensasse em Deus.

16. Nós vos lamentamos profundamente. Para trabalhar pelo vosso progresso é necessário que vos torneis útil e penseis mais em Deus do que o tendes feito. É preciso que soliciteis uma reencarnação com o único objetivo de reparar os erros e a inutilidade de vossas últimas existências. Não se diz que deveis esquecer a Elvira, mas pensar um pouco menos nela e um pouco mais em Deus, que pode abreviar os vossos tormentos se fizerdes o que for necessário. Secundaremos vossos esforços pelas nossas preces.

Resp. — Obrigado! orai e tratai de arrancar Elvira de meu coração. Talvez um dia eu vos agradeça por isto.


Causas da Incredulidade

Senhor Allan Kardec,

Li com muita desconfiança, direi mesmo, com sentimento de incredulidade, vossas primeiras publicações a respeito do Espiritismo. Mais tarde as reli com bastante atenção, bem como as vossas outras publicações, à medida que apareciam. Devo dizer sem rodeios que eu pertencia à escola materialista. A razão? É que de todas as seitas filosóficas ou religiosas era a mais tolerante, a única que não se entregava a demonstrações de força para a defesa de um Deus que disse pela boca do Mestre: “Os meus discípulos serão reconhecidos por muito se amarem”30. Depois, 30 N. do T.: João, 13:35. porque a maioria dos guias que a sociedade oferece para inculcar nos jovens as ideias de moral e de religião antes pareciam destinados a lançar o pânico nas almas do que a lhes ensinar a se conduzirem bem, a esperar uma recompensa por seus sofrimentos, uma compensação por suas aflições. Assim, os materialistas de todas as épocas, e principalmente os filósofos do século passado, a maioria dos quais ilustraram as artes e as ciências, aumentaram o número de seus prosélitos, à medida que a instrução emancipava as criaturas. Preferiu-se o nada aos tormentos eternos.

É natural que o infeliz compare. Se a comparação lhe for desvantajosa, ele duvidará de tudo. Efetivamente, quando se vê o vício na opulência e a virtude na miséria, se não se tiver uma doutrina raciocinada e provada pelos fatos, o desespero apoderar-se-á da alma e se perguntará que é o que se ganha em ser virtuoso, atribuindo-se os escrúpulos da consciência aos preconceitos e aos erros de uma primeira educação.

Ignorando qual o uso que fareis de minha carta, mas, no caso, vos deixando inteira liberdade, penso que não será inútil dar a conhecer as causas que operaram a minha conversão.

Eu tinha ouvido falar vagamente do magnetismo. Uns o consideravam coisa séria e real, enquanto outros achavam que era uma tolice. Assim, não perdi tempo com isso. Mais tarde ouvi falar por toda a parte das mesas girantes, falantes, etc.; mas cada um empregava a respeito a mesma linguagem que sobre o magnetismo, o que fez que também não me interessasse. Todavia, por uma circunstância inteiramente imprevista, tive à minha disposição o Tratado de Magnetismo e de Sonambulismo, do Sr. Aubin Gauthier. Li essa obra com uma disposição de espírito em constante rebeldia ao seu conteúdo, tão extraordinário e mesmo impossível me parecia o que ali era explicado. Contudo, tendo chegado à página em que aquele homem honesto diz: “Não queremos que nos creiam sob palavra; experimentem, de acordo com os princípios que indicamos e, se reconhecerem como certo aquilo que antecipamos, tudo quanto pedimos é que o façam de boa-fé e que se entendam mutuamente.”

Esta linguagem de uma certeza raciocinada, que só o homem prático pode ter, paralisou toda a minha efervescência, submeteu meu espírito à reflexão e o decidiu a experimentar. Inicialmente operei com o filho de um de meus parentes, de cerca de dezesseis anos, e logrei resultados que ultrapassaram as minhas expectativas. Será difícil dizer da perturbação que se apoderou de mim; eu desconfiava de mim mesmo e me perguntava se não era vítima daquele rapazola que, havendo adivinhado as minhas intenções, entregava-se a macaquices e simulações para em seguida zombar de mim. Para me assegurar, tomei certas precauções indicadas e mandei chamar um magnetizador. Então me convenci de que o jovem estava realmente sob influência magnética. Esse primeiro ensaio foi tão estimulante que me entreguei a essa ciência, cujos fenômenos tive ocasião de observar e, ao mesmo tempo, constatar a existência do agente invisível que os produzia.

Que agente é esse? quem o dirige? qual a sua essência? por que não é visível? São perguntas às quais não posso responder, mas que me levaram a ler o que foi escrito pró e contra as mesas falantes, porque — dizia de mim para mim — se um agente invisível podia produzir os efeitos de que eu era testemunha, outro agente, ou talvez o mesmo, poderia muito bem produzir outros. Conclui, assim, que a coisa era possível; agora creio, embora ainda nada tenha visto.

Por seus efeitos, essas coisas são tão surpreendentes quanto o Espiritismo, aliás muito fracamente combatido pelos críticos, de maneira a não alterar nenhuma convicção. Mas o que o caracteriza de modo diverso dos outros efeitos materiais, são os efeitos morais. Para mim é evidente que todo homem que se ocupa seriamente do magnetismo, se for bom, tornar-se-á melhor; se for mau, forçosamente modificará o seu caráter. Outrora a esperança era uma corda em que se penduravam os infelizes; com o Espiritismo a esperança é um consolo, os sofrimentos uma expiação e o Espírito, em vez de se rebelar contra os decretos da Providência, suporta pacientemente suas misérias, não maldiz a Deus nem aos homens e marcha sempre para a perfeição. Se eu tivesse sido alimentado por essas ideias, por certo não teria passado pela escola do materialismo, de onde me sinto feliz por ter saído.

Como vedes, senhor, por mais rudes tenham sido os combates a que me entreguei, minha conversão se operou e sois um daqueles que para ela mais contribuíram. Registrai-a em vossas fichas, porque não será uma das menores e, doravante, dignai-vos contar-me no número dos vossos adeptos.

Gauzy,

Antigo Oficial, 23, rue Saint-Louis, Batignolles (Paris)

Observação — Esta conversão é mais um exemplo da causa mais comum de incredulidade. Enquanto forem dadas como verdades absolutas coisas que a razão repele, haverá incrédulos e materialistas. Para fazer crer, é necessário fazer compreender. Nosso século assim o quer e é preciso marchar com o século se não se quiser sucumbir. Mas para fazer compreender, é preciso que tudo seja lógico: princípios e consequências. O Sr. Gauzy enuncia uma grande verdade ao dizer que o homem prefere a ideia do nada, que põe fim aos seus sofrimentos, à perspectiva das torturas sem-fim, às quais é tão difícil escapar. Assim, procura gozar o mais possível enquanto está na Terra. Perguntai a um homem que sofre muito o que ele prefere: morrer imediatamente ou viver na dor cinquenta anos; sua escolha não será duvidosa. Quem muito quer provar nada prova; à força de exagerar as penas, acaba-se por gerar a descrença. Temos certeza de que há muita gente que concorda conosco, dizendo que a doutrina do diabo e das penas eternas fez o maior número dos materialistas; que a de um Deus que criou seres para destinar a imensa maioria deles a torturas sem esperança, por faltas temporárias, fez o maior número dos ateus.


Resposta de uma Senhora a um Eclesiástico sobre o Espiritismo

Informam-nos de Bordeaux que um eclesiástico daquela cidade escreveu a uma senhora muito idosa a carta seguinte, datada de 8 de janeiro último. Estamos formalmente autorizados a publicá-la, bem como a resposta que lhe foi dada.

“Senhora,

“Lamento ontem não ter podido conversar convosco em particular a respeito de certas práticas religiosas contrárias ao ensino da santa Igreja. Falou-se muito disto em vossa família e mesmo da existência de um círculo. Eu me sentiria feliz, senhora, se soubesse que só tendes desprezo por essas superstições diabólicas e que estais sempre sinceramente ligada aos dogmas invariáveis da religião católica.

“Tenho a honra, etc.

“X”

RESPOSTA

“Meu caro Sr. abade,

“Estando minha mãe muito doente para responder pessoalmente à vossa bondosa carta de 8 do corrente, apresso-me em o fazer por ela e de sua parte, a fim de tranquilizar vossa solicitude quanto aos perigos que ela e sua família podem correr.

“Caro senhor, em minha casa não se realiza nenhuma prática religiosa que possa inquietar os católicos mais fervorosos, a menos que o respeito e a prece pelos mortos, a fé na imortalidade da alma, uma confiança ilimitada no amor e na bondade de Deus, uma observância tão rígida quanto o permite a natureza humana das santas doutrinas do Cristo sejam práticas reprovadas pela santa Igreja católica.

“Quanto ao que possam dizer de minha família, mesmo da existência de um círculo, estou tranquila: jamais dirão, aqui ou alhures, que algum de nós tenha feito algo do qual tenha de corar ou esconder-se; e eu não coro nem me oculto por admitir o desenvolvimento e a clareza que as manifestações espíritas espalham para mim e para muitos outros, sobre aquilo que havia de obscuro, do ponto de vista de minha inteligência, em tudo quanto parecia sair das leis da Natureza. Devo a essas superstições diabólicas o crer com sinceridade, com reconhecimento, em todos os milagres que a Igreja nos dá como artigo de fé e que, até o presente, eu encarava como símbolos, ou, antes — confesso-o — como fantasias. Devo-lhes uma paz de espírito que até agora não tinha obtido, fossem quais fossem os meus esforços. Devo-lhes a fé, a fé sem limites, sem reflexão, sem comentários; enfim, a fé, tal como recomenda a santa Igreja aos seus filhos, tal como o Senhor deve exigir das criaturas, tal como nosso divino Salvador a pregou pela palavra e pelo exemplo.

“Tranquilizai-vos, pois, caríssimo senhor. O bom Pastor reuniu em seu redor as ovelhas indiferentes que o seguiam maquinalmente por hábito e que, agora, o seguem e o seguirão sempre com amor e reconhecimento. O divino Mestre perdoou a São Tomé por só haver acreditado depois de ter visto. Pois bem! Ainda hoje ele vem fazer que os incrédulos toquem o seu lado e as suas mãos e é com um amor sem-nome que aqueles que duvidam se aproximam para beijar seus pés sangrentos e agradecer a esse pai bom e misericordioso por permitir que essas verdades imutáveis se tornem palpáveis, a fim de fortalecer os fracos e esclarecer os cegos que se recusavam até a ver a luz que brilha há tantos séculos.

“Permiti, agora, que eu reabilite minha mãe aos olhos da santa Igreja. De toda minha família, meu marido e eu somos os únicos que temos a felicidade de seguir esta via que cada um tem liberdade de julgar do seu ponto de vista. Apresso-me, pois, a vos tranquilizar a tal respeito. Quanto a mim, pessoalmente, encontrei muita força e consolo na certeza palpável de que aqueles que nós amamos, e que choramos, estão sempre ao nosso lado, pregando o amor a Deus acima de tudo, o amor ao próximo, a caridade sob todas as suas faces, a abnegação, o esquecimento das injúrias, o bem pelo mal (o que, parece, não se afasta dos dogmas da Igreja) que, aconteça o que acontecer, me prendo àquilo que sei, ao que vi, pedindo a Deus que envie as suas consolações àqueles que, como eu, não ousavam refletir nos mistérios da religião, temerosos de que essa pobre razão humana, que só quer admitir o que compreende, destruísse as crenças que o hábito me dava um ar de possuir.

“Agradeço, pois, ao Senhor, cuja bondade e poder incontestáveis permitem aos anjos e aos santos agora se tornarem visíveis, para salvarem os homens da dúvida e da negação, o que tinha sido permitido ao demônio fazer para os perder desde a criação do mundo. Tudo é possível a Deus, mesmo os milagres. Hoje o reconheço com felicidade e confiança.

“Recebei, caro senhor abade, meus sinceros agradecimentos pelo interesse que houvestes por bem testemunhar-nos e crede que faço votos ardentes para ver entrar em todos os corações a fé e o amor que hoje tenho a felicidade de possuir.

“Aceitai, etc.,

Émilie Collignon”

Observação — Desobrigamo-nos de qualquer comentário a esta carta, deixando a cada um o cuidado de apreciá-la. Apenas diremos que conhecemos um grande número de escritos no mesmo sentido. A passagem seguinte, extraída de uma delas, pode resumi-las, se não quanto aos termos, pelo menos quanto ao sentido:

“Embora nascida e batizada na religião católica, apostólica e romana, há trinta anos, isto é, desde a minha primeira comunhão, tinha esquecido minhas preces e o caminho da igreja; numa palavra, em mais nada acreditava, salvo na realidade da vida presente. Por uma graça celeste, o Espiritismo veio, finalmente, abrir-me os olhos; hoje os fatos me falaram. Não apenas creio em Deus e na alma, mas na vida futura, feliz ou desgraçada. Creio num Deus justo e bom, que pune os atos maus e não as crenças equivocadas. Como um mudo que recobra a palavra, lembrei-me de minhas preces e oro, não mais com os lábios e sem compreender, mas com o coração, a inteligência, com fé e amor. Ainda há pouco eu julgava ser um ato de fraqueza aproximar-me dos sacramentos da Igreja; hoje acredito praticar um ato de humildade agradável a Deus em os receber. Vós me repelis mesmo do tribunal da penitência; antes de mais, impondes uma retratação formal de minhas crenças espíritas; quereis que renuncie a conversar com o filho querido que perdi, e que veio dizer-me palavras tão doces, tão consoladoras; quereis que eu declare que essa criança, que reconheci como se estivesse viva em minha frente, é o demônio! Não! uma mãe não se engana assim tão grosseiramente. Mas, sr. abade, são as próprias palavras dessa criança que, tendo-me convencido da vida futura, me reconduzem à Igreja! Como, pois, quereis que eu creia que é o demônio? Se isto é a última palavra da Igreja, há de se perguntar o que acontecerá quando todo mundo for espírita.

“Chamaste-me a atenção do alto do púlpito; apontaste-me com o dedo; levantastes contra mim uma populaça fanática; fizestes retirar de uma pobre mulher que compartilha de minhas crenças o trabalho que a fazia viver, dizendo-lhe que ela seria auxiliada se deixasse de me ver, esperando dobrá-la pela fome. Francamente, sr. abade, Jesus-Cristo teria feito isto?

“Dizeis agir conforme a vossa consciência. Não tendes receio de que eu cometa violência e achais acertado que eu aja conforme a minha consciência. Contudo, me repelistes da Igreja; não tentarei lá voltar à força, porque em qualquer lugar a prece é agradável a Deus. Deixai-me apenas historiar as causas que, há tanto tempo, dela me haviam afastado; que fizeram a princípio nascer em mim a dúvida e desta à negação de tudo. Se agora sou maldita, como pretendeis, vereis a quem cabe a responsabilidade.

....................................................................................................................”

Observação — As reflexões que se originam de semelhantes coisas resumem-se em duas palavras: Fatal imprudência! Fatal cegueira! Tivemos em mão um manuscrito intitulado: Memórias de um incrédulo. É um curioso relato das causas que levam o homem às ideias materialistas e dos meios pelos quais ele pode ser reconduzido à fé. Ainda não sabemos se é intenção do autor publicá-lo.


O Padeiro Desumano — Suicídio

Uma correspondência de Crefled (Prússia Renana), de 25 de janeiro de 1862, inserida no Constitutionnel de 4 de fevereiro, contém o seguinte fato:

“Uma pobre viúva, mãe de três filhos, entra numa padaria e pede insistentemente que lhe vendam um pão fiado. Porque o padeiro recusasse, a viúva reduz o seu pedido a meio pão e, por fim, a uma libra de pão, apenas, para os filhos famintos. O padeiro recusa ainda, deixa o lugar e se dirige para o fundo da padaria. Crendo não ser vista, a mulher se apossa de um pão e sai. Mas o roubo, imediatamente descoberto, é denunciado à polícia.

“Um agente vai à casa da viúva e a surpreende cortando o pão em pedaços para dar aos filhos. Ela não nega o roubo, mas se desculpa com a necessidade. Embora censurando a crueldade do padeiro, o agente insiste para que ela o acompanhe à delegacia.

“A viúva pede apenas alguns instantes para trocar de roupa e entra no quarto; porque demorasse, o agente, perdendo a paciência, resolve abrir a porta: a infeliz jazia no chão, inundada de sangue. Com a mesma faca com que acabara de cortar o pão para os filhos pusera fim aos seus dias.”

Tendo sido lida a notícia na sessão da Sociedade de 14 de fevereiro de 1862, foi proposta a evocação dessa infeliz mulher, quando ela mesma veio manifestar-se espontaneamente, conforme comunicação a seguir. Acontece muitas vezes que os Espíritos de quem falamos se revelam dessa maneira. É incontestável que são atraídos pelo pensamento, que é uma espécie de evocação tácita. Sabem que a gente se ocupa deles e vêm; então se comunicam, se a ocasião lhes parece oportuna ou se encontram o médium que lhes convém. De acordo com isto, compreende-se não haver necessidade de ter um médium, nem mesmo de ser espírita para atrair os Espíritos com os quais nos preocupamos.

“Deus foi bom para a pobre alucinada e venho agradecer-vos a simpatia que houvestes por bem testemunhar-me. Infelizmente, diante da miséria e da fome de meus pobres filhinhos, esqueci-me e fali. Então disse de mim para mim: visto que és impotente para alimentar teus filhos e que o padeiro recusa o pão aos que não podem pagar; desde que não tens dinheiro nem trabalho, morre! porque, quando não estiveres mais com eles, virão em seu auxílio. Efetivamente, hoje a caridade pública adotou esses pobres órfãos. Deus me perdoou, porque viu a minha razão vacilar e meu pungente desespero. Fui a vítima inocente de uma sociedade má, muito mal regulada. Ah! agradecei a Deus por vos ter feito nascer nesta bela região da França, onde a caridade vai procurar e aliviar todas as misérias.

“Rogai por mim, a fim de que em breve eu possa reparar a falta cometida, não por covardia, mas por amor materno. Como os vossos Espíritos protetores são bons! Consolam-me, fortificam-me, encorajam-me e dizem que meu sacrifício não foi desagradável ao grande Espírito que, sob o olho e a mão de Deus, preside aos destinos da Humanidade.”

A pobre Mary (Médium: Sr. d’Ambel)

Depois dessa comunicação, o Espírito Lamennais fez a seguinte apreciação sobre o fato em questão:

“Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência. Seria desejável que em certas naturezas privilegiadas fosse desenvolvido um dom que seria muito útil, não para os tribunais, mas para o adiantamento de algumas pessoas: esse dom é uma espécie de sonambulismo do pensamento, que muitas vezes descobre as coisas ocultas, mas que o homem habituado à corrente da vida, negligencia e atenua por sua falta de fé. É certo que um médium desse gênero, examinando esta pobre mulher, teria dito: Esta mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e este homem é amaldiçoado porque lhe recusou pão. Ó Deus! quando, pois, todos os teus dons serão reconhecidos e postos em prática? Aos olhos da tua justiça, aquele que recusou o pão será punido, porquanto o Cristo disse: “Aquele que dá pão ao seu próximo, a mim mesmo o dá.”

Lamennais (Médium: Sr. A. Didier)


Dissertações Espíritas

Aos Membros da Sociedade de Paris que Partem para a Rússia

(Sociedade Espírita de Paris, abril de 1862 — Médium: Sr. E. Vézy)

Nota — Várias personagens russas de distinção vieram passar o inverno em Paris, principalmente visando completar sua instrução espírita e, com esse objetivo, fizeram-se membros da Sociedade, a fim de poderem assistir às sessões. Alguns já tinham partido, como o príncipe Dimitry G...; outros estavam em véspera de partida. Foi essa circunstância que motivou a seguinte comunicação espontânea:

“Ide e ensinai, disse o Senhor. É a vós, filhos da grande família que se forma, que me dirijo esta noite. Regressais à vossa pátria e às vossas famílias. No lar não esqueçais que um outro pai, o Pai celeste, quis comunicar-se e se vos dar a conhecer. Ide; que a semente sempre esteja pronta para ser lançada nos sulcos que abrireis nessa terra, cujas rochas de suas entranhas não são suficientes para impedir a ação do arado. Vossa pátria está fadada a tornar-se grande e forte, não só pela literatura, pela Ciência, pelo gênio e pelo número, mas ainda por seu amor e devotamento ao Criador de todas as coisas. Que, pois, a vossa caridade se torne generosa e poderosa. Não temais espalhar a mancheias em vosso derredor; sabei que a caridade não se faz somente com a esmola, mas, também, com o coração!... O coração — eis a grande fonte do bem, a fonte dos eflúvios que se devem espalhar e aquecer a vida dos que sofrem ao redor de vós!... Ide e pregai o Evangelho, novos apóstolos do Cristo. Deus vos colocou em alta posição no mundo a fim de que todos vos possam ver e bem compreender as vossas palavras. Mas é sempre olhando o Céu e a Terra, isto é, Deus e a Humanidade, que alcançareis o grande objetivo que vos propondes atingir e para o qual nós vos ajudamos. O campo é vasto. Ide, pois, e semeai, para que em breve possamos fazer a colheita.

“Podeis anunciar por toda parte que o grande reino logo chegará, reino de felicidade e de alegria para quantos tiverem querido crer e amar, pois dele participarão.

“Recebei, pois, antes de partir, o último conselho que vos damos sob este belo céu que todos amam — o céu da França! Recebei o último adeus dos amigos que vos ajudarão ainda na rude senda que lá ides percorrer; entretanto, nossas mãos invisíveis vo-lo tornarão mais fácil e, se tiverdes perseverança, vontade e coragem, vereis os obstáculos ruírem à vossa frente.

“Quando ouvirem sair de vossas bocas estas palavras: ‘Todos os homens são irmãos e se devem apoiar mutuamente para marchar’, quanta admiração e quantas exclamações! Sorrirão quando virem que professais tal doutrina e dirão, baixinho: ‘Dizem belas e grandes coisas; mas não serão balizas, que indicam os caminhos sem os percorrer?’

“Mostrai; mostrai-lhes então que o espírita, esse novo apóstolo do Cristo, não está no meio do caminho para indicar o atalho, mas que se arma do machado e do cutelo, precipitando-se em meio às mais sombrias e obscuras florestas para abrir uma passagem e desviar as sarças dos passos dos que os seguem. Sim, os novos discípulos do Cristo devem ser vigorosos, marchar com passo firme e a mão pesada. Nada de barreiras à sua frente. Todas devem cair sob seus esforços e sob seus golpes; as densas florestas, as lianas e os espinheiros quebrar-se-ão para, finalmente, deixarem ver um pouco do céu!

“Então, aí estará o consolo e a felicidade. Que recompensa para vós! Os Espíritos bem-aventurados exclamarão: ‘Bravo! bravo!’ Filhos, logo sereis dos nossos e em breve vos chamaremos nossos irmãos, porquanto soubestes desempenhar a tarefa que voluntariamente vos impusestes! Deus recompensa generosamente aquele que quer trabalhar na sua vinha; dá a colheita a todos os que contribuem para o grande labor!

“Ide, pois, em paz. Ide: nós vós abençoamos. Que esta bênção vos dê felicidade e vos encha de coragem. Não esqueçais nenhum dos vossos irmãos da grande sociedade da França; todos fazem votos por vós e por vossa pátria, que o Espiritismo tornará poderosa e forte. Ide! os Espíritos bons vos assistem!”

Santo Agostinho

Relações Simpáticas entre Vivos e Mortos

(Sociedade Espírita de Argel — Médium: Sr. B...)

Por que, em nossas conversas com os Espíritos das pessoas que nos foram muito queridas, sentimos um embaraço, uma frieza mesmo, que jamais teríamos sentido quando elas eram vivas?

Resp. — Porque sois materiais e nós não mais o somos. Vou fazer uma comparação que, como todas as comparações, não será absolutamente exata; contudo, o será bastante para o que quero dizer.

Suponho que experimentes por uma mulher uma dessas paixões que só os romancistas imaginam entre vós e que considerais exageradas, enquanto para nós parecem pouco diferir, pelo menos das que conhecemos na vastidão infinita.

Continuo supondo. Depois de ter tido, por algum tempo, a felicidade inefável de falar diariamente com essa mulher e de a contemplar tanto quanto possível, uma circunstância qualquer faz com que não mais a possas ver e que deves contentar-te apenas em ouvi-la. Crês que teu amor resistiria sem nenhuma brecha a uma situação desse gênero, prolongada indefinidamente? Confessa que ele sofreria alguma modificação, ou aquilo que chamaríamos uma diminuição.

Vamos mais longe. Não só não poderás mais ver esta bela amiga, mas nem mesmo poderás ouvi-la. Não deixam que te aproximes dela. Prolonga essa situação durante alguns anos e vê o que acontecerá.

Agora, mais um passo. A mulher que amas está morta; há muito tempo encontra-se sepultada nas trevas do sepulcro. Nova mudança em ti. Não quero dizer que a paixão esteja morta com o seu objeto, mas sustento que, pelo menos, transformou-se.

E de tal modo que, se por um favor celeste, a mulher que tanto lamentas e por quem sempre choras viesse apresentar-se à tua frente, não na odiosa realidade do esqueleto que repousa no cemitério, mas sob a forma que amavas e adoravas até o êxtase, estás bem seguro de que o primeiro efeito da aparição imprevista não seria um sentimento de profundo terror?

Como vês, meu amigo, as paixões, as afeições vivas não são possíveis em toda a sua plenitude senão entre pessoas da mesma natureza, entre mundanos e mundanos, entre Espíritos e Espíritos. Com isto não pretendo dizer que toda afeição deva apagar-se com a morte, mas que muda de natureza e toma outro caráter. Numa palavra, quero dizer que em vossa Terra conservais uma boa lembrança daqueles a quem amastes, mas que a matéria, no meio da qual viveis, só vos permite compreender e praticar amores materiais; que, sendo tal gênero necessariamente impossível entre vós e nós, sois tão desajeitados e frios nas vossas relações conosco. Se queres convencer-te, relê algumas conversas espíritas entre parentes, amigos ou conhecidos; nelas encontrarás tanto gelo que fará com que os habitantes dos pólos sintam frio.

Não o queremos, nem nos entristecemos por isso, desde que sejamos suficientemente elevados na hierarquia dos Espíritos para perceber e compreender; mas, naturalmente, isto não deixa de ter alguma influência sobre a nossa maneira de ser para convosco.

Lembra-te da história de Hanifa que, podendo entrar em comunicação com a filha querida, que tanto pranteava, faz-lhe esta primeira pergunta: Há um tesouro oculto nesta casa? Só obteve como resposta uma bela mistificação, que ela mesma provocou!

Penso, meu amigo, ter dito o bastante para que bem sintas a causa do mal-estar que necessariamente existe entre vós e nós. Poderia ter dito mais. Por exemplo, que vemos todas as vossas imperfeições e impurezas do corpo e da alma e que, do vosso lado, tendes a consciência de que o vemos. Confessa que é embaraçoso para ambos os lados. Coloca dois amantes apaixonadíssimos nessa caixa de vidro onde tudo aparece, tanto no moral como no físico e pergunta a ti mesmo o que acontecerá.

Quanto a nós, animados por um sentimento de caridade que não podeis compreender, somos, em relação a vós, como a boa mãe, a quem as enfermidades e as traquinadas do filho chorão que lhe tira o sono não a fazem esquecer, nem mesmo por um instante, os sublimes instintos da maternidade. Nós vos vemos fracos, feios, maus e, contudo, vos amamos, porque nos esforçamos por melhorar-vos. Mas não nos fazeis justiça, temendo-nos mais do que nos amando.

Désiré Léglise

Poeta argelino, morto em 1851

As Duas Lágrimas

(Sociedade Espírita de Lyon — Médium: Sra. Bouilland)

Um Espírito viu-se forçado a deixar a Terra, que não pudera visitar, porque procedia de uma região muito inferior; mas tinha pedido para sofrer uma prova e Deus não lha recusara. Infelizmente, a esperança que acalentava ao entrar no mundo terrestre não se tinha realizado e, havendo triunfado sua natureza bruta, cada um dos seus dias foi marcado pelos mais hediondos crimes. Durante muito tempo, todos os Espíritos guardiães dos homens haviam tentado desviá-lo do atalho que seguia, mas, extenuados, haviam abandonado o infeliz a si mesmo, quase temerosos de seu contato. Entretanto, tudo tem um fim; mais cedo ou mais tarde se descobre o crime e a justiça repressiva dos homens impõe ao culpado a pena de talião. Desta vez não foi cabeça por cabeça: foi cabeça por cem; e ontem esse Espírito, depois de ter ficado meio século na Terra, ia retornar ao espaço para ser julgado pelo Juiz Supremo, que pesa as faltas muito mais inexoravelmente do que o faríeis vós mesmos.

Em vão os Espíritos guardiães tinham voltado com a condenação e tentado introduzir o arrependimento nessa alma rebelde; em vão tinham impelido para junto dele toda a família: cada um desejaria arrancar-lhe um suspiro de pesar ou, pelo menos, um sinal; aproximava-se o momento fatal e nada abrandava essa natureza inflexível e, por assim dizer, bestial. No entanto, um único pesar, antes de deixar a vida, poderia ter suavizado o sofrimento do infeliz, condenado pelos homens a perder a vida, e por Deus a incessantes remorsos, horrível tortura, semelhante ao abutre a roer o coração que renasce sem cessar.

Enquanto os Espíritos trabalhavam sem descanso para nele fazer brotar ao menos o pensamento do arrependimento, um outro Espírito, Espírito encantador, dotado de uma sensibilidade e de uma ternura sublimes, adejava em redor de uma cabeça muito querida, cabeça ainda viva, e lhe dizia: “Pensa nesse infeliz que vai morrer; fala-me dele.” Quando a caridade é simpática, quando dois Espíritos se entendem e não fazem mais que um, o pensamento como que é elétrico. Logo o Espírito encarnado disse a esse mensageiro do amor: “Meu filho, esforça-te por inspirar um pouco de remorso a esse miserável que vai morrer; vai, consola-o!” E assim pensando, compreendendo tudo que o desventurado criminoso ia ter de suportar em sofrimentos para sua expiação, uma lágrima furtiva escapou dos olhos daquele que sozinho, nessa hora matinal, despertava pensando naquele ser impuro, que dentro de instantes deveria prestar contas. O afável mensageiro recolheu essa lágrima benfazeja na concha de sua delicada mão e, em vôo rápido, a levou ao tabernáculo que encerra tais relíquias e assim fez a sua prece: “Senhor, um ímpio vai morrer; vós o condenastes, mas dissestes: ‘Eu perdôo ao remorso e concedo a indulgência ao arrependimento.’ Eis uma lágrima de verdadeira caridade, que atravessou do coração aos olhos do ser que mais amo no mundo. Eu vos trago esta lágrima: é o resgate do sofrimento; dai-me o poder de enternecer o coração de rocha do Espírito que vai expiar seus crimes. — Vai, respondeu-lhe o Mestre; vai, meu filho, esta lágrima bendita pode pagar muitos resgates.”

A doce criança partiu; chegou junto do criminoso no momento do suplício; o que ela lhe disse só Deus o sabe; o que se passou naquele ser transviado ninguém compreendeu, mas, abrindo os olhos à luz, viu desdobrar-se à sua frente todo um passado terrível. Ele, que o instrumento fatal não tinha abalado; ele, que a condenação à morte tinha feito sorrir, levantou os olhos e uma grossa lágrima, ardente como o chumbo fundido, resvalou de seus olhos. A essa prova muda, a testemunhar-lhe que sua prece tinha sido ouvida, o anjo da caridade estendeu sobre o infeliz suas brancas asas, recolheu aquela lágrima e parecia dizer: “Infortunado! sofrerás menos; eu levo a tua redenção.”

Que contraste pode inspirar a caridade do Criador! O mais impuro dos seres, nos últimos degraus da escada e o anjo mais casto que, prestes a entrar no mundo dos eleitos, a um sinal vem estender sua proteção visível sobre esse pária da sociedade! Do alto de seu poderoso tribunal Deus abençoava essa cena comovedora e nós todos dizíamos, rodeando essa criança: “Vai receber a tua recompensa.” A doce mensageira subiu aos céus, lágrima escaldante nas mãos e pôde dizer: “Mestre, ele chorou; eis a prova!” — Está bem; respondeu o Senhor; conservai essa primeira gota de orvalho do coração endurecido; que essa lágrima fecunda vá regar esse Espírito ressequido pelo mal; mas guardai sobretudo a primeira lágrima que esta criança me trouxe; que essa gota d’água se torne diamante puro, pois é mesmo a pérola sem mácula da verdadeira caridade. Narrai este exemplo aos povos e dizei-lhes: “Solidários uns com os outros, vede: uma lágrima de amor da Humanidade e uma lágrima de remorso obtida pela prece; essas duas lágrimas serão as pedras mais preciosas do vasto escrínio da caridade.”

Cárita

Os Dois Voltaires

(Sociedade Espírita de Paris, Grupo Faucherand — Médium: Sr. E. Vézy)

Sou eu mesmo, mas não aquele Espírito zombador e cáustico de outrora; o reizinho do século dezoito, que dominava pelo pensamento e pelo gênio a tantos soberanos, hoje já não tem nos lábios aquele sorriso mordaz que fazia tremer os inimigos e os próprios amigos! Meu cinismo desapareceu ante a revelação das grandes coisas que eu queria tocar e que não conheci senão no além-túmulo!

Pobres cérebros demasiado estreitos para conterem tantas maravilhas! Humanos, calai-vos, humilhai-vos diante do poder supremo; admirai e contemplai: é o que podeis fazer. Como quereis aprofundar Deus e o seu grande trabalho? Malgrado todos os seus recursos, a vossa razão não se aniquila ante o átomo e o grão de areia, que ela não pode definir?

Empreguei minha vida a procurar conhecer a Deus e seu princípio; minha razão se debilitou e cheguei a negar não a Deus, mas a sua glória, o seu poder e a sua grandeza. Eu o explicava desenvolvendo-se no tempo. Celeste intuição me dizia que rejeitasse tal erro, mas eu não escutava e me fiz apóstolo de uma doutrina enganadora... Sabeis por quê? Porque, no tumulto e na confusão de meus pensamentos, que se entrechocavam incessantemente, eu só via uma coisa: meu nome gravado no frontão do templo de memória das nações! Só via a glória que me prometia essa juventude universal que me cercava e parecia saborear com suavidade e delícia a quintessência da doutrina que eu lhe ensinava. Entretanto, impelido não sei por que remorso de minha consciência quis parar, mas era muito tarde. Como toda utopia, todo sistema que abraçamos nos arrasta; a princípio segue a torrente, depois nos arrasta e nos quebra, tão rápida e violenta é por vezes a sua queda.

Crede-me, vós que aqui estais em busca da verdade: encontrá-la-eis quando tiverdes expulsado do coração o amor aos ouropéis, que um tolo amor-próprio e um orgulho ridículo fazem brilhar aos vossos olhos. Não temais, na nova via por onde marchais, combater o erro e o abater, quando se erguer à vossa frente. Não é uma monstruosidade exaltar uma mentira contra a qual ninguém ousa defender-se, porque fizemos discípulos que ultrapassaram nossas crenças?

Como vedes, meus amigos, o Voltaire de hoje não é mais aquele do século dezoito. Sou mais cristão, porque aqui venho fazer-vos esquecer minha glória e vos lembrar o que fui na juventude e o que amava na infância. Oh! como eu gostava de me perder no mundo do pensamento! Minha imaginação ardente e viva percorria os vales da Ásia atrás daquele que chamais Redentor... Eu gostava de percorrer os caminhos que ele tinha percorrido. E como me parecia grande e sublime esse Cristo em meio à multidão! Julgava ouvir a sua voz poderosa, instruindo os povos da Galileia, das margens do lago de Tiberíades e da Judéia!... Mais tarde, nas minhas noites de insônia, quantas vezes me ergui para abrir uma velha Bíblia e reler suas santas páginas! Então minha fronte se inclinava diante da cruz, esse sinal eterno da redenção, que une a Terra ao Céu, a criatura ao Criador!... Quantas vezes admirei esse poder de Deus, por assim dizer se subdividindo, e cuja centelha se encarna para fazer-se tão pequena, vindo render a alma no Calvário em expiação!... Vítima augusta cuja divindade eu negava e que, no entanto, me fez dizer:

Teu Deus que tu traíste, teu Deus que tu blasfemas,

Para ti, para o Universo, morreu nestes lugares!

Sofro, mas expio a resistência que opus a Deus. Eu tinha a missão de instruir e esclarecer. A princípio o fiz, mas o meu facho se me extinguiu nas mãos na hora marcada para a luz!...

Felizes filhos do século dezenove e do século vinte: a vós é dado ver luzir o facho da verdade. Fazei que vossos olhos vejam bem a sua luz, porquanto, para vós, ela terá radiações celestes e sua claridade será divina!

Voltaire

Filhos, deixei que em meu lugar falasse um dos vossos grandes filósofos, principal chefe do erro. Quis que ele viesse dizer-vos onde está a luz. Que vos parece? Todos virão repetir-vos: Não há sabedoria sem amor nem caridade. E, dizei-me: qual a doutrina mais suave para o ensinar, senão o Espiritismo? Nunca vos repetiria demasiadamente: o amor e a caridade são as duas virtudes supremas que, como diz Voltaire, unem a criatura ao Criador. Oh! que mistério e que laço sublime! Vermezinho, verme da terra, que pode tornar-se tão poderoso que a sua glória alcançará o trono do Eterno!...

Santo Agostinho

Allan Kardec



[1] N. do T.: Estaria o Espírito se referindo ao ano de 1796?

[2] N. do T.: Grifos nossos. Provável cochilo de revisão. Kardec, por certo, está se referindo à palavra religiões.

Junho de 1862

Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas — Discurso do Sr. Allan Kardec na Abertura do Ano Social, em 1º de abril de 1862

Senhores e caros colegas,

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas começou seu quinto ano em 1º de abril de 1862 e, temos de convir, jamais o fez sob melhores auspícios. Esse fato não tem importância somente do nosso ponto de vista pessoal, mas é característico, sobretudo, do ponto de vista da doutrina em geral, porquanto prova, de maneira evidente, a intervenção de nossas guias espirituais. Seria supérfluo lembrar a origem modesta da Sociedade, bem como as circunstâncias, de certo modo providenciais, de sua constituição, circunstâncias para as quais um Espírito eminente, então no poder e depois recolhido ao mundo dos Espíritos, nos disse ter contribuído poderosamente ele próprio.

Haveis de lembrar, senhores, que a Sociedade teve as suas vicissitudes; tinha em seu seio elementos de dissolução, provenientes da época em que se recrutava gente muito facilmente, e sua existência chegou mesmo, em certa ocasião, a ser comprometida. Naquele momento pus em dúvida a sua utilidade real, não como simples reunião, mas como sociedade constituída. Fatigado pelas adversidades, estava resolvido a retirar-me; esperava que, uma vez livre dos entraves semeados em meu caminho, trabalharia melhor na grande obra empreendida. Fui dissuadido do meu intento por numerosas comunicações espontâneas, que me foram dadas de diferentes lugares. Entre outras, uma há, cuja substância agora me parece útil vos dar a conhecer, porque os acontecimentos justificaram as previsões. Ela estava assim concebida:

“A Sociedade formada por nós com o teu concurso é necessária; queremos que subsista e subsistirá, não obstante a má vontade de alguns, como tu o reconhecerás mais tarde. Quando existe um mal, não se cura sem crise. Assim é do pequeno ao grande: no indivíduo como nas sociedades; nas sociedades como nos povos; nos povos como o será na Humanidade. Dizemos que nossa Sociedade é necessária. Quando deixar de o ser sob a forma atual, transformar-se-á, como todas as coisas. Quanto a ti, não podes nem deves te retirar. Contudo, não pretendemos subjugar o teu livre-arbítrio; apenas dizemos que a tua retirada seria um erro que um dia lamentarias, porque entravaria os nossos desígnios...”

Desde então, dois anos se passaram e, como vedes, a Sociedade felizmente superou aquela crise passageira, cujas peripécias me foram todas assinaladas, e das quais um dos resultados foi dar-nos uma lição de experiência, que aproveitamos, além de provocar medidas que não temos senão que aplaudir. Desembaraçada das preocupações inerentes ao seu estado anterior, pôde a Sociedade prosseguir livremente os seus estudos; seus progressos também foram rápidos e ela cresceu a olhos vistos, não direi numericamente, embora seja mais numerosa do que nunca, mas em importância. Oitenta e sete membros, participando das cotizações anuais figuraram na lista do ano que findou, sem contar os sócios honorários e correspondentes. Ter-lhe-ia sido fácil dobrar, e mesmo triplicar esse número, se ela visasse receita; bastava cercar as admissões de menos dificuldades. Ora, longe de diminuir essas dificuldades, ela as aumentou, porque, sendo uma Sociedade de estudos, não quis afastar-se dos princípios de sua instituição e porque jamais fez questão de interesses materiais. Não procurando entesourar, era-lhe indiferente ser um pouco mais, ou um pouco menos numerosa. Sua preponderância não decorre absolutamente do número de seus membros; está nas ideias que estuda, que elabora e divulga; não faz propaganda ativa; não tem agentes nem emissários; não pede a ninguém que venha a ela e, o que pode parecer extraordinário, é a essa mesma reserva que deve a sua influência. A respeito, eis o seu raciocínio: Se as ideias espíritas fossem falsas não criariam raízes, pois toda ideia falsa só tem existência passageira; mas, se são verdadeiras, prevalecerão a despeito de tudo, pela convicção; impô-las seria o pior meio de propagá-las, porque toda ideia imposta é suspeita e trai a sua fraqueza. As ideias verdadeiras devem ser aceitas pela razão e pelo bom-senso; onde elas não germinam é porque a estação ainda não é propícia; é preciso esperar e limitar-se a lançar a semente ao vento, pois, mais cedo ou mais tarde, algumas cairão em terreno menos árido.

O número de membros da Sociedade é, assim, uma questão muito secundária; porque hoje, menos que nunca, ela não poderia ter a pretensão de absorver todos os adeptos; seu objetivo, por estudos conscienciosos, feitos sem preconceitos e sem partido, é o de elucidar as várias partes da ciência espírita, pesquisar as causas dos fenômenos e recolher todas as observações, susceptíveis de esclarecer o problema tão importante, tão palpitante de interesse do estado do mundo invisível, de sua ação sobre o mundo visível e das inumeráveis consequências que daí resultam para a Humanidade. Por sua posição e pela multiplicidade de suas relações, ela se acha nas mais favoráveis condições para observar bem e bastante. Seu fim é, pois, essencialmente moral e filosófico; mas o que, acima de tudo, deu crédito aos seus trabalhos é a calma, a gravidade que a eles aplica; é que aí tudo é discutido friamente, sem paixão, como devem fazer as pessoas que de boa-fé buscam esclarecer-se; é porque sabem que ela só se ocupa de coisas sérias; é, enfim, a impressão que os numerosos estrangeiros, muitas vezes oriundos de países distantes, levaram da ordem e da dignidade das sessões a que assistiram.

Assim, a linha que ela seguiu dá os seus frutos. Os princípios que professa, baseados em observações conscienciosas, hoje servem de regra à imensa maioria dos espíritas. Vistes caírem, sucessivamente, a maioria dos sistemas que surgiram no começo e apenas alguns ainda conservam raros partidários. Isto é incontestável. Quais, então, as ideias que crescem e quais as que declinam? É uma questão de fato. A doutrina da reencarnação foi o mais controvertido dos princípios e seus adversários nada pouparam para abrir uma brecha, nem mesmo as injúrias e grosserias, supremo argumento daqueles a quem faltam boas razões. Nem por isso deixou de fazer o seu caminho, porque se apoia numa lógica inflexível; porque sem esta alavanca nós nos defrontamos com dificuldades insuperáveis; enfim, porque nada encontraram de mais racional para o substituir.

Há, entretanto, um sistema que, mais que nunca, se firma hoje: o sistema diabólico. Na impossibilidade de negar as manifestações, pretende um partido provar que são obra exclusiva do diabo. A obstinação com que defendem tal ideia revela que não estão muito convencidos de ter razão, ao passo que os espíritas não se inquietam absolutamente com essa demonstração de forças, deixando que se gastem. Nesse momento ele ataca em todos os flancos: discursos, pequenas brochuras, grossos volumes, artigos de jornais. É um ataque geral para demonstrar o quê? Que aqueles fatos, que em nossa opinião testemunham o poder e a bondade de Deus, atestariam, ao contrário, o poder do diabo; assim, deduz-se que o diabo é mais poderoso que Deus, visto só ele poder manifestar-se. Atribuindo ao diabo tudo quanto é bom nas comunicações, retiram o bem a Deus para homenagear o demônio. Nós nos julgamos mais respeitosos para com a Divindade. Aliás, como já dissemos, os espíritas pouco se inquietam com esse motim, que terá por efeito destruir, um pouco mais cedo, o prestígio de Satã.

Sem o emprego de meios materiais, e embora restrita numericamente por sua própria vontade, a Sociedade de Paris não deixou de fazer uma propaganda considerável pela força do exemplo; a prova disto é o número incalculável de grupos espíritas que se formam pelos mesmos processos, isto é, de acordo com os princípios que ela professa; é o número de sociedades regulares que se organizam e querem colocar-se sob o seu patrocínio, existentes em várias cidades da França e do estrangeiro, na Argélia, na Itália, na Áustria, no México, etc. O que fizemos para isto? Fomos à sua procura? Solicitamos? Enviamos emissários, agentes? Absolutamente; nossos agentes são as obras. As ideias espíritas se espalham numa localidade; a princípio aí quase não ecoam; depois, pouco a pouco, ganham terreno; os adeptos sentem necessidade de se reunirem, menos para fazer experiências do que para conversar sobre um assunto que lhes interessa. Daí os milhares de grupos particulares, que podem ser chamados familiares. Destes, alguns adquirem maior importância numérica. Pedem-nos conselhos e, assim, insensivelmente se forma essa rede, que já fincou balizas em todos os pontos do globo.

Naturalmente, senhores, cabe aqui uma observação muito importante sobre a natureza das relações que existem entre a Sociedade de Paris e as reuniões ou sociedades fundadas sob os seus auspícios, e que seria erro considerar como sucursais. A Sociedade de Paris não tem, sobre aquelas, outra autoridade senão a da experiência; mas, como já disse em outra ocasião, não se imiscui em seus negócios; seu papel limita-se a conselhos oficiais, quando solicitados. O laço que as une é, pois, puramente moral, fundamentado na simpatia e na similitude das ideias; entre elas não há nenhuma filiação, nenhuma solidariedade material; a única palavra de ordem é a que deve unir todos os homens: caridade e amor ao próximo, palavra de ordem pacífica e que não deixa margem a dúvidas.

A maior parte dos membros da Sociedade reside em Paris; entretanto, conta alguns que residem na província ou no estrangeiro e, embora só compareçam excepcionalmente, alguns jamais vieram a Paris desde a sua fundação, mas têm a honra de pertencer aos seus quadros. Além dos membros propriamente ditos, ela tem correspondentes, mas suas relações, puramente científicas, apenas objetivam mantê-la ao corrente do movimento espírita nas diversas localidades e me fornecem documentos para a história do estabelecimento do Espiritismo, cujos materiais estou a recolher. Entre os adeptos, alguns há que se distinguem pelo zelo, pela abnegação e pelo devotamento à causa do Espiritismo; que pagam pessoalmente, não em palavras, mas em ações. A Sociedade sente-se feliz por lhes dar um testemunho particular de simpatia, conferindo-lhes o título de membros honorários.

Nos últimos dois anos a Sociedade tem crescido em reputação e em importância; mas os seus progressos são assinalados pela natureza das comunicações que recebe dos Espíritos. Com efeito, de algum tempo a esta parte, suas comunicações adquiriram proporções e desenvolvimentos que superaram de muito a nossa expectativa; já não são, como outrora, breves fragmentos de moral banal, mas dissertações, nas quais as mais altas questões de filosofia são tratadas com uma amplidão e uma profundidade que delas fazem verdadeiros discursos. Foi o que observou a maioria dos leitores da Revista.

Sinto-me feliz em noticiar um outro progresso, no que respeita aos médiuns. Jamais, em nenhuma outra época, os vimos tantos, participando dos nossos trabalhos, pois chegamos a ter quatorze comunicações na mesma sessão. Contudo, mais precioso que a quantidade, é a qualidade, cuja importância pode ser julgada pelas instruções que nos são dadas. Nem todos apreciam a mediunidade do mesmo ponto de vista. Uns a avaliam pelo efeito; para estes, os médiuns velozes são os mais notáveis e os melhores. Para nós, que, antes de tudo, buscamos a instrução, damos mais valor àquilo que satisfaz ao pensamento do que ao que contenta os olhos. Assim, preferimos um médium útil, com o qual aprendemos alguma coisa, a um médium admirável, com quem nada aprendemos. Sob este ponto de vista não temos por que nos lastimar e devemos agradecer aos Espíritos por terem cumprido a promessa que fizeram, de não nos deixarem desprevenidos. Querendo ampliar o círculo de seus ensinos, deviam multiplicar também os instrumentos.

Há, porém, um ponto ainda mais importante, sem o qual tal ensino só teria produzido alguns frutos, ou nenhum. Sabemos que os Espíritos estão longe de possuir a soberana ciência e que se podem enganar; que, muitas vezes, emitem as próprias ideias, justas ou falsas; que os Espíritos superiores querem que o nosso julgamento se aperfeiçoe em discernir o verdadeiro do falso, o que é racional daquilo que é ilógico. Eis por que jamais aceitamos, seja o que for, de olhos fechados. Logo, não poderia haver ensino proveitoso sem discussão. Mas, como discutir comunicações com médiuns que não admitem a menor controvérsia, que se ofendem com uma observação crítica, com um simples comentário, e ficam contrariados quando não são aplaudidos pelas coisas que recebem, mesmo aquelas eivadas das mais grosseiras heresias científicas? Essa pretensão não teria cabimento se aquilo que escrevem fosse produto de sua inteligência; é ridícula, desde que não passam de instrumentos passivos, pois se assemelham a um ator que se sentiria melindrado caso achássemos maus os versos que deve recitar. Não sendo seu próprio Espírito passível de magoar-se com uma crítica que não o atinge, é, por conseguinte, o Espírito comunicante que se sente ofendido e transmite ao médium a sua impressão. Por isto mesmo o Espírito trai a sua influência, porque quer impor suas ideias pela fé cega, e não pelo raciocínio; ou, o que vem a dar no mesmo, porque só ele quer raciocinar. Disso resulta que o médium, que se acha em tais disposições, está sob o império de um Espírito que merece pouca confiança, desde que exibe mais orgulho que saber. Sabemos, também, que os Espíritos dessa categoria geralmente afastam os médiuns dos centros onde não são aceitos sem reservas.

Essa imperfeição, em médiuns assim atingidos, é um enorme obstáculo ao estudo. Se não buscássemos senão o efeito, isto não teria importância para nós; mas como buscamos a instrução, não podemos nos eximir de discutir, mesmo com o risco de desagradar aos médiuns. Como sabeis, outrora alguns se retiravam por este motivo, embora não confessado, e porque não conseguiram impor-se perante a Sociedade como médiuns exclusivos e como intérpretes infalíveis das potências celestes. Aos seus olhos, os obsedados são aqueles que não se inclinam diante de suas comunicações. Alguns levam a sua susceptibilidade a ponto de se escandalizarem com a prioridade dada à leitura das comunicações recebidas por outros médiuns. Quando é que uma comunicação é preferida à sua? Compreende-se o mal-estar imposto por tal situação. Felizmente, no interesse da ciência espírita, nem todos são assim e me apresso em aproveitar a ocasião para, em nome da Sociedade, agradecer aos que hoje nos prestam o seu concurso com tanto zelo e devotamento, sem calcular esforço nem tempo e que, não tomando partido por suas comunicações, são os primeiros a não fugirem da controvérsia que podem provocar.

Em resumo, senhores, só nos podemos congratular pelo estado da Sociedade, do ponto de vista moral; ninguém há que não tenha observado uma notável diferença no espírito dominante, em comparação ao que era no princípio, e cada um sente instintivamente a impressão, traduzida em muitas circunstâncias por fatos positivos. É incontestável que aí reina menos mal-estar e constrangimento, enquanto se faz sentir um sentimento de mútua benevolência. Parece que os Espíritos trapalhões, vendo a sua impotência para semear a desconfiança, tomaram o sábio partido de retirar-se. Também só podemos aplaudir a feliz ideia de vários membros, de organizarem reuniões particulares em suas casas. Elas têm a vantagem de estabelecer relações mais íntimas; além disso, são centros para uma porção de pessoas que não podem vir à Sociedade. Aí podem ter uma primeira iniciação; podem fazer numerosas observações que, depois, convergem para o centro comum. Enfim, são laboratórios para a formação de médiuns. Agradeço muito sinceramente às pessoas que me honraram oferecendo a sua direção, mas isso me era materialmente impossível. Lamento mesmo muito não poder estar aí tanto quanto desejaria. Conheceis minha opinião a respeito dos grupos particulares; assim, faço votos por sua multiplicação, na Sociedade ou fora dela, em Paris ou alhures, porque são os agentes mais ativos da propaganda.

Do ponto de vista material, nosso tesoureiro vos explicou a situação da Sociedade. Sabeis perfeitamente, senhores, que o nosso orçamento é muito simples; como não procuramos capitalizar, basta que haja equilíbrio entre o ativo e o passivo.

Peçamos, pois, aos Espíritos bons e, em particular, ao nosso presidente espiritual, São Luís, que continuem a nos prestar a sua benevolente proteção, concedida tão ostensivamente até hoje e da qual nos esforçaremos cada vez mais por nos tornarmos dignos.

Resta-me, senhores, chamar a vossa atenção para uma coisa importante. Quero falar do emprego dos dez mil francos que me foram enviados há cerca de dois anos por um assinante da Revista Espírita, que quis guardar o anonimato. Certamente vos lembrais de que esse donativo, a ser empregado no interesse do Espiritismo, foi-me entregue pessoalmente, sem formalidades especiais, sem recibo e sem que eu devesse prestar contas a quem quer que fosse.

Comunicando à Sociedade essa feliz circunstância, declarei, na sessão de 17 de fevereiro de 1860, que não pretendia prevalecer-me daquela prova de confiança e que, para minha própria satisfação, desejava que aquele fundo fosse submetido a um controle. E acrescentei: “Esta soma formará o primeiro fundo de uma caixa especial, sob o nome de Caixa do Espiritismo e que nada terá em comum com os meus negócios pessoais. Será posteriormente aumentada com as somas que lhe puderem chegar de outras fontes e destinada exclusivamente às necessidades da doutrina e ao desenvolvimento das ideias espíritas. Um de meus primeiros cuidados será suprir o que estiver faltando materialmente à Sociedade para a regularidade de seus trabalhos, e para a criação de uma biblioteca especial. Pedi a vários colegas que aceitassem o controle dessa caixa e verificassem, em datas que serão determinadas posteriormente, o útil emprego desse fundo.”

Essa comissão, hoje parcialmente desfeita pelas circunstâncias, será completada quando for necessário; então, todos os documentos lhe serão fornecidos. Enquanto aguardamos, e tendo em vista a absoluta liberdade que me foi concedida, julguei conveniente aplicar essa soma no desenvolvimento da Sociedade. É a vós, senhores, que julgo dever prestar contas da situação, tanto para desobrigar-me pessoalmente, quanto para a vossa edificação. Insisto, sobretudo, para que bem se compreenda a impossibilidade material de usar esse fundo em despesas cuja urgência se faz sentir cada vez mais, em razão da própria extensão dos trabalhos que reclama o Espiritismo.

Como sabeis, senhores, a Sociedade sentia vivamente os inconvenientes de não ter um local especial para as sessões e onde seus arquivos pudessem estar à mão. Para trabalhos como os nossos é preciso, por assim dizer, um local consagrado, onde nada possa perturbar o recolhimento. Cada um deplorava a necessidade em que nos encontrávamos de nos reunirmos num estabelecimento público, em desarmonia com a seriedade de nossos estudos. Desse modo, julguei fazer uma coisa útil, proporcionando-lhe os meios de dispor de um local mais conveniente, com o auxílio dos fundos que havia recebido.

Por outro lado, o progresso do Espiritismo traz à minha casa um número cada vez maior de visitantes, nacionais e estrangeiros, número que pode ser calculado em mil e duzentos a mil e quinhentos por ano, sendo preferível recebê-los na própria sede da Sociedade, nela concentrando todos os negócios e todos os documentos relativos ao Espiritismo.

Quanto a mim, acrescentarei que, consagrando-me inteiramente à doutrina, tornava-se de certo modo necessário, para evitar perda de tempo, que aí tivesse o meu domicílio ou, pelo menos, uma pousada. Para mim pessoalmente não havia a menor necessidade, pois tenho em casa um apartamento que nada me custa, mais agradável sob todos os aspectos, e onde habito tanto quanto mo permitem minhas ocupações. Um segundo apartamento teria sido uma despesa inútil e onerosa. Assim, sem o Espiritismo, eu estaria tranquilamente em casa, na Avenida Ségur, e não aqui, obrigado a trabalhar da manhã à noite e, muitas vezes, da noite à manhã, sem mesmo poder repousar um pouco, o que me seria bastante necessário. Sabeis que sou sozinho para dar conta de uma tarefa cuja extensão dificilmente as pessoas imaginam, e que necessariamente aumenta com o desenvolvimento da doutrina.

Este apartamento reúne as vantagens desejáveis por suas disposições internas e sua situação central. Sem nada ter de suntuoso, é muito conveniente; mas sendo os recursos da Sociedade insuficientes para pagar o aluguel integralmente, vi-me forçado a completá-lo com os fundos da doação. Sem isto a Sociedade teria de permanecer na situação precária acanhada e incômoda em que antes se achava. Graças a esse suplemento, foi possível imprimir aos seus trabalhos desenvolvimentos prontamente acolhidos pela opinião pública, de maneira vantajosa e proveitosa para a doutrina. É, pois, o emprego passado e a destinação futura dos fundos da doação que julgo dever comunicar-vos.

O aluguel do apartamento custa 2.500 francos por ano e, com os acessórios, 2.530 francos. As contribuições perfazem 198 francos, totalizando 2.728 francos. A Sociedade paga de sua parte 1.200 francos; resta, pois, a completar, uma diferença de 1.528 francos.

O contrato foi feito por três anos, seis ou nove, a contar de 1º de abril de 1860. Calculando-o por apenas seis anos a 1.528 francos, temos 9.168 francos, ao que devemos acrescentar 900 francos para a compra de móveis e despesas de instalação; para doações e auxílios diversos, 80 francos. Total das despesas: 10.148 francos, sem contar os imprevistos, a pagar com o capital de 10.000 francos.

Portanto, no fim do contrato, isto é, daqui a quatro anos, haverá um excedente de despesa. Vedes, senhores, que não podemos desviar a menor soma, se quisermos chegar ao fim. Que faremos, então? Aquilo que Deus e os Espíritos bons quiserem, e que não me inquietasse, conforme me disseram estes últimos.

Quero frisar que a importância destinada à compra do material e às despesas de instalação não ultrapassa 900 francos, soma que gastei rigorosamente do capital. Se tivéssemos de adquirir todo o mobiliário aqui existente — refiro-me apenas às peças de recepção — haveria necessidade de três ou quatro vezes mais e, então, a Sociedade, em vez de seis anos de contrato, teria apenas três anos de aluguel. É, pois, o meu mobiliário pessoal que constitui a maior parte e que, devido ao uso, vem se desgastando severamente.

Em resumo, esta soma de 10.000 francos, que alguns julgavam inesgotável, acha-se quase inteiramente absorvida pelo aluguel que, antes de tudo, importava garantir por certo tempo, sem que tivesse sido possível desviar uma parte para outros fins, principalmente para a compra de obras antigas e modernas, francesas e estrangeiras, necessárias à formação de uma grande biblioteca espírita, como era projeto meu. Este único objetivo não teria custado menos de 3.000 a 4.000 francos.

Disso resulta que, exceto o aluguel, todas as despesas, tais como viagens e uma porção de gastos necessários ao Espiritismo, e que não chegam a menos de 2.000 francos por ano, estão pessoalmente a meu cargo, soma que não deixa de ser importante num orçamento restrito, que só se salda à custa de ordem, economia e mesmo de privações.

Não creiais, senhores, que eu queira conquistar méritos; assim agindo, sei que sirvo a uma causa, junto à qual a vida material nada é e pela qual estou pronto a sacrificar a minha. Talvez um dia eu tenha imitadores; aliás, estou bem recompensado pela visão dos resultados obtidos. Só lamento uma coisa: a exiguidade de meus recursos não me permite fazer mais. Com suficientes meios de execução, bem empregados, com ordem e em coisas verdadeiramente úteis, avançaríamos meio século no estabelecimento definitivo da doutrina.


Conversas Familiares de Além-Túmulo

Sr. Sanson

(Sociedade Espírita de Paris, 25 de abril de 1862. Médium: Sr. Leymarie.

Segunda conversa. Vide Revista de maio de 1862)

1. Evocação.

Resp. — Meus amigos, estou junto a vós.

2. Estamos muito felizes pela conversa que tivemos convosco no dia do vosso enterro e, já que o permitis, teremos o prazer de a completar, para nossa instrução.

Resp. — Estou pronto, feliz por pensardes em mim.

3. Tudo quanto possa esclarecer-nos sobre a situação do mundo invisível e nos fazer compreendê-lo é um grande ensinamento, porquanto é a falsa ideia que dele se faz que geralmente conduz à incredulidade. Não vos surpreendais, pois, com as perguntas que poderemos vos dirigir.

Resp. — Não me admirarei e atenderei às vossas perguntas.

4. Descrevestes com luminosa clareza a passagem da vida à morte; dissestes que no momento em que o corpo exala o último suspiro a vida se parte e a visão do Espírito se extingue. Tal momento é acompanhado por uma sensação penosa, dolorosa?

Resp. — Sem dúvida, porque a vida é uma sucessão contínua de dores e a morte é o complemento de todas as dores; daí uma ruptura violenta, como se o Espírito fosse obrigado a fazer um esforço sobre-humano para escapar de seu envoltório. Tal esforço, absorvendo todo o nosso ser, leva-nos a perder a consciência daquilo em que nos tornaremos.

Observação — Este caso não é geral. A separação pode dar-se com um certo esforço, mas prova a experiência que nem todos os Espíritos têm consciência disso, pois muitos perdem completamente a consciência antes de expirar; as convulsões da agonia as mais das vezes são puramente físicas. O Sr. Sanson apresentou um fenômeno bastante raro: o de ser, por assim dizer, testemunha de seu último suspiro.

5. Sabeis se há Espíritos para os quais este momento é mais doloroso? É mais penoso, por exemplo, para o materialista, para quem pensa que tudo acaba para si nesse momento?

Resp. — Isto é certo, porque o Espírito preparado já esqueceu o sofrimento ou, melhor, já se acostumou a ele; a quietude com a qual vê a morte o impede de sofrer duplamente, visto saber o que o espera. O sofrimento moral é mais forte e sua ausência no instante da morte é um grande alívio. Aquele que não crê assemelha-se a um condenado à pena capital, cujo pensamento vê o cutelo e o desconhecido. Há semelhança entre essa morte e a do ateu.

6. Haverá materialistas bastante endurecidos para crerem seriamente que nesse momento supremo serão mergulhados no nada?

Resp. — Sem dúvida; até a última hora alguns crêem no nada. Mas no momento da separação o Espírito passa por profundas reflexões; a dúvida o subjuga e o tortura, porque a si mesmo pergunta em que se tornará; quer agarrar-se a alguma coisa, mas não consegue. A separação não se pode dar sem essa impressão.

Observação — Em outra circunstância um Espírito nos deu a seguinte descrição do fim de um incrédulo. “Nos últimos instantes o incrédulo endurecido experimenta as angústias desses pesadelos terríveis, nos quais se vê à borda de precipícios, prestes a cair no abismo; faz inúteis esforços para fugir, mas não pode andar; quer agarrar-se a qualquer coisa, prender-se a um ponto de apoio e se sente escorregando; quer chamar alguém, mas não é capaz de articular o menor som; então o moribundo se contorce, crispa as mãos e solta gritos abafados, sinais indiscutíveis do pesadelo de que é vítima. No pesadelo ordinário o despertar vos tira da inquietude e vos sentis felizes ao reconhecer que apenas sonhastes, enquanto o pesadelo da morte muitas vezes se prolonga por muito tempo, até anos, após o traspasse; mas o que torna a sensação ainda mais penosa para o Espírito são as trevas em que algumas vezes se sente mergulhado. Chegamos mesmo a observar vários casos semelhantes, o que vem provar que essa descrição não é exagerada.

7. Dissestes que no momento da morte nada víeis, mas que pressentíeis. Compreende-se que não víeis corporalmente; mas, antes que a vida fosse extinta, já entrevíeis a claridade do mundo dos Espíritos?

Resp. — Foi o que disse antes; o instante da morte dá clarividência ao Espírito; os olhos não veem mais, mas o Espírito, que possui uma visão bem mais profunda, descobre instantaneamente um mundo desconhecido e a verdade lhe aparece de súbito, dando-lhe, ainda que momentaneamente, ou uma alegria profunda, ou uma pena inexprimível, conforme o estado de sua consciência e a lembrança de sua vida passada.

Observação — Trata-se do instante que precede aquele em que o Espírito perde a consciência, o que explica o emprego da palavra momentaneamente, porque as mesmas impressões, agradáveis ou penosas, continuam ao despertar.

8. Podeis dizer-nos o que vos surpreendeu e o que vistes no momento em que os vossos olhos se abriram à luz? Se possível, descrevei o aspecto das coisas que se vos ofereceram.

Resp. — Quando pude voltar a mim e ver o que havia diante dos meus olhos, estava como que deslumbrado e não me dava muita conta, pois a lucidez não retorna instantaneamente. Mas Deus, que me testemunhou profundamente a sua bondade, permitiu-me que recuperasse as faculdades. Vi-me cercado por numerosos e fiéis amigos. Todos os Espíritos protetores que nos vêm assistir me rodeavam e sorriam; animava-os uma felicidade sem igual e eu mesmo, forte e bem-disposto, podia sem esforço transportar-me no espaço. O que vi não tem nome na linguagem humana.

Aliás, virei falar mais amplamente de todas as minhas felicidades, sem ultrapassar, no entanto, o limite exigido por Deus. Sabei que a felicidade, tal qual a entendeis, é uma ficção. Vivei sabiamente, santamente, no espírito de caridade e de amor e sereis preparados para as impressões que os vossos maiores poetas não poderiam descrever.

Observação — Sem dúvida os contos de fadas estão cheios de coisas absurdas; mas não corresponderiam, em alguns pontos, ao quadro do que se passa no mundo dos Espíritos? A descrição do Sr. Sanson não se parece com a do homem que, adormecido numa pobre e obscura cabana, despertasse num esplêndido palácio, em meio a uma corte brilhante?

(TERCEIRA CONVERSA — 2 DE MAIO DE 1862)

9. Sob que aspecto se vos apresentaram os Espíritos? Sob a forma humana?

Resp. — Sim, meu caro amigo. Os Espíritos nos haviam ensinado na Terra que conservavam no outro mundo a forma transitória que haviam tido no vosso; e é verdade. Mas, que diferença entre a máquina disforme, que se arrasta penosamente com o seu cortejo de provas, e a maravilhosa fluidez do corpo dos Espíritos! A feiura não existe mais, porque os traços perderam a dureza de expressão que forma o caráter distintivo da raça humana. Deus beatificou todos esses corpos graciosos, que se movem com toda a elegância da forma; a linguagem, para vós, tem entonações intraduzíveis e o olhar tem a profundeza de uma estrela. Procurai, pelo pensamento, ver o que Deus pode fazer na sua onipotência, Ele, o arquiteto dos arquitetos, e tereis feito uma pálida ideia da forma dos Espíritos.

10. Para vós, como vedes? Reconhecei-vos com forma limitada, circunscrita, posto que fluídica? Sentis a cabeça, o tronco, os braços e as pernas?

Resp. — Tendo conservado a forma humana, mas divinizada, idealizada, o Espírito tem, incontestavelmente, todos os membros de que falais. Sinto perfeitamente as pernas e os dedos, porque podemos, à vontade, vos aparecer e apertar vossa mão. Estou junto de vós e apertei a mão de todos os meus amigos, sem que disso tivessem tido consciência, porque nossa fluidez pode estar por toda parte, sem obstruir o espaço, sem causar nenhuma sensação, se for este o nosso desejo. Neste momento tendes as mãos cruzadas e as minhas estão nas vossas. Digo a vós outros: Eu vos amo, mas meu corpo não ocupa lugar; a luz o atravessa e, o que chamaríeis um milagre, caso se tornasse visível, para os Espíritos é uma ação ininterrupta.

A visão dos Espíritos não tem relação com a visão humana, assim como o corpo não tem semelhança real, porque tudo mudou no conjunto e no fundo. Repito que o Espírito tem uma perspicácia divina que a tudo se estende, visto poder adivinhar até mesmo os vossos pensamentos; assim pode tomar convenientemente a forma que melhor o recorde às vossas lembranças. Mas, na verdade, o Espírito superior, que terminou suas provas, prefere a forma que o conduziu a Deus.

11. Os Espíritos não têm sexo. Entretanto, como há poucos dias éreis homem, no vosso novo estado tendes de preferência a natureza masculina que a feminina? Dá-se o mesmo com um Espírito que tivesse deixado o corpo há muito tempo?

Resp. — Não nos prendemos à natureza masculina ou feminina: os Espíritos não se reproduzem. Deus os criou por sua vontade e se, na sua visão maravilhosa, quis que os Espíritos reencarnassem na Terra, teve de estabelecer a reprodução das espécies para o macho e a fêmea. Mas pressentis, sem que haja necessidade de nenhuma explicação, que os Espíritos não podem ter sexo.

Observação — Sempre foi dito que os Espíritos não têm sexo; os sexos só são necessários para a reprodução dos corpos; como os Espíritos não se reproduzem, o sexo seria inútil para eles. Nossa pergunta não visava constatar o fato, mas, por causa da morte muito recente do Sr. Sanson, queríamos saber se lhe restava uma impressão de seu estado terreno. Os Espíritos depurados se dão conta perfeitamente de sua natureza; mas entre os Espíritos inferiores, não desmaterializados, muitos ainda se julgam como eram na Terra, conservando as mesmas paixões e os mesmos desejos. Estes ainda se creem homens ou mulheres e por isso alguns disseram que os Espíritos têm sexo. É assim que certas contradições provêm do estado mais ou menos adiantado dos Espíritos que se comunicam; o erro não é dos Espíritos, mas daqueles que os interrogam e não se dão ao trabalho de aprofundar a questão.

12. Entre os Espíritos aqui presentes vedes São Luís, o nosso presidente espiritual?

Resp. — Está sempre ao vosso lado e, quando se ausenta, deixa sempre um Espírito superior, que o substitui.

13. Não vedes outros Espíritos?

Resp. — Perdão; o Espírito de Verdade, Santo Agostinho, Lamennais, Sonnet, São Paulo, Luís e outros amigos que evocais estão sempre nas vossas sessões.

14. Que aspecto vos apresenta a sessão? Com a vossa nova visão, ela se vos apresenta como a víeis em vida? As pessoas têm a mesma aparência? É tudo tão claro e tão nítido?

Resp. — Muito mais claro, porque posso ler o pensamento de todos; e me sinto muito feliz pela agradável impressão deixada pela boa vontade de todos os Espíritos reunidos. Desejo que o mesmo entendimento se faça não só em Paris, pela união de todos os grupos, mas também em toda a França, onde os grupos se separam e se invejam, impelidos por Espíritos trapalhões, que se comprazem na desordem, ao passo que o Espiritismo deve ser o esquecimento completo, absoluto do eu.

15. Dissestes que ledes o nosso pensamento. Poderíeis explicar como se opera essa transmissão?

Resp. — Isto não é fácil. Para vos dizer, para vos explicar este prodígio singular da visão dos Espíritos, seria necessário vos abrir todo um arsenal de agentes novos, e seríeis tão sábios quanto nós, o que não é possível, porque vossas faculdades são limitadas pela matéria. Paciência! Tornai-vos bons e chegareis. Não tendes atualmente senão o que Deus vos concede; entretanto, com a esperança de progredir continuamente, mais tarde sereis como nós. Tratai, pois, de morrer, a fim de saber muito. A curiosidade, que é o estimulante do homem inteligente, vos conduz tranquilamente até a morte, reservando-vos a satisfação de todas as curiosidades passadas, presentes e futuras. Enquanto esperais, eu vos direi, respondendo bem ou mal à vossa pergunta: O ar que vos envolve, impalpável como nós, leva o caráter do vosso pensamento; o sopro que exalais é, por assim dizer, a página escrita dos vossos pensamentos; elas são lidas e comentadas pelos Espíritos que se vos acotovelam incessantemente; eles são os mensageiros de uma telegrafia divina, à qual nada escapa.

16. Vedes, meu caro Sr. Sanson, que utilizamos largamente a permissão que nos destes para fazer a vossa necropsia espiritual. Não abusaremos; de outra vez, se o quiserdes, faremos perguntas de outra ordem.

Resp. — Sentir-me-ei sempre muito feliz por me tornar útil aos meus antigos colegas e ao seu digno presidente.


O Menino Jesus entre os Doutores — Último Quadro de Ingres

A Sra. Dozon, nossa colega da Sociedade, recebeu em casa, em 9 de abril de 1862, a seguinte comunicação espontânea:

“O menino Jesus encontrado por seus pais pregando no Templo, entre os doutores. (São Lucas, Natividade)

Tal é o motivo de um quadro inspirado a um dos nossos maiores artistas. Essa obra do homem revela mais que o gênio: aí se vê brilhar aquela luz que Deus dá às almas para as esclarecer e as conduzir às regiões celestes. Sim, a religião iluminou o artista. Esse clarão foi visível? O trabalhador viu o raio partindo do céu e descendo até ele? Teria visto divinizar-se, sob seus pincéis, a cabeça do Menino-Deus? Ter-se-ia ajoelhado diante dessa obra de inspiração divina, e exclamado, como o velho São Simeão: “Senhor, deixareis morrer em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra, porque meus olhos viram o Salvador que nos dais agora e que destinais a ser exposto aos olhos de todos os povos.”

“Sim, o artista pode dizer-se servo do Senhor, porquanto acaba de executar uma ordem de sua suprema vontade. Quis Deus que no tempo em que reina o cepticismo, a multidão parasse diante dessa figura do Salvador! Mais de um coração se afastará levando uma lembrança que o conduzirá ao pé da cruz, onde essa divina criança deu a vida pela Humanidade, por vós, multidão indiferente!

“Contemplando o quadro de Ingres, a vista se afasta a duras penas para se voltar em direção a essa figura de Jesus, onde há um misto de divindade, de infância e também algo da flor; essas roupagens, essa túnica de cores leves, jovens, delicadas, lembrando o suave colorido que se balança nas hastes perfumadas. Tudo merece ser admirado na obra-prima de Ingres. Mas aí a alma gosta mais de contemplar os dois tipos adoráveis de Jesus e de sua divina Mãe. Ainda uma vez experimentamos a necessidade de a saudar por suas palavras angélicas: “Eu vos saúdo, Maria, cheia de graça.” Mas se apenas ousamos levantar o olhar artístico para essa nobre figura divinizada, tabernáculo de um Deus, esposa de um homem, virgem pela pureza, mulher predestinada às alegrias do paraíso e às agonias da Terra, Ingres compreendeu tudo isso e não haveremos de passar diante da Mãe de Jesus sem lhe dizer: “Maria, dulcíssima virgem, em nome de vosso filho, orai por nós!” Vós o apreciareis um dia; eu vi as primeiras pinceladas sobre essa tela bendita. Vi surgirem, uma a uma, as figuras, as poses dos doutores; vi o anjo protetor de Ingres, inspirando-o, fazer cair os pergaminhos das mãos de um desses doutores. Meu Deus, aí se encontra toda uma revelação! Essa voz de criança destruirá também, uma a uma, as leis que não são suas.

“Não desejo aqui fazer arte como ex-artista. Sou um Espírito; para mim só a arte religiosa me toca. Assim, vi nesses graciosos ornamentos de cepas de vinha a alegoria da vinha de Deus, onde todos os homens devem saciar-se, dizendo a mim mesmo, com profunda alegria, que Ingres acabava de fazer amadurecer um de seus belos cachos. Sim, mestre! teu Jesus vai falar, também, diante dos doutores que negam a sua lei, diante dos que a combatem. Mas quando eles se encontrarem sós com a lembrança da Criança divina, oh! mais de um rasgará os rolos de pergaminho sobre os quais a mão de Jesus escreverá: Erro.

“Vede, pois, como todos os trabalhadores marcam um encontro! Uns vêm voluntariamente e por caminhos já conhecidos; outros, conduzidos pela mão de Deus, que os vai buscar em seus lugares e lhes mostra onde devem ir. Outros, ainda, sem saber onde estão, chegam atraídos pelo encanto que lhes faz semear flores de vida, para erguer o altar sobre o qual o menino Jesus ainda hoje vem para muitos, embora, sob safirinas roupagens ou sob a túnica do crucificado, seja sempre o mesmo e único Deus.”

David, pintor

Nem a Sra. Dozon nem seu marido tinham ouvido falar desse quadro. Havendo nos informado pessoalmente com alguns artistas, nenhum deles o conhecia. Começamos, então, a pensar numa mistificação. O melhor meio de dirimir a dúvida era ir diretamente ao artista, para saber se ele havia tratado do assunto. Foi o que fez o Sr. Dozon. Entrando no ateliê, viu o quadro, acabado somente há poucos dias e, em consequência, desconhecido do público. Essa revelação espontânea torna-se ainda mais notável quando se considera que a descrição dada pelo Espírito é de uma exatidão perfeita. Tudo ali está: o ramo da videira, pergaminhos caídos no chão, etc. No momento o quadro se acha exposto numa sala do Boulevard des Italiens, onde fomos vê-lo e, como toda a gente, admirá-lo, pois que ele representa, indubitavelmente, uma das páginas mais sublimes da pintura moderna. Do ponto de vista da execução, é digno do grande artista que, parece-nos, nada fez de superior, apesar de seus oitenta e três anos. Mas o que dele faz uma obra-prima invulgar é o sentimento que aí domina, a expressão, o pensamento que brota de todas essas figuras, sobre as quais é possível ler a surpresa, a estupefação, a comoção, a dúvida, a necessidade de negar, a irritação por se ver abatido por uma criança. Tudo isto é tão verdadeiro, tão natural, que começamos a pôr palavras em cada boca. Quanto à criança, é de um ideal que deixa muito para trás tudo quanto já foi feito sobre o mesmo assunto. Não é um orador que fala aos seus ouvintes; nem mesmo os olha: nele adivinhamos o órgão de uma voz celeste.

Sem dúvida há o gênio em toda essa concepção, mas a inspiração é incontestável. O próprio Sr. Ingres disse que não tinha composto esse quadro em condições ordinárias; disse tê-lo começado pela arquitetura, o que não é seu costume; a seguir vinham as personagens, por assim dizer, colocar-se por si mesmas sob o seu pincel, sem premeditação de sua parte. Temos motivos para pensar que esse trabalho se liga a coisas cuja chave teremos mais tarde, mas sobre as quais devemos ainda guardar silêncio, como sobre muitas outras.

Tendo o fato acima sido relatado na Sociedade, o Espírito Lamennais ditou espontaneamente, naquela ocasião, a comunicação que se segue.

SOBRE O QUADRO DO SR. INGRES

(Sociedade Espírita de Paris, 2 de maio de 1862 — Médium: Sr. A. Didier)

Ultimamente eu vos falava do menino Jesus entre os doutores e vos ressaltava sua iluminação divina em meio às sábias trevas dos sacerdotes judeus. Temos um exemplo a mais de que a espiritualidade e os movimentos da alma constituem a fase mais brilhante da arte. Sem conhecer a Sociedade Espírita, pode-se ser um grande artista espiritualista; em sua nova obra, Ingres não só nos mostra o estudo divino do artista, mas, também, a sua mais pura e ideal inspiração; não essa falsa idealidade que engana a tanta gente e que é uma hipocrisia da arte sem originalidade, mas a idealidade haurida na natureza simples, verdadeira e, por conseguinte, bela em toda a acepção do termo. Nós, Espíritos, aplaudimos as obras espiritualistas, assim como censuramos a glorificação dos sentimentos materiais e de mau gosto. É uma virtude sentir a beleza moral e a beleza física nesse ponto; é a marca certa de sentimentos harmoniosos, no coração e na alma; e, quando o sentimento do belo se desenvolve a esse ponto, é raro que o sentimento moral também não o seja. É um grande exemplo o desse velho de oitenta anos que, no seio de uma sociedade corrompida, representa o triunfo do espiritualismo, com o gênio sempre jovem e sempre puro da fé.

Lamennais


Assim se Escreve a História!

OS MILHÕES DO SR. ALLAN KARDEC

Fomos informados de que numa grande cidade comercial, onde o Espiritismo conta numerosos adeptos, e onde faz o maior bem entre a classe laboriosa, um sacerdote tornou-se propagandista de certo falatório, que almas caridosas se apressaram em espalhar pelas ruas e, certamente, amplificar. Conforme tal intriga, somos milionários; em nossa casa tudo brilha e só pisamos os mais belos tapetes de Aubusson. Conheceram-nos pobre em Lyon; hoje temos carruagem de quatro cavalos e levamos em Paris uma vida principesca. Dizem que toda essa fortuna nos vem da Inglaterra, desde que nos ocupamos do Espiritismo, e remuneramos generosamente os nossos agentes na província. Vendemos caro os manuscritos de nossas obras, sobre os quais ainda ganhamos uma comissão, o que não nos impede de os vender a preços exorbitantes, etc.

Eis a resposta que demos à pessoa que nos envia tais detalhes:

“Meu caro senhor, ri muito dos milhões com que me gratifica tão generosamente o abade V..., principalmente porque estava longe de suspeitar dessa boa sorte. O relatório feito à Sociedade de Paris, antes da recepção de vossa carta, aqui publicado, infelizmente vem reduzir essa ilusão a uma realidade muito menos dourada. Aliás, não é a única inexatidão desse relato fantástico; antes de tudo, jamais morei em Lyon[1] e, pois, não vejo como lá me tivessem conhecido pobre; quanto à minha carruagem de quatro cavalos, lamento dizer que se reduz aos sendeiros de um fiacre que tomo apenas cinco ou seis vezes ao ano, por economia. É verdade que antes das estradas de ferro fiz algumas viagens em diligências; sem dúvida fizeram confusão. Mas convém não esquecer que nessa época ainda não se cogitava de Espiritismo e, segundo o abade, é ao Espiritismo que devo a minha imensa fortuna. Onde, então, pescaram tudo isto, senão no arsenal da calúnia? Seria tanto mais verossímil se se pensasse na natureza da população em cujo meio apregoam tais rumores. É de convir que faltam boas razões para se deixarem reduzir a tão ridículos expedientes a fim de desacreditar o Espiritismo. O Sr. abade não vê que vai diretamente contra o seu objetivo, porque, dizer que o Espiritismo me enriqueceu a tal ponto é confessar que está imensamente espalhado. Se, pois, se espalhou tanto, é que agrada. Assim, aquilo que ele queria lançar contra o homem, volta-se em benefício da doutrina. Depois disto fazei alguém acreditar que uma doutrina, que em alguns anos dá milhões ao seu propagador, seja uma utopia, uma ideia oca! Tal resultado seria um verdadeiro milagre, pois não há exemplo de uma teoria filosófica que alguma vez tenha sido fonte de riqueza. Geralmente, como sucede com as invenções, come-se o pouco que se tem; seria este, mais ou menos, o meu caso, se se soubesse tudo quanto me custa a obra a que me dediquei e à qual sacrifico meu tempo, minhas vigílias, meu repouso e minha saúde. Contudo, tenho por princípio guardar para mim aquilo que faço e não gritar dos telhados. Para ser imparcial, o sr. abade deveria ter feito um paralelo das quantias que as comunidades e os conventos usurpam dos fiéis; quanto ao Espiritismo, mede sua influência pelo bem que faz, pelo número de aflitos que consola, e não pelo dinheiro que produz.

Se levamos uma vida principesca, deveríamos dispor, naturalmente, de uma mesa requintada. Que diria, pois, o sr. abade se visse minhas mais suntuosas refeições, nas quais recebo os amigos? Achá-las-ia muito frugais, ao lado das sóbrias refeições de certos dignitários da Igreja, que talvez as recusassem até mesmo nas mais austeras quaresmas. Dir-lhe-ei, então, já que ignora, e para lhe poupar o trabalho das comparações, que o Espiritismo não é e nem pode ser um meio de enriquecer; que repudia toda especulação de que pudesse ser objeto; que ensina a fazer pouco caso do temporal, a contentar-se com o necessário e a não procurar as alegrias do supérfluo, que não são o caminho do céu; que se todos os homens fossem espíritas, não teriam inveja, nem ciúmes, nem se espoliariam uns aos outros; não maldiriam o próximo nem o caluniariam, porque ele ensina esta máxima do Cristo: Não façais a outrem o que não gostaríeis que vos fizessem. É para pô-la em prática que não escrevo todas as letras do nome do sr. abade V...

Ensina ainda o Espiritismo que a fortuna é um depósito de que devemos prestar contas e que o rico será julgado conforme o emprego que dela tiver feito. Se possuísse a que me atribuem e, sobretudo, se a devesse ao Espiritismo, eu seria perjuro aos meus princípios de a empregar na satisfação do orgulho e na posse de prazeres mundanos, em lugar de a fazer servir à causa cuja defesa abracei.

Mas — perguntarão — e as vossas obras? Não vendestes caro os manuscritos? Um instante; isto é entrar no domínio privado, onde não reconheço a ninguém o direito de se imiscuir. Sempre honrei os meus negócios, não importa a que preço de sacrifícios e de privações; nada devo a quem quer que seja, enquanto muitos me devem, sem o que teria mais do dobro do que me resta; assim, ao invés de subir, desci na escala da fortuna. Não tenho, pois, de dar satisfação de meus negócios a ninguém; que isso fique bastante claro. Entretanto, para contentar um pouco os curiosos, que não se deveriam intrometer com o que não lhes diz respeito, direi que se tivesse vendido meus manuscritos apenas teria usado do direito que todo trabalhador tem de vender o produto de seu trabalho; mas não vendi nenhum; alguns até doei, pura e simplesmente, no interesse da causa, e que são vendidos à vontade, sem que me venha um centavo. Manuscritos são vendidos caro quando se referem a obras conhecidas, de lucro previamente garantido, mas em parte alguma se encontram editores tão complacentes que paguem a peso de ouro obras cujo lucro é hipotético, quando nem mesmo querem correr o risco da impressão. Ora, a esse respeito, uma obra filosófica tem cem vezes menos valor do que certos romances vinculados a determinados nomes. Para dar uma ideia de meus imensos lucros, direi que a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que empreendi por minha conta e risco, mesmo não tendo editor que dela quisesse encarregar-se, rendeu-me cerca de quinhentos francos, já descontadas as despesas e depois de esgotados todos os exemplares, vendidos e doados, como posso provar documentalmente. Não sei que tipo de carruagem se poderia comprar com isto. Na impossibilidade em que me encontrei, não tendo ainda os milhões em questão, para assumir pessoalmente os gastos de todas as minhas publicações e, sobretudo, de me ocupar com a sua comercialização, cedi por algum tempo o direito de publicação, mediante um direito do autor, calculado a tantos centavos por exemplar vendido; assim, desconheço inteiramente os detalhes da venda e das transações que os intermediários possam fazer com as remessas feitas pelos editores aos seus correspondentes, transações de cuja responsabilidade eu declino, estando obrigado, no que me concerne, a prestar contas aos editores, mediante um valor estipulado, de todos os livros retirados, vendidos ou considerados perdidos.

Quanto ao lucro que pode advir da venda de minhas obras, não tenho que dar explicações de seu montante, nem de seu emprego. Por certo, cabe-me o direito de o utilizar como bem me aprouver; entretanto, não sabem se tal produto tem uma destinação determinada, da qual não pode ser desviado; é o que saberão mais tarde. Porque, se um dia alguém tivesse a veleidade de escrever a minha história com dados semelhantes aos relatados acima, os fatos deveriam ser repostos em sua integridade. Por isso deixarei memórias circunstanciadas sobre todas as minhas relações e todos os meus negócios, sobretudo no que respeita ao Espiritismo, a fim de poupar aos cronistas futuros os equívocos em que muitas vezes caem, por terem confiado nos boatos dos doidivanas, das más-línguas e das pessoas interessadas em deturpar a verdade, às quais deixo o prazer de deblaterar à vontade, para que mais tarde se torne mais evidente a sua má-fé.

Pessoalmente eu me inquietaria muito pouco se, doravante, meu nome não estivesse ligado intimamente à história do Espiritismo. Por minhas relações, naturalmente possuo a respeito os mais numerosos e autênticos documentos que existem; pude acompanhar a doutrina em todo o seu desenvolvimento, observar-lhe todas as peripécias, como lhe prever as consequências. Para todo homem que estuda esse movimento, torna-se evidente que o Espiritismo marcará uma das fases da Humanidade. É, pois, necessário que, mais tarde, se saiba quais as vicissitudes que teve de atravessar, os obstáculos que encontrou, os inimigos que procuraram travar-lhe a marcha, as armas de que se serviram para o combater. Não menos importante é saber por que meios pôde triunfar; quais as pessoas que, por seu zelo, devotamento e abnegação terão contribuído eficazmente para a sua propagação; aqueles cujos nomes e atos merecerão ser assinalados para o reconhecimento da posteridade, e que tomo como dever inscrever nas minhas fichas. Compreende-se que essa história não pode aparecer tão cedo; o Espiritismo apenas acaba de nascer e as fases mais interessantes de seu estabelecimento ainda não foram concluídas. Aliás, poderá acontecer que, entre os Saulos do Espiritismo de hoje, mais tarde surjam São Paulos; esperemos não ter de registrar os Judas.

Tais são, meu caro senhor, as reflexões sugeridas pelos estranhos rumores que me chegaram. Se os refutei, não foi pelos espíritas de vossa cidade, que me conhecem muito bem e que teriam podido julgar-me quanto os visitei, se em mim houvessem percebido gostos e atitudes de um grão-senhor. Faço-o em atenção aos que não me conhecem e que poderiam ser induzidos em erro por essa maneira mais que leviana de fazer a história. Se o sr. abade V... não tem em vista senão dizer a verdade, estou pronto a lhe fornecer verbalmente todas as explicações necessárias ao seu esclarecimento.

Todo vosso,

Allan Kardec


Sociedade Espírita de Viena, Áustria

Anunciando que uma edição alemã de nossa brochura O Espiritismo na sua expressão mais simples tinha sido publicada em Viena, falamos da Sociedade Espírita dessa cidade. Recebemos do presidente daquela Sociedade a seguinte carta:

“Senhor Allan Kardec,

“A Sociedade Espírita de Viena encarrega-me de vos comunicar que acaba de vos nomear seu presidente de honra, pedindo que aceiteis esse título como penhor de elevada e respeitosa estima que vos dedica. Desnecessário acrescentar, senhor, que servindo aqui de instrumento, não faço senão obedecer a um impulso do coração, que vos é inteiramente dedicado.

“Permiti-me, senhor, sem abusar de vosso precioso tempo, aditar algumas palavras relativas à nossa Sociedade. Ela acaba de entrar em seu terceiro ano e, embora muito restrito ainda seja o seu número de associados, posso dizer com satisfação que, no círculo privado em que ainda se move, faz proporcionalmente muito bem; e tenho esperança que, ao chegar o momento de ampliar o seu campo de atividade, ela produzirá frutos mais abundantes: é o meu mais vivo desejo. No ano passado, por ocasião do primeiro aniversário, dizia-me o nosso Espírito protetor em seu profundo e majestoso laconismo: Semeastes a boa semente; eu vos abençôo. Este ano me disse: Eis a máxima para o ano que vai começar: Com Deus e para Deus. O ano passado foi uma recompensa para o que passou; este ano é um encorajamento para o futuro. Assim, preparei-me para empregar meios mais diretos para agir sobre a opinião pública. Primeiramente, a tradução da vossa excelente brochura não terá deixado de preparar o terreno; depois, pensei na publicação de um jornal em alemão como meio mais seguro de apressar os resultados. Material não me faltará, sobretudo se permitirdes que algumas vezes eu o possa extrair dos tesouros encerrados em vossa Revista, onde, naturalmente, tomarei sempre como dever sagrado indicar a fonte das passagens e os trechos que tiver traduzido. Enfim, para coroar a obra, gostaria de pôr à disposição dos alemães o vosso precioso e indispensável O Livro dos Espíritos. Assim, senhor, e sem temer vos importunar, pois estou persuadido de que todo pensamento do bem corresponde ao vosso próprio pensamento, venho pedir-vos que, se ninguém ainda obteve esse favor, que me permitais fazer a sua tradução em língua alemã.

“Acabo de vos expor, senhor, os projetos que medito, a fim de dar um impulso maior à propagação do Espiritismo entre nós. Seria ousadia de minha parte dirigir-me à vossa benévola experiência para receber alguns conselhos salutares que, não o duvideis, terão grande peso na decisão que hei de tomar?

“Recebei, etc.

C. Delhez”

Esta carta fez-se acompanhar do seguinte diploma:

SOCIEDADE ESPÍRITA, DITA DA CARIDADE, DE VIENA (ÁUSTRIA)

SESSÃO DE ANIVERSÁRIO — 18 DE MAIO DE 1862.

“Em nome de Deus Todo-Poderoso e sob a proteção do Espírito divino,

“A Sociedade Espírita de Viena, ao ensejo de seu segundo aniversário, querendo testemunhar à sua primogênita de Paris, na pessoa de seu digno e corajoso presidente, a deferência e o reconhecimento que lhe inspiram seus constantes esforços e seus preciosos trabalhos pela santa causa do Espiritismo e pelo triunfo da fraternidade universal, por proposta de seu presidente e com a aprovação de seus conselheiros espirituais, nomeou, por aclamação, o Sr. Allan Kardec, presidente da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, com o título de Presidente de Honra da Sociedade Espírita, dita da Caridade, de Viena, Áustria.

“Viena, 19 de maio de 1862.

“O Presidente,

C. Delhez”

Atendendo a insistentes pedidos, sentimo-nos no dever de publicar textualmente as duas peças acima, como testemunho de nossa profunda gratidão pela honra que nos fazem nossos irmãos espíritas de Viena, honra que estávamos longe de esperar, porque nela vemos não uma homenagem à nossa pessoa, mas aos princípios regeneradores do Espiritismo. É uma nova prova do crédito que tais princípios adquirem, tanto no estrangeiro quanto na França. Pondo de lado o que as cartas têm de lisonjeiro para nós, o que nos causa viva satisfação é, sobretudo, ver a finalidade eminentemente séria, religiosa e humanitária que se propõe a Sociedade Espírita de Viena, à qual o nosso concurso e o nosso devotamento não faltarão. Outro tanto podemos dizer de todas as sociedades que se formam em vários pontos e que aceitam, sem restrição, os princípios de O Livro dos Espíritos e de O Livro dos Médiuns.

Entre as que se organizaram ultimamente, devemos citar a Sociedade Africana de Estudos Espíritas, de Constantina, que houve por bem se colocar sob o nosso patrocínio e o da Sociedade de Paris, e que já conta cerca de quarenta membros. Teremos ocasião de voltar ao assunto com mais detalhes.

À vista desse movimento geral e do incessante crescimento da opinião, os adversários do Espiritismo compreenderão, enfim, que qualquer tentativa para o deter seria inútil e o que melhor têm a fazer é aceitá-lo, considerando-o, doravante, como um fato consumado. A arma do ridículo se esgotou em vãos esforços, tornando-se, assim, impotente; a doutrina do diabo que, neste momento, buscam restaurar com obstinação, será mais feliz? A resposta está, por completo, no efeito que produz: causa riso. Para isso, seria necessário que aqueles que a propagam dela estivessem convencidos. Ora, podemos afirmar com segurança que, em seu número, muitos não o acreditam absolutamente. É uma última arrancada, cujo resultado será apressar a propagação das ideias novas, primeiro porque as torna conhecidas, excitando a curiosidade e, depois, porque prova a escassez de argumentos realmente sérios.


Princípio Vital das Sociedades Espíritas

Senhor,

Na Revista Espírita do mês de abril de 1862 vejo uma comunicação assinada por Gérard de Codemberg, na qual observei a seguinte passagem: “Não vos inquieteis com os irmãos que se afastam de vossas crenças. Ao contrário, agi de maneira que não mais se misturem ao rebanho dos verdadeiros crentes, porquanto são ovelhas sarnentas e deveis evitar o contágio.”

A respeito das ovelhas sarnentas achei tal maneira de ver pouco cristã, ainda menos espírita e completamente fora dessa caridade para com todos, que pregam os Espíritos. Não se preocupar com os irmãos que se afastam e guardar-se contra o seu contágio não é o meio de os reconquistar. Parece-me que, até o presente, nossos bons guias espirituais têm mostrado mais mansuetude. Esse Gérard de Codemberg será um Espírito bom? Se é ele, eu o duvido. Perdoai-me essa espécie de controle que acabo de fazer, pois tem um objetivo sério. Uma de minhas amigas, espírita noviça, acaba de ler aquele número; detendo-se naquelas linhas, não encontrou a caridade que até agora observou nas comunicações. A respeito consultei o meu guia e eis o que ele respondeu: “Não, minha filha, um Espírito elevado não se serve de semelhantes expressões; deixai aos Espíritos encarnados a aspereza da linguagem e reconhecei sempre o valor das comunicações pelo valor das palavras e, sobretudo, pelo valor dos pensamentos.”

(Segue-se a comunicação de um Espírito que se supõe ter tomado o lugar de Gérard de Codemberg.)

Onde está a verdade? Somente vós podeis sabê-lo.

Recebei, etc.

E. Collignon

Resposta — Em Gérard de Codemberg nada prova que seja um Espírito muito adiantado; a obra que publicou, sob o império de evidente obsessão, com a qual ele mesmo concorda, o demonstra sobejamente. Por pouco evoluído que fosse, um Espírito não poderia enganar-se a tal ponto quanto ao valor das revelações que obteve em vida, como médium, nem aceitar como sublimes coisas evidentemente absurdas. Devemos, por isso, concluir que seja um Espírito mau? Certamente não; sua conduta durante a vida e sua linguagem depois da morte são a prova; está na categoria numerosa dos Espíritos inteligentes, bons, mas não suficientemente superiores para dominarem os Espíritos obsessores, que dele abusaram, pois não os soube reconhecer.

Isto no que respeita ao Espírito. A questão não é saber se é mais ou menos adiantado, mas se o conselho que dá é bom ou mau. Ora, insisto que não há reunião espírita séria sem homogeneidade. Onde quer que haja divergência de opinião, há a tendência para fazer prevalecer a sua, o desejo de impor suas ideias ou sua vontade; daí as discussões, as dissensões, depois a dissolução; isto é inevitável e acontece em todas as sociedades, seja qual for o seu objetivo, onde cada um quer marchar por vias diferentes. O que é necessário nas outras religiões ainda mais o é nas reuniões espíritas sérias, na qual a primeira condição é a calma e o recolhimento, impossíveis com discussões que fazem perder tempo em coisas inúteis; é então que os Espíritos bons se vão, deixando o campo livre aos Espíritos perturbadores. Eis por que os pequenos comitês são preferíveis; a homogeneidade de princípios, de gostos, de caráter e de hábitos, condição essencial da boa harmonia, aí é bem mais fácil de obter que nas grandes assembleias.

O que Gérard de Codemberg chama ovelhas sarnentas não são as pessoas que, de boa-fé, procuram esclarecer-se quanto às dificuldades da ciência ou sobre aquilo que não compreendem, por uma discussão pacífica, moderada e conveniente, mas as que vêm com ideia preconcebida de oposição sistemática, que levantam discussões inoportunas a torto e a direito, capazes de perturbarem os trabalhos. Quando o Espírito diz que é preciso afastá-las, tem razão, porque a existência da reunião está ligada a isto; ainda tem razão ao dizer que não se devem inquietar, porque a sua opinião pessoal, se falsa, não impedirá que a verdade prevaleça; o sentido dessa palavra é que não deve causar inquietação a sua oposição. Em segundo lugar, se aquele que tem uma diferente maneira de ver a considera melhor que a dos outros; se o satisfaz, se nela se obstina, por que o contrariar? O Espiritismo não se impõe; deve ser aceito livremente e de boa vontade; não deseja nenhuma conversão pelo constrangimento. A experiência, aliás, aí está para provar que não é insistindo que lhe farão mudar de opinião. Com aquele que de boa-fé procura a luz, é preciso ser todo devotamento e nada se deve poupar: é zelo bem empregado e frutuoso; com aquele que não a quer ou que pensa tê-la, é perder tempo e semear sobre pedras. A expressão não se devem inquietar ainda pode ser entendida no sentido de que não se deve atormentá-lo nem violentar as suas convicções; agir assim, não é faltar à caridade. Esperam trazê-lo a ideias mais sãs? Que o façam em particular, pela persuasão, admite-se; mas se deve ser uma causa de perturbação para a reunião, conservá-lo não seria dar-lhe provas de caridade, pois isto de nada lhe adiantaria, enquanto seria uma falta para com os demais.

O Espírito Gérard de Codemberg diz claramente, e talvez um pouco cruamente a sua opinião, sem preocupações oratórias, sem dúvida contando com o bom-senso daqueles a quem se dirige para suavizá-la na explicação, observando o que prescrevem ao mesmo tempo a urbanidade e as conveniências; mas, salvo a forma da linguagem, o fundo do pensamento é idêntico ao que se acha na comunicação referida a seguir, sob o título O Espiritismo Filosófico, recebida pela mesma pessoa que levantou a questão. Aí se lê o seguinte: “Examinai bem em vosso redor se não há falsos irmãos, curiosos, incrédulos. Se os encontrardes, rogai-lhes com doçura, com caridade, que se retirem. Se resistirem, contentai-vos em orar com fervor para que o Senhor os esclareça e, de outra vez, não os admitais em vossos trabalhos. Não recebais em vosso meio senão os homens simples, que querem buscar a verdade e o progresso.” Isto é, em outros termos, desembaraçar-vos polidamente dos que vos entravam.

Nas reuniões livres, onde se é livre para receber quem se quer, isto é mais fácil que nas sociedades constituídas, onde os sócios estão ligados e têm voto na matéria. Assim, nunca seriam tomadas bastantes precauções se não se quiser ser contrariado. O sistema de associados livres, adotado pela Sociedade de Paris, é o mais adequado para prevenir os inconvenientes, pois só admite os candidatos a título provisório e sem voz ativa nos negócios da Sociedade, durante um tempo que permite se observe o seu zelo, seu devotamento e seu espírito de conciliação. O essencial é formar um núcleo de fundadores titulares, unidos por uma perfeita comunhão de vistas, de opiniões e de sentimentos e estabelecer regras precisas às quais forçosamente devem submeter-se os que, mais tarde, quiserem aí se reunir. A respeito, pedimos que se reportem ao regulamento da Sociedade de Paris e às instruções que demos sobre o assunto. Nosso mais caro desejo é o de ver reinarem a união e a harmonia entre os grupos e sociedades que se formam de todos os lados. Eis por que consideramos sempre um dever ajudar com conselhos de nossa experiência os que julgarem um dever aproveitá-los. No momento nós nos limitamos a dizer: Sem homogeneidade, não há união simpática entre os membros, não há relações afetuosas; sem união, não há estabilidade; sem estabilidade, não há calma; sem calma, não há trabalhos sérios. De onde concluímos que a homogeneidade é o princípio vital de toda sociedade ou reunião espírita. É o que disseram com razão Gérard de Codemberg e Bernardin; quanto ao Espírito que foi tomado como substituto do primeiro, sua comunicação apresenta todos os caracteres de uma comunicação apócrifa.


Ensinos e Dissertações Espíritas

O Espiritismo Filosófico

(Bordeaux, 4 de abril de 1862 — Médium: Sra. Collignon)

Meus amigos, falamos do Espiritismo do ponto de vista religioso; agora que está bem estabelecido que ele não é uma religião nova, mas a consagração dessa religião universal cujas bases lançou o Cristo, e que hoje vem levar ao coroamento, vamos encarar o Espiritismo do ponto de vista moral e filosófico.

Antes de mais, expliquemo-nos quanto ao exato sentido da palavra filosofia. A filosofia não é uma negação das leis estabelecidas pela divindade, da religião. Longe disto, a filosofia é a busca do que é sábio, do que é o mais exatamente razoável. E o que pode ser mais sábio, mais razoável que o amor e o reconhecimento que se deve ao seu Criador e, conseguintemente, o culto, seja qual for, que pode servir para lhe provar esse reconhecimento e esse amor? A religião, e tudo quanto a ela vos pode levar é, pois, uma filosofia, porque é uma sabedoria do homem que a ela se submete com alegria e docilidade. Feitos esses reparos, vejamos o que podeis tirar do Espiritismo, posto em prática seriamente.

Qual o fim para onde tendem todos os homens, seja qual for a posição em que se encontrem? O melhoramento de sua posição presente. Ora, para o conseguir, correm para todos os lados e se extraviam na maior parte, porque, enceguecidos pelo orgulho, arrastados pela ambição, não veem a única rota que pode conduzir a esse melhoramento; buscam-na na satisfação do orgulho, de seus instintos brutais, de sua ambição, ao passo que só poderão encontrá-la no amor e na submissão devidos ao Criador.

O Espiritismo vem, pois, dizer aos homens: Deixai esses atalhos tenebrosos, cheios de precipícios, cercados de espinhos e urzes e entrai no caminho que leva à felicidade que sonhais. Sede prudentes, a fim de serdes felizes; compreendei, meus amigos, que para os homens os bens da Terra não passam de emboscadas, que devem evitar. Eis por que finalmente o Senhor permitiu vísseis a luz desse farol, que deve vos conduzir ao porto. As dores e os males que sofreis com impaciência e revolta são o ferro em brasa que o cirurgião aplica sobre a ferida aberta, a fim de impedir a gangrena de perder todo o corpo. Vosso corpo, meus amigos, o que representa para o Espírito? que deve ele salvar? que deve preservar do contágio? que deve cicatrizar, por todos os meios possíveis, senão a chaga que rói o Espírito, a enfermidade que o entrava e o impede de lançar-se radioso para o seu Criador?

Voltai sempre os olhos para este pensamento filosófico, isto é, cheio de sabedoria: Somos uma essência criada pura, mas decaída; pertencemos a uma pátria onde tudo é pureza; culpados, fomos exilados por algum tempo, mas só por algum tempo. Empreguemos, pois, todas as nossas forças, todas as energias em diminuir o tempo de exílio; esforcemo-nos por todos os meios que o Senhor pôs à nossa disposição para reconquistar essa pátria perdida e abreviar o tempo de ausência. (Vide o número de janeiro de 1862: Doutrina dos anjos decaídos.)

Compreendei bem que vossa sorte futura está em vossas mãos; que a duração de vossas provas depende inteiramente de vós; que o mártir tem sempre direito à palma da vitória e que, para ser mártir, não é necessário, como aconteceu com os primeiros cristãos, servir de pasto aos animais ferozes. Sede mártires de vós mesmos; quebrai, aniquilai em vós todos os instintos carnais que se revoltam contra o Espírito; estudai com cuidado as vossas inclinações, os vossos gostos, as vossas ideias; desconfiai de tudo quanto a vossa consciência reprova. Por mais baixo que ela vos fale, porque muitas vezes pode ser repelida; por mais baixo que ela vos fale, essa voz do vosso protetor vos dirá que eviteis o que vos pode prejudicar. Em todos os tempos a voz do vosso anjo-da-guarda vos falou, mas quantos ficaram surdos! Hoje, meus amigos, o Espiritismo vem explicar-vos a causa dessa voz íntima; vem dizer positivamente, vem vos mostrar, fazer tocar com o dedo aquilo que podeis esperar se a escutardes docilmente; aquilo que deveis temer se a rejeitardes.

Eis, meus amigos, para o homem em geral, o lado filosófico: a vós compete salvar-vos a vós mesmos. Meus filhos: não procureis distrações materiais nem satisfação à curiosidade, como fazem os ignorantes. Não chameis a vós, sob o menor pretexto, Espíritos dos quais não tendes a mínima necessidade; contentai-vos em vos entregardes sempre aos cuidados e ao amor de vossos guias espirituais; eles jamais vos faltarão. Quando vos reunirdes num objetivo comum, qual seja o melhoramento de vossa Humanidade, elevai o coração ao Senhor, mesmo que seja para lhe pedir suas bênçãos e a assistência dos Espíritos bons, aos quais vos confiou. Examinai bem em vosso redor se não há falsos irmãos, curiosos, incrédulos. Se os encontrardes, rogai-lhes com doçura, com caridade, que se retirem. Se resistirem, contentai-vos em orar com fervor para que o Senhor os esclareça e, de outra vez, não os admitais em vossos trabalhos. Não recebais em vosso meio senão os homens simples, que querem buscar a verdade e o progresso. Quando estiverdes certos de que vossos irmãos se acham reunidos em presença do Senhor, chamai os vossos guias e pedi-lhes instruções; eles vo-las darão sempre, proporcionadas às vossas necessidades, à vossa inteligência; mas não busqueis satisfazer a curiosidade da maioria dos que pedem evocações. Quase sempre saem menos convencidos e mais dispostos à zombaria.

Aqueles que desejam evocar seus parentes e amigos não o façam jamais senão com um objetivo de utilidade e de caridade; é um ato sério, muito sério, chamar os Espíritos que erram em redor de vós. Se não trouxerdes a fé e o recolhimento necessários, os Espíritos maus tomarão o lugar daqueles que esperais, enganar-vos-ão e vos farão cair em erros profundos e algumas vezes vos arrastarão em quedas terríveis!

Não esqueçais, pois, meus amigos, que o Espiritismo é a confirmação do Cristianismo, porque o Cristianismo entra completamente nestas palavras: Amar ao Senhor sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo.

Sob o ponto de vista filosófico, é a linha de conduta reta e sábia que vos deve conduzir à felicidade que todos ambicionais; e esta linha vos é traçada partindo de um ponto seguro, demonstrado: a imortalidade da alma, para chegar a outro ponto que ninguém pode negar: Deus!

Eis, meus amigos, o que vos tenho a dizer por hoje. Em breve continuaremos nossas conversas íntimas.

Bernardin

Observação — Esta comunicação faz parte de uma série de ditados sob o mesmo título: O Espiritismo para todos, marcadas todos eles pelo mesmo cunho de profundidade e de simplicidade paternal. Como nem todas podem ser publicadas na Revista, farão parte das coletâneas especiais que preparamos. Dá-se o mesmo com as que nos são dirigidas por outros médiuns de Bordeaux e de outras cidades. Essas publicações serão tanto mais úteis quanto feitas com ordem e método, e tanto mais produziriam um efeito contrário quanto mais o fossem sem discernimento e sem escolha. Há comunicações que são excelentes para a intimidade, mas que seriam inconvenientes se tornadas públicas. Outras, para serem compreendidas e não darem lugar a falsas interpretações necessitam de comentários e de desenvolvimentos. Nas comunicações muitas vezes é preciso fazer a parte da opinião pessoal do Espírito que fala, e que, se não for muito adiantado, pode formar dos homens e das coisas ideias e sistemas nem sempre justos. Publicadas sem corretivo, essas ideias falsas apenas lançarão descrédito sobre o Espiritismo, fornecerão armas aos seus inimigos e semearão a dúvida e a incerteza entre os neófitos. Com os comentários e as explicações dados a propósito, o próprio mal por vezes se torna instrutivo. Sem isto poderiam responsabilizar a doutrina por todas as utopias enunciadas por certos Espíritos mais orgulhosos que lógicos. Se o Espiritismo pudesse ser retardado em sua marcha, não seria pelos ataques abertos de seus inimigos declarados, mas pelo zelo irrefletido dos amigos imprudentes. Não se trata, pois, de fazer coletâneas indigestas, onde tudo se acha amontoado confusamente e cujo menor inconveniente seria aborrecer o leitor; é preciso evitar com cuidado tudo quanto possa falsear a opinião sobre o Espiritismo. Ora, tudo isto exige um trabalho que justifica a demora de tais publicações.


Um Espírita Apócrifo na Rússia

O príncipe D... K... nos envia da Rússia um prospecto em língua russa, começando por esta frase: “Obouan Bruné, célebre mágico, magnetizador, membro da Sociedade Espírita de Paris, terá a honra de dar, como foi anunciado, um sarau fantástico, no teatro desta cidade, em 17 de abril de 1862.” Segue uma longa lista das escamoteações que o tal Bruné se propõe fazer. Pensamos que o bom senso dos numerosos adeptos que conta o Espiritismo na Rússia terá feito justiça a essa grosseira impostura. A Sociedade Espírita de Paris não conhece esse indivíduo que, na França, teria sido processado por se atribuir uma falsa qualidade.

Allan Kardec



[1] N. do T.: Pesquisas recentes indicam que Allan Kardec, embora nascido em Lyon, passou sua infância em Bourg-en-Bresse, (Departamento do Ain), localizada a sessenta quilômetros daquela cidade.

Julho de 1862

O Ponto de Vista

Não há quem não tenha notado quanto as coisas mudam de aspecto, conforme o ponto de vista sob o qual são consideradas. Não é apenas o aspecto que se modifica, mas, também, a própria importância da coisa. Coloquemo-nos no centro de um meio qualquer: ainda que pequeno, nos parecerá imenso; do lado de fora, contudo, será outra coisa. Quem vê algo do cimo de uma montanha o acha insignificante, ao passo que lhe parecerá gigantesco quando visto de baixo.

Isto é um efeito de óptica, mas que se aplica igualmente às coisas morais. Um dia inteiro de sofrimento nos parecerá eterno. À medida que esse dia se nos afasta, admiramo-nos de haver entrado em desespero por tão pouco. Os pesares da infância também têm uma importância relativa, sendo tão amargos para a criança quanto para os que alcançaram a maturidade. Por que, então, nos parecem tão fúteis? Por que não mais os sentimos, ao passo que a criança os sente completamente e nada vê além de seu pequeno círculo de atividades? Ela os vê do interior; nós, do exterior. Suponhamos um ser colocado, em relação a nós, na posição em que estamos em relação à criança: ele julgará as nossas preocupações do mesmo ponto de vista, e as achará pueris.

Um carroceiro é insultado por outro; discutem e se batem. Se um grão-senhor for injuriado por um carroceiro não se sentirá ofendido e não se baterá com ele. Por quê? Porque se coloca fora de sua esfera; julga-se de tal modo superior que a ofensa não o pode atingir. Entretanto, se descer ao nível do adversário, colocar-se-á, pelo pensamento, no mesmo meio e se baterá.

O Espiritismo nos mostra uma aplicação deste princípio, mas de importância diversa nas suas consequências. Faz-nos ver a vida terrena como de fato é, colocando-nos no ponto de vista da vida futura; pelas provas materiais que nos fornece, pela intuição clara, precisa, lógica que nos dá, pelos exemplos postos aos nossos olhos, transporta-nos pelo pensamento: nós a vemos e a compreendemos; não é mais essa noção vaga, incerta, problemática, que nos ensinavam do futuro e que, involuntariamente, deixava dúvidas; para o espírita é uma certeza adquirida, uma realidade.

Faz ainda mais: mostra-nos a vida da alma, o ser essencial, porque é o ser pensante, remontando no passado a uma época desconhecida e se estendendo indefinidamente pelo futuro, de tal sorte que a vida terrena, mesmo de um século, não passa de um ponto nesse longo percurso. Se a vida inteira é tão pouca coisa comparada com a vida da alma, que serão, pois, as dificuldades da vida? Entretanto o homem, colocado no centro da vida, preocupa-se como se ela fosse durar sempre; para ele tudo assume proporções colossais: a menor pedra que o fere parece-lhe um rochedo; uma decepção o desespera; um revés o abate; uma palavra o enfurece. Tendo a visão limitada ao presente, àquilo que toca imediatamente, exagera a importância dos menores incidentes; um negócio que falha lhe tira o apetite; uma questão de precedência é um negócio de Estado; uma injustiça o põe fora de si. Triunfar é o fim de seus esforços, o objetivo de todas as suas combinações; mas, para a maioria, o que é triunfar? Será, se não se tem do que viver, criar por meios honestos uma existência tranquila? Será a nobre emulação de adquirir talento e desenvolver a inteligência? Será o desejo de deixar, depois de si, um nome justamente honrado e realizar trabalhos úteis para a Humanidade? Não. Triunfar é suplantar o vizinho, eclipsá-lo, afastá-lo, derrubá-lo mesmo, para lhe tomar o lugar. E para tão belo triunfo, que talvez a morte não deixe gozar vinte e quatro horas, quantas preocupações, quantas tribulações! Quanto talento por vezes despendido e que poderia ter sido mais bem empregado! Depois, quanta raiva, quanta insônia se não se triunfar! Que febre de inveja causa o sucesso de um rival! Então, culpam a má estrela, a sorte, a chance fatal, ao passo que a má estrela as mais das vezes é a inabilidade e a incapacidade. Dir-se-ia, na verdade, que o homem assume a tarefa de tornar tão penosos quanto possíveis os poucos instantes que deve passar na Terra e dos quais não é o senhor, pois jamais tem certeza do dia seguinte.

Como tudo isto muda de aspecto quando, pelo pensamento, sai o homem do vale estreito da vida terrestre e se eleva na radiosa, esplêndida e incomensurável vida de além-túmulo! Como então tem piedade dos tormentos que se criou voluntariamente! Como então lhe parecem mesquinhas e pueris as ambições, a inveja, as susceptibilidades, as vãs satisfações do orgulho! É como se, na idade madura, considerasse as brincadeiras da infância; do cume de uma montanha contemplasse os homens no vale. Partindo deste ponto de vista, tornar-se-á de vontade própria o joguete de uma ilusão? Não. Estará, ao contrário, na realidade, no verdadeiro e para ele a ilusão é ver as coisas do ponto de vista terreno. Efetivamente, ninguém há na Terra que não ligue mais importância àquilo que, para si, deve durar muito mais do que dura um dia; que não prefira uma felicidade durável a uma felicidade efêmera. Inquietamo-nos pouco com uma contrariedade passageira; o que interessa, acima de tudo, é a situação normal. Se, pois, elevarmos o pensamento de modo a abranger a vida da alma chegaremos forçosamente a essa consequência: ver a vida terrena como uma estação passageira; a vida espiritual como a vida real, porque é infinita; que é ilusão tomar a parte pelo todo, isto é, a vida do corpo, apenas transitória, pela vida definitiva. O homem que só considera as coisas do ponto de vista terreno é como aquele que, estando dentro de uma casa, não pode julgar a forma nem a importância do edifício: julga sob falsas aparências porque não vê tudo, ao passo que aquele que vê de fora, porque julga o conjunto, julga mais sensatamente.

Dir-se-á que para ver as coisas desta maneira é preciso uma inteligência invulgar, um espírito filosófico que não se poderia encontrar nas massas; donde forçoso seria concluir que a Humanidade, com poucas exceções, arrastar-se-á sempre no terra-a-terra. É um erro. Para se identificar com a vida futura não é preciso uma inteligência excepcional, nem grandes esforços da imaginação, porquanto cada um traz consigo a intuição e o desejo; a maneira, porém, como geralmente a apresentam é muito pouco sedutora, porque oferece como alternativa as chamas eternas ou a contemplação perpétua, o que leva muitos a preferir o nada. Daí a incredulidade absoluta de uns e a dúvida no maior número. O que faltou até agora foi a prova irrecusável da vida futura, prova que vem dar o Espiritismo não mais por uma vaga teoria, mas por provas patentes. Mais ainda: ele a mostra tal qual a razão mais severa a pode aceitar, porque tudo explica, tudo justifica e resolve todas as dificuldades. Porque é claro e lógico, está ao alcance de todos; por isso o Espiritismo reconduz à crença tanta gente que dela se havia afastado. A experiência demonstra todos os dias que simples operários e camponeses sem instrução compreendem sem esforço esse raciocínio; colocam-se tanto mais à vontade nesse novo ponto de vista, quanto mais nele acham, como todas as pessoas infelizes, uma imensa consolação, e a única compensação possível em sua penosa e laboriosa existência.

Se essa maneira de encarar as coisas terrestres se generalizasse, não teria como consequência senão destruir a ambição, estimulante dos grandes empreendimentos, dos trabalhos mais úteis, mesmo das obras de gênio? Se a Humanidade inteira apenas pensasse na vida futura tudo não periclitaria neste mundo? Que fazem os monges nos conventos, a não ser ocupar-se exclusivamente do Céu? Ora, em que se transformaria a Terra se todos se fizessem monges?

Um tal estado de coisas seria desastroso e os inconvenientes maiores do que se supõe, porque, com isso, os homens perderiam na Terra e nada ganhariam no Céu; mas o resultado do princípio que expomos é completamente outro para quem quer que não o compreenda pela metade, conforme vamos explicar.

A vida corporal é necessária ao Espírito, ou à alma, o que é a mesma coisa, para que possa realizar neste mundo material as funções que lhe são designadas pela Providência: é uma das engrenagens da harmonia universal. A atividade que, mau grado seu, é forçado a desenvolver nas funções que exerce, crendo agir por si mesmo, auxilia o desenvolvimento de sua inteligência e lhe facilita o adiantamento. Sendo a felicidade do Espírito na vida espiritual proporcional ao seu progresso e ao bem que pôde fazer como homem, resulta que, quanto maior importância adquire a vida espiritual aos olhos do homem, mais ele sente a necessidade de fazer o que é necessário para se garantir o melhor lugar possível. A experiência dos que viveram vem provar que uma vida terrena inútil ou mal-empregada não tem proveito para o futuro, e que aqueles que aqui só buscarem satisfações materiais as pagam muito caro, seja por sofrimentos no mundo dos Espíritos, seja pela obrigação de recomeçar a tarefa em condições mais penosas que as do passado; tal é o caso dos que sofrem na Terra. Assim, considerando as coisas deste mundo do ponto de vista ex-tracorpóreo, o homem, longe de ser estimulado à despreocupação e à ociosidade, compreende melhor a necessidade do trabalho. Partindo do ponto de vista terreno, essa necessidade é uma injustiça aos seus olhos, quando se compara aos que podem viver sem nada fazer: tem ciúme deles; inveja-os. Partindo do ponto de vista espiritual, essa necessidade tem a sua razão de ser, sua utilidade, e ele a aceita sem murmurar, pois compreende que sem o trabalho ficará indefinidamente na inferioridade e privado da felicidade suprema a que aspira e que não poderá alcançar, caso não se desenvolva intelectual e moralmente. A esse respeito parece que muitos monges compreendem mal o objetivo da vida terrena e, menos ainda, as condições da vida futura. Pelo enclausuramento, eles se privam dos meios de se tornarem úteis aos semelhantes e muitos dos que hoje se acham no mundo dos Espíritos confessaram-nos que se enganaram redondamente e que sofrem as consequências de seu erro.

Para o homem, tal ponto de vista tem outra imensa e imediata consequência: é a de tornar-lhe mais suportáveis as tribulações da vida. Que procure o bem-estar e se esforce por tornar o seu tempo na Terra o mais agradável possível: isto é muito natural e ninguém lho proíbe. Mas, sabendo que está aqui apenas momentaneamente, que um futuro melhor o aguarda, pouco se atormenta com as decepções que experimenta e, vendo as coisas do alto, aceita os reveses com menor amargura; fica indiferente aos aborrecimentos de que é vítima, por parte dos invejosos e dos ciumentos; reduz a seu justo valor os objetos de sua ambição e se coloca acima das pequenas susceptibilidades do amor-próprio. Liberto das preocupações criadas pelo homem que não sai de sua esfera limitada, pela perspectiva grandiosa que se desdobra à sua frente, é mais livre para se entregar a um trabalho proveitoso, para si próprio e para os outros.

Para ele, as humilhações, as diatribes e as maldades de seus inimigos não passam de nuvens imperceptíveis num vasto horizonte; não se inquieta por elas mais do que pelas moscas que zumbem aos ouvidos, porque sabe que logo estará livre. Assim, todas as pequenas misérias que lhe suscitam deslizam por ele como a água sobre o mármore. Colocando-se do ponto de vista terreno, irritar-se-ia e talvez se vingasse. Do ponto de vista extraterreno, ele as despreza como os salpicos de lama de um caminhante desatento. São espinhos lançados no caminho e pelos quais passa, sem sequer se dar ao trabalho de os afastar, a fim de não moderar a marcha para um objetivo mais sério que se propõe atingir. Longe de malquerer os seus inimigos, é-lhes grato por fornecerem oportunidade para exercitar a paciência e a moderação em benefício de seu progresso futuro, ao passo que perderia seus frutos se descesse a represálias. Ele os lamenta por se entregarem a tantos trabalhos inúteis e diz que são aqueles próprios que caminham sobre espinhos, com as preocupações que tomam para fazer o mal. Tal é o resultado da diferença do ponto de vista sob o qual se encara a vida: um nos dá aborrecimento e ansiedade; o outro, calma e serenidade. Espíritas que experimentais decepções, ainda que em pensamento, deixai a Terra por alguns instantes; subi às regiões do infinito e olhai-as do alto: vereis o que elas serão.

Por vezes dizem: Vós, que sois infelizes, olhai para baixo e não para cima e vereis ainda mais infelizes. Isto é verdade. Mas muitos dizem que o mal alheio não nos cura. Nem sempre o remédio está na comparação e para alguns não é difícil olhar para cima sem dizerem: “Por que têm estes o que não tenho?” No entanto, se se colocassem no ponto de vista de que falamos, a que em pouco seremos forçados, ficariam naturalmente acima daqueles aos quais poderíamos invejar, porque, vistos dali, os maiores pareceriam muito pequenos.

Lembramo-nos de ter assistido no Odéon, há cerca de quarenta anos, a uma peça em um ato, intitulada Os Efêmeros, já não sabemos de que autor. Embora ainda jovem, ela nos causou viva impressão. A cena se passava no país dos Efêmeros, cujos habitantes vivem apenas vinte e quatro horas. No espaço de um ato a gente os vê passar do berço à adolescência, à juventude, à maturidade, à velhice, à decrepitude e à morte. Nesse intervalo realizam todos os atos da vida: batismo, casamento, negócios civis e governamentais, etc.; mas como o tempo é curto e as horas contadas, é preciso pressa; tudo se faz com prodigiosa rapidez, o que não os impede de se ocuparem com intrigas e de se darem ao trabalho para satisfazer as ambições e suplantar os outros. Como se vê, a peça encerrava um pensamento profundamente filosófico; e involuntariamente o espectador, que num instante via desenrolarem-se todas as fases de uma existência bem cheia, punha-se a dizer: Como essa gente é tola! Fazer tanto mal, quando dispõe de tão pouco tempo para viver! Que é que lhes resta dessa confusão de uma vida de algumas horas? Não seria melhor viver em paz?

Eis, por alto, um quadro perfeito da vida humana. Entretanto, a peça não sobreviveu mais que seus heróis: não a compreenderam. Se o autor ainda vivesse, o que ignoramos, provavelmente hoje fosse espírita.

A. K.


Estatística de Suicídios

Lê-se no Siècle de... maio de 1862:

“Na Comédia social no século dezenove, novo livro que o Sr. B. Gastineau acaba de publicar pela Editora Dentu, encontramos esta curiosa estatística de suicídios:

“Calculou-se que desde o começo do século o número de suicídios na França não se eleva a menos de 300.000; e tal estimativa talvez esteja aquém da verdade, pois a estatística só oferece resultados completos a partir de 1836. De 1836 a 1852, isto é, num período de dezessete anos, houve 52.126 suicídios, ou seja, uma média de 3.066 por ano. Em 1858, contaram-se 3.903 suicídios, dos quais 853 mulheres e 3.050 homens; enfim, segundo a última estatística que vimos no correr do ano de 1859, 3.899 pessoas se mataram, a saber: 3.057 homens e 842 mulheres.”

“Constatando que o número de suicídios aumenta todos os anos, o Sr. Gastineau deplora em termos eloquentes a triste monomania que parece haver-se apoderado da espécie humana.”

Eis uma rápida oração fúnebre pelos infelizes suicidas. Entretanto, a questão nos parece muito grave e merece um exame sério. Do ponto de vista em que estão as coisas, o suicídio não é mais um fato isolado e acidental; pode, com inteira razão, ser considerado como um mal social, uma verdadeira calamidade. Ora, um mal que regularmente elimina de três a quatro mil pessoas por ano num único país e segue uma progressão crescente, não é devido a uma causa fortuita; há necessariamente um radical, absolutamente como quando se vê um grande número de pessoas morrer da mesma doença, o que deve chamar a atenção da Ciência e a solicitude das autoridades. Em semelhante caso, limitam-se a verificar o gênero de morte e o modo empregado para a executar, enquanto é negligenciado o elemento essencial, o único que nos poderia pôr no caminho do remédio: o motivo determinante de cada suicídio. Chegar-se-ia, assim, a constatar a causa predominante; mas, salvo circunstâncias muito características, acham mais simples e mais cômodo arrolá-los na classe dos monômanos e dos maníacos.

Incontestavelmente há suicídios por monomania, realizados fora do domínio da razão, por exemplo, os que ocorrem na loucura, na febre ardente, na embriaguez. Nestes a causa é puramente fisiológica; mas ao lado está a categoria, muito mais numerosa, dos suicídios voluntários, realizados com premeditação e com pleno conhecimento de causa. Certas pessoas imaginam que o suicida jamais esteja no seu bom-senso; é um erro de que partilhávamos outrora, mas que caiu ante uma observação mais atenta. Com efeito, estando em a Natureza o instinto de conservação, é muito racional pensar que a destruição voluntária seja contra a Natureza, razão pela qual muitas vezes se vê o instinto triunfar no último instante sobre a vontade de morrer, donde se conclui que, para realizar esse ato, é preciso ter perdido a cabeça. Sem dúvida muitos suicidas são nesse momento tomados por uma espécie de vertigem e sucumbem a um primeiro momento de exaltação; se o instinto de conservação os domina no último instante, eles como que voltam à realidade e se agarram à vida. Mas é muito evidente, também, que muitos se matam a sangue-frio e com reflexão; e a prova está nas precauções calculadas que tomam, na ordem raciocinada que põem nos negócios, o que não é uma característica de loucura.

Faremos notar, sem maior exame, um traço peculiar do suicídio: é que os atos desta natureza, realizados em lugares completamente isolados e desabitados, são excessivamente raros; o homem perdido no deserto ou no mar morrerá de privações, mas não se suicidará, mesmo não esperando nenhum socorro. Aquele que voluntariamente quer deixar a vida aproveita bem o momento em que está só para não ser tolhido em seu desígnio, mas o faz de preferência nos centros populosos, onde seu corpo ao menos terá alguma chance de ser encontrado. Um pulará do alto de um monumento no centro da cidade, e não do alto de um penhasco, onde não lhe restará traço algum; outro se enforcará no Bois de Boulogne, e não numa floresta, onde ninguém passa. O suicida não quer ser impedido, mas deseja que se saiba, cedo ou tarde, que se suicidou; parece-lhe que essa lembrança dos homens o liga ao mundo que quis deixar, tanto é certo que a ideia do nada absoluto tem algo de mais aterrador que a própria morte. Eis um curioso exemplo que vem apoiar esta teoria:

Por volta de 1815, um rico inglês foi visitar a famosa cachoeira do Reno; ficou de tal modo entusiasmado, que voltou à Inglaterra, pôs ordem em seus negócios e voltou, alguns meses depois, para se precipitar no turbilhão. É, incontestavelmente, um ato de originalidade, mas duvidamos muito que ele se atirasse da catarata do Niágara, caso ninguém viesse saber do fato. Uma singularidade de caráter causou o ato; mas o pensamento de que iriam falar dele determinou a escolha do local e o momento. Caso seu corpo não fosse encontrado, pelo menos sua memória não desapareceria.

Em falta de uma estatística oficial, que desse a exata proporção dos diversos motivos de suicídio, não resta dúvida de que os casos mais numerosos são determinados pelos reveses da fortuna, as decepções, os pesares de qualquer natureza. Neste caso o suicídio não é um ato de loucura, mas de desespero. Ao lado desses motivos, que poderiam ser chamados sérios, uns há que são evidentemente fúteis, sem falar do indefinível desgosto pela vida, em meio aos prazeres, como o que acabamos de citar. O que é certo é que todos os que se suicidam só recorrem a esse extremo, com ou sem razão, porque não estão contentes. Sem dúvida a ninguém é dado remediar esta causa primária; contudo, o que se deve deplorar é a facilidade com a qual os homens cedem, desde algum tempo, a esse arrastamento fatal. É isto, sobretudo, que deve chamar a atenção e que, a nosso ver, é perfeitamente remediável.

Muitas vezes pergunta-se se há covardia ou coragem no suicídio. Incontestavelmente há covardia ante as provas da vida, mas há coragem em afrontar as dores e as angústias da morte. Parece que estes dois pontos encerram todo o problema do suicídio.

Por mais pungentes que sejam as opressões da morte, o homem as afronta e as suporta, se for estimulado pelo exemplo. É a história do conscrito que, sozinho, recuava diante do fogo, ao passo que ficava eletrizado, vendo que os outros marchavam sem medo. Dá-se o mesmo com o suicida: a visão dos que se libertam por esse meio dos aborrecimentos e desgostos da vida os leva a pensar que em breve esse momento passará; aqueles que pudessem ser retidos pelo temor do sofrimento dirão que, desde que muitos assim o fazem, também podem fazer o mesmo; que é preferível sofrer alguns instantes a padecer durante anos. É somente nesse sentido que o suicídio é contagiante. O contágio não está nos fluidos nem nas atrações, mas no exemplo, que se acostuma com a ideia da morte e com o emprego dos meios para a executar. Isto é tão verdadeiro que quando se dá um suicídio de certa maneira, não é raro se sucederem outros do mesmo gênero. A história da famosa guarita onde em pouco tempo se enforcaram quatorze militares não tinha outra causa. O meio lá estava à vista; parecia cômodo e, por pouco que esses homens tivessem a veleidade de acabar com a vida, o aproveitavam. A simples visão poderia fazer brotar a ideia. Tendo sido o fato contado a Napoleão, este ordenou que queimassem a guarita. O mal cessou, desde que o meio já não estava à vista.

A publicidade dada aos suicídios produz sobre as massas o efeito da guarita; excita, encoraja, acostuma-se com a ideia e, até mesmo, a provoca. Sob esse aspecto consideramos as descrições do gênero e que abundam nos jornais como uma das causas excitantes do suicídio: elas dão a coragem de morrer. Acontece o mesmo com os crimes, com a ajuda dos quais se excita a curiosidade pública, produzindo um verdadeiro contágio moral; jamais detiveram um criminoso, enquanto fizeram surgir mais de um.

Examinemos agora o suicídio de um outro ponto de vista. Dizemos que, sejam quais forem os motivos particulares, tem sempre o descontentamento como causa. Ora, aquele que está certo de não ser infeliz senão por um dia e de estar melhor nos dias seguintes, facilmente adquire paciência; só se desespera se não vê um termo para os seus sofrimentos. Que é, pois, a vida humana em relação à eternidade, senão menos que um dia? Mas para aquele que não acredita na eternidade, que julga que tudo acaba com a vida, caso se sinta oprimido pela mágoa e pelo infortúnio só vê um termo na morte; nada esperando, acha muito natural, muito lógico mesmo, abreviar os sofrimentos pelo suicídio.

A incredulidade, a simples dúvida quanto ao futuro, as ideias materialistas são, numa palavra, os maiores excitantes do suicídio: levam à covardia moral. E quando se veem homens de ciência apoiarem-se na autoridade de seu saber, esforçando-se por provar aos seus ouvintes ou leitores que nada devem esperar depois da morte, não é conduzi-los a essa consequência de que, se são infelizes, nada têm melhor a fazer do que se matarem? O que lhes poderiam dizer para os desviar do suicídio? Que compensação lhes podem oferecer? Que esperança podem dar? Nada que não seja o nada. Devemos, pois, concluir que se o nada é um remédio heroico, a única perspectiva, melhor é cair imediatamente do que mais tarde, sofrendo, assim, por menos tempo. A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula em muitos a ideia do suicídio, e os que se tornam seus apóstolos assumem uma terrível responsabilidade.

A isto talvez objetem que nem todos os suicidas são materialistas, considerando-se que há pessoas que se matam para mais depressa ganharem o céu, e outras para se reunirem mais cedo àqueles a quem amaram. É verdade, mas é, incontestavelmente, o menor número, de que nos convenceríamos se dispuséssemos de uma estatística, feita conscienciosamente, das causas íntimas de todos os suicídios. Seja como for, se as pessoas que cedem a tal pensamento creem na vida futura, torna-se evidente que dela fazem um juízo completamente falso e a maneira pela qual a apresentam em geral não é muito apropriada para fazerem uma ideia mais justa. O Espiritismo não só vem confirmar a teoria da vida futura, mas a prova pelos fatos mais patentes possíveis: o testemunho daqueles que nela se encontram. E faz mais, ao no-la mostrar sob cores tão racionais, tão lógicas, que o raciocínio vem em apoio da fé. Não sendo permitida a dúvida, muda o aspecto da vida; sua importância diminui em razão da certeza que se adquire de um futuro mais próspero. Para o crente, a vida se prolonga indefinidamente para além do túmulo; daí a paciência e a resignação que naturalmente afastam a ideia do suicídio; daí, numa palavra, a coragem moral.

Sob esse aspecto tem ainda o Espiritismo um outro resultado muito positivo e, talvez, mais determinante. Bem diz a religião que o suicídio é um pecado mortal, pelo qual se é punido. Mas como? Pelas chamas eternas, nas quais não mais se acredita. O Espiritismo nos mostra os próprios suicidas vindo explicar a sua posição infeliz, mas com uma diferença: as penas variam de acordo com as circunstâncias agravantes ou atenuantes, o que é mais conforme à justiça de Deus; que, em vez de serem uniformes, são a consequência muito natural da causa que provocou a falta, o que não se pode deixar de aí ver uma soberana justiça, distribuída com equidade. Entre os suicidas uns há cujo sofrimento, não obstante temporário, nem por isso é menos terrível e capaz de fazer refletir a quem quer que se sinta tentado a partir daqui antes da ordem de Deus. O espírita tem, assim, como contrapeso ao pensamento do suicídio vários motivos: a certeza de uma vida futura, na qual sabe que será tanto mais feliz quanto mais infeliz e resignado tiver sido na Terra; a certeza de que, abreviando a vida, chega a um resultado inteiramente oposto ao que esperava; que se liberta de um mal para cair noutro pior, mais longo e mais terrível; que não poderá rever no outro mundo os objetos de suas afeições, aos quais queria unir-se. Chega, assim, à conclusão de que o suicídio é contra os seus interesses. É por isso que o número de suicídios evitados pelo Espiritismo é considerável; de onde se pode inferir que, quando todo o mundo for espírita, não mais haverá suicídios voluntários, o que acontecerá mais cedo do que se imagina. Comparando, pois, os resultados das doutrinas materialista e espírita, apenas do ponto de vista do suicídio, constatamos que a lógica de um a ele conduz, enquanto a lógica do outro dele afasta, o que é confirmado pela experiência.

Mas — perguntarão — por esse meio destruireis a hipocondria, essa causa de tantos suicídios não motivados, desse insuportável desgosto da vida, que nada parece justificar? Esta causa é eminentemente fisiológica, ao passo que as outras são morais. Ora, se o Espiritismo só curasse estas, já seria muito; a primeira é, propriamente falando, da alçada da Ciência, à qual poderíamos abandoná-la, dizendo: Nós curamos aquilo que nos diz respeito; por que não curais o que é da vossa competência? Contudo, não hesitamos em responder à questão afirmativamente.

Evidentemente certas afecções orgânicas são alimentadas, e mesmo provocadas, pelas disposições morais. O desgosto da vida o mais das vezes é fruto da saciedade. O homem que tudo usou, não vendo nada além, está na situação do ébrio que, tendo esvaziado a garrafa e nada mais tendo, a quebra. Os abusos e os excessos de toda sorte levam forçosamente a um enfraquecimento e a uma perturbação das funções vitais; daí uma porção de doenças cuja fonte é desconhecida e que julgamos causativas, quando, na verdade, são apenas consecutivas; daí, também, uma sensação de langor e de desalento. O que faltaria ao hipocondríaco para combater suas ideias melancólicas? Um objetivo na vida, um móvel à sua atividade. Que objetivo pode ter se em nada crê? O espírita faz mais do que acreditar no futuro: sabe, não pelos olhos da fé, mas pelos exemplos que tem à frente, que a vida futura, à qual não pode escapar, é feliz ou infeliz conforme o emprego que faça da vida corpórea; que a felicidade é proporcional ao bem que fizer. Ora, certo de viver depois da morte, e de viver muito mais tempo do que na Terra, é muito natural que pense em ser ali o mais feliz possível; além disso, certo de lá ser infeliz se não fizer o bem, ou mesmo se, não fazendo o mal, nada faz, compreende a necessidade de uma ocupação, o melhor preservativo contra a hipocondria. Com a certeza do futuro, tem um objetivo; com a dúvida, não o tem. É tomado pelo tédio e acaba com a vida porque nada mais espera. Que nos permitam uma comparação um pouco trivial, mas à qual não falta analogia: Um homem passou uma hora assistindo a um espetáculo. Se pensa que a peça acabou, levanta-se e sai; mas se souber que ainda vão representar coisa melhor e mais longa do que o que viu, ficará, mesmo que no pior lugar. A espera do melhor nele vencerá a fadiga.

As mesmas causas que levam ao suicídio também provocam a loucura. O remédio de um é o remédio da outra, como o demonstramos alhures. Infelizmente, enquanto a Medicina só levar em conta o elemento material, privar-se-á de todas as luzes que lhe traria o elemento espiritual, o qual representa papel tão ativo num grande número de afecções.

Além disso, o Espiritismo nos revela a causa primeira do suicídio, e só ele o poderia fazer. As tribulações da vida são, ao mesmo tempo, expiações de faltas de vidas passadas e provas para o futuro. O próprio Espírito as escolhe, visando ao seu adiantamento; mas pode acontecer que, uma vez na obra, ache muito pesada a carga e recue na sua execução; é, então, que recorre ao suicídio, o que o retarda, ao invés de o fazer avançar. Acontece ainda que um Espírito se suicidou em precedente encarnação e, como expiação, é-lhe imposto na seguinte lutar contra a tendência do suicídio. Se sair vitorioso, progride; se sucumbir, terá de recomeçar uma vida talvez mais penosa ainda que a precedente e, assim, deverá lutar até que haja triunfado, pois toda recompensa na outra vida é fruto de uma vitória, e quem diz vitória diz luta. O espírita haure, pois, na certeza que ele tem deste estado de coisas, uma força de perseverança que nenhuma outra filosofia lhe poderia dar.

A. K.


Hereditariedade Moral

Um dos nossos assinantes nos escreve de Wiesbaden:

“Senhor, eu estudo cuidadosamente o Espiritismo em todos os vossos livros e, apesar da clareza que deles emanam, dois pontos importantes não me parecem bastante explicados aos olhos de certas pessoas, a saber: 1º as faculdades hereditárias; 2º os sonhos.

“De fato, como conciliar o sistema da anterioridade da alma com a existência das faculdades hereditárias? Entretanto elas existem, embora não de maneira absoluta. Diariamente elas nos chocam na vida privada; e também vemos, numa ordem mais elevada, os talentos sucedendo aos talentos, a inteligência à inteligência. O filho de Racine foi poeta; Alexandre Dumas tem como filho um autor ilustre; na arte dramática vemos a tradição de talentos numa mesma família e na arte da guerra uma raça, tal a dos duques de Brunswick, por exemplo, que forneceu uma série de heróis. A inépcia, o vício, o próprio crime também conservam sua tradição. Eugène Sue cita famílias onde várias gerações passaram sucessivamente pelo homicídio e pela guilhotina. A criação da alma por indivíduos explicaria ainda menos essas dificuldades, bem o compreendo, mas é preciso confessar que ambas as doutrinas se prestam aos golpes dos materialistas, que não vêm em todas as faculdades senão uma concentração de forças nervosas.

“Quanto aos sonhos, a doutrina espírita não concilia bem o sistema das peregrinações da alma durante o sono com a opinião vulgar que o torna simples reflexo das impressões percebidas durante a vigília. Esta última opinião poderia parecer a verdadeira explicação dos sonhos, ao passo que a peregrinação seria apenas um caso excepcional. (Seguem-se alguns exemplos em apoio).

“Que fique bem claro, senhor presidente, que aqui não pretendo fazer nenhuma objeção em meu nome pessoal; entretanto, pareceu-me útil que a Revista Espírita se ocupasse dessas questões, ainda que fosse para fornecer os meios de responder aos incrédulos. Quanto a mim, sou crente e apenas busco a minha instrução.”

A questão dos sonhos será examinada posteriormente, em artigo especial. Hoje só nos ocuparemos da hereditariedade moral, deixando que dela tratem os Espíritos e nos limitando a algumas observações preliminares.

Diga-se o que se disser a respeito, os materialistas não ficarão mais convencidos, porque, não admitindo o princípio, não lhe podem admitir as consequências. Antes de tudo seria necessário que se tornassem espiritualistas. Ora, não é por essa questão que se deve começar. Assim, não nos ocuparemos de suas objeções.

Tomando por ponto de partida a existência de um princípio inteligente fora da matéria, em outras palavras, a existência da alma, a questão é saber se as almas procedem das almas, ou se são independentes. Cremos já haver demonstrado, em nosso artigo sobre Os Espíritos e a linhagem, publicado no mês de março último, a impossibilidade da criação de alma por alma. Efetivamente, se a alma da criança fosse uma parte da do pai, deveria sempre ter as suas qualidades e imperfeições, em virtude do axioma: a parte é da mesma natureza que o todo. Ora, a experiência prova todos os dias o contrário. É verdade que citam exemplos de similitudes morais e intelectuais que parecem devidos à hereditariedade, sendo forçoso concluir que tivesse havido uma transmissão. Mas, então, porque essa transmissão nem sempre ocorre? Por que vemos, diariamente, pais essencialmente bons ter filhos instintivamente viciosos e vice-versa? Desde que é impossível fazer da hereditariedade moral uma regra geral, trata-se de explicar, com o sistema da recíproca independência das almas, a causa das similitudes. Isto poderia ser no máximo uma dificuldade, mas em nada comprometeria a doutrina da anterioridade da alma e a da pluralidade das existências, considerando-se que esta doutrina está provada por centenas de fatos concludentes, contra os quais é impossível levantar objeções sérias. Deixemos falar os Espíritos que houveram por bem tratar da questão. Eis as duas comunicações que a respeito obtivemos.

(Sociedade Espírita de Paris, 23 de maio de 1862 — Médium: Sr. d’Ambel)

Já foi dito muitas vezes que não havia necessidade de erguer um sistema sobre simples aparências; e é dessa natureza o sistema que deduz das semelhanças familiares uma teoria contrária àquela que vos demos, da existência das almas, anteriormente à sua encarnação terrestre. É positivo que muitas vezes estas jamais tiveram relações diretas com os meios, com as famílias nas quais se reencarnam. Já vos repetimos muitas vezes que as semelhanças corporais são devidas a uma questão material e fisiológica absolutamente independentes da ação espiritual, e que as aptidões e gostos semelhantes resultam, não da procriação da alma por outra já nascida, mas porque os Espíritos semelhantes se atraem. Daí as famílias de heróis ou as raças de salteadores. Admiti, pois, em princípio, que os Espíritos bons escolhem de preferência para sua nova etapa terrestre o meio onde o terreno já esteja preparado, a família de Espíritos adiantados, onde têm certeza de encontrar os materiais necessários ao seu progresso futuro; admiti, igualmente, que os Espíritos atrasados, ainda inclinados aos vícios e aos apetites animais, fujam dos grupos elevados, das famílias moralizadas e, ao contrário, se encarnem onde esperam encontrar os meios de satisfazerem às paixões que ainda os dominam. Assim, pois, em tese, as semelhanças espirituais decorrem do fato de que os semelhantes atraem os semelhantes, ao passo que as semelhanças corpóreas são devidas à procriação. Agora é preciso acrescentar isto: muitas vezes nascem em famílias, dignas em todos os sentidos do respeito de seus concidadãos, indivíduos viciosos e maus, que aí são enviados para servirem de pedra de toque daquelas. Por vezes, ainda, eles vêm por conta própria, na esperança de saírem da situação difícil em que até então se demoravam, para se aperfeiçoarem sob a influência desses meios virtuosos e moralizados. Sucede o mesmo com Espíritos já adiantados moralmente que, a exemplo dessa jovem de Saint-Étienne, de que se falou ano passado, se reencarnam em famílias obscuras, entre Espíritos atrasados, a fim de lhes mostrar o caminho que conduz ao progresso. Tenho certeza de que não esquecestes o anjo de asas brancas em que ela pareceu transfigurar-se aos olhos dos que a tinham amado na Terra, quando estes, por sua vez, retornaram ao mundo dos Espíritos. ( Revista Espírita de junho de 1861 — Médium: Sra. Gourdon).

Erasto

(Outra; mesma sessão — Médium: Sra. Costel)

Venho explicar-vos a importante questão da hereditariedade das virtudes e dos vícios na raça humana. Essa transmissão faz que vacilem aqueles que não compreendem a imensidade do dogma revelado pelo Espiritismo. Os mundos intermediários são habitados por Espíritos que esperam a prova da reencarnação ou a ela se preparam novamente, conforme o seu grau de adiantamento. Nesses centros de formação da vida eterna, os Espíritos são agrupados e divididos em grandes tribos, uns à frente, outros a reboque do progresso, e cada um escolhe, entre os grupos humanos, aqueles que correspondem simpaticamente às suas faculdades adquiridas, as quais progridem e não podem retrogradar.

O Espírito que se reencarna escolhe o pai, cujo exemplo o fará avançar na senda preferida, de modo a refletir, elevando-os ou enfraquecendo-os, os talentos daquele que lhe deu a vida corporal. Em ambos os casos, a união simpática já existe anteriormente ao nascimento e a seguir é desenvolvida nas relações de família, pela imitação e pelo hábito.

Depois da hereditariedade familiar, meus amigos, quero vos revelar a origem da discordância que separa os indivíduos de uma mesma raça, repentinamente ilustrada ou desonrada por um de seus membros tornado estranho ao meio. O bruto vicioso que se encarnou num centro elevado e o Espírito luminoso que se reencarna entre seres grosseiros, obedecem à misteriosa harmonia que aproxima as partes divididas de um todo e faz a concordância entre o infinitamente pequeno com a suprema grandeza. O Espírito culpado, apoiado nas virtudes adquiridas de seu procriador terreno, espera fortificar-se por elas e, se ainda sucumbe na prova, adquire pelo exemplo o conhecimento do bem, retornando à erraticidade menos carregado de ignorância e mais bem preparado para sustentar uma nova luta.

Os Espíritos adiantados entreveem a glória de Jesus, tomados pelo desejo ardente de esgotar o cálice da caridade. Como ele, também, querem guiar a Humanidade para o objetivo sagrado do progresso, renascendo nas baixas camadas sociais, onde lutam, acorrentados uns aos outros, contra a ignorância e o vício, dos quais são, sucessivamente, os vencedores e os mártires.

Caso esta resposta não satisfaça a todas as vossas dúvidas, interrogai-me, meus amigos.

São Luís


Poesia Espírita

(Sociedade Espírita de Bordeaux — Médium: Sr. Ricard)

A Criança e a Visão

Mãezinha, a noite já é brumosa,

E eu sinto, agora, o sono vir;

Põe-me em meu leito cor-de-rosa!...

Ou nos teus braços vou dormir.

Criança, a Deus faz oração.

E de joelhos, filha, vamos;

Pelo teu pai, de coração,

Juntas, a Deus com fé peçamos.

Lá em cima ele está, mamãe, não é?

Perto de Deus que Deus o quis;

Não quer os maus, que não têm fé,

Mas meu paizinho fez feliz!

Que Deus te entenda!... Ó cara filha,

Que Ele te escute com bondade!

Tenha teu pai, na santa trilha,

Ventura!... Paz!... Felicidade!

Peço também por ti, mãezinha;

Eu disse a Deus: “Pai poderoso,

“Levaste o pai, mas da filhinha

“A mãe não tires, Pai bondoso.”

Muito obrigada, ó Gabriela!

Que coração numa menina!

Sobre ti do Alto teu pai vela

E em tua fronte ele se inclina.

Eu bem queria, mãe querida,

Já que meu pai nossa alma alcança,

Que ele voltasse da outra vida

Para abraçar sua criança.

Que tal prodígio pede a Deus

Aqui por nós, sofremos tanto!...

A alma de um morto às vezes seus

Filhinhos vem lenir o pranto.

Mãezinha, a noite é já brumosa

E eu sinto, agora, o sono vir...

Põe-me em meu leito cor-de-rosa!...

Adeus, mamãe!... Eu vou dormir.

Mas não!... Eu vejo!... É bem meu pai!

Ele está aqui... junto a meu leito!

Que se aproxima e sobressai,

Mamãe, nos olha satisfeito...

Sinto a ternura de seu beijo;

E meus cabelos sua mão!...

Fechar-me a boca tem ensejo,

E logo então retorna aos céus!

Mãezinha, a noite é já brumosa,

Mas já não posso mais dormir...

É que meu pai ao cor-de-rosa

Leito meu prometeu revir!

Teu Anjo-da-Guarda


Duplo Suicídio por Amor e Dever — Estudo Moral

No Opinion nationale, de 13 de junho, lemos o seguinte:

“Terça-feira última, dois caixões entraram juntos na Igreja da Boa-Nova. Eram acompanhados por um homem que parecia presa de uma dor profunda e por uma multidão considerável, na qual se notava recolhimento e tristeza. Eis um breve relato dos acontecimentos, em consequência dos quais se realizava aquela dupla cerimônia fúnebre.

“A Sra. Palmira, modista, residia com os pais. Era dotada de um físico encantador, ao qual se aliava um caráter muito amável. Por isso, era muito requestada com propostas de casamento. Entre os aspirantes à sua mão, havia preferido o Sr. B..., que por ela nutria uma viva paixão. Embora o amasse muito, mas premida pelo respeito filial, julgou-se no dever de ceder à vontade dos pais, de desposar o Sr. D..., cuja posição social lhes parecia mais vantajosa que a do rival. O casamento foi celebrado há quatro anos.

“Os Srs. B... e D... eram amigos íntimos. Conquanto não tivessem nenhum interesse comum, não deixaram de se ver. O amor recíproco do Sr. B... e de Palmira, transformada na Sra. D..., não havia diminuído e, como se esforçassem por reprimi-lo, ele aumentava, em razão da própria violência que lhe faziam. Para tentar apagá-lo, B... tomou o partido de se casar. Desposou uma jovem de excelentes qualidades e fez todo o possível para amá-la. Mas não tardou a perceber que esse meio heroico era impotente para o curar. Todavia, durante quatro anos, nem B... nem a Sra. D... faltaram aos seus deveres. Impossível descrever o que eles sofreram, porquanto D..., que estimava verdadeiramente o seu amigo, o atraía sempre para a sua casa e, quando ele queria retirar-se, insistia para que ficasse.

“Enfim, há alguns dias, aproximados por uma circunstância fortuita, os dois amantes não puderam resistir à paixão que os arrastava um para o outro. Apenas cometida a falta, sentiram o mais doloroso remorso. A jovem senhora lançou-se aos pés do marido assim que ele voltou, e lhe disse em soluços:

“Expulsai-me! Matai-me! Agora sou indigna de vós!

“E como ele ficasse mudo de espanto e de dor, ela lhe contou suas lutas, seus sofrimentos, tudo quanto lhe tinha sido preciso de coragem para não falir mais cedo. Fê-lo compreender que, dominada por um amor ilegítimo, jamais tinha cessado de ter por ele o respeito, a estima e a afeição de que ele era digno.

“Em vez de amaldiçoá-la, o marido chorava. B... chegou em meio a esta cena e fez uma confissão semelhante. D... fez que ambos se levantassem e lhes disse:

“Sois dois corações bons e leais. Só a fatalidade vos tornou culpados. Li no fundo dos vossos pensamentos e neles vi sinceridade. Por que vos puniria por um arrastamento ao qual não resistiram todas as vossas forças morais? A punição está no pesar que sentis. Prometei-me que vos deixareis de ver e não tereis perdido nem a minha estima, nem a minha afeição.

“Esses dois desventurados amantes apressaram-se em fazer o juramento pedido. A maneira pela qual sua confissão havia sido recebida pelo Sr. D... aumentou-lhes a dor e o remorso. Tendo o acaso lhes ensejado um encontro de que não cogitavam, comunicaram-se reciprocamente o estado de alma e concordaram em que a morte seria o único remédio aos males que experimentavam. Resolveram matar-se juntos no dia seguinte, quando o Sr. D... estaria ausente de casa grande parte do dia.

“Depois de feitos os últimos preparativos, escreveram uma longa carta, na qual, em resumo, diziam:

“Nosso amor é mais forte que todas as promessas. Poderíamos ainda, mau grado nosso, fraquejar e sucumbir. Não conservaremos uma existência culposa. Para nossa expiação faremos ver que a falta que cometemos não deve ser atribuída à nossa vontade, mas ao desvario de uma paixão cuja violência estava acima de nossas forças.”

“Esta carta comovedora terminava por um pedido de perdão e os dois amantes imploravam como graça serem enterrados no mesmo túmulo.

“Quando o Sr. D... entrou em casa deparou-se com um estranho e doloroso espetáculo. No meio do espesso vapor que emanava de um forno portátil cheio de carvão, os dois amantes, deitados e bem vestidos no leito, estavam estreitamente abraçados. Tinham cessado de viver.

“O Sr. D... respeitou a última vontade dos dois. Quis que juntos participassem das preces da Igreja e que no cemitério não fossem separados.”

O Sr. cura da Boa-Nova julgou por bem desmentir, num artigo inserido em vários jornais, a admissão dos dois corpos em sua igreja, já que as regras canônicas a isto se opunham36.

Tendo sido lido esse relato como tema de estudo moral na Sociedade Espírita de Paris, dois Espíritos fizeram a seguinte apreciação:

36 N. do T.: A Igreja Católica nega aos suicidas as cerimônias e orações póstumas.

“Eis aí a obra de vossa sociedade e dos vossos costumes! Mas o progresso será feito. Mais algum tempo e fatos como este não irão repetir-se. Alguns indivíduos são como certas plantas colocadas numa estufa: falta-lhes o ar; sufocam e não podem espargir o seu perfume. Vossas leis e vossos costumes fixaram limites à expansão de certos sentimentos, o que muitas vezes leva duas almas, dotadas das mesmas faculdades, dos mesmos instintos simpáticos, a se encontrarem em duas ordens diferentes e, não podendo unir-se, aniquilam-se na tenacidade de quererem encontrar-se. Que fizestes do amor? Vós o reduzistes a uma pilha de moedas; vós o jogastes numa balança; em vez de ser rei, é escravo; de um laço sagrado vossos costumes fizerem corrente de ferro, cujos elos esmagam e matam os que não nasceram para serem acorrentados.

“Ah! se vossas sociedades marchassem pelos caminhos de Deus, vossos corações não se consumiriam em chamas passageiras e vossos legisladores não teriam sido forçados a manter vossas paixões pelas leis. Mas o tempo marcha e soará a grande hora, na qual podereis todos viver a verdadeira vida, a vida do coração. Quando as batidas do coração não mais forem comprimidas pelos frios cálculos dos interesses materiais, não mais vereis esses suicídios horríveis, que de vez em quando vêm lançar um desmentido sobre os vossos preconceitos sociais.”

Santo Agostinho (Médium: Sr. Vézy)

“Os dois amantes que se suicidaram ainda não vos podem responder. Eu os vejo. Estão mergulhados na perturbação e assustados pelo sopro da eternidade. As consequências morais de sua falta os castigarão durantes sucessivas migrações, nas quais suas almas separadas buscar-se-ão incessantemente e sofrerão o duplo suplício do pressentimento e do desejo. Realizada a expiação, serão para sempre reunidos no seio do eterno amor.”

Georges (Médium: Sr. Costel)

Oito dias depois, tendo consultado o guia espiritual do médium sobre a possibilidade da evocação desses dois Espíritos, foi respondido: “Eu vos disse da última vez que na vossa próxima sessão poderíeis evocá-los; virão ao apelo de meu médium, mas não se verão; uma noite profunda os oculta um do outro por muito tempo.”

Santo Agostino (Médium: Sr. Vézy) 1. Evocação da mulher.

Resp. — Sim; comunicar-me-ei, mas com o auxílio do Espírito aqui presente, que me ajuda e se me impõe.

2. Vedes o vosso amado, com o qual vos suicidastes?

Resp. — Nada vejo; nem mesmo os Espíritos que vagueiam comigo no lugar onde estou. Que noite! Que noite! E que espesso véu sobre o meu rosto!

3. Que sensação experimentastes depois do despertar da morte?

Resp. — Estranha. Tinha frio e queimava; o gelo corria-me nas veias e o fogo estava em meu rosto! Coisa estranha! Mistura inaudita! Gelo e fogo parecendo comprimir-me! Pensei que ia sucumbir segunda vez.

4. Experimentais dor física?

Resp. — Todo o meu sofrimento está aqui e ali.

5. Que quereis dizer por aqui e ali?

Resp. — Aqui, em meu cérebro; ali, no meu coração.

Observação — Se pudéssemos ver o Espírito, provavelmente o veríamos levar a mão à fronte e ao coração.

6. Credes que ficareis sempre nesta situação?

Resp. — Oh! sempre, sempre! Por vezes escuto risos infernais, vozes assustadoras que me gritam estas palavras: Sempre assim!

7. Pois bem! Nós vos podemos dizer, com toda a certeza, que não será sempre assim. Arrependendo-vos, obtereis o perdão.

Resp. — Que dissestes? Não compreendo.

8. Repito que os vossos sofrimentos terão um termo, que podeis apressar pelo vosso arrependimento e nós vos ajudaremos pela prece.

Resp. — Só entendi uma palavra e sons vagos. Essa palavra é graça! Foi da graça que quisestes falar? Oh! o adultério e o suicídio são dois crimes muito odiosos! Falastes de graça: sem dúvida à alma que passa ao meu lado, pobre criança que chora e espera.

Observação — Uma dama da sociedade disse que acabara de dirigir uma prece a Deus por essa infeliz e que, sem dúvida, foi o que a tocou; que, de fato, havia implorado para ela mentalmente a graça de Deus.

9. Dissestes que estais nas trevas. Não nos vedes?

Resp. — É-me permitido escutar algumas palavras que pronunciais, embora não veja senão um crepe negro sobre o qual se desenha, em certas horas, uma cabeça que chora.

10. Se não vedes o vosso amado, não sentis a sua presença perto de vós, já que ele está aqui?

Resp. — Ah! não me faleis dele; por ora devo esquecê-lo, se quiser que do crepe se apague a imagem que aí vejo esboçada.

11. Que imagem é esta?

Resp. — A de um homem que sofre, cuja existência moral na Terra eu matei por muito tempo.

Observação — Como demonstra a observação dos fatos, frequentemente a escuridão acompanha o castigo dos Espíritos criminosos. Segue-se imediatamente à morte e sua duração, muito variável conforme as circunstâncias, pode ir de alguns meses a alguns séculos. Compreende-se facilmente o horror de semelhante situação, na qual o culpado não divisa senão o que lhe pode lembrar a falta e aumentar, pelo silêncio, a solidão e a incerteza em que está mergulhado, as ansiedades e o remorso.

Lendo-se esta narrativa ficamos, em princípio, predispostos a encontrar circunstâncias atenuantes para o suicídio, a encará-lo até como um ato heroico, visto ter sido provocado pelo sentimento do dever. No entanto, vemos que foi julgado diversamente, e que a pena dos culpados será longa e terrível, porque se refugiaram voluntariamente na morte, a fim de fugir à luta. A intenção de não faltar ao dever era nobre, sem dúvida, e lhes será levada em conta mais tarde; mas o verdadeiro mérito teria consistido em vencer o arrastamento, ao passo que eles fizeram como o desertor, que se esquiva no momento do perigo.

Como se vê, a pena dos dois culpados consistirá em se buscarem por muito tempo sem se encontrarem, seja no mundo dos Espíritos, seja em outras encarnações terrestres; está momentaneamente agravada pela ideia de que o seu estado atual deve durar sempre. Fazendo parte do castigo um tal pensamento, não lhes foi permitido ouvir as palavras de esperança que lhes dirigimos. Aos que achassem essa pena muito terrível e muito longa, sobretudo se não deve cessar senão depois de várias encarnações, diríamos que sua duração não é absoluta, e que dependerá da maneira pela qual suportarão as provas futuras, no que poderemos ajudá-los por meio de preces. Como todos os Espíritos culpados, serão os árbitros de seu próprio destino. Isto não é melhor que a danação eterna, sem esperança, a que são irremediavelmente condenados, segundo a doutrina da Igreja, que os considera de tal modo jurados ao inferno que lhes recusou as últimas preces, sem dúvida por não terem utilidade?

Certos católicos censuram o Espiritismo porque este não admite o inferno. Realmente ele não admite a existência de um inferno localizado, com as suas chamas, os seus tridentes e as torturas corporais tomadas do Tártaro dos pagãos; mas a posição em que nos mostra os Espíritos infelizes não é muito melhor. Há, porém, uma diferença radical: a natureza das penas nada tem de irracional e a sua duração, em vez de ser irremissível, está subordinada ao arrependimento, à expiação e à reparação, o que é, ao mesmo tempo, mais lógico e mais conforme à doutrina da justiça e da bondade de Deus.

No caso em questão, teria sido o Espiritismo um remédio eficaz para evitar o suicídio? Sem dúvida. Ele teria dado a esses dois seres uma confiança no futuro que haveria mudado completamente sua maneira de encarar a vida terrestre e, por conseguinte, lhes teria dado a força moral que lhes faltou. Supondo que tivessem tido fé no futuro, o que ignoramos, e que o seu objetivo, ao se matarem, fosse o de se reunirem mais depressa, teriam sabido, por inúmeros exemplos análogos, que chegariam a resultados diametralmente opostos e se achariam separados por muito mais tempo do que se estivessem na Terra, pois Deus não permitiria recompensa à infração de suas leis. Assim, certos de não poderem realizar seus desejos, mas, ao contrário, de se acharem numa posição cem vezes pior, seu próprio interesse os levaria a ter mais paciência.

Nós os recomendamos às preces de todos os espíritas, a fim de lhes dar a força e a resignação que haverão de sustentá-los em suas novas provas e ainda apressar o termo de seu castigo.


Ensinos e Dissertações Espíritas

União Simpática das Almas

(Bordeaux, 15 de fevereiro de 1862 — Médium: Sra. H...)

P. — Já me dissestes várias vezes que nos reuniríamos para não mais nos separarmos. Como poderá dar-se isto? As reencarnações, mesmo as que se seguem às da Terra, nem sempre separam por um tempo mais ou menos longo?

Resp. — Eu to disse: Deus permite aos que se amam sinceramente e souberam sofrer com resignação para expiar suas faltas, reunir-se, a princípio no mundo dos Espíritos, onde progridem juntos, a fim de conseguirem encarnações nos mundos superiores. Podem, pois, se o pedirem com fervor, deixar os mundos espíritas na mesma época, reencarnar nos mesmos lugares e, por um encadeamento de circunstâncias previstas, reunir-se pelos laços que mais convierem aos seus corações.

Uns terão pedido para serem pai ou mãe de um Espírito que lhes era simpático e se sentirão felizes por o dirigirem no bom caminho, cercando-o dos ternos cuidados da família e da amizade. Outros terão pedido a graça de se unirem pelo matrimônio e verem escoar-se muitos anos de felicidade e de amor. Refiro-me ao casamento entendido no sentido da união íntima de dois seres que não querem separar-se mais. Entretanto, tal como é compreendido na Terra, o casamento não é conhecido nos mundos superiores. Nesses lugares de felicidade, de liberdade e de alegria, os laços são de flores e de amor; e não creias que, por isso, sejam menos duráveis. Só o coração fala e guia nessas uniões tão doces. Uniões livres e felizes, casamento de almas perante Deus, eis a lei do amor dos mundos superiores! E os seres privilegiados dessas regiões abençoadas, sentindo-se mais fortemente ligados por semelhantes sentimentos do que o são os homens da Terra, que muitas vezes desprezam os mais sagrados compromissos, não oferecem o deplorável espetáculo de uniões perturbadas incessantemente pela influência dos vícios, das paixões inferiores, da inconstância, da inveja, da injustiça, da aversão, de todas essas horríveis inclinações que conduzem ao mal, ao perjúrio e à violação dos mais solenes juramentos. Pois bem! esses casamentos abençoados por Deus, essas uniões tão afetuosas são a recompensa daqueles que, tendo-se amado profundamente no sofrimento, pedem ao Senhor, justo e bom, para continuarem a se amar em mundos superiores, sem, contudo, temerem uma próxima e dolorosa separação.

Que haverá nisso que não seja fácil de compreender e admitir? Deus, que ama a todos os seus filhos, não teria podido criar, para aqueles que se tivessem tornado dignos, uma felicidade tão perfeita quanto cruéis tinham sido as provas? Que poderia conceder de mais conforme ao sincero desejo de todo coração amoroso? De todas as recompensas prometidas aos homens, haverá algo semelhante a esse pensamento, a essa esperança, eu poderia dizer, a essa certeza: unir-se aos seres adorados para a eternidade?

Crê-me, filha querida, nossas secretas aspirações, essa necessidade misteriosa, mas irresistível de amar, de amar longamente, de amar sempre, não foi colocada por Deus nos nossos corações senão porque a promessa do futuro nos permitia essas doces esperanças. Deus não nos fará experimentar as dores da decepção. Nossos corações querem a felicidade e só palpitam pelas afeições puras. A recompensa só poderia ser a perfeita realização de nossos sonhos de amor. Do mesmo modo que, pobres Espíritos sofredores destinados à provação, foi-nos preciso pedir e, por vezes, até mesmo escolher as mais cruéis expiações, também escolhemos, como Espíritos felizes e regenerados, na nova vida destinada a nos depurar ainda mais, a soma de felicidades concedidas ao Espírito adiantado. Tens aí, filha bem-amada, uma exposição sumária das felicidades futuras. Muitas vezes teremos ocasião de voltar a esse agradável assunto. Deves compreender quanto a perspectiva desse futuro me torna feliz e quanto me é doce confiar-te as minhas esperanças!

P. — Nós nos reconhecemos nessas novas e felizes existências?

Resp. — Se não nos reconhecêssemos seria completa a felicidade? Sem dúvida seria felicidade, pois nesses mundos privilegiados todos os seres são destinados a ser felizes. Mas seria isto a perfeição da felicidade para os que, separados bruscamente na mais bela época da vida, pedem a Deus para se unirem em seu seio? Seria a realização de nossos sonhos e de nossas esperanças?

Não; tu pensas como eu. Se um véu fosse lançado sobre o passado, não haveria a suprema felicidade, a inefável alegria de nos revermos depois das tristezas da ausência e da separação; não haveria, ou pelo menos ignoraríamos, essa antiguidade de afeição que mais ainda aperta os laços. Assim como em vossa Terra dois amigos de infância gostam de encontrar-se no mundo, na sociedade, e se buscam muito mais do que se suas relações apenas datassem de alguns dias, também os Espíritos que mereceram o inapreciável favor de se unirem nos mundos superiores são duplamente felizes e reconhecidos a Deus por esse novo encontro, que corresponde às suas mais caras aspirações.

Os mundos colocados acima da Terra na escala da perfeição são cumulados de todos os favores que possam contribuir para a perfeita felicidade dos seres que os habitam; o passado não lhes é oculto, porque a lembrança de seus antigos sofrimentos, de seus erros, resgatados à custa de muitos males, e a lembrança, ainda mais viva, de suas afeições sinceras, lhes faz achar mil vezes mais doce essa nova vida e os protegem contra faltas a que, talvez, pudessem ser arrastados por uns resquícios de fraqueza. Para os homens esses mundos são o paraíso terrestre, destinado a conduzi-los ao paraíso divino.

Observação — Enganar-nos-íamos redondamente quanto ao sentido desta comunicação se nela víssemos uma crítica às leis que regem o casamento e a sanção das uniões efêmeras extra-oficiais. No que respeita às leis, as únicas imutáveis são as leis divinas, ao passo que as leis humanas, devendo ser apropriadas aos costumes, aos usos, aos climas e ao grau de civilização, são essencialmente mutáveis; seria deplorável que assim não fosse, e que os povos do século dezenove estivessem presos às mesmas regras que regiam os nossos pais. Assim, se as leis mudaram deles até nós, como não chegamos à perfeição, deverão mudar de nós aos nossos descendentes. No momento em que é feita, toda lei tem a sua razão de ser e a sua utilidade; mas pode acontecer que, sendo boa hoje, não mais o seja amanhã. No estado dos nossos costumes, de nossas exigências sociais, o casamento necessita ser regulado pela lei, e a prova de que esta lei não é absoluta é que não é a mesma para todos os países civilizados. É, pois, permitido pensar que nos mundos superiores, onde não há os mesmos interesses materiais a salvaguardar, onde não existe o mal, isto é, onde os Espíritos maus são excluídos da encarnação, onde, conseguintemente, as uniões resultam da simpatia e não do cálculo, as condições devam ser diferentes. Mas aquilo que é bom para eles poderia ser muito mau para nós.

Além disso, é preciso levar em conta que os Espíritos se desmaterializam à medida que se elevam e se depuram. Só nas fileiras inferiores a encarnação é material. Para os Espíritos superiores não há mais encarnação material e, consequentemente, não há procriação, pois esta se dá pelo corpo e não pelo Espírito. Uma afeição pura é, pois, o único objetivo da união e, por isto, ao contrário do que ocorre na Terra, não necessita da sanção oficial.

Uma Telha

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sra. C.)

Passando pela rua e lhe caindo aos pés uma telha, diz um homem: “Que sorte! Um passo a mais e eu estaria morto.” Em geral é o único agradecimento que dirige a Deus. Entretanto esse mesmo homem, pouco tempo depois, adoece e morre na cama. Por que, então, foi preservado da telha, para, como todo o mundo, morrer alguns dias depois? Foi o acaso — dirá o incrédulo — como ele próprio disse: Que sorte! De que lhe adiantou escapar da morte no primeiro acidente, se sucumbiu ao segundo? Em todo o caso, se a sorte o favoreceu, o favor não durou muito.

A essa pergunta o espírita responde: A cada instante escapais de acidentes que, como se costuma dizer, vos deixam a um passo da morte. Não vedes nisso um aviso do céu para vos provar que vossa vida está por um fio, que jamais tendes certeza de viver amanhã e que, assim, deveis sempre estar preparados para partir? Mas, que fazeis, quando deveis empreender uma longa viagem? Fazei os vossos preparativos, arranjai os negócios, muni-vos de provisões e de coisas necessárias para o caminho; desembaraçai-vos de tudo quanto pudesse dificultar e retardar a marcha. Se conheceis o país para onde vos dirigis, se lá tendes amigos e conhecidos, partis sem receio, certos de serdes bem recebidos. Caso contrário, estudais o mapa da região e arranjais cartas de recomendação. Suponde que sejais obrigados a empreender essa viagem de um momento para outro, que não tendes tempo de fazer preparativos, ao passo que se estivésseis prevenidos com bastante antecedência, teríeis disposto todas as coisas para vosso conforto e vosso lazer.

Pois bem! todos os dias estais expostos a empreender a maior, a mais importante das viagens, aquela que deveis fazer inevitavelmente; e, no entanto, não pensais nisto mais do que se tivésseis de viver para sempre na Terra! Em sua bondade, Deus cuida de vós, advertindo-vos por numerosos acidentes, aos quais escapais, e não tendes para Ele senão esta expressão: Que sorte!

Espíritas! Sabeis que preparativos deveis fazer para essa grande viagem, que tem para vós consequências muito mais importantes do que todas as que empreendeis na Terra? Porque da maneira por que ela se realizar depende a vossa felicidade futura. O mapa que vos dará a conhecer o país onde ides entrar é a iniciação nos mistérios da vida futura. Por ela o país não será novidade para vós. Vossas provisões são as boas ações que tiverdes realizado e que vos servirão de passaporte e de cartas de recomendação. Quanto aos amigos que lá encontrareis, vós os conheceis. É dos maus sentimentos que vos devereis desembaraçar, pois infeliz é aquele a quem a morte surpreende com ódio no coração, como se fora alguém que caísse na água com uma pedra atada ao pescoço, sendo arrastado para as profundezas. Os negócios que deveis pôr em ordem são o perdão aos que vos ofenderam; os erros cometidos para com o próximo, que deveis ter pressa em reparar, a fim de conquistardes o perdão, porquanto os erros são dívidas, de que o perdão é a quitação. Apressai-vos, pois, que a hora da partida pode soar de um momento para outro e não vos dar tempo para a reflexão.

Em verdade vos digo: a telha que cai aos vossos pés é o sinal que vos adverte para estardes sempre prontos a partir ao primeiro chamamento, a fim de não serdes tomados de surpresa.

O Espírito de Verdade

César, Clóvis e Carlos Magno

(Sociedade Espírita de Paris, 24 de janeiro de 1862; assunto proposto. — Médium: Sr. A. Didier)

Esta não é apenas uma questão material, mas, também, muito espiritualista. Antes de abordar o ponto principal, um há, do qual falaremos em primeiro lugar. O que é a guerra? Para começar, respondemos que a guerra é permitida por Deus, pois que existe, existiu e existirá sempre. É erro na educação da inteligência não ver em César senão um conquistador, em Clóvis senão um bárbaro, em Carlos Magno senão um déspota, cujo sonho insensato queria fundar um imenso império. Ah! meu Deus! Como geralmente se diz, os conquistadores são os próprios joguetes de Deus. Como sua audácia, seu gênio os fez chegar ao primeiro posto, viram em torno de si não só homens armados, mas ideias, progressos, civilizações, que era necessário lançar às outras nações. Partiram, como César, para levar Roma a Lutécia; como Clóvis, para os germes de uma solidariedade monárquica; como Carlos Magno, para irradiar o facho do Cristianismo entre os povos cegos, nas nações já corrompidas pelas heresias dos primeiros tempos da Igreja. Ora, eis o que aconteceu: César, o mais egoísta desses três grandes gênios, faz servir a tática militar, a disciplina, a lei, numa palavra, para os trazer às Gálias; na retaguarda de seus exércitos seguia a ideia imortal, e as tribos, vencidas e indomáveis, sofriam o jugo de Roma, é certo, mas se transformavam em províncias romanas. A orgulhosa Marselha teria existido sem Roma? Lugdunum e tantas outras cidades célebres nos anais tornaram-se centros imensos, focos de luz para as ciências, as letras e as artes. César é, pois, um grande propagador, um desses homens universais, que se servem do homem para civilizar o homem, um desses homens que sacrificam homens em proveito da ideia.

O sonho de Clóvis foi estabelecer uma monarquia, bases, uma regra para o seu povo. Mas como a graça do Cristianismo não o iluminava ainda, foi propagador bárbaro. Devemos encará-lo na sua conversão: Imaginação ativa, febril, belicosa, viu na vitória sobre os visigodos uma prova da proteção de Deus; e, doravante, certo de estar sempre com Ele, deixou-se batizar. Eis que o batismo se propaga nas Gálias e o Cristianismo se expande cada vez mais. É o momento de dizer, com Corneille: Roma não era mais Roma. Os bárbaros invadiram o mundo romano.

Depois da pilhagem de todas as civilizações esboçadas pelos romanos, eis que um homem sonha espalhar pelo mundo, não mais os mistérios e o prestígio do Capitólio, mas as crenças formidáveis de Aix-la-Chapelle; eis um homem que está, ou se julga com Deus. Um culto odioso, rival do Cristianismo, ainda ocupa os bárbaros; Carlos Magno precipita-se sobre esses povos e Witikind, depois de lutas e de vitórias equilibradas, enfim se submete, recebendo o batismo humildemente.

Eis aí, por certo, um quadro imenso, onde se desenrolam tantos fatos, tantos golpes da Providência, tantas quedas e tantas vitórias. Mas qual a conclusão? A ideia, universalizando-se, propagando-se cada vez mais, não se detendo nem nos desmembramentos das famílias, nem no desânimo dos povos, e tendo como objetivo, por toda parte, a implantação da cruz do Cristo em todos os pontos da Terra, não constitui um imenso fato espiritualista? É preciso, pois, considerar esses três homens como grandes propagadores que, por ambição ou por crença, avançaram a luz no Ocidente, enquanto o Oriente sucumbia na preguiça embriagadora e na inatividade. Ora, a Terra não é um mundo onde o progresso se faça rapidamente e por meio da persuasão e da mansuetude.

Não vos admireis, pois, que muitas vezes seja preciso tomar da espada, em vez da cruz.

Lamennais

P. — Dissestes que a guerra existirá sempre. Todavia, parece que o progresso moral, destruindo as suas causas, a fará cessar.

Resp. — Ela existirá sempre, considerando-se que sempre haverá lutas; mas as lutas mudarão de forma. É verdade que o Espiritismo deve espalhar no mundo a paz e a fraternidade. Contudo, bem o sabeis, mesmo com o triunfo do bem sempre haverá luta. Evidentemente o Espiritismo fará compreender cada vez melhor a necessidade da paz; mas o mal vela sempre. Ainda será preciso lutar muito tempo na Terra pelo bem. Apenas as lutas se tornarão cada vez mais raras.

(MESMO ASSUNTO — MÉDIUM: SR. LEYMAR)

A influência dos homens de gênio sobre o futuro dos povos é incontestável. Nas mãos da Providência eles são instrumentos para acelerar as grandes reformas que, sem eles, só viriam depois de muito tempo. São eles que semeiam os germes das ideias novas. E, o mais das vezes, voltam alguns séculos mais tarde, sob outros nomes, para continuar ou completar a obra que começaram.

César, essa grande figura da Antiguidade, nos representa o gênio da guerra, a lei organizada. As paixões por ele levadas ao extremo abalaram profundamente a sociedade romana. Esta muda de face e na sua evolução tudo se transforma em seu redor. Os povos sentem mudar a sua antiga constituição; uma lei implacável, a da força, une o que não se devia separar, conforme a época em que vivia César. Sob sua mão triunfante as Gálias se transformam e, depois de dez anos de combates, constituem uma unidade poderosa. Mas dessa época data a decadência romana.

Levada ao excesso, essa potência que fazia tremer o mundo cometia as faltas do poder extremo. Tudo quanto cresce além das proporções fixadas por Deus deve cair do mesmo modo. Esse grande império foi invadido por uma nuvem de povos saídos de regiões então desconhecidas. A fama tinha levado, com as armas de César, as ideias novas aos países do Norte, que se precipitaram sobre ele como uma torrente. Vede essas tribos bárbaras, lançando-se rapaces sobre as províncias, onde o sol era melhor, o vinho tão doce, as mulheres tão belas. Atravessaram as Gálias, os Alpes, os Pirineus, para ir fundar suas colônias em toda parte e desagregar esse grande corpo chamado Império Romano. Só o gênio de César tinha bastado para levar sua nação à culminância do poder. Dele data a época da renovação, em que todos os povos se confundem, avançam uns sobre os outros, buscando outras coesões, outros elementos. E, no entanto, durante vários séculos, quanto ódio entre essas criaturas! quantos combates! quantos crimes! quanto sangue!

Barbaret

Com sua mão bárbara, Clóvis devia ser o ponto de partida de uma nova era para os povos. Obedecia ao costume e, para formar uma nação, não recuava diante de nenhum obstáculo. Ele a formava com o punhal e a astúcia. Criava um novo elemento adotando o batismo, iniciando seus rudes soldados numa nova crença. Entretanto, tudo foi à deriva depois dele, apesar da ideia, apesar do Cristianismo. Eram precisos Carlos Martel, Pepino e depois Carlos Magno.

Saudemos essa figura poderosa, essa natureza enérgica, qual novo César a reunir num feixe todos os povos dispersos, mudar as ideias e dar uma forma a esse caos. Carlos Magno é a grandeza na guerra, na fé, na política, na moralidade nascente, que devia fundir os povos e lhes dar a intuição da conservação, da unidade, da solidariedade. Dele remontam os grandes princípios que formaram a França, nossas leis e nossas ciências aplicadas. Transformador, ele era marcado pela Providência para ser o traço de união entre César e o futuro. Também o chamam o Grande porque, se empregou terríveis meios de execução, foi para dar uma forma e um pensamento único a essa reunião de povos bárbaros, que não podiam obedecer senão a quem fosse poderoso e forte.

Barbaret

Nota — Como esse nome era desconhecido, pediu-se ao Espírito que desse alguns esclarecimentos sobre a sua pessoa:

Eu vivia ao tempo de Henrique IV. Era muito humilde. Perdido nesta Paris onde tão bem se esquece aquele que se esconde e só busca o estudo, gostava de estar só, ler e comentar à minha maneira. Pobre, trabalhava, e o labor diário me dava essa alegria inefável que se chama liberdade. Copiava livros e fazia essas maravilhosas vinhetas, prodígios de paciência e de saber, que só davam pão e água à minha paciência. Mas eu estudava, amava meu país e buscava a verdade na Ciência. Ocupava-me de História e para a minha França bem-amada eu desejava a liberdade, a realização de todas as aspirações que sonhava na minha humildade. A partir de então estou num mundo melhor e Deus me recompensou a abnegação, dando-me essa tranquilidade de Espírito, em que todas as obsessões do corpo estão ausentes, e sonho pela minha pátria, pelo mundo inteiro, pela nossa Terra, pelo amor e pela liberdade.

Venho muitas vezes para vos ver e ouvir. Gosto dos vossos trabalhos e deles participo com todo o meu ser. Desejo-vos perfeitos e satisfeitos no futuro. Que sejais felizes, como eu o desejo. Mas não o sereis completamente se não vos despojardes da roupa velha que há muito veste o mundo inteiro: refiro-me ao egoísmo. Estudai o passado, a história do vosso país e aprendereis mais com o sofrimento dos vossos irmãos que com qualquer outra ciência.

Viver é saber, é amar, é auxiliar-se mutuamente. Ide, pois, e fazei segundo o vosso Espírito. Deus está presente e vos vê e julga.

Barbaret


Aviso

Foi-nos enviado um manuscrito bastante volumoso, intitulado: O Amor, revelações do Espírito de 3a ordem da série angélica ao irmão P. Montani. Como a remessa não se fez acompanhar de uma carta, ignoramos o nome da pessoa que a enviou. Se este número lhe cair nas mãos, pedimos que se dê a conhecer, a fim de podermos agradecer. Por ora diremos que o trabalho contém coisas excelentes e é baseado na mais sã moral e sobre os princípios fundamentais do Espiritismo. Mas, ao lado disso, há teorias perigosas sobre vários pontos e que podem suscitar uma crítica séria. De nossa parte não poderíamos aceitar tudo quanto ele contém e achamos inconveniente publicá-lo sem modificações.

Allan Kardec

Agosto de 1862

Conferências do Sr. Trousseau, Professor da Faculdade de Medicina

FEITAS NA ASSOCIAÇÃO POLITÉCNICA PARA O ENSINO GRATUITO DOS OPERÁRIOS EM 18 E 25 DE MAIO DE 1862 (BROCHURA IN-8o)

Se usaram inutilmente os chifres do diabo para demolir o Espiritismo, eis um reforço que chega aos adversários: é o Sr. Dr. Trousseau, que acaba de dar o golpe de misericórdia nos Espíritos. Infelizmente, se o Sr. Trousseau não acredita nos Espíritos, também não crê no diabo. Mas pouco importa o auxiliar, contanto que bata o inimigo. Sem dúvida esse novo campeão vai dizer a respeito a última palavra da Ciência: pelo menos é o que se espera de um homem tão altamente colocado por seu saber. Atacando ideias novas, não quererá deixar um argumento sem réplica; não desejará ser acusado de falar de coisas que não conhece; sem dúvida vai tomar um a um todos os fenômenos, investigá-los, analisá-los, comentá-los, explicá-los, demoli-los, demonstrando por a mais b que são ilusões. Ah! espíritas! Mantenhamo-nos firmes! Se o Sr. Trousseau não fosse um sábio ou, pelo menos, um semi-sábio, bem que seria capaz de esquecer alguma coisa. Mas um sábio íntegro não quererá deixar a tarefa pela metade. Em geral hábil, desejará a vitória completa. Escutemos e tremamos!

Depois de uma tirada contra as pessoas que se deixam levar por anúncios, assim se exprime:

“Na verdade, as pessoas capazes de julgar seja o que for não são as mais numerosas. O Sr. de Sartines queria mandar para a prisão um charlatão que vendia suas drogas na Ponte-Nova e fazia belos negócios. Mandou chamá-lo e lhe perguntou: Velhaco, como fazes para atrair tanta gente e ganhar tanto dinheiro? O homem respondeu: Senhor, quantas pessoas pensais que passam diariamente pela Ponte-Nova? — Não sei. — Vou dizer-vos: mais ou menos dez mil. Neste número, quantas pensais que sejam inteligentes? Oh! oh! talvez cem, disse o Sr. de Sartines. — É muito, mas vo-las deixo e fico com as nove mil e novecentas.

“O charlatão era muito modesto e o Sr. de Sartines muito severo para com a população parisiense. Com toda certeza mais de cem pessoas inteligentes atravessam a Ponte-Nova e os mais inteligentes talvez parem diante da banca do negociante de drogas com tanta confiança quanto a multidão. Porque, senhores, direi que as classes elevadas sofrem a influência do charlatanismo.

“Entre as nossas sociedades científicas citarei o Instituto. Citarei a seção da Academia de Ciências que encerra, com certeza, a elite dos cientistas de nosso país. Desses sábios cerca de vinte se dirigem aos charlatães.”

Prova evidente da grande confiança que têm no saber de seus confrades, pois que a estes preferem os charlatães.

“É verdade que são pessoas de grande mérito. Somente porque são matemáticos, químicos ou naturalistas eminentes, concluem que são muito bons médicos e, por isso, supõem-se perfeitamente capazes de julgar as coisas que ignoram completamente.”

Se isto prova em favor de sua ciência, não prova muito em favor de sua modéstia e de seu julgamento. Lançaram muitos dardos satíricos contra os sábios do Instituto. Não conhecemos nenhum mais mordaz. É provável, pois, que o professor, juntando o exemplo ao preceito, não fale senão do que sabe.

“Conosco por vezes temos essa modéstia: não passando de médicos, quando nos propõem grandes teoremas de matemática ou de mecânica, confessamos nada saber e reconhecemos a nossa incompetência. Mas os verdadeiros sábios jamais declinam de sua competência, sobretudo no que diz respeito à Medicina.”

Já que os médicos declinam de sua competência naquilo que não sabem, temos uma garantia de que o Sr. Trousseau, sobretudo numa lição pública, não tratará de questões ligadas à psicologia, desde que não seja profundamente versado nessas matérias. Sem dúvida esses conhecimentos lhe fornecerão argumentos irresistíveis em apoio de seu julgamento.

“Os curandeiros — é triste dizer — sempre tiveram muito acesso junto às pessoas inteligentes. Tive a suprema honra de ser amigo íntimo do ilustre Béranger.

“Em 1848 padecia ele de uma pequena oftalmia, para a qual o Sr. Retonneau lhe havia aconselhado um colírio. A oftalmia foi curada; mas, como Béranger lia e trabalhava muito e como fosse um pouco dartroso, a doença recidivou. Então se dirigiu a um sacerdote polonês, que curava as moléstias dos olhos com um remédio secreto. Nessa época eu era presidente, na Faculdade, do júri encarregado do exame dos oficiais de saúde. Como o sacerdote polonês tinha contas a ajustar com a polícia, porque tinha cegado alguns doentes, quis pagá-las. Com esse objetivo foi procurar Béranger e lhe perguntou se, por sua influência, poderia ser reconhecido como oficial de saúde, a fim de estar em condições de tratar os olhos das pessoas e vazá-los à vontade.”

Desde que o Sr. Béranger tinha sido curado pelo Sr. Bretonneau, por que haveria de dirigir-se a um outro? É natural ter mais confiança naquele que nos curou, que tem mais experiência do nosso temperamento do que um estranho.

Com efeito, o diploma é um salvo-conduto que não só permite aos oficiais de saúde lesar gravemente os olhos dos pacientes, mas aos médicos matá-los sem remorso e sem responsabilidade. É sem dúvida por isso que os seus sábios confrades, como confessa o Sr. Trousseau, são tão levados a se dirigirem aos curandeiros e aos charlatães.

“Béranger procurou-me e me disse: ‘Meu amigo, prestai-me um grande favor. Tratai de fazer que habilitem esse pobre diabo. Ele só se ocupa de moléstias dos olhos e, embora os exames para oficiais de saúde compreendam todos os ramos da arte de curar, agi com indulgência e mansuetude. É um refugiado e, depois, ele me curou: eis a melhor razão.’ Eu lhe respondi: Mandai-me o vosso homem. O sacerdote polonês veio à minha casa. Sois recomendado, disse-lhe eu, por um homem a quem devo muitos favores; é o mais caro de meus amigos. Além disso, é Béranger, o que vale ainda mais. Dois de meus colegas, a quem falei, e eu, estamos decididos a fazer o que for possível; apenas os exames são públicos e não custa nada tapar um pouco os ouvidos. E acrescentei: Vamos, serei complacente; tomarei lições de anatomia e não vos será difícil saber tanta anatomia quanto eu. Interrogar-vos-ei sobre o olho.

“Nosso homem pareceu desconcertado. Continuei: Sabeis o que é o olho? — Muito bem. — Sabeis o que é a pálpebra? — Sim. — Tendes ideia do que é a córnea?... Ele hesitou. A pupila? — Ah! senhor, a pupila, conheço bem. — Sabeis o que é o cristalino, o humor vítreo, a retina? — Não, senhor; para que me serviria isto? Só me ocupo de doença de olhos. Digo-lhe: Isto serve para alguma coisa; e vos garanto que seria quase necessário suspeitar a existência de um cristalino, sobretudo se quiserdes, como algumas vezes o fazeis, segundo me parece, operar cataratas. — Eu não opero. — Mas se vos désseis ao capricho de extrair uma... Não havia saída. O infeliz queria exercer a arte do oculista sem a menor noção da anatomia do olho.”

Realmente é difícil mostrar-se menos exigente para dar a esse infeliz o direito de legalmente vazar os olhos dos doentes. No entanto, parece que ele não fazia operações — embora a tentação a isso o pudesse arrastar — e que apenas dispunha de um remédio para curar as oftalmias, cuja aplicação, absolutamente empírica, não requer conhecimentos especiais; isto não consiste exatamente em praticar o que se chama a arte do oculista. A nosso ver, era mais importante estarmos seguros de que o remédio nada contivesse de ofensivo; ele tinha a seu favor a presunção da cura do Sr. Béranger e, no interesse da Humanidade, poderia ser útil permitir-lhe o uso. Aquele homem podia ter os conhecimentos anatômicos exigidos e obter seu diploma, sem que isso tornasse bom o remédio, caso fosse mau. Todavia, graças ao diploma, teria podido receitá-lo com toda segurança, por mais perigoso que fosse. Jesus Cristo, que curava os cegos, os surdos, os mudos e os paralíticos, provavelmente não soubesse mais que aquele a respeito de anatomia. E o Sr. Trousseau incontestavelmente lhe teria recusado o direito de fazer milagres. Hoje, quantas multas não teria Jesus a pagar se não pudesse curar sem diploma!

Nada disto tem muito a ver com os Espíritos, mas são as premissas do argumento com que vai esmagar os seus partidários.

“Procurei Béranger e lhe contei a história. Béranger exclamou: Coitado do homem!...”

É provável que também dissesse, falando consigo mesmo: Entretanto me curou! — Longe de nós fazermos a apologia dos charlatães e das panaceias; queremos apenas dizer que pode haver remédios eficazes fora das fórmulas da farmacopeia; que os selvagens, que têm segredos infalíveis contra as picadas de serpentes, não conhecem a teoria da circulação do sangue, nem a diferença entre sangue venoso e sangue arterial. Gostaríamos de saber se o Sr. Trousseau, picado por uma cascavel ou por outro réptil peçonhento, recusaria os socorros daqueles, apenas porque não têm diploma.

No próximo artigo falaremos especialmente das diversas categorias de médiuns curadores que, parece, se têm multiplicado ultimamente.

“Eu lhe disse: ‘Meu caro Béranger, sou vosso médico há oito anos. Hoje vou cobrar os meus honorários. — Que honorários? — Far-me-eis uma canção e a dedicareis a mim, mas eu vou dar o refrão. — Ah! sim!... e o refrão? — Ah! como as pessoas ladinas são tolas! ’ — Combinamos que doravante não mais falaríamos do sacerdote polonês. Não é triste ver um homem como Béranger, a quem eu contava tais coisas, não compreender que seu protegido podia fazer muito mal e era absolutamente incapaz de obrar fosse o que fosse de útil pelas mais simples doenças dos olhos?”

Parece que Béranger não estava muito convencido da infalibilidade dos doutores diplomados e podia repetir o refrão: Ah! como as pessoas ladinas são tolas!

“Como vedes, senhores, as pessoas inteligentes são as primeiras que se deixam apanhar. Lembrai-vos do que se passava no fim do século passado. — Um curandeiro alemão emprega a eletricidade, ainda mal conhecida naquela época. Submete algumas mulheres delicadas à ação do fluido; ocorrem pequenos acidentes nervosos, que ele atribui a um fluido emanado de si próprio; estabelece uma teoria bizarra, na época chamada mesmerismo. Vem a Paris, instalando-se na Praça Vendôme, no centro da cidade, onde as pessoas mais ricas, pertencentes à aristocracia mais elevada da capital, vêm se postar em torno da cuba de Mesmer. Eu não saberia dizer quantas curas foram atribuídas a Mesmer, que, aliás, é o inventor e o importador, entre nós, desta maravilha que se chama sonambulismo, isto é, uma das mais vergonhosas chagas do empirismo.

“Que vos direi, com efeito, do sonambulismo? Moçoilas histéricas, geralmente perdidas, em conúbio com qualquer charlatão famélico, simulando o êxtase, a catalepsia, o sono e, com a mais ridícula segurança, exibindo mais inépcias do que se poderia imaginar, inépcias bem pagas, bem aceitas, acreditadas com uma fé mais robusta que os conselhos do clínico mais esclarecido.”

Para que serve a inteligência, se as pessoas inteligentes são as primeiras a se deixarem apanhar? Que é preciso para não se deixar apanhar? Ser sábio? — Não. — Ser membro do Instituto? — Não, já que um bom número deles tem a fraqueza de preferir os charlatães aos seus confrades. É o Sr. Trousseau quem no-lo diz. — Ser médico? — Também não, pois muitos também se dão ao absurdo do magnetismo. — Que é, então, necessário para ter bom-senso? — Ser o Sr. Trousseau.

Sem dúvida o Sr. Trousseau é livre para externar a sua opinião, para crer ou não no sonambulismo. Mas não será ultrapassar os limites da boa educação tratar todas as sonâmbulas como moçoilas perdidas, em conúbio com charlatães? Que nisto, como em tudo, haja abusos, é inevitável, dos quais a própria medicina oficial não está isenta. Sem dúvida há simulacros de sonambulismo, mas, pelo fato de haver falsos devotos, pode-se dizer que não haja verdadeira devoção? O Sr. Trousseau ignora que entre os sonâmbulos profissionais há mulheres casadas e muito respeitáveis; que o número das que não se põem em evidência é muito maior? Que as há nas famílias mais honradas e mais altamente colocadas? Que muitos médicos, devidamente diplomados, de um saber incontestável, são hoje campeões declarados do magnetismo, que empregam com sucesso numa porção de casos rebeldes à medicina tradicional? Não tentaremos fazer o Sr. Trousseau mudar de opinião, provando-lhe a existência do magnetismo e do sonambulismo, pois é provável que perderíamos nosso tempo. Aliás, não é esta a nossa intenção. Diremos, porém, que se a zombaria e o sarcasmo são armas pouco dignas da Ciência, é ainda mais indigno que ela arraste na lama uma ciência hoje espalhada no mundo inteiro, reconhecida e praticada pelos homens mais distintos e atirar sobre os que a professam os insultos mais grosseiros que se possam encontrar no vocabulário da injúria. Só podemos lamentar ouvir expressões de tal trivialidade, feitas para inspirar desgosto, descendo das cátedras do ensino.

Vós vos admirais que inépcias, como vos apraz chamar, sejam acreditadas com uma fé muito mais robusta que os conselhos do clínico mais esclarecido. A razão disto está na inumerável quantidade de erros cometidos pelos clínicos mais esclarecidos, dos quais citaremos dois exemplos.

Uma senhora de nosso conhecimento tinha um filho de quatro a cinco anos, acometido de um tumor no joelho, em consequência de uma queda. O mal se tornou tão grave que ela resolveu consultar uma celebridade médica, que opinou pela amputação do membro, julgada urgente e indispensável, para salva a vida da criança. A mãe era sonâmbula. Não podendo decidir quanto à operação, cujo resultado era duvidoso, resolveu tratar ela própria. Ao cabo de um mês a cura era completa. Um ano depois, com o filho já forte e sadio, ela foi ver o médico e lhe disse: “Eis o menino que, em vossa opinião, deveria morrer se não lhe cortassem a perna. — Que quereis? Respondeu ele, a Natureza tem recursos tão imprevistos!”

O outro caso é pessoal. Há cerca de dez anos fiquei quase cego, a ponto de não poder ler nem escrever e não reconhecer uma pessoa a quem desse a mão. Consultei as notabilidades da Ciência, entre outras o Dr. L..., professor de clínica para as moléstias dos olhos. Depois de um exame muito atento e consciencioso, declarou que eu sofria de uma amaurose e que devia resignar-me. Fui ver uma sonâmbula, que me disse que não era amaurose, mas uma apoplexia nos olhos, que poderia degenerar em amaurose se não fosse tratada adequadamente. Declarou responder pela cura. Em quinze dias, disse ela, experimentareis uma discreta melhora; em um mês começareis a ver e, dentro de dois ou três meses, estareis curado. Tudo se passou como ela previra e hoje minha visão está completamente restabelecida.

O. Sr. Trousseau continua:

“Ainda hoje tendes um americano que evoca os Espíritos, fazendo falar Sócrates, Voltaire, Rousseau, Jesus-Cristo e quem se queira! Em que lugares? Nas espeluncas de alguns bêbados?”

A escolha de expressões do professor é realmente notável.

“Não; ele os faz falar nos palácios, no Senado, nos mais aristocráticos salões de Paris. Há pessoas honradas que dizem: ‘Mas eu vi; recebi um tapa de uma mão invisível; a mesa elevou-se até o teto!’ Eles vo-lo dizem e repetem. E durante sete ou oito meses os Espíritos batedores maravilharam os homens, espantaram as mulheres e lhes provocaram ataques nervosos. Esta estupidez tem nome; esta estupidez que o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar foi aceita por gente esclarecida e, pior ainda, pelas classes elevadas da sociedade de Paris.”

O Sr. Trousseau poderia acrescentar: e do mundo inteiro. Ele parece ignorar que essa estupidez sem nome não durou sete ou oito meses, mas dura sempre e se propaga cada vez mais por toda parte; que a evocação dos Espíritos não é privilégio de um americano, mas de milhares de pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e de todos os países. Em boa lógica, até o presente a adesão das massas e das pessoas esclarecidas tinha sido considerada como de certo valor. Parece que já não é o caso e que a única opinião sensata é a do Sr. Trousseau e dos que pensam como ele. Quanto aos outros, seja qual for a sua categoria, a sua posição social, a sua instrução, morem em palácios e tenham assento nas primeiras posições do Estado, estão abaixo do mais grosseiro dos homens, visto que o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar suas ideias. Quando uma opinião se encontra tão espalhada quanto a do Espiritismo, quando, em vez de diminuir, progride com uma rapidez que beira o prodígio, quando é aceita pela elite da sociedade, se for falsa e perigosa é necessário opor-lhe um dique, combatê-la com provas contrárias. Ora, parece que o Sr. Trousseau não tem outro argumento a opor senão este:

“Ah! como as pessoas ladinas são tolas!”


Necrologia

Morte do Bispo de Barcelona

Escrevem-nos da Espanha que o bispo de Barcelona, aquele que mandou queimar trezentos volumes espíritas pela mão do carrasco, em 9 de outubro de 1861[1], morreu no dia 9 deste mesmo mês e foi enterrado com a pompa costumeira devida aos chefes da Igreja. Apenas nove meses são decorridos e já esse auto-de-fé produziu os resultados pressentidos por todos, isto é, acelerou a propagação do Espiritismo naquele país. Com efeito, a repercussão daquele ato, inqualificável neste século, chamou para esta doutrina a atenção de uma multidão de pessoas que dela jamais tinham ouvido falar e a imprensa, fosse qual fosse a sua opinião, não poderia ficar muda. O aparato exibido em tal circunstância era capaz de excitar a curiosidade pela atração do fruto proibido e, sobretudo, pela própria importância dada à coisa, porquanto cada um teria raciocinado que não se procede assim com uma ninharia ou com um sonho vão. Muito naturalmente o pensamento retrocedeu alguns séculos e se tenham lembrado de que, outrora, nesse mesmo país, não apenas se queimavam livros, mas seres humanos. Que poderia, pois, conter tais livros para se tornarem dignos das solenidades da fogueira? Foi o que quiseram saber; e na 39 Vide, para detalhes, a Revista Espírita dos meses de novembro e dezembro de 1861. Espanha o resultado foi o mesmo que em toda parte onde o Espiritismo foi atacado; sem os ataques zombeteiros ou sérios de que foi objeto, contaria dez vezes menos partidários do que tem; quanto mais violenta e repetida a crítica, mais ele se pôs em evidência e se desenvolveu; ataques inofensivos teriam passado despercebidos, ao passo que o brilho do raio desperta os mais entorpecidos; querem ver o que se passa, e é tudo quanto pedimos, convictos antecipadamente do resultado do exame. Isto é um fato positivo, pois cada vez que, numa localidade, o anátema desceu sobre ele do alto do púlpito, temos certeza de ver aumentar o número dos nossos assinantes ou estes surgirem se não os houvesse antes. A Espanha não podia escapar a essa consequência; assim, não há um espírita que não se tenha regozijado ao tomar conhecimento do auto-de-fé de Barcelona, seguido pouco tempo depois pelo de Alicante; e mais de um adversário deplorou um ato do qual a religião nada tinha a ganhar. Diariamente temos a prova irrecusável da marcha progressiva do Espiritismo nas classes mais esclarecidas daquele país, onde conta zelosos e fervorosos adeptos.

Um dos nossos correspondentes da Espanha, anunciando a morte do bispo de Barcelona, aconselha-nos a evocá-lo. Dispúnhamos a fazê-lo e, em consequência, havíamos preparado algumas perguntas, quando ele se manifestou espontaneamente a um dos nossos médiuns, respondendo por antecipação a todas as perguntas que lhe queríamos fazer e antes mesmo que elas fossem verbalizadas. Sua comunicação, de caráter absolutamente imprevisto, continha, entre outras, a seguinte passagem:

..................

“Auxiliado por vosso chefe espiritual pude vir ensinar-vos com o meu exemplo e vos dizer: Não repilais nenhuma das ideias anunciadas, porque um dia, um dia que durará e pesará como um século, essas ideias amontoadas clamarão como a voz do Anjo: Caim, que fizestes de teu irmão? Que fizestes de nosso poder, que devia consolar e elevar a Humanidade? O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o labor intelectual, que a sua preguiça e o seu orgulho o levaram a evitar; e essa voz terrível me disse: Queimaste as ideias e as ideias te queimarão!

..................................................................................................

“Orai por mim. Orai, porque é agradável a Deus a prece que lhe é dirigida pelo perseguido em benefício do perseguidor.

“Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente.”

Este contraste entre as palavras do Espírito e as do homem nada tem que deva surpreender. Todos os dias vemos criaturas que, depois da morte, pensam de modo diferente do que pensavam durante a vida, uma vez caída a venda das ilusões, o que é uma prova incontestável de superioridade; somente os Espíritos inferiores e vulgares persistem nos erros e nos preconceitos da vida terrestre. Quando vivo, o bispo de Barcelona via o Espiritismo através de um prisma particular, que lhe desnaturava as cores ou, melhor dizendo, não o conhecia. Agora o vê sob a sua verdadeira luz e lhe sonda as profundezas. Caído o véu, já não é para ele uma simples opinião, uma teoria efêmera, que se pode sufocar nas cinzas: é um fato; é a revelação de uma lei da Natureza, lei irresistível como a força da gravitação, lei que deve, pela força das coisas, ser aceita por todos, como tudo que é natural. Eis o que agora compreende e que o fez dizer que “as ideias que quis queimar o queimarão.” Dito de outra forma, será tragado pelos preconceitos que o tinham levado a condená-las.

Não o podemos censurar, pelo triplo motivo de que o verdadeiro espírita a ninguém condena, não guarda rancor, esquece as ofensas e, a exemplo do Cristo, perdoa aos seus inimigos; em segundo lugar, longe de nos prejudicar, ele nos foi útil; enfim, porque reclama de nós a prece do perseguido para o perseguidor, como a mais agradável a Deus, pensamento todo caridade, digno da humildade cristã, revelada pelas últimas palavras: “Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente.” Bela imagem das dignidades terrenas deixadas à beira do túmulo, para se apresentar a Deus tal que se é, sem os aparatos impostos aos homens.

Espíritas, perdoemos-lhe o mal que nos quis fazer, como quereríamos que as nossas ofensas nos fossem perdoadas e oremos por ele no aniversário do auto-de-fé de 9 de outubro de 1861.

Morte da Sra. Home

Lemos em o Nord, de 15 de julho de 1862:

“O famoso Sr. Dunglas Home passou por Paris nestes dias. Pouca gente o viu. Acaba de perder sua mulher, irmã da condessa de Kouchelew-Bezborodko. Por mais cruel que seja essa perda, disse ele que lhe é menos sensível do que para outro homem, não porque a amasse menos, mas porque a morte não o separa daquela que na Terra usava seu nome. Eles se veem e conversam com tanta facilidade como quando habitavam juntos o mesmo planeta.

“O Sr. Home é católico romano e sua esposa, antes de exalar o último suspiro, querendo unir-se ao marido numa última comunhão espiritual, abjurou a religião grega diante do bispo de Périgueux. Isto se passou no castelo de Laroche, residência do conde de Kouchelew.”

O folhetim — pois é num folhetim, ao lado do Pré-Catelan, que se encontra esta nota — é assinado Nemo, um dos críticos que não pouparam zombarias aos espíritas e às suas pretensões de conversar com os mortos. Senhor, não é engraçado acreditar que aqueles a quem amamos não estão perdidos para sempre e que os reveremos? Não é ridículo, muito tolo e supersticioso acreditar que estejam ao nosso lado, que nos vejam e nos escutem quando não os vemos e que possam comunicar-se conosco? O Sr. Home e sua esposa se veem, conversam tão facilmente como se estivessem juntos. Que absurdo! E dizer que em pleno século dezenove, o século das luzes, haja pessoas bastante crédulas para acreditarem em semelhantes frivolidades, dignas dos contos de Perrault! Perguntai a razão ao Sr. Trousseau. O nada, falai-me disto! eis o que é lógico! Temos mais liberdade de fazer o que queremos durante a vida. Pelo menos não tememos o futuro. Sim; mas onde está a compensação para o infeliz? — Nemo! Singular pseudônimo para a circunstância!


Sociedade Espírita de Constantina

Nota — Falamos da Sociedade que se formou em Constantina, sob o título de Sociedade Africana de Estudos Espíritas, sob os auspícios da Sociedade de Paris. Transcrevemos, a seguir, a comunicação por ela obtida quando de sua instalação:

“Embora os trabalhos até hoje feitos por vossa sociedade não sejam imunes à crítica, não nos queremos deter sobre essas considerações. Levamos mais em conta a intenção que os fatos.

“Antes de tudo compreendei a grandeza da tarefa que empreendestes e fazei o possível para a levardes a bom termo. Só assim podereis esperar ser assistidos pelos Espíritos superiores.

“Entremos agora no assunto e vejamos se não cometestes algumas faltas. Para começar, laborais em grande equívoco em vos servirdes de todos os vossos médiuns para as comunicações particulares. Que é a evocação geral senão o apelo aos Espíritos bons para se comunicarem convosco? Pois bem! que fazeis? Em vez de esperar, depois da evocação geral e de deixar aos Espíritos bons o tempo de se comunicarem por tal ou qual médium, conforme as simpatias que possam existir, passais imediatamente às evocações particulares. Sabei que este não é um bom meio de obter comunicações espontâneas, como estas são recebidas nas outras sociedades. Assim, esperai um momento e recolhei as comunicações gerais, que sempre vos ensinarão algumas verdades. Em seguida podeis passar às evocações particulares; mas, então, para cada uma, não vos sirvais senão de um só médium. Então não sabeis que só os Espíritos realmente superiores estão em condições de se manifestarem por vários médiuns ao mesmo tempo? Fazei com que somente um médium sirva a cada evocação particular e, se tiverdes dúvidas quanto à veracidade das respostas obtidas, procedei a uma nova evocação, num outro dia, empregando outro médium.

“Estais apenas no começo da ciência espírita, e ainda não podeis colher todos os frutos que ela concede aos seus adeptos experimentados. Mas não desanimeis, porque vos serão levados em conta os esforços para vos melhorardes e para propagar a verdade imutável de Deus. Avante, pois, meus amigos; e que o ridículo que encontrareis mais de uma vez no vosso caminho não vos faça desviar da linha de vossas crenças espíritas.”

Jacques

Tendo os espíritas de Constantina nos pedido que solicitássemos a Santo Agostinho se dignasse aceitar o patrocínio espiritual de sua sociedade, este último nos deu a respeito a seguinte comunicação:

(Sociedade de Paris, 27 de junho de 1862 — Médium: Sr. E. Vézy)

Dirigindo-se primeiramente aos membros da Sociedade de Paris, diz ele:

“Bem fizeram os nossos filhos da Nova França ligando-se a vós. Fizeram bem em não se separarem do tronco. Permanecei sempre unidos e os Espíritos bons estarão convosco.” Em seguida, dirige-se aos espíritas de Constantina:

“Amigos, sinto-me feliz por me haverdes escolhido para vosso guia espiritual. Ligado à Terra pela grande missão que deve regenerá-la, estou satisfeito por poder encorajar mais especialmente um grupo de pensadores que se ocupam com a grande ideia e por presidir aos seus trabalhos. Ponde, pois, o meu nome à frente dos vossos, e os Espíritos da minha ordem virão afastar os Espíritos maus que sempre rondam à porta das assembleias onde se discutem as leis da moral e do progresso. Que a fraternidade e a concórdia reinem sempre entre vós. Lembrai-vos de que todos os homens são irmãos e que o grande objetivo do Espiritismo é reuni-los um dia no mesmo lar e fazer que se sentem à mesa do Pai comum: Deus.

“Como é bela essa missão! Assim, com que alegria vimos a vós para vos fazer compreender os decretos divinos; para vos revelar as maravilhas do além-túmulo! Mas vós, que já sois iniciados nessas sublimes verdades, espalhai a semente em vosso derredor: bela será a vossa recompensa e gozareis na Terra as suas primícias. Que alegria! Marchai sempre na via do ensino, do amor e da caridade!

“Pronunciai meu nome com confiança nas horas de temor e de dúvida e logo os vossos corações serão aliviados da amargura e do fel que podem conter. Não esqueçais que estarei em todos os pontos da Terra onde ouvirdes falar do apostolado evangélico. Eu vos alojarei a todos na minha alma, para um dia vos depositar numa alma mais vasta e mais forte. Estarei sempre convosco, como estou aqui; minha voz terá a doçura que reconheceis, porque não gosto das entoações berrantes nem dos sons agudos. Ouvir-me-eis repetir incessantemente: Amai-vos, amai-vos! Poupai-me de me armar do açoite com o qual se deve castigar o mau; por vezes isto é necessário, mas jamais procureis vos incluir nesse número! Tempo virá em que a Humanidade marchará dócil à voz do bom pastor. Sois vós, filhos, que deveis ajudar-nos nessa regeneração e que deveis ouvir soar a primeira hora; porque eis o rebanho que se reúne e o pastor que chega.

Observação — O Espírito alude a uma revelação de grande importância, feita pela primeira vez num grupo espírita de uma pequena cidade da África, nos confins do deserto, por um médium completamente analfabeto. Essa revelação, que nos foi transmitida de imediato, chegou quase simultaneamente de diversos pontos da França e do estrangeiro. Desde então numerosos documentos muito característicos e mais circunstanciados vieram dar-lhe uma espécie de consagração. Em momento oportuno trataremos desse assunto.

“Trabalhai, pois, e tende coragem. Nas vossas assembleias discuti friamente, sem exaltação; pedi a nossa opinião, os nossos conselhos, a fim de não cairdes em erro, em heresia. Sobretudo não formuleis artigos de fé, nem dogmas. Lembrai-vos de que a religião de Deus é a religião do coração; que ela não tem por base senão um princípio: a caridade; por desenvolvimento, o amor à Humanidade.

“Jamais corteis o galho do tronco. A árvore é muito mais verde com todos os seus ramos e estes morrem quando separados do caule que lhes deu origem. Lembrai-vos de que o Cristo julgou necessário que a sua Igreja se assentasse sobre a própria pedra, a fim de ser sólida, assim como ordena não tenha o Espiritismo senão uma raiz, de modo a penetrar com mais força em toda a superfície do solo, por mais árida e ressacada que seja.

“Um Espírito encarnado foi escolhido para vos dirigir, para vos conduzir. Submetei-vos com respeito, não às suas leis, pois ele não ordena, mas aos seus desejos. Por essa submissão provareis aos vossos inimigos que tendes convosco o necessário espírito de disciplina para fazerdes parte da nova cruzada contra o erro e a superstição, o necessário espírito de amor e de obediência para marchardes contra a barbárie. Envolvei-vos, pois, na bandeira da civilização moderna: o Espiritismo sob um só chefe e derrubareis essas ideias pavorosas de frontes chifrudas e de grandes caudas, que é preciso destruir.

“Não direi o nome desse chefe; vós o conheceis. Está na frente; marcha sem temor às dentadas venenosas das serpentes e dos répteis da inveja e do ciúme que o cercam; ficará de pé, porque ungimos seu corpo, para que seja sempre sólido e robusto. Segui-o, então. Mas, em vossa marcha as tempestades rebentarão sobre as vossas cabeças e alguns de vós não encontrarão refúgio para se abrigarem da tormenta! Que estes se resignem com coragem, como os mártires cristãos e pensem que a grande obra pela qual tiverem sofrido é a vida, é o despertar das nações adormecidas e que por isso serão um dia largamente recompensados no reino do Pai.”

Santo Agostinho

Extraímos a passagem que se segue de uma carta que nos foi enviada recentemente pelo presidente da Sociedade de Constantina:

“Estamos causando preocupação entre os habitantes europeus e mesmo indígenas. Vários grupos se formaram à nossa volta e por toda parte se ocupam do Espiritismo. A criação de nossa Sociedade terá tido como resultado chamar a atenção para esta nova ciência. Contudo, não deixamos de experimentar algum embaraço, mas somos sustentados pelos Espíritos, que nos exortam à paciência e dizem que são provas das quais a Sociedade sairá vitoriosa e, de certo modo, mais fortalecida. Também temos a oposição externa: de um lado o clero e, do outro, a gente das mesquitas, afirmando, aos berros, que nos encontramos sob a inspiração de Satã e que nossas comunicações procedem do inferno. Temos ainda contra nós os boêmios, aqueles que vivem do sensualismo, sem se preocuparem com a sua alma; materialistas ou cépticos que repelem tudo quanto se refira a essa outra vida, cuja existência não querem admitir. Fecham os olhos e os ouvidos, chamam-nos de charlatães e procuram asfixiar-nos pela zombaria e pelo ridículo. Mas progredimos em meio a todos os espinhos; não nos faltam médiuns e diariamente surgem outros e muito interessantes. Temos comunicações de diversas naturezas e incidentes imprevistos para convencer os mais rebeldes, por exemplo, uma resposta em italiano por uma pessoa que não conhece essa língua; respostas a perguntas sobre a formação do globo, por uma senhora médium que nunca estudou geologia; um outro grupo recebeu comunicações poéticas cheias de encanto, etc.”

Observação — Como se vê, o diabo também é acusado pelos sacerdotes muçulmanos. É de notar que os padres de todos os cultos lhe dão tanto poder que em verdade não se sabe a parte que reservam a Deus, nem como se deve entender a sua onipotência. Se esta é absoluta, o diabo não pode agir sem a sua vontade; se é apenas parcial, Deus não é Deus. Felizmente a gente tem mais fé na sua bondade infinita do que na sua vingança infinita e o diabo ficou muito desacreditado depois que o obrigaram a representar a comédia em todos os teatros, desde a farsa até a ópera. Assim, seu nome quase não produz mais efeito sobre a população do que as imagens horrorosas que os chineses colocavam nas muralhas para servirem de espantalho aos bárbaros europeus. O progresso incessante do Espiritismo prova que esse meio é ineficaz. Será bom procurar outro.


Carta do Sr. Jean Reynaud ao Journal des Débats

A carta seguinte foi publicada no Journal des Débats, em 6 de julho de 1862.

“Ao Sr. Diretor-Gerente,

Neuilly, 2 de julho de 1862

“Senhor,

“Permiti-me responder a duas acusações, assacadas contra mim no vosso jornal de hoje, pelo Sr. Franck, que me ataca como fomentador do panteísmo e da metempsicose. Não só repilo tais erros com todas as minhas forças; as próprias pessoas que me honraram com a leitura de meu livro Terra e Céu puderam ver que as acusações são absolutamente contrárias a todos os sentimentos que estão expressos no livro.

“Quanto ao panteísmo, limito-me a dizer que o princípio da personalidade de Deus é o ponto de partida de todas as minhas ideias e que, sem me inquietar com o que pensam os judeus, concordo com os cristãos, segundo os quais o dogma da Trindade resume toda a teologia sobre o assunto. Assim, à página 226 do livro em questão, enuncio que a criação procede da Trindade inteira; melhor ainda, cito textualmente Santo Agostinho, sob cuja autoridade me coloco, e acrescento: ‘Se, afastando-me da Idade Média, no que respeita à ancianidade do mundo, corresse o mais leve risco de escorregar no abismo dos que confundem Deus e o Universo num caráter comum de eternidade, eu me deteria. Mas posso ter a menor inquietação a respeito?’

“Quanto à segunda acusação, sem também me inquietar se penso ou não como o Sr. Salvador, direi simplesmente que, se se entende por metempsicose, no sentido vulgar, a doutrina que pretende que o homem, após a morte, esteja sujeito a passar pelo corpo de animais, eu repilo tal doutrina, como filha do panteísmo, tanto como o próprio panteísmo. Creio que o nosso destino futuro se fundamenta essencialmente na permanência de nossa personalidade. O sentimento dessa permanência pode eclipsar-se momentaneamente, mas jamais se perde e sua plena posse é o primeiro caráter da vida bem-aventurada a que todos os homens, no curso mais ou menos prolongado de suas provas, são chamados continuamente. A personalidade do homem decorre, muito naturalmente, da de Deus. Na página 258 do livro em causa está dito: ‘Como não teria Deus criado à sua imagem o que lhe aprouve criar na plenitude de seu amor?’ E ainda sobre este ponto refiro-me a Santo Agostinho, cujas belas palavras cito textualmente: ‘Desde, pois, que fomos criados à imagem do nosso Criador, contemplemos em nós essa imagem e, como o filho pródigo do Evangelho, retornemos a Ele, depois de dEle nos termos afastado pelos nossos pecados.’

“Se o livro Terra e Céu se afasta das opiniões aceitas pela Igreja, não é pelas teses substanciais, como quer fazer crer o Sr. Franck, mas apenas, se assim posso falar, por uma questão de tempo. Ali se ensina que a duração da Criação é proporcional à sua extensão, de sorte que a imensidade reina igualmente nos dois sentidos; é ensinado também que a nossa vida atual, em vez de representar a totalidade das provas pelas quais nos capacitamos para participar da plenitude da vida bem-aventurada, é apenas um dos termos da série, mais ou menos longa, de existências análogas. Eis, senhor, o que pôde lograr o Sr. Franck, cuja crítica me pareceu tanto mais temível quanto é conhecida de todos a perfeita lealdade de seu caráter.

“Aceitai, etc.

Jean Reynaud. ”

Vê-se que não fomos o único nem o primeiro a proclamar a doutrina da pluralidade das existências, também chamada de reencarnação. A obra Terra e Céu, de Jean Reynaud, foi publicada antes de O Livro dos Espíritos. Pode-se ver o mesmo princípio, exposto em termos explícitos, no encantador opúsculo do Sr. Louis Jourdan, intitulado: As Súplicas de Ludovico, cuja primeira edição é de 1849, da Livraria Nova, Boulevard des Italiens. É que a ideia da reencarnação não é nova; é tão velha quanto o mundo e é encontrada em muitos autores antigos e modernos. Aos que objetam que ela é contrária aos dogmas da Igreja, respondemos que, de duas uma: ou a reencarnação existe, ou não existe. Não há alternativa. Se existe, é uma lei da Natureza. Ora, se um dogma é contrário a uma lei da Natureza, trata-se de saber quem tem razão: se o dogma ou a lei. Quando a Igreja anatematizou e excomungou como culpados de heresia os que acreditavam no movimento da Terra, não impediu que a Terra girasse e que todo o mundo hoje creia nisto. Sucederá o mesmo com a reencarnação. Não é, pois, uma questão de opinião, mas uma questão de fato. Se o fato existe, tudo quanto poderão dizer ou fazer não impedirá a sua existência e, mais cedo ou mais tarde, os mais recalcitrantes deverão aceitá-lo. Deus não consulta as suas conveniências para regular a ordem das coisas e o futuro não tardará a provar quem tem razão.


Os Pandus e os Kurus A Reencarnação na Antiguidade

Um dos nossos assinantes nos escreve de Nantes:

“Lendo um livro que trata de algumas obras em sânscrito, encontrei, numa passagem de um poema chamado Maha-Barata, uma exposição da crença daqueles tempos remotos. Grande foi a minha admiração ao encontrar aí a reencarnação, doutrina que, na época, parece ter sido bem compreendida. Eis o fato que levou o Deus Krishna a explicar ao chefe dos Pandus a teoria dos brâmanes.

“Tendo estourado a guerra civil entre os descendentes de Pandu, legítimos herdeiros do trono e os descendentes de Kuru, que o usurparam, vêm os Pandus, à frente de um exército comandado pelo herói Arjuna, atacar os usurpadores. A batalha foi longa e a vitória era ainda incerta; um armistício permitiu aos dois exércitos retemperar suas forças; de repente soaram as trombetas e os dois contendores puseram-se em marcha para o combate. Cavalos brancos puxam o carro de Arjuna, junto ao qual se mantém Krishna. De repente o herói pára no meio do espaço que separa os dois exércitos e os abarca com o olhar: ‘Irmãos contra irmãos, diz ele; parentes contra parentes, prestes a se estrangularem sobre os cadáveres de seus irmãos!’ É tomado de profunda melancolia e de súbita dor.

“Krishna! exclama ele, eis os nossos parentes armados, de pé, dispostos a se estrangularem. Vê! meus membros tremem, meu rosto empalidece, meu sangue gela; um frio mortal circula-me nas veias e meus cabelos se eriçam de horror. O arco fiel cai-me da mão, incapaz de o sustentar; vacilo; não posso avançar nem recuar e minha alma, embriagada de dor, parece querer abandonar-me. Deus dos cabelos louros, ah!, dize-me, serei feliz quando tiver assassinado todos os meus? Que significarão a vitória, o império, a vida, quando aqueles para os quais o quero obter e conservar tiverem perecido no combate? Ó conquistador celeste, quando o mundo tríplice fosse o preço de sua morte, eu não os quereria degolar por este globo miserável. Não, não o quero, embora eles se preparem para matar-me impiedosamente.

“— Esses cuja morte choras, respondeu o deus, não merecem que os chores; quer vivam, quer morram, o sábio não tem lágrimas para a vida nem para a morte. O tempo em que eu não existia, em que tu não existias, em que esses guerreiros não existiam, jamais existiu e jamais virá a hora que anunciará nossa morte. Introduzidas em nossos corpos, a alma atravessa a juventude, a idade madura, a decrepitude e, passando a um novo corpo, ali recomeça sua jornada. Indestrutível e eterno, um deus desdobra de suas mãos o Universo onde estamos. Quem aniquilará a alma que ele criou? quem, pois, destruirá a obra do Indestrutível? O corpo, envoltório frágil, altera-se, corrompe-se e morre; mas a alma, a alma eterna que não podemos conceber, jamais perece. Ao combate, Arjuna! Avança os teus corcéis no combate; tu não destróis a alma; a alma não será morta; jamais nasce, jamais morre, ela não conhece presente, passado ou futuro; é antiga, eterna, sempre virgem, sempre jovem, imutável, inalterável. O que significa cair no combate, degolar os inimigos, senão deixar uma vestimenta ou tirar a vestimenta de alguém? Vai! nada temas; atira sem escrúpulo uma roupa usada; vê sem terror os teus inimigos e os teus irmãos deixarem os corpos perecíveis e suas almas revestirem formas novas. A alma é uma coisa que o gládio não penetra, que o fogo não pode consumir, que as águas não deterioram, que o vento sul não resseca. Pára, pois, de gemer.”

Observação — Com efeito, a ideia da reencarnação está muito bem definida nesta passagem, como aliás, todas as crenças espíritas o estavam na Antigüidade. Só faltava um princípio: o da caridade. Ao Cristo estava reservado proclamar esta suprema lei, fonte de todas as felicidades terrestres e celestes.


O Planeta Vênus

(Ditado Espontâneo — Médium: Sr. Costel)

O planeta Vênus é o ponto intermediário entre Mercúrio e Júpiter. Seus habitantes têm a mesma conformação física que a vossa; a maior ou menor beleza e idealidade nas formas é a única diferença entre os seres criados. A sutileza do ar, em Vênus, comparável à das altas montanhas, torna-o impróprio aos vossos pulmões; as doenças aí são ignoradas. Seus habitantes só se alimentam de frutas e de laticínios; desconhecem o bárbaro costume de comerem cadáveres de animais, ferocidade que não existe senão nos planetas inferiores. Em consequência, as grosseiras necessidades do corpo são aniquiladas e o amor se adorna de todas as paixões e de todas as perfeições apenas sonhadas na Terra.

Como na aurora, em que as formas se revestem indecisas e envoltas no vapor da manhã, a perfeição da alma, perto de ser completa, tem a ignorância e os desejos da infância feliz. A própria Natureza reveste a graça da felicidade velada; suas formas delicadas e arredondadas não têm a violência e a aspereza dos sítios terrenos; o mar, profundo e calmo, ignora a tempestade; as árvores jamais se curvam sob a ação da tempestade e o inverno não as despoja de sua verdura; nada é ruidoso; tudo sorri, tudo é suave. Os costumes, marcados de quietude e ternura, não necessitam de nenhuma repressão para se manterem puros e fortes.

A forma política reveste a expressão da família; cada tribo ou aglomeração de indivíduos tem seu chefe, eleito por classe de idade. A velhice aí é o apogeu da dignidade humana, porque aproxima do fim desejado. Isenta de doenças e de feiura, é calma e radiante, como uma bela tarde de outono.

A indústria terrena, aplicada à inquieta procura do bem-estar material, é simplificada e quase desaparece nas regiões superiores, onde não tem a mínima razão de ser. As artes sublimes a substituem e adquirem um desenvolvimento e uma perfeição que os vossos sentidos grosseiros não podem imaginar.

As vestimentas são uniformes; grandes túnicas brancas envolvem o corpo com pregas harmoniosas, sem o desnaturarem. Tudo é fácil a esses seres que só desejam a Deus e que, despojados dos interesses grosseiros, vivem simples e quase luminosos.

Georges

(Perguntas sobre o ditado precedente. Sociedade de Paris, 27 de junho de 1862 — Médium: Sr. Costel)

1. Por vosso médium predileto fizestes uma descrição do planeta Vênus e estamos satisfeitos em constatar que concorda com o que já nos foi dito, embora com menor precisão. Rogaríamos que vos dignásseis completá-la, respondendo a algumas perguntas. Dizei, inicialmente, como tendes conhecimento desse mundo.

Resp. — Sou errante, mas inspirado por Espíritos superiores. Fui enviado em missão a Vênus.

2. Os habitantes da Terra podem lá encarnar diretamente, ao saírem daqui?

Resp. — Deixando a Terra os seres mais adiantados passam por uma erraticidade mais ou menos prolongada, que os despoja dos laços carnais, imperfeitamente rotos pela morte.

Observação — A questão não era saber se os habitantes da Terra podem lá se encarnar imediatamente depois da morte, mas diretamente, isto é, sem passar por mundos intermediários. Ele respondeu que isso é possível aos mais adiantados.

3. O estado de adiantamento dos habitantes de Vênus permite se lembrem de sua passagem em mundos inferiores e estabelecerem uma comparação entre as duas situações?

Resp. — Os homens olham a retaguarda com os olhos do pensamento, que num átimo reconstitui o passado extinto. Assim, o Espírito adiantado vê com a mesma rapidez com que se move, rapidez mais fulminante que a eletricidade, bela descoberta que se liga estreitamente à revelação do Espiritismo. Ambos encerram em si o progresso material e intelectual.

Observação — Para estabelecer uma comparação não é necessário saber a posição pessoal que se ocupa; basta conhecer o estado material e moral dos mundos inferiores pelos quais se passou para lhes notar a diferença. Conforme o que nos dizem do planeta Marte, devemos felicitar-nos por não mais lá estar; e sem sair da Terra, basta considerar os povos bárbaros e ferozes e saber que tivemos de passar por esses estados para nos sentirmos mais felizes. Sobre os outros mundos só dispomos de informações hipotéticas; mas é possível que nos mais adiantados que o nosso esse conhecimento tenha um grau de certeza que não nos é dado.

4. Aí a duração da vida, proporcionalmente, é mais longa ou mais curta que na Terra?

Resp. — Em Vênus a encarnação é infinitamente mais longa que a prova terrena. Despojada das violências humanas, relaxada e impregnada da vivificante influência que a penetra, a alma experimenta as asas que a transportam a planetas gloriosos como Júpiter e outros semelhantes.

Observação — Conforme já fizemos notar, a duração da vida corporal é proporcional ao adiantamento dos mundos. Em sua bondade, quis Deus abreviar as provas nos mundos inferiores. A esta razão junta-se uma causa física: quanto mais adiantados os mundos, tanto menos são os corpos consumidos pelo fogo das paixões e pelas doenças, que são a sua consequência.

5. O caráter sob o qual descreveis os habitantes de Vênus leva-nos a pensar que entre eles não haja guerras, querelas, ódios e inveja.

Resp. — Os homens só se tornam o que as palavras podem exprimir e seu pensamento limitado está privado do infinito. Assim, sempre atribuís, mesmo aos planetas superiores, as vossas paixões e os vossos motivos inferiores, venenos depositados em vossos seres pela grosseria do ponto de partida, dos quais só vos curais lentamente. As divisões, as contendas e as guerras são desconhecidas em Vênus, assim como entre vós desconheceis a antropofagia.

Observação — Com efeito, a Terra nos apresenta, pela inumerável variedade de seus estágios sociais, uma infinidade de tipos, que nos podem dar uma ideia dos mundos nos quais cada um desses tipos é o estado normal.

6. Qual o estado da religião nesse planeta?

Resp. — A religião é a adoração constante e ativa do Ser Supremo; adoração isenta de todo erro, isto é, de qualquer culto idólatra.

7. Os seus habitantes estão todos no mesmo nível ou, como sucede na Terra, uns são mais adiantados que outros? Neste caso, a quais habitantes da Terra correspondem os menos adiantados?

Resp. — A mesma desigualdade proporcional existe entre os habitantes de Vênus, como entre os seres terrestres. Os menos adiantados são as estrelas do mundo terreno, isto é, os vossos gênios e os vossos homens virtuosos.

8. Há senhores e servos?

Resp. — A servidão é o primeiro grau da iniciação. Os escravos da Antigüidade, como os da América moderna, são seres destinados a progredir num meio superior ao em que habitavam na sua última encarnação. Por toda parte os seres inferiores estão subordinados aos superiores; mas em Vênus essa subordinação moral não pode ser comparada à subordinação corporal, tal como existe na Terra. Os superiores não são senhores, mas pais dos inferiores. Em vez de os explorar, auxiliam-lhes o progresso.

9. Vênus chegou gradualmente ao estado em que se encontra? Passou anteriormente pelo estado em que se acha a Terra e mesmo Marte?

Resp. — Reina uma unidade admirável no conjunto da obra divina. Como os indivíduos, como tudo o que é criado, animais e plantas, os planetas progridem inevitavelmente. A vida, nas suas variadas expressões, é uma perpétua ascensão para o Criador, desenvolvendo, numa imensa espiral, os graus de sua eternidade.

10. Tivemos comunicações concordantes sobre Júpiter, Marte e Vênus. Por que sobre a Lua só tivemos coisas contraditórias e que não permitiram fixar uma opinião?

Resp. — Essa lacuna será preenchida e em breve tereis sobre a Lua revelações tão claras e precisas quanto as obtidas sobre os outros planetas. Se ainda não vos foram dadas, mais tarde compreendereis a razão.

Observação — Por certo esta descrição de Vênus não tem nenhum dos caracteres de autenticidade absoluta; assim, só a damos a título hipotético. Todavia, o que já foi dito sobre esse mundo lhe dá, pelo menos, um certo grau de probabilidade e, seja como for, não deixa de ser o quadro de um mundo que necessariamente deve existir para todo homem que não tenha a orgulhosa pretensão de crer que a Terra seja o apogeu da perfeição humana; é um elo na escala dos mundos e um grau acessível aos que não se sentem com forças para ir diretamente a Júpiter.


Carta ao Jornal de Saint-Jean d’Angely

Encontramos a carta seguinte no jornal de Saint-Jean-d’Angely, de 15 de junho de 1862:

“Ao Sr. Pierre de L..., redator substituto do jornal Le

Mellois.

“Numa carta dirigida ao Mellois de 8 de junho último, lançais um desafio ao que chamais a pequena igreja de Saint-Jean-d’Angely. Ofendido por ter sido repelido pelo Sr. Borreau, que não vos quis receber, voltai-vos contra seu colega em Espiritismo, a fim de o interrogar. Sem ser o médium notável que designais sob uma transparente inicial, tomo a liberdade de vos apresentar algumas observações.

“Qual teria sido o vosso objetivo ao lançar um desafio, primeiro ao Sr. Borreau, depois aos espíritas de Saint-Jean-d’Angely, para que evocassem a alma de Jacques Bujault? Uma brincadeira para pôr fim à guerra civil e intestina que parece querer ensangüentar os campos férteis do Poitou? Se assim é, penso que deveis compreender que a dignidade das pessoas sérias e conscienciosas, que acreditam firmemente nas teorias estabelecidas sobre os fenômenos, cuja certeza reconheceram, lhes impõe não se associem ao vosso jogo. Como os cépticos, tendes liberdade, certamente, de rir dessas teorias. Como sabeis, senhor, na França riem de tudo. No entanto, por melhor que fosse a vossa brincadeira, ela não é nova e, entre outros, certo cronista do jornal ao qual dirijo a presente, já se havia servido dela em seu começo.

“Se levantastes a questão com seriedade, permiti dizer-vos que não seguistes o caminho adequado para atingir o objetivo. Não seriam os sarcasmos contidos no vosso primeiro artigo que iriam persuadir o Sr. Borreau de vossa sinceridade. Era-lhe perfeitamente lícito duvidar e não vos permitir que discutísseis a evocação do prior que conheceis, como se fora mero esboço espiritual. Do mesmo modo, não são as vossas observações satíricas sobre a completa inutilidade do Espiritismo e sobre as dissidências que dividem os seus adeptos que irão convencer o Sr. C... da boa-fé com a qual reclamais suas luzes. Se, pois, realmente tendes a intenção de resolver esse problema, eis, em minha opinião, o meio mais rápido e mais conveniente: Vinde ao cenáculo e aí, despojado de qualquer ideia preconcebida, fazendo tábua rasa de todas as prevenções anteriores, examinai friamente os fenômenos que se produzirão em vossa presença e os submetei ao critério da certeza. Que, se uma ou duas vezes temeis ser vítima de alucinações, repeti as vossas experiências. Como o Cristo a Tomé, o Espiritismo vos dirá:

Vide pedes, vide manus,

Noli esse incredulus.

“E se tais experiências levam sempre ao mesmo resultado, conforme todas as regras da lógica, devereis ter confiança no testemunho dos vossos sentidos, a menos que estejais reduzido ao mais completo cepticismo, no que não posso crer.

“Se, ao contrário, como vaticinei acima, vossos artigos não passavam de um jogo para divertir o conflito local suscitado pelo voto malfadado da Sociedade de Agricultura de Niort, continuai vossas agradáveis brincadeiras, assaltos brilhantes que nós, espectadores desinteressados, muito admiramos. Apenas permitireis aos espíritas que conservem a sua fé. Com efeito, nem sempre a zombaria tem razão; o aforismo: o ridículo mata não é de uma exatidão a toda prova, e poderíamos dizer a essa arma tão cruel, sobretudo entre nós, o que foi dito a uma personagem da comédia:

“Todos os que matais passam muito bem.”

“Riram de todas as grandes coisas, trataram-nas como loucura, o que não as impediu se realizassem. Riram da existência de um outro mundo, e a América foi descoberta; riram do vapor e estamos no século das estradas de ferro; riram dos barcos a vapor de Fulton, seu inventor, que agora navegam em nossos mares e rios; riram — inclinai-vos senhor — riram do Cristo e sua sublime loucura, a loucura da cruz, conquistou e subjugou o Universo. Assim, se no momento o Espiritismo está na berlinda, exposto aos epigramas dos discípulos de Voltaire, assume sua posição e segue o seu caminho; o futuro o julgará. Se este sistema está baseado na verdade, nem pilhérias, nem paixões prevalecerão contra ele; se não passa de um erro — erro muito generoso, é bom confessar — em nosso século de materialismo ele irá encontrar no nada as mil e uma aberrações do espírito que, sob nomes diversos e extravagantes, desviaram a Humanidade.

“Recebei, senhor, a expressão de minhas atenciosas saudações.

Um adepto”

Observação — Não é a primeira vez que um adepto aceita o desafio lançado contra o Espiritismo pelos zombadores, e mais de um, entre estes últimos, puderam convencer-se de que se defrontavam com uma parte mais forte e mais numerosa do que imaginavam. Assim, muitos agora compreendem que é mais prudente calar-se. E, depois, é preciso dizer que as ideias espíritas penetraram até mesmo o campo dos adversários, onde começam a sentir-se ultrapassados e, então, esperam. Hoje o Espiritismo já não é professado em segredo; as pessoas se dizem espíritas abertamente, como se confessam francesas ou inglesas, católicas, judias ou protestantes, partidárias desta ou daquela filosofia. Todo receio pueril foi banido. Que, pois, todos os espíritas tenham a coragem de suas opiniões, que é o meio de calar a boca dos detratores e levá-los à reflexão.

O Espiritismo cresce incessantemente como uma vaga que sobe e circunscreve a ilhota, inicialmente muito grande, mas que alguns dias mais tarde estará reduzida a um ponto. Que farão os negadores quando se virem sobre esse ilhéu, cada dia mais reduzido pelo oceano das ideias novas? Vemos crescer a onda que nos transporta. Eis por que não nos inquietamos. Um dia, porém, os que estiverem na ilhota, apavorados pelo isolamento, estenderão os braços e nos rogarão socorro.


Castigo de um Avarento

François Riquier, homem muito comum, era um velho solteirão avarento, morto em C..., há quatro ou cinco anos, deixando aos colaterais uma fortuna considerável. Tinha sido senhorio de uma de nossas amigas, a Sra. F... Esta senhora o havia esquecido por completo quando sua filha, ultimamente sujeita a crises de catalepsia, seguidas de sono magnético espontâneo, viu, durante o sono, o Sr. Riquier, o qual, diz ela, queria falar com sua mãe. Alguns dias mais tarde, a filha da Sra. F..., aliás bom médium escrevente, tomou do lápis e obteve a comunicação seguinte, ao final da qual Riquier pôs seu nome e endereço completo. Não conhecendo tal endereço, a Sra. F... foi verificá-lo e ficou muito surpreendida ao constatar que a indicação era perfeitamente exata. Eis a comunicação, que é um novo exemplo das penas reservadas aos Espíritos culpados. Como ele se manifestara espontaneamente e exprimira o desejo de falar à Sra. F..., foi-lhe feita esta pergunta: “Que quereis de nós?”

Resp. — O meu dinheiro, que aqueles miseráveis tomaram todo, para repartirem entre si. Venderam minhas fazendas, minhas casas, para dividir tudo. Dilapidaram meus bens, como se não fossem meus. Fazei-me justiça, porque eles não me escutam e não quero presenciar tais infâmias. Dizem que eu era usurário e guardam o meu dinheiro! Por que não mo querem devolver, se acham que foi mal adquirido?

“P. — Mas vós estais morto, homem de Deus! Já não precisais de dinheiro. Pedi a Deus uma nova existência pobre, a fim de expiardes a avareza desta.

Resp. — Não; não poderia viver pobre. Necessito do meu dinheiro para viver. Aliás, não preciso de outra vida, pois estou vivo agora.

“P. (A pergunta seguinte foi feita com o objetivo de o trazer à realidade). — Sofreis?

Resp. — Oh! sim; sofro piores torturas que a doença mais cruel, porquanto é minha alma que suporta essas torturas. Tenho sempre presente no pensamento a iniquidade de minha vida que, para muitos, foi motivo de escândalo. Bem sei que sou um miserável, indigno de piedade; mas sofro tanto que necessito de ajuda para sair deste estado miserável.

“P. — Oraremos por vós.

Resp. — Obrigado! Rogai para que eu esqueça minhas riquezas terrestres, sem o que jamais poderia arrepender-me. Adeus e obrigado.

François Riquier,

Rue de la Charité, nº 14”

Observação — Este e muitos outros exemplos análogos provam que o Espírito pode conservar, durante muitos anos, a ideia de que ainda pertence ao mundo corpóreo. Esta ilusão não é exclusiva dos casos de morte violenta; parece ser a consequência da materialidade da vida terrena. A persistência do sentimento de tal materialidade, que não pode ser saciada, é um suplício para o Espírito. Além disso, aí encontramos a prova de que o Espírito é um ser semelhante ao ser corpóreo, embora fluídico, porque, para que ainda se julgue neste mundo, continue ou acredite continuar, poder-se-ia dizer, para consagrar-se aos seus negócios, ser preciso que ele se veja em forma e num corpo como em vida. Se dele não restasse mais que um sopro, um vapor, uma centelha, não poderia enganar-se quanto à sua situação. É assim que o estudo dos Espíritos, mesmo vulgares, vem nos esclarecer quanto ao estado real do mundo invisível e confirmar as mais importantes verdades.


Valor da Prece

A mesma pessoa aludida no fato precedente recebeu um dia a comunicação que se segue, cuja origem a princípio não compreendeu:

“Não me esquecestes e jamais o vosso Espírito teve para mim um sentimento de perdão. É verdade que vos fiz muito mal; mas há muito venho sendo punida por isto. Não parei de sofrer. Vejo que cumpris os vossos deveres com tanta coragem, para prover às necessidades de vossa família... mas a inveja não cessou de me devorar o coração. Vossa... (Aqui paramos para perguntar quem podia ser. O Espírito acrescentou: ‘Não me interrompais; darei meu nome quando terminar.’) ...resignação, que acompanhei, foi um dos meus maiores sofrimentos. Tende um pouco de piedade de mim se, de fato, sois discípula do Cristo. Eu estava muito só na Terra, não obstante entre os meus, e a inveja foi o meu defeito mais grave. Foi por inveja que dominei vosso marido. Parecia que retomáveis o domínio sobre ele quando vos conheci e me interpus entre vós. Perdoai-me e tende coragem para que, por sua vez, Deus tenha piedade de vós. Minha irmã, que oprimi durante minha vida, é a única que tem orado por mim. Mas são as vossas preces que me faltam. As outras não trazem para mim o selo do perdão. Adeus; perdoai.

Angèle Rouget”

Acrescenta aquela senhora: “Então me lembrei perfeitamente da mulher, morta há cerca de vinte e cinco anos, e na qual não pensava desde muitos anos. Pergunto-me como as preces de sua irmã, virtuosa e doce criatura, devotada, piedosa e resignada, não sejam mais frutuosas do que as minhas. Mesmo assim, orei e perdoei.”

Resp. — O próprio Espírito dá a explicação quando diz: “As preces dos outros não trazem para mim o selo do perdão.” Com efeito, aquela senhora, a principal ofendida, tendo sofrido mais pela conduta da outra, saturava sua prece de perdão, o que deveria tocar ainda mais o Espírito culpado. Orando, sua irmã não fazia, por assim dizer, senão cumprir um dever; por outro lado, havia um ato de caridade. A ofendida tinha mais direito e mais mérito para pedir graça; seu perdão, pois, deveria tranquilizar mais o Espírito. Ora, sabe-se que o principal efeito da prece é agir sobre o moral do Espírito, seja para o acalmar, seja para o conduzir ao bem. Trazendo-o ao bem, ela apressa a clemência do Juiz Supremo, que sempre perdoa o pecador arrependido.

A justiça humana, em que pese a sua imperfeição em face da justiça divina, oferece-nos frequentes exemplos semelhantes. Se um homem for levado ao tribunal, por ofensas a alguém, ninguém o defenderá melhor, nem obterá mais facilmente a sua absolvição do que o próprio ofendido, vindo generosamente retirar a queixa.

Após ter sido lido na Sociedade de Paris, a comunicação acima ensejou a seguinte pergunta, proposta por um de seus membros:

“Os Espíritos solicitam constantemente preces aos mortais. Será que os Espíritos bons não oram pelos sofredores?

Nesse caso, por que as preces dos homens são mais eficazes?”

A resposta que se segue foi dada na mesma sessão, por Santo Agostinho, pelo médium E. Vézy:

“Orai sempre, meus filhos. Já vos disse: a prece é um orvalho benfazejo que deve tornar menos árida a terra ressequida. Venho repetir mais uma vez e acrescentar algumas palavras em resposta à pergunta que me dirigistes. Perguntais por que os Espíritos sofredores preferem pedir-vos preces que a nós. As preces dos mortais são mais eficazes que a dos Espíritos bons? — Quem vos disse que nossas preces não tinham a virtude de espalhar consolação e dar força aos Espíritos fracos, que não podem ir a Deus senão com dificuldade e, muitas vezes, sem coragem? Se imploram as vossas preces, é porque elas têm o mérito das emanações terrenas que, subindo voluntariamente a Deus, são sempre por eles aproveitadas, por procederem da vossa caridade e do vosso amor.

“Para vós orar é abnegação; para nós, um dever. O encarnado que ora pelo próximo cumpre a nobre tarefa dos puros Espíritos; sem lhes possuir a coragem e a força, realizam as suas maravilhas. É peculiar à nossa vida consolar o Espírito que sofre e passa por dificuldades; mas uma de vossas preces é o colar que tirais do pescoço para dá-lo ao indigente; é o pão que retirais de vossa mesa para dar a quem tem fome. É por isso que vossas preces são agradáveis a quem as escuta. Um pai não atende sempre à prece do filho pródigo? Não chama todos os servos para matar o vitelo gordo pelo retorno do filho culpado? Como não o faria ainda mais por aquele que, de joelhos, lhe vem dizer: ‘Ó meu pai, sou muito culpado; não vos peço graça, mas perdoai a meu irmão arrependido, mais fraco e menos culpado do que eu.’ Oh! é então que o pai se enternece, arrancando do peito tudo quanto este possa conter em dons e em amor. E diz: ‘Estavas cheio de iniquidades e te confessaste criminoso; mas, compreendendo a enormidade de tuas faltas, não clamaste graça para ti; aceitas o sofrimento de meu castigo e, apesar de tuas torturas, tua voz tem força bastante para pedir por teu irmão!’ Pois bem! o pai não quer ser menos caridoso que o filho: perdoa a ambos. A um e outro estende as mãos para que possam marchar direito na senda que conduz à sua glória.

“Eis a razão, meus filhos, pela qual os Espíritos sofredores, que vagueiam à vossa volta, imploram as vossas preces. Devemos orar; podeis orar. Prece do coração, és a alma das almas, se assim me posso exprimir; quintessência sublime que sobe, sempre casta, bela e radiosa, para a alma mais vasta de Deus.”

Santo Agostinho


Dissertações Espíritas

A Conquista do Futuro

(Grupo de Sainte-Gemme — Tarn — Médium: Sr. C...)

A ideia espírita vai crescendo; logo cobrirá o solo francês de norte a sul, do nascente ao poente. Balizas são plantadas a igual distância. Vós sois essas balizas. A vós caberá a honra de traçar aos vossos irmãos a rota a seguir, de acordo com os nossos conselhos. Reuni-vos, pois, não só num pensamento comum, mas também numa ação comum. A fase de observação e experiências já passou: estais na fase de aplicação. Agi, e agi sem temor; jamais olheis para trás; ao contrário, fixai os olhos à frente; contemplai o objetivo e os obstáculos que dele vos separam. Se vos distrairdes a contar os passos, em vez de avançardes rapidamente, faltareis à missão que vos foi confiada. Tomai, pois, o cajado do viajor; cingi os rins e ponde-vos a caminho! Mas não partais sós; que todo o exército espírita, essa vanguarda da doutrina evangélica, se ponha em marcha ao mesmo tempo. Uni-vos, consultai-vos e voai à conquista do futuro.

Hippolyte Fortoul

O Pentecostes

(Grupo de Sainte-Gemme — Tarn — Médium: Sr. C...)

O Espírito de Deus sopra sobre o mundo, a fim de regenerar os seus filhos. Se, como ao tempo dos apóstolos, não se mostra sob a forma de línguas de fogo, não está menos presente entre vós. Orai, pois, com fervor ao Todo-Poderoso, a fim de que ele se digne fazer-vos tirar proveito de todas as vantagens morais, de todos os dons imperecíveis que Ele houve por bem derramar sobre a cabeça dos apóstolos e do Cristo. Pedi e recebereis e nada do que pedirdes de bom e de útil para o vosso progresso espiritual vos será recusado. Orai, pois, uma vez mais, com fervor; mas que seja o vosso coração que fale, não os lábios; ou se vossos lábios se agitarem, que digam apenas o que o coração houver pensado. A felicidade que sentireis quando estiverdes animados pelo Espírito de Deus é tão grande que não podeis fazer uma ideia. Depende de vós obtê-la. E, a partir deste momento, considerai os dias que vos restam para viver como um pedaço de caminho a percorrer para chegardes ao destino e onde encontrareis, no fim do dia, a vossa ceia e o vosso pouso para a noite.

Mas que a pequena importância relativa que deveis ligar às coisas terrenas não vos impeça de considerar os vossos deveres materiais como muito sérios; cometeríeis uma falta gravíssima aos olhos de Deus, se não vos entregásseis conscientemente aos vossos trabalhos cotidianos. Nada se deve desprezar do que saiu das mãos do Criador; deveis desfrutar, em certa medida, dos bens materiais que Ele vos concedeu. Vosso dever é não os guardar exclusivamente para vós, mas fazer que deles participem os irmãos aos quais eles foram recusados. Uma consciência pura, uma caridade e uma humildade sem limites, eis a melhor das preces para chamar a si o Espírito Santo. É o verdadeiro Veni Creator; não que este, cantado nas igrejas, não seja uma prece que será acolhida, sempre que feita de bom coração; mas, como já vos foi dito inúmeras vezes, o fundo é tudo, a forma pouca coisa.

Pedi, então, pelos vossos atos, que o Espírito Santo venha visitar-vos e derramar em vossa alma essa força que dá a fé para superar as misérias da existência terrena e para estender a mão àqueles irmãos vossos a quem a fraqueza do espírito impede ver a luz, sem a qual só podereis marchar às cegas, com risco de vos ferirdes nos obstáculos disseminados no caminho. A verdadeira felicidade, pela qual todos suspirais, lá se acha; cada um a tem sob a mão: basta querer para alcançá-la. Tomai hoje boas e firmes resoluções e o Espírito de Deus — tende certeza — não vos faltará. Amai ao vosso próximo como a vós mesmos pelo amor de Deus e tereis dignamente solenizado o dia em que o Espírito Santo veio visitar os apóstolos do Cristianismo.

Hippolyte Fortoul

O Perdão

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. A. Didier)

Como se pode achar em si a força para perdoar? A sublimidade do perdão é a morte do Cristo no Gólgota! Ora, já vos disse que o Cristo tinha resumido em sua vida todas as angústias e lutas humanas. Todos os que mereciam o nome de cristãos antes de Jesus-Cristo morreram com o perdão nos lábios: os defensores das liberdades oprimidas, os mártires das verdades e das grandes causas de tal modo compreenderam a elevação e a sublimidade de sua vida que não faliram no último instante e perdoaram. Se o perdão de Augusto não é inteiramente sublime do ponto de vista histórico, o Augusto de Corneille, o grande trágico, é senhor de si como do Universo, porque perdoa. Ah! como são mesquinhos e miseráveis os que possuíam o mundo e não perdoavam! Como é grande aquele que continha, no futuro dos séculos, todas as humanidades espirituais e perdoava! O perdão é uma inspiração e, muitas vezes, um conselho dos Espíritos. Infelizes os que fecham o coração a essa voz: serão punidos, como diz a Escritura, porquanto tinham ouvidos e não escutavam. Pois bem! se quereis perdoar, se vos sentis fracos perante vós mesmos, contemplai a morte do Cristo. Aquele que se conhece a si próprio triunfa facilmente de si mesmo. Eis por que o grande princípio da sabedoria antiga era, antes de tudo, conhecer-se a si próprio. Antes de se lançar na luta ensinava-se aos atletas, para os jogos e pelejas grandiosas, os meios seguros de vencer. Ao lado disso, nos liceus, Sócrates ensinava que havia um Ser Supremo e, algum tempo depois, séculos antes do Cristo, ensinava a toda a nação grega a morrer e perdoar. O homem vicioso, desprezível e fraco, não perdoa; o homem habituado às lutas pessoais, às reflexões justas e sãs, perdoa facilmente.

Lamennais

A Vingança

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. de B... M...)

A vingança é agradável ao coração, disse o poeta. Oh! pobres cegos, que dais livre curso à mais horrenda das paixões, credes fazer mal ao próximo quando o golpeais e não notais que eles se voltam contra vós. Ela não só é um crime, mas absurda falta de habilidade. É, como seus irmãos o rancor, o ódio, o ciúme, filhos do orgulho, o meio de que se servem os Espíritos das trevas para atrair a si aqueles que receiam lhes escapem; é o mais infalível instrumento de perdição posto nas mãos dos homens pelos inimigos que se encarniçam na sua decadência moral. Resisti, filhos da Terra, a esse culposo arrastamento, e ficai certos de que, se alguém mereceu a vossa cólera, não será no paroxismo do rancor que encontrareis a calma de consciência. Ponde nas mãos do Todo-Poderoso o cuidado de se pronunciar sobre os vossos direitos e sobre a justiça de vossa causa. Há na vingança algo de ímpio e de degradante para o Espírito.

Não, a vingança não é compatível com a perfeição. Enquanto uma alma conservar tal sentimento ficará nas regiões mais miseráveis do mundo dos Espíritos. Mas, como os outros, o vosso não será o eterno joguete dessa paixão infeliz; e posso garantir que a abolição da falsa noção do inferno eterno, ou, antes, da danação eterna, que tem servido de pretexto ou de escusa para atos de vingança, será a aurora de uma nova era de tolerância e de mansuetude, que não tardará a estender-se até às regiões privadas da vida moral. Poderia o homem condenar a vingança quando lhe apresentavam Deus como ciumento e se vingando por torturas sem fim? Cessai, pois, ó homens, de insultar a Divindade, emprestando-lhe as vossas mais ignóbeis paixões. Então sereis, ó habitantes da Terra, um povo abençoado por Deus. Vós que me escutais, fazei de modo que, liberta a vossa alma do culposo e vergonhoso móvel dos atos mais contrários à caridade, mereçais ser admitidos no recinto sagrado, no qual só a caridade pode abrir as portas.

Pierre Ange, Espírito protetor


Bibliografia

O ESPIRITISMO EM LYON

Comunicações de além-túmulo. Seleção de manifestações da Sociedade Espírita de Brotteaux, com esta epígrafe: O Espiritismo não deve impor-se; vem-se a ele, porque dele se necessita. (Allan Kardec. Revue, 1861) — Brochura in-8º, 32 páginas, acompanhadas de quatro gravuras obtidas mediunicamente. Preço: 75 centavos. Nas principais livrarias de Lyon e, em Paris, no estabelecimento do Sr. Ledoyen.

Esta é a primeira de uma série de brochuras a serem publicadas em épocas indeterminadas. Contêm uma seleção de comunicações obtidas no grupo de Brotteaux, dirigido pelo Sr. Déjoud, chefe de oficina. Todas elas, concordes com a doutrina exposta em O Livro dos Espíritos, respiram a mais sã moral e trazem o cunho incontestável de Espíritos bons e benevolentes. O estilo é simples, familiar e perfeitamente adaptado ao meio onde foram dadas, estando isentas de ideias abstratas. Antes de tudo os Espíritos bons querem instruir. Por isso põem-se à altura do auditório, pouco se preocupando em satisfazer aos que, em suas comunicações, não apreciam senão a pompa do estilo, sem lhes aproveitarem as lições. Para eles o essencial é que a instrução seja boa e penetre o coração. Acreditamos que essa coletânea atinge perfeitamente o seu objetivo. Sentimo-nos felizes de aproveitar a ocasião para felicitar o Sr. Déjoud, chefe desse grupo, um dos mais numerosos de Lyon, por seu zelo e perseverança na propagação do Espiritismo entre seus irmãos trabalhadores.

O terceiro volume das Revelações de Além-Túmulo, da Sra. Dozon, aparecerá brevemente.

Allan Kardec



[1] Vide, para detalhes, a Revista Espírita dos meses de novembro e dezembro de 1861.

Setembro de 1862

Inauguração de um Grupo Espírita em Bordeaux — Discurso de Abertura

A despeito de certa má-vontade, multiplicam-se diariamente os grupos espíritas. Para nós é um prazer e um dever apresentar aos nossos numerosos leitores o discurso pronunciado em Bordeaux, na inauguração de um deles, pelo seu fundador, Sr. Condat, em 20 de março de 1862. A maneira pela qual a séria questão do Espiritismo nele é encarada prova, agora, quanto são compreendidos o seu objetivo essencial e o seu verdadeiro alcance. Sentimo-nos felizes em dizer que tal sentimento é hoje geral, porque em toda parte a curiosidade dá lugar ao desejo de instrução e de melhora. Foi o que pudemos constatar nas visitas que fizemos a várias cidades do interior. Vimos o seu interesse pelas comunicações instrutivas e a sua estima pelos médiuns que as recebem. Isto é um fato característico na história do estabelecimento do Espiritismo. Não conhecemos de modo algum o grupo ao qual nos referimos, mas julgamos suas tendências pelo discurso de inauguração. O orador não teria sustentado essa linguagem na presença de um auditório leviano e superficial, reunido para se distrair. São as reuniões sérias que dão uma ideia séria do Espiritismo. Eis por que nunca seria demais estimular a sua multiplicação.

Senhoras e Senhores,

Pedindo aceiteis os meus agradecimentos pela benevolente acolhida ao meu convite, permiti vos dirija algumas palavras sobre o motivo de nossa reunião. Em falta de talento, espero, ao menos, que encontreis a convicção de um homem profundamente devotado ao progresso da Humanidade.

Muitas vezes o viajor intrépido, aspirando a atingir o topo de uma montanha, encontra estreito atalho obstruído por uma rocha. Muitas vezes também, no curso das idades, a Humanidade que tende a aproximar-se de Deus encontra o seu obstáculo: seu rochedo é o materialismo. Ela estaciona por algum tempo, talvez séculos; mas a força invencível a que obedece, agindo em razão da resistência, triunfa do obstáculo e a Humanidade, sempre convidada a marchar avante, retoma a caminhada com um impulso mais vivo.

Não nos admiremos, pois, senhores, quando se manifestar uma dessas grandes ideias que melhor denunciam a origem celeste do homem, quando se produz um desses fatos prodigiosos que vêm perturbar os cálculos restritos e as observações limitadas da ciência materialista; não nos espantemos e, sobretudo, não nos deixemos desencorajar pelas resistências que se opõem a tudo quanto possa servir para demonstrar que o homem não é apenas um pouco de barro, cujos elementos serão restituídos à terra depois da morte.

Antes constatamos, e constatamos com alegria, nós, adeptos do Espiritismo, filhos do século dezenove, o qual, por sua vez, foi a manifestação mais completa, por assim dizer a encarnação do cepticismo e de suas desanimadoras consequências; constatemo-lo: a Humanidade está em marcha!

Vede o progresso que aqui faz o Espiritismo, nesta bela, grande e inteligente cidade; vede como por toda parte a dúvida se apaga às claridades da ciência nova.

Contemos, senhores, e confessemos com sinceridade, quantos de nós ainda na véspera, com um sorriso de incredulidade nos lábios, estamos hoje com o pé na estrada e o coração decidido a não recuar? Compreende-se: estamos na corrente e por ela somos arrastados. Que é, então, essa doutrina, senhores? Aonde nos conduz?

Levantar a coragem do homem, sustentá-lo nos seus desfalecimentos, fortificá-lo contra as vicissitudes da vida, reanimar sua fé, provar-lhe a imortalidade da alma, não só por demonstrações, mas por fatos: eis a doutrina, eis aonde ela conduz!

Que outra doutrina produzirá sobre o moral e sobre o intelecto melhores resultados? Será a negação de uma vida futura que lhe poderão opor como preferível, no interesse da Humanidade inteira e para a perfeição moral e intelectual de cada homem isoladamente?

Tomando por princípio as palavras que resumem o materialismo: “Tudo acaba quando se abre o túmulo” — o que é que se consegue produzir com essa máxima, senão o nada? Experimento uma espécie de sensação penosa, um pudor por haver feito um paralelo entre esses dois extremos: a esperança de encontrar, num mundo melhor, os nossos entes queridos, cujas almas abriram as asas, e o horror invencível que experimentamos, que o próprio ateu experimenta, ao pensamento de que tudo se aniquilaria com o derradeiro suspiro da parte mortal de nosso ser, bastaria para repelir toda ideia de comparação. No entanto, senhores, se todas as consolações encerradas no Espiritismo não passassem de crença, se fossem apenas um sistema de pura especulação, uma engenhosa ficção, como objetam os apóstolos do materialismo, para submeterem inteligências fracas a certas regras, chamadas arbitrariamente virtude e, assim, retê-las fora dos sedutores apetites da matéria, compensação que num dia de piedade o autor dessa ordem fatal, que dá tudo a uns e reserva o sofrimento à maioria, a esta teria concedido para atordoá-la. Senhores, para as inteligências fortes, para o homem que sabe fazer uso legítimo da razão, não seriam essas engenhosas combinações, estabelecidas como consequências de um princípio sem base e como simples fruto da imaginação, um tormento a mais, acrescentado aos tormentos de uma fatalidade a que não poderiam subtrair-se?

Sem dúvida a demonstração é uma coisa admirável; prova, antes de tudo, a razão humana, a alma, essa abstração da matéria. Mas até esse dia seu ponto de partida único foi esta máxima de Descartes: “Penso, logo existo.” Hoje, o Espiritismo veio dar uma força imensa ao princípio da imortalidade da alma, apoiado em fatos tangíveis, irrefutáveis.

O que precede explica como e por que estamos aqui reunidos. Mas, senhores, deixai-me ainda comunicar-vos uma impressão que sempre senti, um desejo constantemente renovado, cada vez que me encontro em presença de uma sociedade que tem como escopo o aperfeiçoamento do homem moral. Eu gostaria de ter estado na primeira reunião, participado das primeiras comunicações de alma para alma dos fundadores, presidido ao desenvolvimento do germe da ideia que, como o grão tornado gigante, mais tarde produziu frutos abundantes.

Pois bem, senhores! hoje, que tenho a honra de vos reunir para propor a formação de um novo grupo espírita, minha ideia tem plena aceitação; e, como eu, peço conserveis no coração, na memória, a data de 20 de março.

Agora, senhores, é tempo de passar à prática: talvez eu me tenha demorado muito. Sem transição, para reparar a perda do tempo, largamente concedido para alguns desabafos, abordarei o objetivo de nossa reunião, pedindo que vos previnais contra uma objeção que, naturalmente, se apresentará em vosso espírito, como se apresentou no meu, quanto à indispensável necessidade de médiuns, quando se quer formar um grupo espírita. Eis aí, senhores uma aparente dificuldade, e não uma dificuldade. Para começar, ficai certos de que nossas reuniões não se tornarão estéreis pela simples ausência de médiuns. Esta é uma ideia que vos apresento, pedindo a vossa opinião. Procederemos assim:

A primeira parte de cada sessão seria dedicada à leitura de O Livro dos Espíritos e de O Livro dos Médiuns. A segunda seria consagrada à formação de médiuns entre nós e, acreditai, senhores, se seguirmos os conselhos e os ensinos dados nessas obras de nosso venerado chefe, Sr. Allan Kardec, a faculdade mediúnica não tardará a se desenvolver na maior parte de nós, ocasião em que os nossos trabalhos receberão sua mais doce, mais larga recompensa, porquanto Deus, o grande Criador de todas as coisas, o juiz infalível, não se enganará quanto ao bom uso que queremos fazer da preciosa faculdade mediúnica. Não deixará, pois, de nos dar a mais bela recompensa que pudéssemos ambicionar e permitir que um de nós, pelo menos, obtenha tal faculdade no mesmo grau de vários médiuns sérios que, nesta noite, temos a felicidade de contar em nosso meio.

Nossos bem-amados irmãos Gourgues e Sabò, que tenho a honra de vos apresentar, assistindo à nossa sessão inaugural, quiseram dar-lhe um mais alto grau de solenidade. Que eles nos deem a esperança — nós lhes suplicamos — e que, com a frequência que lhes for possível, nos venham visitar. Sua presença fortificará a nossa fé e avivará o ardor de alguns de nós que, ante o insucesso dos primeiros ensaios mediúnicos, poderiam cair no desalento.

Sobretudo, senhores, não nos extraviemos. Prestemos conta de nossa empresa e de seu objetivo. Enganar-se-ia seriamente aquele que fosse tentado a participar do novo grupo que iremos formar apenas movido pela esperança de encontrar distrações fúteis e fora da verdadeira moral apregoada pelos Espíritos bons.

“O fim essencial do Espiritismo — disse nosso venerado chefe — é o melhoramento das criaturas. Nele só se deve procurar aquilo que pode ajudar o progresso moral e intelectual. Enfim, não se deve perder de vista que a crença no Espiritismo só é proveitosa àquele de quem se possa dizer: Ele hoje é melhor que ontem.”

Assim, não esqueçamos que o nosso pobre planeta é uma estação purgatorial, onde, na atual existência, expiamos as faltas cometidas nas precedentes. Isto prova uma coisa, senhores: que nenhum de nós pode dizer-se perfeito, porque, enquanto tivermos faltas a expiar, reencarnaremos. Nossa presença na Terra atesta, pois, a nossa imperfeição.

O Espiritismo fincou as balizas da estrada que conduz aos pés de Deus. Marchemos sem jamais as perder de vista. A linha traçada pelos Espíritos bons, geômetras da Divindade, está rodeada de precipícios; as urzes e os espinhos são as suas margens. Não lhes temamos os ferimentos. Que são tais feridas, comparadas à felicidade eterna, que acolherá o viajor que chegou ao termo de seu percurso?

Esse termo, esse objetivo, senhores, há muito é objeto de minhas meditações. Abarcando o meu passado com um olhar, e voltando-me para reconhecer o espinheiro que me havia ferido, o obstáculo que me tinha feito tropeçar no atalho, não deixei de fazer o que faz todo homem, ao menos uma vez na vida: o balanço, por assim dizer, das alegrias e das mágoas, dos bons momentos de coragem e das horas de desânimo. E, com a cabeça sossegada, a alma livre, isto é, concentrada em si mesma, desprendida da matéria, disse de mim para mim: A existência humana não passa de um sonho, mas de um sonho horroroso, que começa quando a alma ou Espírito encarnado da criança se esclarece aos primeiros lampejos da inteligência, para terminar no desfalecimento da morte. A morte! Esta palavra de terror para tanta gente, na verdade é apenas o despertar desse sono horrível, o benfeitor socorrista que nos liberta do pesadelo insuportável que nos acompanha, passo a passo, desde o nascimento.

Falo em geral, mas não de maneira absoluta. A vida do homem de bem não tem mais esses mesmos caracteres; aquilo que fez de bom, de grande, de útil, ilumina com puras claridades o sonho de sua existência. Para ele, a passagem da vida à morte é feita sem transição dolorosa; nada deixa atrás de si que possa comprometer o futuro de sua nova existência espiritual, recompensa de seus benefícios.

Mas, ao contrário, para aqueles que, cegos voluntários, tiverem constantemente fechados os olhos para melhor negarem a existência de Deus, que se tiverem recusado à contemplação do sublime espetáculo de suas obras divinas, provas e manifestações de sua bondade, de sua justiça, de seu poder, direi que terão um terrível despertar, cheio de amargos lamentos, sobretudo por haverem desconhecido os benéficos conselhos de seus irmãos espíritas; o sofrimento moral que terão de suportar durará até o dia em que um arrependimento sincero desperte a piedade divina, que lhes concederá a graça de uma nova encarnação.

Muitas pessoas ainda veem nas comunicações espíritas a obra do demônio; no entanto, seu número diminui cada dia. Essa feliz diminuição deve-se evidentemente à curiosidade, fazendo com que as pessoas visitem os grupos espíritas ou leiam O Livro dos Espíritos e porque no número dos curiosos encontram-se criaturas que se convencem, sobretudo entre as que leem aquele livro. Porque, senhores, não creiais poder atrair muitos adeptos à nossa sublime doutrina, fazendo-os, primeiramente, assistir às nossas sessões. Não; tenho a íntima convicção de que uma pessoa completamente estranha à doutrina não se convencerá pelo que vir em nossas reuniões; antes estará pronta a rir dos fenômenos do que os levar a sério.

Quanto a mim, senhores, terei feito muito mais pela nova doutrina quando, em vez de levar alguém para assistir a uma de nossas sessões, eu fizer com que ele leia O Livro dos Espíritos. Ao ter certeza de que a leitura foi feita e deu os frutos que deveria produzir, oh! então levo com satisfação aquela pessoa a um grupo espírita, porque só nesse momento tenho certeza de que se dará conta de tudo quanto vir e ouvir; e aquele que provavelmente riria antes da leitura desse livro, apresentará efeitos diametralmente opostos. Não quero dizer que chore.

E para terminar, senhores, nada melhor que uma citação de O Livro dos Espíritos; ela convencerá, mais do que o permitem os meus fracos argumentos, àqueles que ainda duvidam da verdadeira base sobre a qual repousam as crenças espíritas:

“Os que dizem que as crenças espíritas ameaçam invadir o mundo, proclamam, ipso facto, a força do Espiritismo, porque jamais poderia tornar-se universal uma ideia sem fundamento e destituída de lógica. Assim, se o Espiritismo se implanta por toda parte, se, principalmente nas classes cultas, recruta adeptos, como todos facilmente reconhecerão, é que tem um fundo de verdade. Baldados, contra essa tendência, serão todos os esforços dos seus detratores e a prova é que o próprio ridículo, de que procuram cobri-lo, longe de lhe amortecer o ímpeto, parece ter-lhe dado novo vigor, resultado que plenamente justifica o que repetidas vezes os Espíritos hão dito: ‘Não vos inquieteis com a oposição; tudo o que contra vós fizerem se tornará a vosso favor e os vossos maiores adversários, sem o quererem, servirão à vossa causa. Contra a vontade de Deus não poderá prevalecer a má vontade dos homens.’

Condat


Carta do Sr. Dombre a um Pregador

Tendo pregado em Marmande durante o mês de maio último, o dominicano padre F..., em seu último sermão, resolveu atirar algumas pedras contra o Espiritismo. O Sr. Dombre desejaria uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, e que o padre F..., em vez de limitar-se a ataques banais, abordasse resolutamente certas questões de detalhes; mas, temendo que seu nome não tivesse bastante mérito para o decidir, escreveu-lhe a carta a seguir, sob o pseudônimo de Um católico:

“Sr. Pregador,

“Acompanho com assiduidade vossas instruções dogmáticas de todas as noites. Por uma fatalidade deplorável, cheguei sexta-feira um pouco mais tarde que de costume e soube, ao sair da igreja, que havíeis iniciado, sob a forma de escaramuça, um ataque contra o Espiritismo. Alegro-me por isso, em nome dos católicos fervorosos.

“Se bem me informaram, eis as questões abordadas: 1º — O Espiritismo é uma religião nova, do século dezenove; 2º — Há, incontestavelmente, comunicação com os Espíritos; 3º — Nas comunicações com os Espíritos, bem constatadas, bem reconhecidas, vós vos encarregais de provar, depois de longos e sérios estudos que fizestes do Espiritismo, que os Espíritos que se comunicam não passam do demônio; 4º — Finalmente, seria perigoso, do ponto de vista da salvação da alma, cuidar do Espiritismo antes que a Igreja se tenha pronunciado a respeito. Apreciei bastante este quarto artigo, mas, se se reconhece previamente que é o demônio, a Igreja nada mais tem a fazer[1].

Eis quatro questões importantes que estou ansioso por ver resolvidas, a fim de confundir, num mesmo golpe, os espíritas e os católicos de nome, que nem creem no demônio nem nas penas eternas, mas admitem um Deus e a imortalidade da alma, e os materialistas, que em nada acreditam.

À primeira questão — o Espiritismo é uma religião — respondem os espíritas: Não; o Espiritismo não é uma religião, nem pretende ser uma religião. O Espiritismo se baseia na existência de um mundo invisível, formado por seres incorpóreos que povoam o espaço e que são apenas as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos. Esses seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem sobre os homens, mau grado seu, uma grande influência; representam um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo está na Natureza e pode dizer-se que, numa certa ordem de coisas, é uma força, como, sob outro ponto de vista, o é a eletricidade e a gravitação. O Espiritismo desvenda-nos o mundo invisível; não é novidade, já que é mencionado pela história de todos os povos. Repousa sobre princípios gerais, independentes de toda questão dogmática. Tem consequências morais, é verdade, no sentido do Cristianismo, embora não tenha culto, nem templos, nem ministros; cada um pode fazer de suas opiniões uma religião, mas daí para a constituição de uma nova Igreja a distância é grande. Portanto, o Espiritismo não é uma nova religião. Eis, senhor pregador, o que dizem os espíritas quanto à primeira questão.

“A esta mesma questão riem os falsos católicos e os materialistas. Os primeiros, os felizes deste mundo, riem contrafeitos, pois a doutrina que comporta a pluralidade das existências ou reencarnações lhes fere os prazeres e o orgulho. Voltar numa condição talvez inferior — coisa horrível! — nem pensar. Os espíritas lhes dizem: ‘Eis a justiça, a verdadeira igualdade.’ Mas essa igualdade não lhes convém. Os materialistas, espíritos fortes e compostos de pretensos sábios, riem à vontade porque não acreditam no futuro: a sua sorte e a do cãozinho que os acompanha são absolutamente as mesmas, e eles preferem que seja assim.

“À segunda questão — há comunicação com os Espíritos — os espíritas e nós, católicos fervorosos, estamos de acordo; os falsos católicos e os materialistas estampam o riso da incredulidade.

“À terceira questão — só o demônio se comunica — os espíritas riem por sua vez; os materialistas também riem, zombando dos que acreditam nas comunicações e dos que, nelas crendo, as atribuem aos demônios. Os falsos católicos silenciam, como se dissessem: Isto é lá convosco.

“À quarta questão — é preciso esperar o pronunciamento da Igreja — dizem os espíritas: ‘Dia virá em que a crença no Espiritismo se tornará tão comum, tão espalhada que a Igreja, a menos que queira ficar só, será forçada a seguir a corrente. Então o Espiritismo se fundirá no catolicismo e o catolicismo no Espiritismo.’ A esta questão o materialista ri ainda e diz: ‘Que me importa!’, e o falso católico sente uma espécie de despeito. Como disse acima, não poderá acomodar-se a esta doutrina; seu egoísmo e seu orgulho ficam chocados; repele a eventualidade dessa fusão. ‘É impossível, diz ele, o Espiritismo não passa de uma utopia, que não dará quatro passos no mundo’[2].

“Aceitai, etc.

Um católico fervoroso.”

Sobre o assunto, assim se expressa o Sr. Dombre, numa carta dirigida a Bordeaux:

“O abade F... procurou saber quem era o espírita e não o católico fervoroso que lhe havia escrito aquela carta. Seus emissários vieram a mim e me disseram: O abade F... precisaria de sete ou oito sermões para lhe responder, mas não dispõe de tempo; mesmo assim queria saber o nome de quem se trata. Respondi: Garanto-lhes que o autor da carta dar-se-á a conhecer, caso o abade lhe responda do púlpito. Parece que aqui sabem, por experiência, que quanto mais se fala contra o Espiritismo, mais prosélitos se fazem; assim, acharam melhor guardar silêncio, pois o abade F... partiu sem voltar ao assunto.

“Dir-me-eis que talvez haja um pouco de temeridade em querer entrar na liça; conheço as necessidades de nossa localidade; é preciso barulho. Os inimigos sistemáticos ou interesseiros do Espiritismo apenas querem o mutismo e eu os quero ensurdecer com discussões. Em torno dos incrédulos que discutem sempre há indiferentes ou predispostos a crer, que tiram proveito da luta, relativamente à instrução espírita. — Mas, pensareis e talvez digais, saireis honrosamente dessas polêmicas? — Ah! meu Deus! Quando se é assinante da Revista Espírita e se leu todos os livros da doutrina; quando se está mergulhado de corpo inteiro nos argumentos em que ela se apóia e nos que são dados pelos Espíritos que se comunicam, a gente sai como Minerva, armado dos pés à cabeça, sem nada temer.”

Observação — Dizem: “Credes na reencarnação, mas a pluralidade das existências é contrária aos dogmas, que admitem apenas uma. Por isto mesmo estais fora da Igreja.”

A isto repetiremos o que temos dito inúmeras vezes: “Outrora expulsastes da Igreja, anatematizastes, excomungastes e condenastes como heréticos os que acreditavam no movimento da Terra.” Respondereis: “Isto foi num tempo de ignorância.” — Seja. Mas se a Igreja é infalível, deveria sê-lo outrora como hoje, não podendo a sua infalibilidade ser submetida às flutuações da ciência mundana. Mas ultimamente, e apenas há um quarto de século, neste século de luz, não tem ela igualmente condenado as descobertas científicas que dizem respeito à formação do globo? O que aconteceu agora? E o que teria acontecido se ela persistisse em repelir de seu seio todos os que acreditam nessas coisas? Não mais haveria católicos, nem mesmo o papa. Por que, então, teve a Igreja de ceder? É porque o movimento dos astros e sua formação repousam nas leis da Natureza e porque, contra essas leis, não há opinião que possa prevalecer.

Quanto à reencarnação, de duas, uma: ou existe, ou não existe; não há meio-termo. Se existe, é porque está nas leis da Natureza. Se um dogma diz o contrário, trata-se de saber quem tem razão, se o dogma ou a Natureza, que é obra de Deus. A reencarnação não é, pois, uma opinião, um sistema, como uma opinião política ou social, que pode ser adotada ou recusada: é um fato ou não é. Se é um fato, e por mais que não agrade a todo o mundo, nada do que disserem a impedirá de ser um fato.

Acreditamos firmemente — falamos por conta própria — que a reencarnação, longe de ser contrária aos dogmas, dá uma explicação lógica de vários deles, fazendo com que sejam aceitos pela maioria dos que os repeliam, porque não os compreendiam. A prova disto está no grande número de pessoas trazidas às crenças religiosas pelo Espiritismo.

Mas admitamos essa incompatibilidade, se quiserdes. Neste caso, apresentaremos a questão sem rodeios: “Quando a pluralidade das existências for reconhecida como uma lei natural — o que não tardará muito — e quando todos reconhecerem esta lei como a única compatível com a justiça de Deus, e como a única que pode explicar o que, sem ela, é inexplicável, que fareis?” — Fareis o que fizestes com o movimento da Terra e os seis dias da Criação; e não será difícil conciliar o dogma com esta lei.

A.K.


O Espiritismo numa Distribuição de Prêmios

Um de nossos colegas da Sociedade Espírita de Paris dá-nos ciência da carta a seguir, por ele dirigida às diretoras do pensionato onde está uma de suas filhas, nesta capital.

“Senhoras,

“Rogo que me permitais algumas reflexões sobre um discurso pronunciado na distribuição de prêmios do vosso pensionato. Minha condição de pai de família e, sobretudo, de pai de uma de vossas alunas, dá-me algum direito a esta apreciação.

“O autor do discurso, estranho ao vosso estabelecimento e, segundo me disseram, professor do Colégio C..., permitiu-se longos gracejos, não sei bem a propósito de quê, sobre a ciência espírita e os médiuns. Tivesse ele emitido a sua opinião sobre a matéria em outra circunstância e eu o compreenderia. Mas perante um auditório como aquele em que falava, na presença de jovens confiadas aos vossos cuidados, permiti vos diga que a questão era inconveniente e que o tema foi mal escolhido para quem busca causar forte impressão.

“Entre outras coisas, disse aquele senhor que as pessoas que se ocupam de experiências das mesas e outros fenômenos ditos espíritas, ou de ordem psicológica, são prestidigitadoras, patetas ou estúpidas.

“Incluo-me, senhoras, no número dos que se ocupam do assunto e não o escondem; e tenho certeza de não ter sido o único em vossa reunião. Não tenho a pretensão de ser sábio como o vosso orador e, nessa condição, talvez eu seja um estúpido. Todavia, a expressão é bastante indelicada quando dirigida a pessoas desconhecidas e quando se generaliza. Mas com toda certeza minha posição e meu caráter põem-me ao abrigo do epíteto de prestidigitador. Aquele senhor parece ignorar que essa estupidez conta hoje seus adeptos aos milhões no mundo inteiro e que os supostos prestidigitadores se acham até nas mais altas camadas da sociedade, sem o que teria ele refletido que suas palavras poderiam dirigir-se a mais de um de seus ouvintes. Se ele provou, por esse ataque intempestivo, uma falta de tato e de civilidade, também provou que falava de uma coisa que jamais estudou.

“Quanto a mim, senhoras, há quatro anos estudo, observo, e o resultado de minhas observações convenceu-me, como a tantos outros, de que, em certas circunstâncias, o mundo material pode entrar em relações com o mundo espiritual. As provas do fato eu as tenho tido aos milhares, por toda parte, em todos os países que visitei, e sabeis que as tenho tido, e muitas, em minha família, com minha esposa, que é médium sem ser prestidigitadora, com parentes, com amigos que, como eu, procuram a verdade.

“Não penseis, senhoras, que eu tenha acreditado num primeiro impulso e sem exame. Não. Como disse, estudei e observei conscienciosamente, friamente, com calma e sem ideia preconcebida, não tendo sido senão depois de madura reflexão que tive a felicidade de me convencer da realidade de tais coisas. Digo felicidade porque — eu o confesso — não sendo o ensino religioso que houvera recebido suficiente para esclarecer minha razão, tornei-me céptico. Agora, graças ao Espiritismo, às provas patentes que ele fornece, já não o sou, porque pude assegurar-me da imortalidade da alma e de suas consequências. Se é isto que aquele senhor chama de estupidez, ao menos deveria abster-se de o dizer na presença de vossas alunas, que bem poderão e talvez mais cedo do que pensais, dar-se conta dos fenômenos cujo véu lhes levantaram. Para tanto bastará que entrem no mundo. A nova ciência aí faz grandes e rápidos progressos, eu vo-lo garanto. Então não é de temer que elas façam esta reflexão: Se nos induziram em erro sobre esta matéria; se nos quiseram ocultar a verdade, não nos poderão ter enganado sobre outros pontos? Na dúvida, a mais vulgar prudência aconselha a abstenção. Em todo caso, nem era o lugar, nem o momento de tratar semelhante assunto.

“Julguei meu dever, senhoras, transmitir-vos as minhas impressões. Rogo-vos que as acolhais com a vossa bondade habitual.

“Aceitai, etc.

A. Gassier

38, rue de la Chaussée-d’Antin”

Observação — Como o Espiritismo se alastra por toda parte, é muito raro que não se encontre, numa assembleia qualquer, certo número de adeptos. Entregar-se a ataques virulentos contra uma opinião que cresce sem cessar; servir-se de expressões ofensivas perante um auditório que não se conhece é expor-se a molestar as pessoas mais respeitáveis e, por vezes, a ver-se chamado à ordem. Fazê-lo numa reunião que, mais que qualquer outra, exige, por sua natureza, a estrita observância das conveniências, onde toda palavra deve ser um ensino, é um erro. Se uma dessas jovens, cujos pais se dedicam ao Espiritismo, lhes disser: “Sois prestidigitadores, patetas e estúpidos”, não poderia ela desculpar-se dizendo: “Foi o que me ensinaram na distribuição de prêmios?” Faria aquele senhor semelhante ataque contra os protestantes e os judeus, afirmando que todos são heréticos e danados? Contra tal ou qual opinião política? Não, porque há poucos pensionatos onde não haja alunos cujos pais professam diferentes opiniões, políticas ou religiosas, e ele temeria melindrar estes últimos. Pois bem! fique ele sabendo que hoje, somente na França, há tantos espíritas quantos judeus e protestantes e, logo mais, serão tão numerosos quanto os católicos.

Aliás, ali como em toda parte, o efeito será contrário à intenção. Eis uma porção de moças, naturalmente curiosas, muitas das quais jamais ouviram falar de tais coisas e que quererão sabê-lo na primeira ocasião; experimentarão a mediunidade e, inevitavelmente, algumas delas triunfarão; falarão com as suas companheiras e assim por diante. Se lhes proibis que se ocupem de tais coisas e as amedrontais com a ideia do diabo, será uma razão a mais para que o façam às escondidas, pois quererão saber o que lhes dirá o diabo. Não ouvem falar diariamente dos bons diabos, dos diabos cor-de-rosa? Ora, aí está o verdadeiro perigo, porquanto, inexperientes e não dispondo de um guia prudente e esclarecido, poderão achar-se sob uma influência perniciosa, da qual não saberão livrar-se, podendo resultar graves inconvenientes porque, à vista da proibição feita e temendo uma punição, nada ousarão dizer. Proibir que escrevam? Nem sempre é fácil: os mestres do pensionato sabem algo sobre isto. Mas que faríeis com as que se tornassem médiuns videntes e audientes? Tapar-lhes-íeis os olhos e os ouvidos? Eis, senhor orador, o que pode produzir o vosso discurso imprudente, com o qual certamente ficastes muito satisfeito.

O resultado é completamente diverso nos filhos educados pelos pais nessas ideias. Em primeiro lugar, nada têm a ocultar, sendo assim preservados dos perigos da inexperiência; depois, cedo isto lhes dá uma piedade raciocinada, que a idade fortifica e não pode debilitar. Tornam-se mais dóceis, mais submissos, mais respeitadores; a certeza da presença dos pais mortos, que os veem incessantemente, com os quais podem conversar e dos quais recebem sábios conselhos é, para eles, um freio poderoso, pelo medo salutar que os genitores inspiram. Quando a geração for educada nas crenças espíritas, ver-se-á outra juventude, mais estudiosa e menos turbulenta. Já se pode julgar isto pelo efeito que tais ideias produzem nos jovens que delas estão imbuídos.


Perseguições

Tendo em vista que a zombaria se desgastou contra a couraça do Espiritismo, e servindo mais a propagá-lo do que a desacreditá-lo, seus inimigos ensaiam um outro meio que, prenunciamos, não dará melhores resultados e, provavelmente, ainda fará mais prosélitos; esse meio é a perseguição. Diremos que fará mais por uma razão muito simples: é que, levando a sério o Espiritismo sua importância cresce extraordinariamente. E, depois, quanto mais uma causa faz sofrer, mais nos apegamos a ela. Sem dúvida hão de lembrar-se das belas comunicações dadas sobre os mártires do Espiritismo e que publicamos na Revista do mês de abril último. Esta fase foi anunciada pelos Espíritos há muito tempo. Disseram eles:

“Quando virem a impotência da arma do ridículo, experimentarão a da perseguição; não mais haverá mártires sangrentos, mas muitos irão sofrer em seus interesses e em suas afeições; procurarão desunir as famílias, reduzir os adeptos à fome, importuná-los com alfinetadas, por vezes mais dolorosas que a morte. Mas ainda aí encontrarão almas fortes e dedicadas, que saberão afrontar as misérias deste mundo, tendo em vista um futuro melhor. Lembrai-vos das palavras do divino Salvador: ‘Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.’ Tranquilizai-vos: a era da perseguição, na qual em breve entrareis, será de curta duração e os vossos inimigos colherão apenas vergonha, porquanto as armas que empregarem contra vós se voltarão contra eles.”

Começou a era predita. De vários lados se nos revelam atos lamentáveis, praticados pelos ministros de um Deus de paz e de caridade. Não falaremos das violências feitas à consciência, expulsando da Igreja aqueles que a ela conduz o Espiritismo. Como esse meio deu resultados mais ou menos negativos, buscaram outros mais eficazes. Poderíamos citar localidades onde pessoas que vivem de seu trabalho foram ameaçadas de verem cortados os seus recursos; outras, onde os adeptos foram apontados à execração pública, sendo perseguidos pelos moleques de rua; outras onde expulsam das escolas as crianças cujos pais se dedicam ao Espiritismo; uma outra, onde um pobre professor foi demitido e reduzido à miséria, porque tinha em casa O Livro dos Espíritos. Deste último recebemos comovente prece em versos, impregnada dos mais nobres sentimentos e da mais sincera piedade. Acrescentemos que um espírita benfeitor estendeu-lhe a mão caridosa; acrescentemos ainda que, em tais circunstâncias, foi ele vítima de infame traição, por parte de um homem no qual havia confiado e que parecia entusiasmado por aquele livro.

Numa pequena cidade onde o Espiritismo conta numerosos partidários, um missionário disse do púlpito, na última quaresma: “Espero que no auditório só haja bons fiéis, e que não existam judeus, nem protestantes, nem espíritas.” Parece que confiava muito pouco em sua palavra, para converter os que tivessem vindo ouvi-lo com o objetivo de se esclarecerem. Numa comuna, perto de Bordeaux, quiseram impedir que mais de cinco espíritas se reunissem, sob o pretexto de que a lei a isto se opunha, obrigando uma autoridade superior a restaurar a legalidade. Desse pequeno vexame resultou que hoje três quartos dessa comuna são espíritas. No Departamento de Tarn-et-Garonne os espíritas de várias localidades quiseram reunir-se e foram acusados de conspiração contra o governo. Essa ridícula acusação caiu bem depressa, como tinha de ser, e provocou risos.

Em compensação contaram-nos que um magistrado havia dito: “Ai quem dera se todo o mundo fosse espírita! Nossos tribunais teriam menos a fazer e a ordem pública nada teria a temer.” Manifestou assim uma grande e profunda verdade, uma vez que já se começa a perceber a influência moralizadora que o Espiritismo exerce sobre as massas. Não é um resultado maravilhoso ver homens, sob a influência dessa crença, renunciarem à embriaguez, aos hábitos de libertinagem, aos excessos degradantes e ao suicídio? Homens violentos tornarem-se pacatos, afáveis, pacíficos e bons pais de família? Homens que blasfemavam o nome de Deus, orando com fervor e aproximando-se piedosamente dos altares? E são justamente tais homens que expulsais da Igreja! Ah! rogai a Deus a fim de que, caso ele ainda reserve dias de provação à Humanidade, haja muitos espíritas, porquanto estes aprenderam a perdoar aos inimigos e consideram como primeiro dever do cristão estender-lhes a mão no momento do perigo, em vez de lhes pisar o pescoço.

Um livreiro da Charente escreveu-nos o seguinte:

“Não temi anunciar abertamente minhas opiniões espíritas; pus de lado as mesquinharias mundanas, sem me preocupar se o que fazia viria ou não prejudicar o meu comércio. Entretanto, estava longe de esperar o que me aconteceu. Se o mal se tivesse limitado a alguns aborrecimentos, pouco seria. Mas, ah! graças aos que pouco compreendem a religião, tornei-me a ovelha negra do rebanho, a peste do bairro; sou apontado como o precursor do anticristo. Usaram de toda influência, até mesmo a calúnia, para me derrubar, para afastar meus clientes, numa palavra, para arruinar-me. Ah! os Espíritos nos falam de perseguições, de mártires do Espiritismo. Não me orgulho com isso, mas, seguramente, estou no número das vítimas. É verdade que minha família sofre com isso; tenho, porém, o consolo de uma esposa que partilha de minhas ideias espíritas. Estou ansioso para que meus filhos estejam em idade de compreender esta bela doutrina; faço questão de esclarecê-los nessa bela crença. Que Deus me conserve a possibilidade — façam o que fizerem para ma retirar — de os instruir e os preparar para, por sua vez, lutarem, se preciso for. Os fatos que relatastes em vossa revista de maio têm uma analogia surpreendente com o que me aconteceu. Como o autor da carta, fui repelido impiedosamente do confessionário; antes de tudo o vigário queria que eu renunciasse às minhas ideias espíritas; por causa dessa imprudência, ele jamais me verá nas cerimônias religiosas. Se pratico um mal, deixo a responsabilidade ao seu autor.”

Extraímos as passagens que se seguem de uma carta que nos foi enviada de uma aldeia dos Vosges. Embora estejamos autorizados a revelar o nome do autor e a localidade, não o faremos por razões de conveniência, que todos haverão de compreender; mas temos a carta em mão para usá-la como melhor nos parecer. Dá-se o mesmo com todos os fatos que apresentamos e que, conforme sua maior ou menor importância, mais tarde farão parte da história do estabelecimento do Espiritismo.

“Não sou muito versado em literatura para tratar dignamente do assunto de que me ocupo. Contudo, tentarei fazer-me compreender desde que releveis a imperfeição do estilo e da redação, porque há meses anseio ardentemente em me corresponder convosco, desde que meu filho me enviou os preciosos livros de instrução da Doutrina Espírita e dos médiuns.

“À noitinha, voltando do campo, avistei os livros que o carteiro trouxera. Apressei-me em jantar e deitar-me, mantendo uma vela acesa à cabeceira, pensando em ler até que o sono viesse fechar-me os olhos. Mas li a noite inteira com tal avidez que não tive a mínima vontade de dormir.”

Segue a enumeração das causas que o haviam levado à absoluta incredulidade religiosa e que não mencionamos por uma questão de respeito.

“Todas essas considerações repassavam diariamente por meu espírito; o desgosto apoderara-se de mim; eu havia caído num estado de cepticismo duríssimo; depois, em minha triste solidão de aborrecimento e desespero, estava decidido a pôr termo a meus dias tão infelizes pelo suicídio.

“Ah! Senhor! Não sei se alguém jamais poderá fazer uma ideia do efeito sobre mim produzido pela leitura de O Livro dos Espíritos. Renasceu a confiança, o amor de Deus se me apoderou do coração e eu sentia como se um bálsamo divino se espalhasse em todo o meu ser. Ah! dizia a mim mesmo, em toda a vida busquei a verdade e a justiça de Deus e não encontrei senão abusos e mentiras; e agora, na velhice, tenho a felicidade de encontrar essa verdade tão desejada. Que mudança em minha situação que, de tão triste, tornou-se tão ditosa! Agora me acho continuamente em presença de Deus e de seus Espíritos bem-aventurados, meu criador, protetores, amigos fiéis. Creio que as mais belas expressões poéticas seriam insuficientes para figurar uma situação tão agradável. Quando meu peito fraco o permite, busco distrair-me entoando hinos e cânticos que, parece, lhes são mais agradáveis. Enfim, sou feliz, graças ao Espiritismo. Ultimamente escrevi a meu filho que, ao me enviar aqueles livros, tornou-me mais feliz do que se me tivesse aquinhoado com a mais brilhante fortuna.”

Segue-se um relato pormenorizado de ensaios de mediunidade, feitos na cidade, entre vários adeptos, com os resultados obtidos. Entre aqueles achavam-se alguns médiuns, um dos quais parece notável. Chamaram pais e amigos, que lhes vieram dar provas incontestáveis de identidade, e Espíritos superiores, que lhes deram excelentes conselhos.

“Todas essas evocações chegaram aos ouvidos do vigário, pelas pessoas de língua solta que, em grande parte, as desnaturaram. Em 18 de maio último, ao dar lições de catecismo aos seus alunos da primeira comunhão, o vigário despejou milhares de injúrias contra a casa C... (um dos principais adeptos) e contra mim. Depois, disse ao filho de C...: ‘Não te quero; mas em dois anos serás bastante forte para ganhar a vida. Aconselho-te que deixes teus pais, pois não são capazes de te dar bons exemplos.’ Eis um belo catecismo! No sermão da tarde subiu ao púlpito de propósito, para repetir o discurso que fizera aos alunos pouco antes, dizendo com muita volubilidade que não reconhecíamos o inferno; que não hesitaríamos em nos dedicar ao roubo e à rapinagem para nos enriquecermos à custa alheia; que nos dávamos a sortilégios e superstições da Idade Média, e mil outras invectivas.

“A propósito, escrevi uma carta ao procurador imperial de M...; mas antes de enviá-la quis consultar o Espírito São Vicente de Paulo na primeira reunião. Esse Espírito bom fez o médium escrever o seguinte: ‘Lembrai-vos destas palavras do Cristo: Perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem.’ Depois disto, queimei a carta.

“O ruído desta doutrina espalha-se por todos os vilarejos circunvizinhos. Muitos me pediram e encomendaram livros, mas não os tenho; todos os que compreendem um pouco a leitura querem ler, passando-os de mão em mão.”

“Depois de haver lido O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, meu primeiro cuidado foi fazer experiências para ver se eu podia ser médium. Nada tendo obtido durante oito dias, escrevi a meu filho e comuniquei-lhe o fracasso. Como residisse com ele um magnetizador, este propôs que eu escrevesse uma carta, que ele magnetizaria, e com ela eu poderia fazer a evocação de minha morta. O pobre magnetizador não imaginava que me fornecia o chicote para o açoitar. Com isto tornei-me médium audiente; pus-me novamente em posição de escrever e imediatamente disseram-me ao ouvido: ‘Procuram enganar teu filho.’ Durante três dias consecutivos, com uma força progressiva, este aviso me vinha ao ouvido e desviava a atenção que eu devia prestar ao que fazia. Escrevi a meu filho sobre o caso, advertindo-o para que desconfiasse daquele homem. Na volta do correio ele me respondeu, censurando-me as dúvidas que eu levantara contra aquele homem, o qual gozava de toda a sua confiança. Poucos dias depois recebi dele uma nova carta, vazada em linguagem diferente, dizendo que havia expulsado o infeliz malandro que, aparentando honestidade, servia-se de sua suposta qualidade para melhor conquistar suas vítimas. Expulsando-o, mostrou-lhe a minha carta que, de uma distância de cem léguas, o havia pintado tão bem.”

Esta carta dispensa comentários. Vê-se que o sermão do vigário produziu efeito no meio dos aldeões, como alhures. Se, em tal circunstância, foi o diabo que tomou o nome de São Vicente de Paulo, o vigário lhe deve ser grato. Não temos razão para dizer que os próprios adversários fazem a propaganda e, sem o quererem, servem à nossa causa? Digamos, todavia, que fatos desta natureza constituem exceções, e não a regra; pelo menos preferimos pensar assim. Conhecemos muitos eclesiásticos distintos, que deploram essas coisas, como impolíticas e imprudentes. Se nos apontam alguns atos lamentáveis, também nos mostram um bom número de um caráter verdadeiramente evangélico. Um sacerdote dizia a um de seus penitentes, que o consultava sobre o Espiritismo: “Nada acontece sem a permissão de Deus; assim, tais coisas só acontecem por sua vontade.” Um moribundo mandou chamar um padre e lhe disse: “Meu pai, há cinquenta anos não mais frequentava as igrejas e havia esquecido a Deus. Foi o Espiritismo que me reconduziu a Ele, razão por que vos mandei chamar antes de morrer. Dar-me-eis a absolvição? — Meu filho, responde o padre, os desígnios de Deus são impenetráveis; dai-lhe graças por vos haver enviado essa tábua de salvação; morrei em paz.” Poderíamos citar inúmeros casos semelhantes.


Reconciliação pelo Espiritismo

Muitas vezes o Espiritismo tem provado a sua benéfica influência, ao restabelecer a boa harmonia nas famílias ou entre os indivíduos. Disso temos numerosos exemplos, na maioria casos íntimos que nos foram confiados, por assim dizer, sob o selo da confissão, não nos cabendo, pois, revelá-los. Já não temos o mesmo escrúpulo para o fato seguinte, de extraordinário interesse:

Um capitão de navio mercante do Havre, que conhecemos pessoalmente, é, ao mesmo tempo, excelente espírita e bom médium. Havia iniciado vários homens de sua tripulação na Doutrina Espírita e só tinha motivos para se felicitar pela ordem, disciplina e bom comportamento. Tinha a bordo seu irmão de dezoito anos e um aprendiz de piloto de dezenove, ambos bons médiuns, animados de uma fé viva e que recebiam com fervor e reconhecimento os sábios conselhos de seus Espíritos protetores. Uma noite, porém, entraram em contenda; das palavras foram às vias de fato, de sorte que marcaram um encontro para a manhã seguinte, a fim de se baterem num canto qualquer da embarcação. Tomada a decisão, separaram-se. À noite sentiram vontade de escrever e, de seu lado, cada qual recebeu dos guias invisíveis uma severa admoestação sobre a futilidade de sua discussão e conselhos sobre a felicidade da amizade, com um convite para se reconciliarem, sem preconceitos. Movidos pelo mesmo sentimento, os dois jovens deixaram simultaneamente seu lugar e vieram chorando lançar-se nos braços um do outro. A partir daí, nenhuma nuvem veio turvar a harmonia entre eles.

Foi o próprio capitão que fez o relato. Vimos o seu caderno de comunicações espíritas, bem como a caderneta dos dois jovens, de onde extraímos aquela de que acabamos de falar.

O fato seguinte ocorreu com o mesmo capitão, numa de suas travessias. Temos o prazer de transcrevê-lo, não obstante estranho ao assunto. — Ele estava em alto mar, com o melhor tempo do mundo, quando recebeu a seguinte comunicação: “Toma todas as precauções; amanhã às duas horas desabará uma borrasca e teu navio correrá grande perigo.” Como nada fazia prever mau tempo, o capitão logo pensou numa mistificação. Entretanto, para não se censurar, caso a tempestade rebentasse, tomou medidas que se revelaram acertadas, porquanto à hora predita desencadeou-se violenta tempestade. Durante três dias o navio enfrentou os maiores perigos, pelos quais jamais havia passado; graças, porém, às precauções tomadas, escapou sem acidentes.

O caso da reconciliação sugeriu-nos as seguintes reflexões.

Um dos resultados do Espiritismo bem compreendido — chamamos a atenção para a expressão: bem compreendido — é desenvolver o sentimento de caridade. Mas, como se sabe, a própria caridade tem uma acepção muito ampla, desde a simples esmola até o amor aos inimigos, que é o supra-sumo da caridade. Pode-se dizer que ela resume todos os nobres impulsos da alma para com o próximo. O verdadeiro espírita, como o verdadeiro cristão, pode ter inimigos — não os teve o Cristo? — mas não é inimigo de ninguém, pois está sempre disposto a perdoar e a pagar o mal com o bem. Se dois espíritas verdadeiros outrora tiverem tido motivos para recíproca animosidade, sua reconciliação será fácil, porque o ofendido esquece a ofensa e o ofensor reconhece a falta. Desde então não mais querelas, porquanto serão indulgentes entre si e farão mútuas concessões. Nenhum deles procurará impor ao outro um perdão humilhante, que irrita e fere em vez de acalmar.

Se, em tais condições, dois indivíduos podem viver em boa harmonia, o maior número também o pode. E, então, serão tão felizes quanto é possível sê-lo na Terra, porque a maior parte de nossas tribulações surge do contato com os maus. Suponhamos uma nação inteira imbuída de tais princípios: não será a mais feliz do mundo? Aquilo que apenas é possível para os indivíduos — dirão uns — é utopia para as massas, a não ser que ocorra um milagre. Pois bem! O Espiritismo já operou esse milagre, várias vezes, em escala menor, nas famílias desunidas, onde restabeleceu a paz e a concórdia. O futuro provará que o pode fazer em grande escala.


Resposta ao Convite dos Espíritas de Lyon e de Bordeaux

Meus caros irmãos e amigos espíritas de Lyon.

Apresso-me em vos dizer o quanto sou sensível ao novo testemunho de simpatia que acabais de dar-me, com o amável e afetuoso convite para vos visitar ainda este ano. Aceito-o com prazer, porque, para mim, é sempre uma felicidade encontrar-me em vosso meio.

Meus amigos: grande é a minha alegria ao ver a família crescer a olhos vistos; é a mais eloquente resposta aos tolos e ignóbeis ataques contra o Espiritismo. Parece que tal crescimento lhes aumenta o furor, porque hoje mesmo recebi uma carta de Lyon, anunciando a remessa de um jornal dessa cidade, La France littéraire, no qual a doutrina em geral, e minhas obras em particular, são ridicularizadas de maneira tão infamante que me perguntam se devem responder pela imprensa ou pelos tribunais. Digo que devem responder pelo desprezo. Se a doutrina não fizesse nenhum progresso, se minhas obras não tivessem vingado, ninguém se inquietaria e nada diriam. São os nossos sucessos que exasperam os inimigos. Deixemo-los, pois, dar livre expansão à sua raiva impotente, pois essa raiva mostra como sentem próxima a sua derrota; não são tão tolos a ponto de lutarem por um aborto. Quanto mais ignóbeis forem os seus ataques, menos estes devem ser temidos, porque são desprezados pelas pessoas honestas e provam que aqueles não têm boas razões a opor, uma vez que só sabem dizer injúrias.

Continuai, pois, meus amigos, a grande obra de regeneração, iniciada sob tão felizes auspícios, e em breve colhereis os frutos da vossa perseverança. Provai, sobretudo pela união e pela prática do bem, que o Espiritismo é a garantia da paz e da concórdia entre os homens, e fazei que, em se vos vendo, se possa dizer que seria desejável que todos fossem espíritas.

Sinto-me feliz, meus amigos, por ver tantos grupos unidos no mesmo sentimento, marchando de comum acordo para o nobre objetivo a que nos propomos. Sendo tal objetivo exatamente o mesmo para todos, não poderia haver divisões; uma mesma bandeira deve guiar-vos e nela está escrito: Fora da caridade não há salvação. Ficai certos de que em torno dela é que a Humanidade inteira sentirá necessidade de se congregar, quando se cansar das lutas engendradas pelo orgulho, pela inveja e pela cupidez. Esta máxima, verdadeira âncora de salvação, porque será o repouso depois da fadiga, o Espiritismo terá a glória de ser o primeiro a havê-la proclamado. Inscrevei-a em todos os locais de reunião e em vossas residências. Que, doravante, ela seja a palavra de união entre todos os homens sinceros, que querem o bem, sem segunda intenção pessoal. Mas fazei melhor ainda: gravai-a em vossos corações e, desde já, fruireis a calma e a serenidade que aí encontrarão as gerações futuras, quando ela for a base das relações sociais. Sois a vanguarda; deveis dar exemplo, a fim de encorajar os outros a vos seguirem.

Não vos esqueçais de que a tática de vossos inimigos encarnados e desencarnados é dividir-vos. Provai-lhes que perderão o tempo se tentarem suscitar entre os grupos sentimentos de inveja e rivalidade, que seriam uma apostasia da verdadeira doutrina espírita cristã.

As quinhentas assinaturas que subscrevem o convite que houvestes por bem me enviar representam um protesto contra essa tentativa, e ainda há várias outras que terei o prazer de aí ver. Aos meus olhos é mais que simples fórmula: é um compromisso para marcharmos nos caminhos que nos traçam os Espíritos bons. Conservá-las-ei preciosamente, porque um dia farão parte dos gloriosos arquivos do Espiritismo.

Ainda uma palavra, meus amigos. Indo ver-vos, uma coisa desejo: é que não haja banquete, e isto por vários motivos. Não quero que minha visita seja ocasião para despesas que poderiam impedir a presença de alguns e privar-me do prazer de ver todos reunidos. Os tempos são difíceis; importa, pois, não fazer despesas inúteis. O dinheiro que isto custaria será mais bem empregado em auxílio aos que, mais tarde, dele necessitarão. Eu vo-lo digo com toda sinceridade: o pensamento naquilo que fizerdes por mim em tal circunstância poderia ser uma causa de privação para muitos e me tiraria todo o prazer da reunião. Não vou a Lyon para me exibir, nem para receber homenagens, mas para conversar convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos, ajudar-vos com os meus conselhos naquilo que estiver em meu poder fazê-lo. E o que de mais agradável me podeis oferecer é o espetáculo de uma união boa, franca e sólida. Crede que os termos tão afetuosos do vosso convite para mim valem mais que todos os banquetes do mundo, ainda que fossem oferecidos num palácio. O que me restaria de um banquete? Nada, ao passo que vosso convite fica como preciosa lembrança e um penhor de vossa afeição.

Até breve, meus amigos; se Deus quiser terei o prazer de vos apertar as mãos cordialmente.

A. K.

AO SR. SABÒ, DE BORDEAUX

Sinto-me sensibilizado pelo desejo que me testemunharam muitos espíritas de Bordeaux, de me verem ainda este ano entre eles. Se não surgir nenhum obstáculo imprevisto, tenho a intenção de lhes fazer uma pequena visita, ainda que fosse para lhes agradecer a boa acolhida do ano passado. Mas eu vos seria muito reconhecido se lhes comunicásseis que não desejo que haja banquete. Não vou ao vosso meio para receber ovações, mas para dar instruções aos que delas sentem necessidade e com os quais terei o prazer de conversar. Alguns quiseram dar à minha visita o nome de visita pastoral; não desejo que tenha outro caráter. Crede que me sinto mais honrado com uma franca e cordial acolhida, a mais simples possível, do que com uma recepção cerimoniosa que nem convém ao meu caráter, nem aos meus hábitos, nem aos meus princípios. Se entre eles não reinasse a união, não seria um banquete que a produziria: ao contrário. Se ela existe, pode manifestar-se de outro modo, e não por uma festa, em que o amor-próprio pode encontrar guarida, mas que não tocaria um verdadeiro espírita, nem por uma despesa inútil, que seria mais bem empregada para aliviar o infortúnio. Cotizai-vos, pois, em minha intenção, se o quiserdes, e permiti que eu junte o meu óbolo; mas, em vez de desperdiçar o dinheiro, que ele sirva para alimentar aqueles a quem falta o necessário. Então será uma festa do coração, não do estômago. É preferível ser abençoado pelos infelizes a sê-lo pelos cozinheiros.

A sinceridade da união traduz-se por atos e, mais ainda, por atos íntimos do que por demonstrações aparatosas. Que, por toda parte, possa eu ver a paz e a concórdia reinarem na grande família; que cada um ponha de lado as vãs susceptibilidades, as rivalidades pueris, filhas do orgulho; que não tenham senão um objetivo: o triunfo e a propagação da doutrina, e que todos concorram com zelo, perseverança e abnegação de todo interesse e de toda vaidade pessoal. Eis o que para mim será uma verdadeira festa, o que me cumularia de satisfação e me permitiria trazer de minha segunda estada em Bordeaux a mais terna e agradável lembrança.

Peço-vos comuniqueis minhas intenções aos nossos irmãos espíritas e crer-me, etc.

A. K.

Julgamos por bem publicar estas duas respostas, a fim de não se equivocarem quanto aos sentimentos que nos guiam nas visitas que fazemos aos centros espíritas. Aproveitamos a oportunidade para agradecer aos de outras cidades que nos fizeram convite semelhante, lamentando que o tempo não nos permita ir a toda parte. Fá-lo-emos sucessivamente.

No momento em que as respostas estavam sendo impressas, um convite dos mais amáveis nos foi feito em nome dos membros da Sociedade Espírita de Viena, Áustria. Para nosso grande pesar, estamos de todo impossibilitado de ir lá este ano.


Poesias Espíritas

Peregrinações da Alma

À maneira do sangue, em gotas pequeninas

Que sai do coração por nossas veias finas,

Nossa vida a emanar da Luz da Divindade

Gravita ao infinito em busca à Eternidade

Nosso globo é local de prova e sofrimento;

É aí que estão o choro, os rangeres de dentes;

O inferno está aí, sim, e dele o livramento

Está na proporção dos males precedentes.

É assim que cada ser que deixa um mundo umbroso,

Mais ou menos se eleva a um outro mais etéreo.

Conforme puro então ou menos maculoso,

Seu ser se desenvolva ou ache outro critério.

Dos eleitos ninguém pode ao posto chegar

Sem que tenha expiado enfim seus malefícios,

Se com remorso, prece e constante pesar,

Seus males não cobrir um véu de benefícios.

O Espírito imperfeito ou alma em punição

Vem tomar novo corpo, aqui, para sofrer,

Renascer em família a cujo exemplo então

Depurar-se no bem, e de novo morrer.

Sua santa missão uma vez terminada,

Logo Deus o transporta a celeste esplendor,

E, progressivamente, é sua alma elevada

Ao infinito lar do oceano do amor.

Se em nossa marcha ocorre o término da prova,

Elevados com amor às santas regiões,

Iremos com triunfo, em harmonia nova,

Dos eleitos fazer crescer as legiões.

Para maior ventura e cúmulo de graça,

Aos que caros nos são Deus, lá, nos reunirá;

E unidos na afeição que santifica e enlaça,

No seu tão puro céu nos abençoará.

No bem, no belo, o modo enfim de ser mudando,

Alçar-nos-emos nós à sagrada cidade,

Onde veremos mais bem-estar alcançando,

Um tesouro sem fim de alta felicidade.

Desses mundos de luz galgando a escada imensa,

Mais depurados sempre e transpondo os confins,

Iremos terminar no ponto de nascença,

A renascer do amor radiosos serafins.

E de uma nova raça os primeiros seremos,

Os anjos guardiães dos homens que hão de vir,

Mensageiros de Deus dos ensinos que iremos

Enriquecer então os mundos do porvir.

De Deus tal é, eu creio, o seu real querer,

No imenso caminhar de nossa Humanidade,

Curvemo-nos, irmãos, sua ordem é poder;

Cantemos: “Glória a Deus por toda a Eternidade!”,

B. Joly, ervanário de Lyon

Observação — Procurando bem, os críticos meticulosos talvez possam encontrar alguns defeitos nesses versos. Deixamos-lhes o encargo e consideramos apenas a ideia, cuja justeza, do ponto de vista espírita, ninguém pode ignorar. É bem a alma em suas peregrinações para chegar, pelo trabalho depurador, à felicidade infinita. Um verso, entretanto, parece dominar esse fragmento, aliás muito ortodoxo e não o poderíamos admitir; é o que está expresso na quadra da epígrafe: “Gravita ao infinito em busca à eternidade” Se por isto entende o autor que a alma sobe incessantemente, resulta que jamais chegaria à felicidade perfeita. Diz a razão que a alma, sendo um ser finito, sua ascensão para o bem absoluto deve ter um limite; que, chegada a um certo ponto, não ficará em perpétua contemplação, aliás, pouco atraente e que seria uma perpétua inutilidade, mas terá uma atividade incessante e bem-aventurada, como auxiliar da Divindade.

O Anjo-da-Guarda

(Sociedade Espírita Africana — Médium: Srta. O...)

Pobres homens, num mundo em convulsão,

Com oração secai os prantos,

E não temais ruja o trovão,

Perto de vós há os anjos santos.

Deus é tão bom. Deus vosso Pai,

A todos vós sempre quis dar

Um pequeno anjo que não cai

No esforço de vos proteger.

Escutai nossa voz amiga.

Oh! Ver-vos cheios de alegria;

E após a dor que vos fustiga

Ao céu levar-vos com valia!

Pudésseis vós sorrir nos ver

Da vossa infância nos primeiros passos,

Vossos olhos, mortais, nos nossos olhos ler

Podiam nossa dor ao ver-vos nos maus laços!

Mas escutai: Vos temos que ensinar

O segredo, no bem, de vossa integração,

Que a vós também, há de chegar

Serdes, um dia, anjo guardião.

Sim, quando terminar a vossa prova

Deus vos receberá o Espírito esmerado,

E vos enviará, na Terra, a uma alma nova,

Um belo nascituro a quem sereis levado.

Amai-o bem e que vossa assistência,

O pobrezinho tenha cada dia

De seu anjo guardião maternal companhia;

Por vossa vez, guiai com paciência

Vosso pupilo e irmão à dos céus moradia.

Observação — Este trecho e um outro, de certa extensão e não menos notável, intitulado: A Criança e o Ateu, que incluiremos no próximo número, foram publicados no Echo de Sétif (Argélia), de 31 de julho de 1862, precedidos da seguinte nota:

“Um dos nossos assinantes enviou-nos as duas poesias que se seguem, recebidas por um médium de Constantina, nos primeiros dias deste mês. Mesmo não os considerando isentos de crítica, do ponto de vista das regras de versificação, nós os reproduzimos porque explicam, pelo menos em parte, a Doutrina Espírita, que tende a se espalhar cada vez mais por toda a superfície do globo.”

Esse médium parece ter a especialidade da poesia. Já recebeu grande número de versos, que escreve com incrível facilidade, sem nenhuma rasura, embora não tenha noção das regras da versificação. Vimos um dos membros da Sociedade de Constantina, em presença do qual foram escritos.


Dissertações Espíritas

Estudos Uranográficos

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. Flammarion)

De certo modo as três comunicações abaixo constituem a iniciação de um jovem médium. Vê-se que prometem para o futuro. Servem de introdução a uma série de ditados que o Espírito se propõe fazer sob o título de Estudos Uranográficos. Deixamos aos leitores a incumbência de lhes apreciarem a forma e o fundo.

I

Há tempos foi anunciado, aqui e alhures, por vários Espíritos e por diversos médiuns, que vos seriam feitas revelações sobre o sistema dos mundos. Fui chamado a contribuir, na ordem de meu destino, para que se realize tal predição.

Antes de abrir o que poderia chamar os nossos estudos uranográficos, importa firmar bem o primeiro princípio, a fim de que o edifício, sentado em bases sólidas, tenha em si as condições de durabilidade.

Este primeiro princípio, esta primeira causa é o grande e soberano poder que deu a vida aos mundos e aos seres; este preâmbulo a toda meditação séria é Deus! Ante esse nome venerado tudo se inclina e a harpa etérea dos céus faz vibrar as suas cordas de ouro. Filhos da Terra, vós que há tanto tempo balbuciais esse grande nome sem o compreender, quantas teorias audaciosas foram inscritas desde o começo das idades nos anais da filosofia humana! quantas interpretações erradas da consciências universal vieram à luz através das crenças antiquadas dos povos antigos! e ainda hoje, que a era cristã em seu esplendor raiou sobre o mundo, que ideia se faz do primeiro dos seres, do ser por excelência, daquele que é? Não vimos, nos últimos tempos, o panteísmo orgulhoso elevar-se soberbo até aquele que julgou acertado qualificar de ser absorvente, do grande todo, de cujo seio tudo saiu e no qual tudo deve entrar e um dia se confundir, sem distinção de individualidades? Não vimos o ateísmo grosseiro espalhar vergonhosamente o cepticismo, negador e corruptor de todo progresso intelectual, não obstante o que tenham dito os sofistas seus defensores? Seria interminável mencionar escrupulosamente todos os erros que foram aceitos a respeito do princípio primordial e eterno; basta a reflexão para vos mostrar que o homem terreno errará sempre que pretender explicar este problema, insolúvel para muitos Espíritos desencarnados. É vos dizer implicitamente que deveis, ou, melhor, que devemos nos inclinar humildemente ante o Grande Ser; é vos dizer, filhos, que se está em nós nos elevarmos até a ideia do Ser Infinito, isto nos deve bastar e interditar a todos a orgulhosa pretensão de manter os olhos abertos diante do Sol, sem ficarmos logo enceguecidos pelo deslumbrante esplendor de Deus na sua eterna glória! Guardai bem isto, pois é o prelúdio de nossos estudos: Crede em Deus, criador e organizador das esferas; amai a Deus, criador e protetor das almas, e poderemos penetrar juntos humildemente e, ao mesmo tempo, estudiosamente, no santuário onde Ele semeou os dons de seu infinito poder.

Galileu

II

Havendo estabelecido o primeiro ponto de nossa tese, a segunda questão que se apresenta é a do poder que conserva os seres e que se convencionou chamar Natureza. Depois da palavra que tudo resume, aquela que representa tudo. Ora, o que vem a ser a natureza? Ouvi antes a definição do naturalista moderno; diz ele: A Natureza é o trono exterior do poder divino. A tal definição juntarei esta, que resume todas as ideias dos observadores: A Natureza é o poder efetivo do Criador. Atentemos para esta dupla explicação do mesmo vocábulo que, por uma maravilhosa combinação de linguagem, representa duas coisas à primeira vista tão diversas. Efetivamente a natureza, tal como entendida no primeiro sentido, representa o efeito, cuja causa é expressa no segundo. Uma paisagem de vastos horizontes, com árvores frondosas, sob as quais sentimos a vida subir na seiva; uma campina esmaltada de flores odoríferas e coroada pelo sol: isto se chama Natureza. E se quisermos designar a força que orienta os astros no espaço e faz germinar na terra o grão de trigo? É ainda a Natureza. Que a constatação dessas várias denominações seja para vós uma fonte de profundas reflexões; que sirva para vos ensinar que, se nos servimos da mesma palavra para expressar o efeito e a causa é que, realmente, causa e efeito são uma só. O astro atrai o astro no espaço segundo leis inerentes à constituição do Universo e é atraído com a mesma força que a que nele reside. Eis a causa e o efeito. O raio solar perfuma a flor, e a abelha aí vai buscar o mel; aqui, o perfume é ainda efeito e causa. Seja onde for que na Terra apontais o olhar, podereis constatar esta dupla natureza. Concluamos daí que se a Natureza é, como a denominei, a força efetiva de Deus, ao mesmo tempo é o trono de seu poder; é, simultaneamente, ativa e passiva, efeito e causa, matéria e força imaterial; é a lei que cria, que governa, que embeleza; é o ser e a imagem; é a manifestação do poder criador, infinitamente belo, infinitamente admirável, infinitamente digno da vontade da qual é a mensageira.

Galileu

III

Nosso terceiro estudo terá por tema o espaço.

Já muitas definições de espaço foram dadas, sendo a principal esta: o espaço é a extensão que separa dois corpos, na qual certos sofistas deduziram que onde não haja corpos não haverá espaço. Nisto foi que se basearam alguns doutores em teologia para estabelecer que o espaço é necessariamente finito, alegando que certo número de corpos finitos não poderia formar uma série infinita e que, onde acabassem os corpos, igualmente o espaço acabaria.

Também definiram o espaço como sendo o lugar onde se movem os mundos, o vazio onde a matéria atua, etc. Deixemos todas essas definições, que nada definem, nos tratados onde repousam.

Espaço é uma dessas palavras que exprimem uma ideia primitiva e axiomática, de si mesma evidente, e a cujo respeito as diversas definições que se possam dar nada mas fazem do que obscurecê-la. Todos sabemos o que é o espaço e eu apenas quero firmar que ele é infinito, a fim de que os nossos estudos ulteriores não encontrem uma barreira opondo-se às investigações do nosso olhar.

Ora, digo que o espaço é infinito, pela razão de ser impossível se lhe imaginar um limite qualquer, e porque, apesar da dificuldade com que topamos para conceber o infinito, mais fácil nos é avançar eternamente pelo espaço, em pensamento, do que parar num ponto qualquer, depois do qual não mais encontrássemos extensão a percorrer.

Para figurarmos, quanto no-lo permitam as nossas limitadas faculdades, a infinidade do espaço, suponhamos que, partindo da Terra, perdida no meio do infinito, para um ponto qualquer do Universo, com a velocidade prodigiosa da centelha elétrica, que percorre milhares de léguas por segundo, e que, havendo percorrido milhões de léguas mal tenhamos deixado este globo, nos achamos num lugar de onde apenas o divisamos sob o aspecto de pálida estrela. Passado um instante, seguindo sempre a mesma direção, chegamos a essas estrelas longínquas que mal percebeis da vossa estação terrestre. Daí, não só a Terra nos desaparece inteiramente do olhar nas profundezas do céu, como também o próprio Sol, com todo o seu esplendor, se há eclipsado pela vastidão que dele nos separa. Animados sempre da mesma velocidade do relâmpago, a cada passo que avançamos na extensão, transpomos sistemas de mundos, ilhas de luz etérea, estradas estelíferas, paragens suntuosas onde Deus semeou mundos na mesma profusão com que semeou as plantas nas pradarias terrenas.

Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e, entretanto, escutai! em realidade, não avançamos um só passo que seja no Universo.

Se continuarmos durante séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes seculares e sempre com a mesma velocidade do relâmpago, também nem um passo teremos avançado, seja qual for o lado para onde nos dirijamos e qualquer que seja o ponto para onde nos encaminhamos, a partir desse grãozinho invisível donde saímos e a que chamamos Terra.

Eis aí o que é o espaço!

Galileu

Férias da Sociedade Espírita de Paris

(Sociedade Espírita de Paris, 1º de agosto de 1862 — Médium: Sr. E. Vézy)

Ides separar-vos por algum tempo, mas os Espíritos bons estarão sempre com os que lhes pedirem auxílio e apoio.

Se cada um de vós deixa a mesa do mestre, não é apenas para exercício ou repouso, mas ainda para servir, onde quer que vos espalheis, à grande causa humanitária, sob cuja bandeira viestes vos abrigar.

Bem compreendeis que para o espírita fervoroso não há horas determinadas para o estudo; toda a sua vida não é mais que uma hora, curta demais para o trabalho a que se dedica: o desenvolvimento intelectual das raças humanas!...

Os galhos não se destacam do tronco porque deste se afastem; ao contrário, dão lugar a novos brotos que os unem e os tornam solidários.

Aproveitai estas férias que vão espalhar-vos, para vos tornardes ainda mais fervorosos, a exemplo dos apóstolos do Cristo; saí deste cenáculo fortes e corajosos; que vossa fé e vossa boas obras liguem em torno de vós milhares de crentes, que bendirão a luz que espalhareis em vosso redor.

Coragem! Coragem! no dia do encontro, quando a auriflama do Espiritismo vos chamar ao combate e se desdobrar sobre vossas cabeças, que cada um tenha em torno de si os adeptos que houver formado sob sua bandeira, e os Espíritos bons contarão o seu número e o levarão a Deus!

Não durmais, pois, espíritas, à hora da sesta; vigiai e orai! já vos disse e outras vozes vo-lo repetirão, soa o relógio dos séculos, uma vibração retine, chamando os que se acham na noite. Infelizes dos que não quiserem apurar o ouvido para escutá-la!

Ó, espíritas, ide despertar os dorminhocos e dizei-lhes que vão ser surpreendidos pelas vagas do mar que sobe em rugidos surdos e terríveis; ide dizer-lhes que escolham um lugar mais iluminado e mais sólido, porque eis que os astros declinam e a Natureza inteira se move, treme e se agita!...

Mas após as trevas eis a luz; aqueles que não tiverem querido ver e nem ouvir imigrarão naquela hora para mundos inferiores para expiar e esperar muito tempo, mui longamente os novos astros que devem elevar-se e os esclarecer! O tempo lhes parecerá uma eternidade, porquanto não entreverão o termo de suas penas até o dia em que começarem a crer e compreender.

Espíritas, não mais vos chamarei crianças, mas homens, homens valentes e corajosos! Soldados da nova fé: combatei valentemente; armai o braço com a lança da caridade e cobri o corpo com o escudo do amor. Entrai na liça! alerta! desprezai o erro e a mentira e estendei a mão aos que vos perguntarem: “Onde está a luz?” Dizei-lhes que os que caminham guiados pela estrela do Espiritismo não são pusilânimes, não temem miragens e não aceitam como leis senão aquilo que ordena a fria e sã razão; que a caridade é a sua divisa e que só se despojam por seus irmãos em nome da solidariedade universal e jamais para ganharem um paraíso, que sabem muito bem não poderem possuir senão quando tiverem expiado bastante!... que conheçam a Deus e que, antes de tudo, saibam que ele é imutável em sua justiça e, consequentemente, não pode perdoar uma vida de faltas acumuladas por um segundo de arrependimento, como não pode punir uma hora de sacrilégio por uma eternidade de suplício!...

Sim, espíritas, contai os anos de arrependimento pelo número de estrelas; a idade de ouro virá para aquele que tiver sabido contá-las!...

Ide, pois, trabalhadores e soldados e que cada um volte com a pedra ou o calhau que deve auxiliar a construção do novo edifício. Em verdade vos digo: desta vez não tereis mais de temer a confusão, embora querendo elevar até o céu a torre que o coroará; ao contrário, Deus estenderá a sua mão no vosso caminho, a fim de vos pôr ao abrigo dos furacões.

Eis a segunda hora do dia, eis os servidores que vêm de novo da parte do Mestre procurar trabalhadores; vós, que estais desocupados, vinde! não espereis a última hora!...

Santo Agostinho


Aos Centros Espíritas que Devemos Visitar

O número de centros que nos propomos visitar, aliado à extensão do trajeto, não nos permite consagrar a cada um o tempo que desejaríamos. Julgamos útil aproveitar o melhor possível esse tempo para instrução. Com esse objetivo é nossa intenção responder, tanto quanto nos for possível, às perguntas sobre as quais desejam esclarecimentos. Temos notado que, quando fazemos tal proposta durante as reuniões, geralmente não sabem o que perguntar e muitas pessoas se calam por timidez ou por dificuldade de exprimir o seu pensamento. Para evitar este duplo inconveniente, pedimos que preparem as perguntas previamente e por escrito, e nos entreguem a lista antes da reunião. Assim poderemos classificá-las metodicamente, excluir repetições e responder de modo mais satisfatório para todos, refutando, ao mesmo tempo, as objeções à doutrina.

Ao Sr. E. K.

Nada tenho a ver com a inscrição de que me fala em sua carta de 2 de agosto, datada de Guingamp, por uma razão muito simples: nunca estive na Bretanha. E acrescento que jamais conheci esse Manè, Thécel, Pharès de outro gênero, como o chamais. Se ele pôde produzir em vós uma impressão salutar, agradeça ao seu autor desconhecido. Em todo o caso, terei satisfação em vos receber quando vierdes a Paris, onde, entretanto, só estarei de volta nos primeiros dias de outubro. Será um prazer dar verbalmente todas as instruções que desejardes.

Allan Kardec



[1] Se a Igreja ainda não se pronunciou, a questão do demônio não passa de uma opinião individual, sem sanção legal. E isto é tão certo que nem todos os eclesiásticos a compartilham; dentre estes conhecemos muitos. Até mais ampla informação, é permitida a dúvida e, desde já, pode ver-se que a doutrina do demônio tem pouco domínio sobre as massas. Se a Igreja a proclamasse oficialmente, seria de temer que desse julgamento resultasse o que resultou da declaração de heresia e da condenação outrora pronunciada contra o movimento da Terra, como ocorreu em nossos dias com os anátemas lançados contra a Ciência a propósito dos seis períodos da criação. Cremos que o clero seria mais sábio e prudente se não se apressasse em decidir a questão, afirmando uma coisa que atualmente provoca mais incredulidade e mais riso do que medo e na qual podemos atestar que muitos padres não creem mais do que nós, porque é ilógica. Expor-se a receber um desmentido no futuro e depois se ver forçado a reconhecer o erro, é prejudicar a autoridade moral da Igreja, que proclama a infalibilidade de seus julgamentos. Seria melhor que se abstivesse.

Aliás, digam o que disserem e façam o que quiserem contra o Espiritismo, prova a experiência que sua marcha é irresistível; é uma ideia que se implanta por toda parte com prodigiosa rapidez, porque satisfaz, ao mesmo tempo, à razão e ao coração. Para o deter seria preciso opor-lhe uma doutrina que satisfizesse mais, e certamente não será a do demônio e a das penas eternas.

A. K.

[2] Há falsos católicos, verdadeiros católicos e materialistas que utilizam essa linguagem. Que o tivessem dito há alguns anos, poder-se-ia conceber. Mas nos últimos quatro ou cinco anos ele deu tantos passos e os dá todos os dias que, em breve, terá atingido o seu objetivo. Procurai na História uma doutrina que tenha percorrido tanta distância em tão pouco tempo. Em presença desse resultado inaudito de uma propagação contra a qual vêm quebrar-se todos os raios e todas as zombarias; que cresce na razão da violência dos ataques, é, na verdade, muita ingenuidade dizer que o Espiritismo é simples fogo de palha. Se assim é, por que tanta cólera? Deixai, pois, que ele se apague sozinho. Nós, que assistimos de camarote à sua marcha, que lhe acompanhamos todas as peripécias, vemos a sua conclusão; agora é chegada a nossa vez de rir.

A.K.

Outubro de 1862

Apolônio de Tiana

À exceção dos eruditos, Apolônio de Tiana quase que só é conhecido de nome. O seu nome não é popular, por falta de uma história ao alcance de todos. Só havia algumas traduções, baseadas numa tradução latina de formato incômodo. Devemos, pois, agradecer ao sábio helenista que acaba de popularizá-lo por meio de uma tradução conscienciosa, calcada no texto original grego, bem assim aos editores, por terem, com esta publicação, preenchido lamentável lacuna[1].

Não há datas precisas sobre a vida de Apolônio. Conforme certos cálculos, teria nascido dois ou três anos antes de Jesus Cristo e morrido aos noventa e seis anos, pelos fins do primeiro século. Nasceu em Tiana, cidade grega da Capadócia, na Ásia Menor. Desde cedo deu provas de grande memória e notável inteligência, demonstrando grande entusiasmo pelo estudo. De todas as filosofias que estudou, adotou a de Pitágoras, cujos preceitos seguiu rigorosamente até a morte. Seu pai, um dos mais ricos cidadãos de Tiana, deixou-lhe uma fortuna considerável, que ele repartiu com os parentes, reservando apenas uma pequena parte para si, porque, como dizia, o sábio deve saber contentar-se com pouco. Viajou muito para se instruir; percorreu a Assíria, a Cítia, a Índia, onde visitou os Brâmanes, o Egito, a Grécia, a Itália e a Espanha, ensinando por toda parte a sabedoria, graças à doçura do seu caráter e à honradez de suas virtudes, recrutando numerosos discípulos que lhe seguiam os passos a fim de ouvi-lo, alguns dos quais o acompanharam em suas viagens. Um deles, porém — Eufrates — invejoso de sua superioridade e de sua boa reputação, tornou-se seu detrator e mortal inimigo, não cessando de espalhar calúnias contra ele para o perder; mas apenas conseguiu aviltar-se. Apolônio jamais se inquietou e, longe de lhe guardar qualquer ressentimento, lamentava-o por sua fraqueza e sempre procurava retribuir-lhe o mal com o bem. Ao contrário, Damis, jovem assírio que ele conheceu em Nínive, a ele se ligou com uma fidelidade a toda prova, foi o companheiro assíduo de suas viagens, o depositário de sua filosofia e deixou sobre ele a maior parte das informações que possuímos.

O nome de Apolônio de Tiana está misturado ao de todas as personagens lendárias que a imaginação dos homens se deleitou em revestir de atributos maravilhosos. Seja qual for o exagero dos fatos a ele atribuídos, é evidente que, ao lado das fábulas, encontra-se um fundo de verdades mais ou menos adulteradas. Ninguém poderia com segurança pôr em dúvida a existência de Apolônio de Tiana; o que é igualmente certo é que deve ter feito coisas notáveis, sem o que delas não teriam falado. Para que a imperatriz Júlia Domna, esposa de Séptimo-Severo, tivesse pedido a Filostrato que escrevesse sua vida, fora necessário que ele tivesse dado o que falar, pois não é provável que ela tivesse encomendado um romance sobre um homem imaginário ou obscuro. Que Filostrato tivesse amplificado os fatos, ou que os tivesse achado amplificados, é provável e mesmo certo; pelo menos alguns deles estão fora de qualquer probabilidade. Mas o que não é menos certo é que colheu a essência de sua narrativa em relatos quase contemporâneos e que deviam gozar de suficiente notoriedade para merecerem a atenção da imperatriz. Às vezes a dificuldade está em deslindar a fábula da verdade. Neste caso há criaturas que acham mais simples negar tudo.

As personagens desta natureza são apreciadas muito diversamente; cada um as julga conforme suas opiniões, suas crenças e, mesmo, conforme seus interesses. Mais que qualquer outro, Apolônio de Tiana devia dar motivo para controvérsia, pela época em que viveu e pela natureza de suas faculdades. Entre outras coisas lhe atribuem o dom de curar, a presciência, a visão a distância, o poder de ler o pensamento, expulsar os demônios e de se transportar instantaneamente de um lugar para outro, etc. Poucos filósofos gozaram em vida de maior popularidade. Seu prestígio ainda era aumentado pela austeridade de seus hábitos, pela sua doçura, simplicidade, desinteresse, caráter benevolente e reputação de saber. O paganismo deitava, então, os seus últimos lampejos, e se debatia contra a invasão do Cristianismo nascente: quis transformá-lo num Deus. Misturando ideias cristãs a ideias pagãs, alguns o tomaram por um santo; os menos fanáticos não viram nele mais que um filósofo. É a opinião mais razoável e o único título que ele alguma vez aceitou, porquanto recusou o de filho de Júpiter, como alguns o pretendiam. Embora contemporâneo do Cristo, parece que dele não ouviu falar, porque em sua vida não faz nenhuma alusão ao que, então, se passava na Judéia.

Entre os cristãos que mais tarde o julgaram, uns o declararam velhaco e impostor; outros, não podendo negar os fatos, pretenderam que operasse prodígios pela assistência do demônio, sem pensar que assim confessavam os mesmos prodígios, fazendo de Satã o rival de Deus, pela dificuldade de distinguir os prodígios divinos dos diabólicos. São as duas opiniões que têm prevalecido na Igreja.

O autor dessa tradução manteve-se em sábia neutralidade. Não esposou nenhuma versão e, a fim de permitir que cada um as apreciasse, indicou com escrupuloso cuidado todas as fontes em que se pode colhê-las, deixando a cada um a liberdade de tirar, pela comparação dos argumentos favoráveis e contrários, a consequência que julgar conveniente, limitando-se a fazer uma tradução fiel e conscienciosa.

Os fenômenos espíritas, magnéticos e sonambúlicos lançam hoje uma luz inteiramente nova sobre os fatos atribuídos a essa personagem, demonstrando a possibilidade de certos efeitos, até hoje relegados ao domínio fantástico do maravilhoso, e permitindo separar o possível do impossível.

Antes de mais, o que é o maravilhoso? O cepticismo responde: É tudo aquilo que, estando fora das leis da Natureza, é impossível. Depois acrescenta: Se os relatos antigos são pródigos em fatos desse gênero, deve-se ao amor do homem pelo maravilhoso. Mas de onde vem esse amor? É o que ele não diz e que tentaremos explicar. Isto não será inútil àquilo que nos interessa.

Aquilo que o homem chama de maravilhoso o transporta pelo pensamento além dos limites do conhecido e é a inspiração íntima por uma ordem de coisas melhor, que o leva a procurar com avidez o que aí o pode ligar e lhe dar uma ideia. Tal aspiração lhe vem da intuição que tem, de que essa ordem de coisas deve existir; não a encontrando na Terra, busca-a na esfera do desconhecido. Mas não será essa mesma aspiração um indício providencial de que algo existe além da vida corporal? Ela só é dada ao homem, porque, nada esperando, os animais não buscam o maravilhoso. Intuitivamente o homem compreende que há, fora do mundo visível, uma força, da qual faz uma ideia mais ou menos justa, conforme o desenvolvimento de sua inteligência e, muito naturalmente, vê a ação direta dessa força em todos os fenômenos que não compreende. Assim, outrora, uma imensidade de fatos passava por maravilhosos e hoje são perfeitamente explicados, entrando no domínio das leis naturais. Disso resultou que todos os homens que possuíssem faculdades ou conhecimentos superiores ao vulgo passariam por ter uma porção dessa força invisível, ou domínio sobre ela; foram chamados de magos ou feiticeiros. A opinião da Igreja fez prevalecer a ideia de que tal força não poderia provir senão do Espírito do mal, quando exercida fora de seu seio. Eram tempos de barbárie e de ignorância, em que se queimavam os pretensos magos e feiticeiros; o progresso da Ciência os recolocou na Humanidade.

Onde encontrais — perguntam os incrédulos — mais histórias maravilhosas? Não será na Antiguidade, entre os povos selvagens, nas classes menos esclarecidas? Não é prova de que resultam da superstição, filha da ignorância? Da ignorância é incontestável, e por uma razão muito simples. Os Antigos, que sabiam menos que nós, não eram menos impressionados pelos mesmos fenômenos; conhecendo menos as verdadeiras causas, buscavam causas sobrenaturais para as coisas mais naturais. Ajudados pela imaginação e secundados pelo medo, de um lado, e pelo gênio poético, do outro, engendravam contos fantásticos, ampliados pelo gosto da alegoria peculiar aos povos do Oriente. Lutando afanosamente com o fogo que o consumia, Prometeu devia passar como um ser sobre-humano, punido por sua temeridade, por ter usurpado os direitos de Júpiter. Franklin, o moderno Prometeu, para nós é um simples sábio. Montgolfier, elevando-se nos ares, nos tempos mitológicos teria sido Ícaro. Por quem tomariam o Sr. Poitevin, elevando-se num cavalo?

Tendo feito uma porção de fatos entrar na ordem natural, a Ciência reduziu bastante os fatos maravilhosos. Mas terá explicado tudo? Conhece todas as leis que regem os mundos? Nada mais tem a ensinar? Cada dia dá um desmentido a esta orgulhosa pretensão. Não tendo ainda investigado todos os segredos de Deus, daí resulta que muitos fatos antigos se acham inexplicados. Ora, não admitindo como possível senão aquilo que compreende, acha mais simples chamá-los maravilhosos, fantásticos, isto é, inadmissíveis pela razão. A seus olhos todos os homens, que supostamente os produziram, ou são mitos ou impostores e, diante de tal juízo, Apolônio de Tiana não encontraria graça. Ei-lo, assim, condenado pela Igreja, que admite os fatos, como um suposto Satã, e pelos cientistas, que não os admitem, como um hábil prestidigitador.

A lei de gravitação abriu novo caminho à Ciência e explicou uma multidão de fenômenos sobre os quais se haviam edificado teorias absurdas; a lei das afinidades moleculares veio dar-lhe um novo passo; a descoberta do mundo microscópico abriu-lhe novos horizontes; por sua vez a eletricidade veio revelar-lhe uma nova força, da qual não suspeitava. A cada uma dessas descobertas viu ela serem resolvidas muitas dificuldades, muitos problemas, muitos mistérios incompreendidos ou falsamente interpretados. Mas quanta coisa ainda a esclarecer! Não se poderá admitir a descoberta de uma nova lei, de uma nova força, que venham projetar a luz sobre pontos ainda obscuros? Pois bem! É uma nova força que o Espiritismo vem revelar; esta força é a ação do mundo invisível sobre o visível. Mostrando nesta ação uma lei natural, ele recua mais ainda os limites do maravilhoso e do sobrenatural, porque explica uma porção de coisas que pareciam inexplicáveis antes da descoberta da eletricidade.

Limita-se o Espiritismo a admitir o mundo invisível como hipótese e como meio de explicação? Não, porquanto seria explicar o desconhecido pelo desconhecido. Ele prova a sua existência por fatos patentes, irrecusáveis, como o microscópio provou a existência do mundo dos infinitamente pequenos. Tendo, pois, demonstrado que o mundo invisível nos envolve, que esse mundo é essencialmente inteligente, uma vez que se compõe das almas dos homens que hão vivido, concebe-se facilmente que possa representar um papel ativo no mundo visível e produzir fenômenos de ordem particular. São esses fenômenos que a Ciência chama de maravilhosos, por não os poder explicar pelas leis conhecidas. Sendo tais fenômenos uma lei da Natureza, devem ter-se produzido em todos os tempos. Ora, como repousassem na ação de uma força fora da Humanidade, e como todas as religiões têm por princípio a homenagem prestada a essa força, serviram de base a todas os credos; esta a razão por que todos os relatos antigos, assim como todas as teogonias, são pródigos em alusões e alegorias concernentes às relações do mundo invisível com o visível, ininteligíveis se não se conhecem tais relações. Querer explicá-las sem isto é querer explicar os fenômenos elétricos sem a eletricidade. Esta lei é uma chave que abrirá a maior parte dos santuários misteriosos da Antiguidade. Uma vez reconhecida, os historiadores, os arqueólogos, os filósofos verão desdobrar-se um horizonte completamente novo e a luz se fará sobre os pontos mais obscuros.

Se esta lei ainda encontra opositores, tem isto de comum com tudo o que é novo; deve-se, além disso, ao espírito materialista que domina nossa época e, em segundo lugar, porque em geral se faz do mundo invisível uma ideia de tal modo falsa que a incredulidade é uma consequência. O Espiritismo não só demonstra a sua existência, mas o apresenta sob um aspecto tão lógico que a dúvida não tem mais razão de ser em quem quer que se dê ao trabalho de estudá-lo conscienciosamente.

Não pedimos aos cientistas que creiam; como, porém, o Espiritismo é uma filosofia que ocupa vasto espaço no mundo, mesmo que não passasse de um sonho mereceria exame, ainda que fosse para saber o que ele diz. Só lhes pedimos uma coisa: estudá-lo, mas estudá-lo a fundo, para não lhe imputar aquilo que ele não diz. Depois, então, creiam ou não creiam, auxiliados por essa alavanca, tomada como simples hipótese, que tentem resolver os milhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos, teológicos, psicológicos, morais, sociais, etc., ante os quais têm fracassado, e verão o seu resultado. Não lhes pedir a fé não é exigir muito.

Voltemos a Apolônio. Incontestavelmente, os Antigos conheciam o magnetismo. Encontramos sua prova em certas pinturas egípcias. Conheciam igualmente o sonambulismo e a dupla vista, que são fenômenos psicológicos naturais. Conheciam as diversas categorias de Espíritos, que chamavam deuses, e suas relações com os homens. Os médiuns curadores, videntes, falantes, auditivos, inspirados, etc., deviam existir entre eles como em nossos dias, como se veem numerosos exemplos entre os árabes. Com o auxílio desses dados e do conhecimento das propriedades do perispírito — envoltório corporal fluídico dos Espíritos — podemos perfeitamente nos dar conta de vários fatos atribuídos a Apolônio de Tiana, sem recorrer à magia, à feitiçaria, nem à astúcia. Dizemos de vários fatos, porquanto alguns há cuja impossibilidade o próprio Espiritismo vem demonstrar; é nisso que ele serve para distinguir a verdade do erro. Deixamos aos que tiverem feito um estudo sério e completo desta ciência o cuidado de estabelecer a distinção entre o possível e o impossível, o que lhes será fácil.

Consideremos agora Apolônio de outro ponto de vista. Ao lado do médium, que naquele tempo o convertia num ser quase sobrenatural, nele havia o filósofo, o sábio. Sua filosofia revelava a doçura de seus hábitos e de seu caráter, de sua simplicidade em todas as coisas. Pode-se julgá-lo por algumas de suas máximas.

Tendo censurado os lacedemônios degenerados e efeminados, e havendo estes aproveitado os seus conselhos, escreveu aos éforos: “Apolônio aos éforos: saúde! Os verdadeiros homens não devem cometer faltas; mas só aos homens de coração, se as cometem, cabe reconhecê-las.”

Tendo recebido do imperador uma carta de censura, os lacedemônios vacilavam entre conjurar sua cólera ou lhe responder com arrogância. Consultaram Apolônio quanto à forma de responder. Este veio à assembleia e lhes disse apenas estas palavras: “Se Palamédio inventou a escrita, não foi somente para que se pudesse escrever, mas para que se soubesse quando não se deve escrever.”

Interrogando Apolônio, perguntou-lhe o cônsul romano Telesino: “Quando vos aproximais do altar, qual a vossa prece? — Peço aos deuses que reine a justiça, que as leis sejam respeitadas, que os sábios sejam pobres, que os outros se enriqueçam, mas por meios honestos. — Que! quando pedis tantas coisas pensais em ser atendido? — Sem dúvida, porque peço tudo isto numa só palavra, ao me aproximar do altar: ‘Ó deuses! Dai-me o que me é devido.’ Se eu pertencer ao número dos justos, obterei mais do que pedi; se, ao contrário, os deuses me puserem no número dos maus, punir-me-ão e não poderei censurá-los, visto que, não sendo bom, serei castigado.”

Conversando com Apolônio sobre a maneira de governar quando fosse imperador, disse-lhe Vespasiano: “Vendo o império aviltado pelos tiranos que vos acabo de citar, quis aconselhar-me convosco quanto à maneira de reabilitá-lo na estima dos homens. — Certo dia, disse Apolônio, um dos mais hábeis flautistas mandou seus alunos aos piores flautistas para lhes ensinar como não deviam tocar. Sabeis agora, Vespasiano, como não se deve reinar: vossos predecessores vo-lo ensinaram. Reflitamos agora sobre a maneira de bem reinar.”

Estando preso em Roma, no tempo de Domiciano, fez uma preleção aos prisioneiros, para lembrar-lhes a coragem e a resignação, e lhes disse: “Todos que aqui nos achamos, estamos presos durante isto que se chama vida. Ligada ao corpo perecível, nossa alma sofre numerosos males e é escrava de todas as necessidades da condição humana.”

Na sua prisão, respondendo a um emissário de Domiciano que o incitava a acusar Nerva, a fim de conseguir a sua liberdade, disse Apolônio: “Meu amigo, se fui posto a ferros por ter dito a verdade a Domiciano, o que me aconteceria, se houvesse mentido? O imperador crê que é a franqueza que merece os ferros, mas eu creio que é a mentira.”

Numa carta a Eufrates: “Perguntei aos ricos se não tinham preocupações. ‘Como não as teríamos?’ responderam eles. — ‘E de onde vêm as vossas preocupações? — De nossas riquezas.’ Eufrates, eu vos lamento, pois acabais de enriquecer.”

Ao mesmo: “Os homens mais sábios são os mais breves em seus discursos. Se os tagarelas sofressem o que fazem sofrer aos outros, não falariam tanto.”

Outra a Criton: “Disse Pitágoras que a Medicina é a mais divina das artes. Se assim é, faz-se necessário que o médico se ocupe da alma e, ao mesmo tempo, do corpo. Como um ser poderia estar sadio, quando a parte mais importante de si mesmo estivesse doente?”

Outra aos platônicos: “Se oferecerem dinheiro a Apolônio e isto lhe parecer razoável, ele não terá dificuldade em aceitar, por pouco que precise. Mas um salário pelo que ensina, jamais, por muito que necessite.”

Outra a Valério: “Ninguém morre, a não ser aparentemente, assim como ninguém nasce, a não ser em aparência. Com efeito, a passagem da essência à substância, eis o que se chama nascer; e o que se chama morrer é, ao contrário, a passagem da substância à essência.”

Aos sacrificadores do Olimpo: “Os deuses não necessitam de sacrifícios. Que se deve fazer, então, para lhes ser agradável? Se não me engano, é preciso procurar adquirir a divina sabedoria e prestar, tanto quanto possível, serviços aos que o merecem. Eis o de que gostam os deuses. Os próprios ímpios podem fazer sacrifícios.”

Aos efésios do templo de Diana: “Conservastes todos os ritos dos sacrifícios, todo o fausto da realeza. Como banqueteadores e convivas alegres, sois irrepreensíveis; mas quantas censuras não vos podem ser feitas, como vizinhos da deusa noite e dia? Não é de vosso meio que saem os vigaristas, os salteadores, os mercadores de escravos, todos os homens ímpios e injustos? O templo é um covil de ladrões.”

Aos que se julgam sábios: “Dizeis que sois meus discípulos? Pois bem! acrescentai que permaneceis sempre em casa, jamais ides às termas, não matais os animais, não comeis carne, estais livres das paixões, da inveja, da malignidade, do ódio, da calúnia, do ressentimento, que, enfim, pertenceis ao número dos homens livres. Não façais como os que, em discursos mentirosos, fazem crer que vivem de um modo, ao passo que vivem de modo totalmente oposto.”

Ao seu irmão Hestieu: “Em toda parte sou olhado como um homem divino; nalguns lugares chegam a me tomar por um deus. Em minha pátria, contudo, não passo de um desconhecido. É de admirar? Vós mesmos, meus irmãos, bem vejo que ainda não estais convencidos de que eu seja superior a muitos homens pela palavra e pelos costumes. E como os meus concidadãos e os meus parentes se enganaram a meu respeito? Ah! este erro me é bem doloroso! Sei que é belo considerar toda a Terra como sua pátria e todos os homens como irmãos e amigos, já que todos descendem de Deus e são de uma mesma natureza, visto terem igualmente as mesmas paixões e serem todos, igualmente, homens, quer nascidos gregos ou bárbaros.”

Estando em Catânia, na Sicília, numa instrução dada a seus discípulos, falando do Etna, disse: “Escutando-os, sob essa montanha geme acorrentado algum gigante, Tifeu ou Enceládio, que, em sua longa agonia, vomita todo esse fogo. Concordo que tenham existido gigantes, porque, em diversos locais, túmulos entreabertos nos deixam ver esqueletos que indicam homens de estatura extraordinária; mas eu não poderia admitir que tivessem entrado em luta contra os deuses; no máximo teriam ultrajado seus templos e suas estátuas. Mas que tenham escalado o céu e dali expulsado os deuses, é insensato dizer e acreditar. Outra fábula, que parece menos irreverente para com os deuses e da qual já não devemos fazer caso, é que Vulcano trabalha na forja nas profundezas do Etna e que ali faz incessantemente retinir a bigorna. Em diversos pontos da Terra há outros vulcões e ninguém se lembra de dizer que haja outros tantos gigantes e Vulcanos.”

Certos leitores teriam achado mais interessante que citássemos os prodígios de Apolônio para os comentar e explicar; mas, antes de tudo, quisemos mostrar o filósofo e o sábio, em vez do taumaturgo. Pode-se aceitar ou rejeitar tudo quanto se queira dos fatos maravilhosos a ele atribuídos, mas parece difícil que um homem que diz tais palavras, que professa e pratica tais princípios, seja um prestidigitador, um velhaco, ou um possesso do demônio.

No que respeita a prodígios, citaremos apenas um, que prova suficientemente uma das faculdades de que ele era dotado.

Depois de narrar minuciosamente o assassinato de Domiciano, acrescenta Filostrato:

“Enquanto tais fatos se passavam em Roma, Apolônio os via em Éfeso. Domiciano foi assaltado por Clemente por volta de meio-dia; no mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio dissertava nos jardins contíguos aos xistos. De repente baixou um pouco a voz, como se tomado de súbito pavor. Continuou seu discurso, mas a linguagem não tinha a força habitual, como acontece aos que falam pensando em outra coisa. Depois se calou, como quem perde o fio da conversa; lançou para o chão um olhar assustador, deu três ou quatro passos à frente e exclamou: ‘Fulmina o tirano! fulmina!’ Dir-se-ia que visse não a imagem do fato num espelho, mas o próprio fato em toda a sua realidade. Os efésios (porquanto Éfeso inteira assistia ao discurso de Apolônio) foram tomados de espanto. Apolônio parou, semelhante a um homem que buscasse ver o desfecho de um acontecimento duvidoso. Enfim exclamou: ‘Tende bom ânimo, efésios. O tirano foi morto hoje. Que digo, hoje? Por minerva! Acaba de ser morto agora mesmo, quando me interrompi.’ Os efésios pensaram que Apolônio houvesse perdido o juízo; desejavam vivamente que ele tivesse dito a verdade, mas temiam que algum perigo resultasse desse discurso. ‘Não me admiro — disse Apolônio — que ainda não me acreditem: a própria Roma ainda não sabe por completo. Mas eis que o saberá, a notícia se espalha e milhares de cidadãos já acreditam; isto faz pular de alegria o duplo desses homens e o quádruplo e o povo inteiro. A notícia logo chegará aqui; podeis adiar, até que souberdes do fato, o sacrifício que deveis oferecer aos deuses por esta ocasião. Quanto a mim, retiro-me para lhes render graças pelo que vi.’ Os efésios mantiveram-se na sua incredulidade, mas logo vieram mensageiros para lhes anunciar a boa nova e testemunharem em favor da ciência de Apolônio; porque o assassinato do tirano, o dia e a hora em que foi consumado, o autor do assassínio, que havia entusiasmado Apolônio, todos os detalhes eram perfeitamente conformes aos que os deuses lhe haviam mostrado no dia em que discursava aos efésios.”

Naquela época nada mais era preciso para fazê-lo passar por um homem divino. Em nossos dias os cientistas o teriam tratado como visionário. Para nós era dotado da segunda vista, cuja explicação é dada pelo Espiritismo. (Vide a teoria do sonambulismo e da dupla vista em O Livro dos Espíritos, no 455).

Sua morte apresentou outro prodígio. Certa tarde, tendo entrado no templo de Dictina, em Lynde (Creta), não obstante os cães ferozes que lhe guardavam a entrada e que, em vez de ladrar à sua chegada, vieram acariciá-lo, foi, por isto mesmo, detido como mago pelos guardas do templo, e acorrentado. Durante a noite desapareceu à vista dos guardas, sem deixar vestígios e sem que lhe encontrassem o corpo. Dizem que naquela ocasião foram ouvidas vozes de moças que cantavam: “Deixai a Terra; ide para o Céu, ide!” como para o exortar a elevar-se da Terra para as regiões superiores.

Assim termina Filostato a narração da vida de Apolônio:

“Mesmo depois de desaparecido, Apolônio sustentou a imortalidade da alma e ensinou que é verdade aquilo que se diz a respeito. Havia então em Tiana um certo número de jovens apaixonados por sua filosofia; a maior parte de suas discussões girava em torno da alma. Um deles não podia admitir que fosse imortal. Eis dez meses — dizia ele — que rogo a Apolônio me revele a verdade sobre a imortalidade da alma; mas ele está tão morto que minhas preces são inúteis, não me aparecendo nem mesmo para provar que era imortal. Cinco dias depois falou do mesmo assunto com os seus companheiros e adormeceu no mesmo lugar em que havia ocorrido a discussão. De repente pulou, como se vitimado por um acesso de demência: estava meio adormecido e banhado de suor. Eu te acredito, bradou ele. Seus camaradas perguntaram-lhe o que tinha. Não vedes o sábio Apolônio? Está em nosso meio, ouve a nossa discussão e recita melodiosos cantos sobre a alma. — Onde está ele?, perguntaram os outros, pois não o vemos e isto é uma felicidade que preferiríamos a todos os bens da Terra. — Parece que veio só para mim: quer ensinar-me aquilo que me recusava a crer. Escutai, pois, escutai os cantos divinos que me faz ouvir:

“A alma é imortal; não é vossa, mas da Providência. Quando o corpo está esgotado, semelhante a um corredor veloz que vence todo o seu trajeto, a alma se eleva e se precipita nos espaços etéreos, tomada de desprezo pela triste e rude escravidão que sofreu. Mas que vos importam essas coisas! Conhecê-las-ei quando não mais existirdes. Por que tentar penetrar esses mistérios, se ainda vos encontrais entre os vivos?”

“Tal o oráculo tão claro, dado por Apolônio sobre os destinos da alma. Quis ele que, conhecendo a nossa natureza, marchássemos com o coração alegre, para o fim que nos destinam as Parcas.”

A aparição de Apolônio depois da morte é tratada como alucinação pela maioria de seus comentadores, cristãos ou outros, que pretendiam que o jovem tivesse a imaginação ferida pelo próprio desejo de o ver, o que o levou apensar que o tinha visto. Em todos os tempos, contudo, a Igreja, tem reconhecido esse tipo de aparição; cita vários exemplos como autênticos. O Espiritismo vem explicar o fenômeno, baseado nas propriedades do perispírito, envoltório ou corpo fluídico do Espírito que, por uma espécie de condensação, toma uma aparência visível e pode, como se sabe, tornar-se tangível. Sem o conhecimento da lei constitutiva dos Espíritos, esse fenômeno é maravilhoso; conhecida a lei, o maravilhoso desaparece para dar lugar a um fenômeno natural. (Vide em O Livro dos Médiuns a teoria das manifestações visuais, capítulo VI). Admitindo que o jovem tivesse sido joguete de uma ilusão, restaria aos negadores explicar as palavras atribuídas a Apolônio, palavras sublimes e inteiramente opostas às ideias que, momentos antes, ele acabava de sustentar.

O que faltava a Apolônio para ser cristão? Muito pouco, como se vê. Não permita Deus que estabeleçamos um paralelo entre ele e o Cristo! O que prova a incontestável superioridade deste e a divindade de sua missão é a revolução produzida no mundo inteiro pela doutrina que ele, obscuro, e seus apóstolos, tão obscuros quanto ele, pregaram, enquanto que a de Apolônio morreu com ele. Seria, pois, impiedade apresentá-lo como rival do Cristo! Mas, se quisermos prestar atenção ao que disse a respeito do culto pagão, veremos que condena as formas supersticiosas e lhes desfere terrível golpe, substituindo-as por ideias mais sãs. Se assim tivesse falado ao tempo de Sócrates teria, como este último, pago com a vida aquilo que haveriam chamado a sua impiedade. Mas na época em que viveu as crenças pagãs já haviam feito sua parte e ele foi ouvido. Por sua moral preparou os pagãos, em cujo meio viveu, para receberem, com menos dificuldade, as ideias cristãs, às quais serviu de transição. Assim, acreditamos estar com a verdade, dizendo que ele serviu de traço de união entre o paganismo e o Cristianismo. Sob esse aspecto, talvez tivesse ele também uma missão. Podia ser ouvido pelos pagãos, mas não o foi pelos judeus.


Resposta à “Abeille Agénaise” pelo Sr. Dombre

Lê-se o seguinte na Abeille Agénaise de 25 de maio de 1862:

“Temos em mão um escrito de uma graça encantadora, intitulado: Conversas Espíritas. O autor, Sr. Cazenove de Pradines, antigo presidente da Sociedade de Agricultura, Ciências e Artes de Agen, encarregou recentemente o Sr. Magen do prazer e do trabalho de o ler em nossa Academia. Inútil dizer com que interesse a comunicação foi recebida.

“Assim resume o Sr. Cazenove as doutrinas da nova seita, extraindo-as de O Livro dos Espíritos:

“1º — Geralmente os Espíritos de ordem elevada não permanecem na Terra senão durante curto período.

“2º — Os Espíritos vulgares aqui estão de certo modo sedentários e constituem a massa da população ambiente do mundo invisível. Conservaram mais ou menos os mesmos gostos e inclinações que tinham no invólucro corpóreo. Não podendo satisfazer suas paixões, beneficiam-se dos que a elas se entregam e as excitam.

“3º — Só os Espíritos inferiores podem lamentar as alegrias que se harmonizam com a impureza de sua natureza.

“4º — Os Espíritos não podem degenerar; podem ficar estacionários, mas não retrogradam.

“5º — Todos os Espíritos tornar-se-ão perfeitos.

“6º — Os Espíritos imperfeitos procuram apoderar-se e dominar os homens; sentem-se felizes por faze-los sucumbir.

“7º — Os Espíritos são atraídos em razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que os evoca. Muitas vezes os Espíritos inferiores tomam nomes venerados, a fim de melhor induzir em erro.

“De acordo com esses dados, o Sr. Cazenove, com a sutileza e a sagacidade do talento que o caracterizam, redigiu duas entrevistas, nas quais toca os dois extremos do corpo social. Por meio de um suposto médium, de um lado evoca Espíritos inferiores, personificados na figura de um célebre bandido de Cartouche, e os admite a um colóquio singular, que demonstra a perversidade de semelhante doutrina. Por outro lado, são Espíritos de ordem elevada que entram em relação com os homens da atualidade. O contraste, sem dúvida, é interessante e ninguém deu com mais fidelidade, tato e felicidade, tudo quanto a doutrina epicurista, resumida no Espírito de Horácio e de Lucrécio, encerra de deplorável e enganador.

“Lamentamos profundamente não poder dar por inteiro aos nossos leitores o trabalho do Sr. Cazenove. Estamos certos de que aplaudiriam não só a forma irrepreensível e perfeitamente acadêmica do escrito, mas, também, o elevado pensamento moral que o anima, visto condenar sem indulgência um sistema cheio de seduções e de verdadeiros perigos.”

J. Serret

RESPOSTA DO SR. DOMBRE

Senhor Redator,

Fui o primeiro a apreciar as observações finas e delicadas feitas pelo Sr. Cazenove de Pradines no domínio da Doutrina Espírita. Sob o título de Conversas Espíritas, o escrito esteve em minhas mãos e dele se faz menção no vosso apreciado jornal de domingo, 25 de maio; é, com efeito, de uma graça encantadora e não desmente o caráter de sagacidade do talento que distingue seu autor. É uma flor, cujas cores e brilho admiro, abstendo-me, no momento, de alterar o aveludado pelo contato da menor palavra de crítica indiscreta. Mas o vosso entusiasmo por esses diálogos picantes, mais espirituosos que ofensivos à doutrina, vos levaram a enunciar erros, sendo um dever de todo bom espírita, de mim particularmente, fazer-vos uma advertência.

Antes de mais, devo dizer que as citações escolhidas aqui e ali em O Livro dos Espíritos são agrupadas com arte, a fim de apresentar a doutrina sob uma luz desfavorável; mas todo homem prudente e de boa-fé quererá ler por inteiro aquele livro e meditar.

1º — Falais das doutrinas da nova seita. Permiti vos diga que o Espiritismo não é nem uma religião, nem uma seita. É um ensino dado aos homens pelos Espíritos que povoam o espaço e que mais não são que as almas dos que viveram. Mau grado nosso, sofremos a sua influência a todo instante; eles são uma força da Natureza, como a eletricidade também o é, sob outro ponto de vista. Sua existência e sua presença são constatadas por fatos evidentes e palpáveis.

2º — Dizeis: A perversidade de semelhante doutrina. Cuidado! O Espiritismo não é senão o Cristianismo na sua pureza. Só tem como divisa, em sua bandeira, esta: Amor e Caridade. Onde, pois, a perversidade?

3º — Finalmente, falais de um sistema cheio de seduções e de verdadeiros perigos. Sim, está cheio de seduções, de atrativos, porque é belo, grande, justo, consolador e digno, sob todos os pontos de vista da perfeição de Deus. Onde os seus perigos? Em vão os procuram na prática do Espiritismo; aí só encontram consolação e melhoramento moral. Perguntai a Paris, a Lyon, a Bordeaux, a Metz, etc., qual o efeito produzido sobre as massas por esta nova crença. Sobretudo Lyon vos dirá em que fonte seus operários sem trabalho hauriram tanta resignação e fortaleza para suportarem privações de toda espécie.

Ignoro se os livreiros de Agen já se abasteceram dos livros a seguir indicados: O que é o Espiritismo? — O Livro dos Espíritos — O Livro dos Médiuns. Mas desejo de todo coração que o vosso pequeno relatório desperte a atenção dos indiferentes, faça-os procurar essas obras e constituírem um núcleo espírita na capital do nosso Departamento. Destinada a regenerar o mundo, esta doutrina marcha a passos de gigante e Agen seria uma das últimas cidades onde o Espiritismo adquirisse direito de cidadania? Considero o vosso pequeno artigo como uma pedra que trazeis ao edifício e, uma vez mais, admiro os meios de que Deus se utiliza para alcançar os seus fins.

“Vossa imparcialidade e vosso desejo de, pela discussão, chegar à verdade, são uma garantia de que admitireis minha carta nas colunas de vosso jornal, como resposta ao vosso artigo de 25 de maio.

“Aceitai, etc.”

Dombre ( de Marmande)

A esta carta o redator se limitou, na edição de seu jornal de 1º de junho, a dizer o seguinte:

“O Sr. Dombre nos escreve de Marmande a respeito de nossas reflexões sobre O Livro dos Espíritos e os diálogos por ele sugeridos ao honrado Sr. Cazenove de Pradines. Esse novo ensino, como houve por bem chamar o Sr. Dombre, não tem aos nossos olhos o mesmo valor e o mesmo prestígio que parece exercer sobre o nosso espirituoso correspondente.

(Por diversas vezes o Sr. Dombre enviou a este jornal trechos em verso e outros.)

“Respeitamos as convicções de nossos contraditores, mesmo quando se fundamentam em princípios errôneos. Mas consideramos um dever, não obstante a defesa leal e sincera tentada pelo Sr. Dombre, manter a expressão de um sentimento sobre um sistema completamente fora dos caminhos da verdade.

“Por conseguinte, a Abeille Agénaise não poderia dedicar-se à propagação de ideias essencialmente perigosas, e o Sr. Dombre compreenderá todo o pesar que sentimos por não nos podermos associar à manifestação de seus desejos.”

J. Serret

Observação — Reservar-se o direito de atacar e não admitir resposta é um meio cômodo de ter razão; resta saber se é o de chegar à verdade. Se uma doutrina que tem por base a caridade e o amor ao próximo; que torna melhores os homens e os leva a renunciarem aos hábitos de desordem; que dá fé aos que em nada acreditam; que faz orar os que já não oram, que restabelece a união nas famílias divididas; que impede o suicídio; se, dizíamos, uma tal doutrina é perversa, que serão, pois, daquelas que se tornam impotentes para produzir tais resultados? O Sr. Serret teme ajudar a propaganda pela polêmica, razão por que prefere falar sozinho. Pois bem! que fale quanto queira; o resultado, porém, não será menor do que tem sido em toda parte: chamar a atenção e recrutar adeptos para a doutrina.

A. K.


Membros Honorários da Sociedade de Paris

Para testemunhar sua simpatia e gratidão às pessoas que prestam relevantes e efetivos serviços à causa do Espiritismo, por seu zelo, devotamento, desinteresse e, se necessário, pelos perigos a que se expõem, a Sociedade Espírita de Paris lhes confere o título de membro honorário. Ela se compraz, assim, em reconhecer o concurso que emprestam à obra comum os chefes e fundadores das sociedades ou grupos, que se colocam sob a mesma bandeira e que são dirigidos conforme os princípios do Espiritismo sério, a fim de obterem resultados morais. Os motivos que a guiam são menos as palavras que os atos. Ela as conta não só em várias cidades da França e da Argélia, mas em países estrangeiros: Itália, Espanha, Áustria, Polônia, Constantinopla, América, etc.

O Sr. Dombre, de Marmande, que desde sua iniciação no Espiritismo não tem cessado de se fazer, abertamente, seu propagandista e defensor, merecia essa distinção. Anunciando-lhe a sua nomeação, nós lhe havíamos pedido autorização para publicar sua carta ao padre F... (Ver artigo do mês anterior.) Sua resposta merece ser citada; mostra de que maneira certos adeptos compreendem o seu papel.

“Marmande, 10 de agosto de 1862.

“Senhor Allan Kardec,

“Aceito, reconhecido, o título de membro honorário da Sociedade Espírita de Paris. Para corresponder a uma tal distinção, que obriga, e ao testemunho de simpatia da parte dos membros dessa sociedade, que houveram por bem me conferir esse título, farei sempre e por toda parte esforços para ajudar, dentro de minhas possibilidades, a propagação de uma doutrina que faz minha felicidade na Terra e fará também, em tempo mais ou menos remoto, a daqueles que querem conservar ainda a venda da incredulidade.

“Não vejo nenhum obstáculo, nenhum inconveniente na publicação de minha resposta ao diretor da Abeille Agénaise e de minha carta ao padre F... Minha carta a este último está assinada: Um católico. Creio que nenhum leitor da Revista irá pensar que o autor tenha querido ocultar-se sob o véu do anonimato: a consideração humana não se apoderou de mim. Rio dos que riem, porque estou com a verdade. Todo bom espírita deve, por seu exemplo, dar energia aos adeptos tímidos e lhes ensinar a empunhar alto e firme o estandarte de sua crença.

“Dignai-vos, senhor, apresentar meus sinceros agradecimentos à honrada Sociedade, da qual hoje me congratulo por fazer parte e aceitar, etc.”

Dombre, proprietário

No que concerne ao Espiritismo, o temor do que dirão? hoje diminuiu singularmente, sendo irrelevante o número dos que ocultam sua opinião. Está limitado àqueles que temem perder uma posição que os faz viver e, neste número, há mais padres do que se pensa; pessoalmente conhecemos mais de cem. Entretanto, em todas as posições sociais, entre os funcionários públicos, oficiais de todas as patentes, médicos, etc., temos notado muita gente que há um ano apenas não se teria confessado espírita e que hoje dele se honra. Essa coragem de opinião, que afronta a zombaria, em primeiro lugar tem como consequência encorajar os tímidos e, em segundo, mostrar que o número de adeptos é maior do que se imaginava; finalmente, impor silêncio aos zombeteiros, surpreendidos ao ouvir, em toda parte, a palavra Espiritismo por pessoas que a gente considera duas vezes antes de ridicularizar. Assim, observa-se que os gracejadores, de algum tempo para cá, baixaram singularmente a voz. Mais alguns anos como os que acabam de se escoar e seu papel estará findo, porque, por todos os lados, ver-se-ão ultrapassados pela opinião.

O Sr. Dombre não apenas tem a coragem da opinião, mas, também, a da ação. Ocupa o espaço com determinação e enfrenta os adversários, provocando-os para a discussão. E eis que um jornalista se recusa, a fim de não admitir a sua fraqueza, e um pregador, a quem é oferecida a mais bela ocasião para fazer valer os seus argumentos e dar uma bordoada na doutrina, vai-se embora dizendo que não tem tempo para responder. Não é desertar do campo de batalha? Se ele estivesse seguro de si, se a religião estivesse em jogo, por que não ficaria para abater o adversário? Em semelhante caso, abandonar a partida é perdê-la. Um pregador tem uma vantagem imensa sobre um advogado: é que fala sem contraditor; pode dizer o que quiser e ninguém o refuta. Ao que parece, é dessa maneira que os adversários do Espiritismo entendem a controvérsia.

No momento o Sr. Dombre não foi o único a enfrentar a tempestade com serenidade: Bordeaux, Lyon e muitas outras cidades menos importantes, até mesmo simples vilarejos nos têm oferecido numerosos exemplos, que se multiplicam diariamente; e por toda parte onde os adeptos mostraram firmeza e energia, os antagonistas moderaram a sua arrogância.

Até agora essa coragem de opinião e de ação é muito mais encontrada nas classes médias e obscuras do que nas elevadas; mas se um homem de nome popular, justamente estimado e honrado, influente por seus talentos, posição ou categoria, abraça um dia a causa do Espiritismo e lhe empunha a bandeira abertamente, ousarão acusar de louco aquele cujo gênio e talento foram exaltados? sua voz não imporá silêncio aos clamores da incredulidade? Pois bem! Este homem surgirá, eu vo-lo asseguro; à sua voz os dissidentes se unirão, cedendo à influência de sua autoridade moral; ele também terá sua missão, providencial como a de todos os homens que fazem avançar a Humanidade, missão geral como muitas outras particulares e locais. Embora mais modestas estas últimas não deixam de ter uma utilidade relativa, porque preparam os caminhos. É então que o Espiritismo entrará com força total nos costumes e os modificará profundamente, porque em tudo as ideias serão diferentes. Nós semeamos e ele colherá, ou melhor, eles colherão, porque muitos outros seguirão suas pegadas. Espíritas, semeai, semeai muito, a fim de que a colheita seja mais abundante e mais fácil. O passado é a vossa garantia do futuro!


O que deve ser a História do Espiritismo

A propósito dessa história, sobre a qual dissemos algumas palavras, muitas pessoas nos perguntaram o que ela compreenderia e, a respeito, nos enviaram diversos relatos de manifestações. Aos que julgaram assim trazer uma pedra ao edifício, agradecemos a intenção, mas diremos que se trata de algo mais sério que um catálogo de fenômenos espíritas, encontrado em muitas obras. Devendo o Espiritismo notabilizar-se nos fastos da Humanidade, será interessante para as gerações futuras saber por que meios ele se terá estabelecido. Será, pois, a história das peripécias que tiverem assinalado os seus primeiros passos; das lutas que tiver enfrentado; dos entraves que lhe terão suscitado; de sua marcha progressiva no mundo inteiro. O verdadeiro mérito é modesto e não busca fazer-se valer. É preciso que a posteridade conheça os nomes dos pioneiros da obra, daqueles cujo devotamento e abnegação merecerão ser inscritos em seus anais; das cidades que marcharam na dianteira; dos que sofreram pela causa, a fim de que os abençoem, e dos que fizeram sofrer, para que orem, para que sejam perdoados; numa palavra, de seus verdadeiros amigos e de seus inimigos, confessos ou ocultos. A intriga e a ambição não devem usurpar o lugar que lhes não pertence, nem um reconhecimento e uma honraria que lhes não são devidos. Se há Judas, forçoso é que sejam desmascarados. Uma parte não menos interessante é a das revelações que, sucessivamente, anunciaram todas as fases dessa nova era e os acontecimentos de toda ordem, que as acompanharam.

Aos que acharem presunçosa a tarefa, diremos que não temos outro mérito senão o de possuir, por nossa posição excepcional, documentos que não estão na posse de ninguém, e que se acham ao abrigo de quaisquer eventualidades; que, estando o Espiritismo sendo chamado a desempenhar um grande papel na História, importa que seu papel não seja desnaturado, e opor uma história autêntica às histórias apócrifas que o interesse pessoal poderia engendrar.

Quando aparecerá? Não será tão cedo e talvez não em nossa vida, pois essa obra não se destina a satisfazer a curiosidade do momento. Se dela falamos por antecipação, é para que ninguém se equivoque quanto ao seu objetivo e deixar clara a nossa intenção. Aliás, o Espiritismo está debutando e muitas outras coisas haverão de acontecer até lá; e, depois, é preciso esperar que cada um tenha tomado o seu lugar, certo ou errado.


Arsène Gautier — Lembrança de um Espírito

A Sra. S..., de Cherbourg, transmitiu-nos o seguinte relato:

Um marujo da marinha de guerra, chamado Arsène Gautier, voltou a Cherbourg há quinze ou dezesseis anos, muito doente, em consequência de febres adquiridas nas costas africanas. Veio à casa de um de meus genros, que sabia ser amigo de seu irmão, capitão da marinha mercante, e que era esperado dentro de poucos dias naquele porto. Nós o recebemos bem e, como estivesse doente, minha filha J..., então com quatorze ou quinze anos, pediu-me que o chamasse para se aquecer à nossa lareira e tomar uma tisana, que não lhe seria dada em seu albergue, até que seu irmão chegasse. Essa menina teve para com ele cuidados compassivos. Ele morreu ao chegar à sua casa; depois ninguém mais pensou no caso. Seu próprio nome, escrito no início da comunicação espontânea, que recebemos em 8 de março último, por minha filha J..., hoje médium, não no-lo tinha lembrado. Só o reconhecemos pelos detalhes em que entrou. Era um homem de inteligência muito limitada e sua vida tinha sido muito difícil. Privado da afeição dos seus, a tudo se havia resignado. Eis a sua comunicação:

“Arsène Gautier. Vós me esquecestes há muito tempo, minha amiga, mas eu não vos perdi de vista desde que deixei a Terra, porque sois a única pessoa, o único Espírito simpático que encontrei nesta terra de dores. Eu vos amei com todas as minhas forças, quando não passáveis de uma criança e não tínheis por mim senão um sentimento de piedade, devido à terrível enfermidade que me devia levar. Sou feliz... Esta era a primeira existência que Deus me tinha dado. Como meu Espírito era ainda novo e não conhecia nenhum outro Espírito, liguei-me mais a vós. Estou feliz e prestes a voltar à Terra para avançar em direção ao Senhor. Tenho a esperança no coração; o caminho, tão difícil para alguns, parece-me largo e fácil. Um bom começo como minha existência passada é um encorajamento tão grande! Deus me ajudará. Orareis também por mim, para que minha prova tão próxima me seja tão proveitosa quanto a outra. Infelizmente não sou adiantado, mas chegarei.”

Não fazíamos ainda a menor ideia do Espírito que dera aquela comunicação, e nos perguntávamos uma à outra quem poderia ser.

O Espírito respondeu:

“Sou irmão de um ex-capitão de Nantes, que era amigo de um de vossos parentes.” (Isto nos despertou a memória e o Espírito continuou): “Obrigado por vos lembrardes de mim. Só lamento uma coisa, ao entrever a prova que se aproxima: ser separado de vós por algum tempo. Adeus; amo-vos muito.

Arsène Gautier.”

Observação — Lida tal comunicação na Sociedade de Paris, perguntamos a um dos nossos guias espirituais se era possível que aquela tivesse sido, como dizia o Espírito, a sua primeira encarnação. Respondeu o guia:

“Sua primeira encarnação na Terra, é possível; mas, como Espírito, não. Em suas primeiras encarnações, os Espíritos encontram-se num estado quase inconsciente e este, embora pouco adiantado, já está longe de sua origem; mas é um desses Espíritos bons, que seguiram o caminho do bem. Seu progresso será rápido, pois não terá de se despojar senão de sua ignorância, nem lutar contra as más tendências dos que trilharam o caminho do mal.”


Pode o Espírito Recuar Diante da Prova?

Uma senhora de nossa amizade escreve-nos o seguinte:

“Certo dia minha filha recebeu a seguinte comunicação espontânea de um Espírito, que começou assinando Euphrosine Bretel. Como tal nome não nos lembrasse ninguém, perguntamos: Quem és? — Sou um pobre Espírito em sofrimento; necessito de preces. Dirijo-me a ti porque me conhecestes quando eu não passava de uma criança.

“Fizemos um esforço para recordar e julguei lembrar que aquele nome de família era o de uma menina de nove a dez anos, que se achava no mesmo internato que minha filha e que adoecera pouco depois da chegada desta. Seu pai veio buscá-la de carro, e as crianças guardaram a lembrança daquela doente, toda embrulhada e lamentosa; morreu em casa. Desesperada, sua mãe logo a seguiu. O pai ficou cego de tanto chorar e morreu no mesmo ano. Tão logo imaginamos haver reconhecido o nome, o Espírito escreveu:

“Sou eu. Minha última existência devia ser uma prova terrível, mas recuei covardemente e desde então sofro sempre. Peço-te rogares a Deus que me conceda a graça de uma nova prova, à qual me submeterei, por mais dura que seja. Sou tão infeliz! Amo a meu pai e a minha mãe e eles me têm horror; fogem de mim e o meu castigo é o de os buscar incessantemente, para me ver repelida. Vim a ti porque minha lembrança não se apagou inteiramente de tua memória e, dos que podem orar por mim, és a única que conhece o Espiritismo. Adeus! não me esqueças; em breve nos veremos.”

Minha filha então lhe perguntou, brincando: “Devo, pois, morrer dentro de pouco tempo?” A isto o Espírito respondeu: “Longo para vós, o tempo não tem medida para nós.” — Verificamos depois que o prenome e o nome da família eram perfeitamente exatos.

“Pergunto, agora, se é possível a um Espírito encarnado recuar diante de uma prova já começada.”

A esta pergunta respondemos: Sim. Os Espíritos recuam muitas vezes ante as provas que escolheram; não têm coragem de as suportar e, até mesmo, de as enfrentar, quando chegado o momento. Aí está a causa da maioria dos suicídios. Recuam ainda quando se lastimam e se desesperam, perdendo, assim, os benefícios da prova. Eis por que o Espiritismo, dando a conhecer a causa, o objetivo e as consequências das tribulações da vida, dá, ao mesmo tempo, tantas consolações e tanta coragem, desviando o pensamento de abreviar os dias. Qual a filosofia que produziu tal resultado sobre os homens?


Resposta a uma Pergunta Mental

Um excelente médium de Maine-et-Loire, que conhecemos pessoalmente, escreveu-nos o seguinte:

“Um de nossos amigos, homem dos menos crentes, mas com imenso desejo de se esclarecer, perguntou-nos um dia se poderia evocar um Espírito sem o nomear, e se este poderia responder a perguntas que lhe fossem dirigidas pelo pensamento, sem que o médium lhes tivesse o menor conhecimento. Respondemos que isso era possível, desde que o Espírito o consentisse, o que nem sempre acontece. Acerca disto obtive a seguinte resposta:

“Não posso dizer o que me pedis, porque Deus não o permite. Não obstante, posso dizer-vos que sofro: é uma dor geral em todos os membros, o que vos deve surpreender, desde que com a morte o corpo apodrece na terra; mas temos um outro corpo — espiritual — que não morre, o que nos faz sofrer tanto quanto se tivéssemos nosso corpo corporal. Sofro, mas não espero sofrer sempre. Como é preciso satisfazer à justiça de Deus, é necessário nos resignarmos nesta vida ou na outra. Eu não me privei suficientemente na Terra, o que me compele a reparar o tempo perdido. Não me imiteis, pois vos prepararíeis séculos de tormentos. A eternidade é uma coisa séria e, infelizmente, nela não se pensa tanto quanto seria preciso. Como é de lamentar-se quando nos esquecemos de um assunto tão importante quanto a salvação! Pensai nisto!

Vosso antigo cura, A... T... ”

“Era mesmo o cura que o nosso amigo queria evocar. Eis as três perguntas que este queria fazer:

“Que pensar da divindade de Jesus-Cristo?

“A alma é imortal?

“Que meios empregar para expiar as faltas e evitar a punição?

“Pelo estilo reconhecemos perfeitamente o nosso cura; sobretudo a expressão corpo espiritual mostra que é o Espírito de um bom cura do interior, cuja educação deixou algo a desejar.”

Observação — As respostas a perguntas mentais são fatos muito comuns e tanto mais interessantes quanto são para o incrédulo de boa-fé uma das provas mais concludentes da intervenção de uma inteligência oculta; entretanto, como sói acontecer com a maioria dos fenômenos espíritas, raramente são obtidos à vontade, ao passo que se produzem espontaneamente a todo o momento. No caso supracitado, o Espírito houve por bem se prestar a esse papel, o que é muito raro, porque, como se sabe, os Espíritos não gostam de perguntas de curiosidade e de prova; com elas condescendem somente quando há utilidade e muitas vezes não as julgam como nós. Como não se submetem ao capricho dos homens, precisamos contar com a sua boa vontade para a produção dos fenômenos. É necessário, por assim dizer, apreendê-los de passagem e não os provocar. Para tanto precisamos de paciência e de perseverança; e é por isto que os Espíritos reconhecem os observadores sérios e verdadeiramente desejosos de se instruírem. Pouco se preocupam com as pessoas superficiais, que pensam que basta perguntar para serem atendidas imediatamente.


Poesias Espíritas

O Menino e o Ateu

(Sociedade Espírita Africana — Médium: Srta. O...)

Um belo ser, ateu se proclamando,

Passeava um dia ao lado de um rapaz

Às margens de um regato, às quais sombreando,

De um sol forte os livravam vegetais.

Ao ver jorrar água tão pura,

Diz ao jovem seu sábio companheiro:

Aonde pensas tu que porventura

Vai conduzir-lhe o curso o vale inteiro?

Responde-lhe o rapaz: Talvez um lago

De suas águas ganhe-lhe o tributo,

Que ao término de esforço amargo e vago

De todos os riachos é o fim bruto.”

Pobre criança! O mestre diz, sorrindo,

Como enganado está teu ser;

Aprende, pois, tudo no mundo é findo,

Tudo se acaba no morrer.

Quando se afasta da nascente,

Onde os filetes vão jorrando,

É para achar seu termo, finalmente,

Para sempre nos mares terminando.

É de nós todos essa a dura imagem;

Quando deixamos deste mundo a estada

Eis o que resta então de uma curta passagem,

Nos encontrarmos ante o nada.

Oh! Meu Deus! Diz o moço em desolada voz,

Essa é a verdade, então, tal nossa sorte?

Que! E minha mãe, só somos nós,

Terei tudo perdido em sua morte?

Eu que supunha que sua alma querida

Podia proteger sua criança,

Com ela partilhar as penas desta vida,

Tê-la perto de Deus não é minha esperança?

“Guarda sempre contigo a doce crença.”

Sussurra-lhe o bom anjo com bondade,

Sim, bom menino, a fé te seja imensa,

Sem ela, sobre a Terra, onde a felicidade?

E o tempo se esgotou; correram anos

Nosso sábio afinal desencarnou,

Mantendo-os fiel aos seus loucos enganos,

Creu-se morto a dizer que Deus nunca encontrou.

Quanto ao menino, veio-lhe a velhice

E sem receio recebeu a morte,

Porque mantendo a fé da meninice,

Nas mãos do Eterno Pai lhe redimiu a sorte.

Vede que multidão que ora apressada

Deixa o céu para o vir cá receber;

E de Espíritos bons turma sagrada

Que a um exilado irmão enfim torna a rever.

Mas quem é aquela alma só e triste

Que se esforça afinal por se ocultar?

Do desgraçado sábio é o ser que a tudo assiste

Que tudo vê e não pode aí se misturar.

Foi muito amarga a sua pena,

Por ter a Deus um dia então negado,

Deus lhe surge afinal, não juiz que condena,

Em majestade sublimado.

Oh! quanto pranto por herança

Vieram quebrar dessa alma a empáfia dura!

Ele que outrora rira da esperança

De um pobre rapazelho além da sepultura.

Mas do Senhor a bênção paternal

Não pune para sempre o pecador;

Em breve pois a alma imortal

Devolve à Terra com Amor.

Por sua vez purificada,

Em cujos erros já não cai,

De luz e glória inebriada

Vai repousar aos pés do Eterno Pai.

Assinado: Ducis

A Abóbora e a Sensitiva

Fábula

Dize qual o teu regime, ó pobre sensitiva?

A abóbora indagava a uma pequena flor,

Por que manter-te assim qual se não fosses viva?

Falo-te com muita dor,

A sensibilidade estiola-te; e enfraquece;

Bem antes morrerás do fim desta estação;

Quando, fugindo o sol no horizonte escurece

Murcharem-se verás tuas folhas então:

Um fatal estremecimento

O teu caule percorre ante a brisa a roçar;

Fazendo a crise então chegar;

A vida então é-te um tormento.

E por que tanta pena e tal solicitude?

Seja pois meu exemplo uma terna quietude.

O que se passa em mim, pois não,

Causar-me não me custa a mais leve emoção;

De bem me sustentar faço minha virtude,

Que importa, pois, em meu temperamento,

Os mistérios do céu? — Do dia o esplendor,

Da noite a escuridão, a umidade, o calor

Tudo convém ao meu intento.

Minha forma redonda às vezes, é verdade,

Induz o observador satírico e cruel

Em murmúrio dizer: “A abóbora é nulidade!

Porém tal trato não me é fel;

Sobre o meu leito nutro-me e, em riso, me rolo

Para inveja causar, pousando sobre o solo, Meu grosso ventre e amplidão.

Os gostos, diz a flor, bem diferentes são;

Tu queres consagrar-te ao gozo, à vida em féria,

Ao bem-estar só da matéria;

Creio fazer melhor, vejas bem, neste instante,

Em abreviar minha existência,

Me consagrando à excelência,

Do sentimento bom, da inteligência,

Terei vivido assim bastante.

Dombre (De Marmande)


Dissertações Espíritas

O Espiritismo e o Espírito Maligno

(Grupo de Sainte-Gemme — Médium: Sr. C...)

De todos os trabalhos a que se entrega a Humanidade os preferíveis são os que mais aproximam a criatura de seu Criador, que a põem diariamente e a cada instante em condições de admirar a obra divina, que saiu e sai incessantemente de suas mãos onipotentes. É dever do homem prosternar-se e adorar continuamente Aquele que lhe deu os meios de se melhorar como Espírito e alcançar, assim, a felicidade suprema, que é o objetivo final para o qual deve tender.

Se há profissões que, quase exclusivamente intelectuais, dão ao homem os meios de elevar o seu nível de inteligência, um perigo, um grande perigo se acha ao lado dessa vantagem. Prova a história de todos os tempos em que consiste esse perigo e quantos males pode engendrar. Sois dotados de uma inteligência superior: a tal respeito estais mais próximos da Divindade que os vossos irmãos e chegais a negar a própria Divindade, ou dela fazer uma outra, inteiramente contrária do que é em realidade! Nunca seria demais repetir, nem jamais se cansar de dizer: o orgulho é o mais obstinado inimigo do gênero humano. Tivésseis mil bocas e todas deveriam repetir a mesma coisa incessantemente.

Deus vos criou a todos simples e ignorantes[2]; tratai de avançar em passo tão seguro quanto possível. Isto depende de vós: jamais Deus recusa graça a quem lha pede de boa-fé. Todos os estados podem igualmente vos conduzir à meta desejada, se vos conduzirdes conforme o caminho da justiça e se não dobrardes a consciência à vontade dos vossos caprichos. No entanto há estados nos quais é mais difícil progredir que em outros; assim, Deus levará em conta aqueles que, tendo aceitado como prova uma posição ambígua, tiverem percorrido sem reagir esse caminho perigoso ou, pelo menos, tiverem feito todos os esforços humanamente possíveis para se reerguerem.

É aí que se torna necessária uma fé sincera, uma força pouco comum para resistir aos arrastamentos para fora do caminho da justiça. Mas é aí, também, que se pode fazer um bem imenso aos irmãos infelizes. Ah! quanto mérito tem aquele que resvala no lamaçal, sem que nem suas vestes, nem ele próprio, se maculem! É preciso que uma chama muito pura brilhe em si. Mas, também, que recompensa não lhe é reservada ao deixar a vida terrestre![3]

Que aqueles que se acham em semelhante posição meditem bem estas palavras; que bem se impregnem do espírito que elas encerram e neles se operará uma revolução salutar, que substituirá as opressões do egoísmo pelas suaves expansões do coração.

Quem transformará esses homens, como diz o Evangelho, em homens novos?

O que é necessário para realizar esse grande milagre? É preciso que eles queiram reportar seu pensamento àquilo a que estão destinados depois da morte. Estão todos convencidos de que o amanhã poderá não existir para eles; mas, assustados pelo quadro sombrio e desolador das penas eternas, nas quais, por intuição, se recusam acreditar, abandonam-se ao caudal da vida presente; deixam-se arrastar por essa cupidez febril, que os leva a juntar sempre, por todos os meios permitidos ou não; arruínam sem piedade um pobre pai de família e prodigalizam ao vício somas que bastariam para uma cidade inteira viver durante vários dias. Desviam os olhos do momento fatal. Ah! se pudessem encará-lo firmemente e com sangue-frio, como mudariam depressa de conduta! como os veríamos apressados em devolver ao legítimo proprietário o pedaço de pão negro, que tiveram a crueldade de roubar para, ao preço de uma injustiça, aumentarem uma fortuna feita de injustiças acumuladas! O que é preciso para isto? Que brilhe a luz espírita. É preciso se possa dizer, como um general dizia de uma grande nação: O Espiritismo é como o Sol: cego quem não o vê! Os homens que se dizem e se julgam cristãos, mas repelem o Espiritismo, são bem cegos!

Qual a missão da doutrina, que a mão onipotente do Criador semeia atualmente no mundo? É a de conduzir os incrédulos à fé, os desesperados à esperança, os egoístas à caridade. Eles se dizem cristãos e lançam anátema à doutrina de Jesus-Cristo! É verdade que pretendem seja o Espírito maligno que, para melhor se disfarçar, vem pregar tal doutrina neste mundo. Infelizes cegos! pobres doentes! Que Deus, em sua bondade inesgotável, se digne fazer cessar a vossa cegueira e pôr um termo aos males que vos obsidiam!

Quem vos disse que era o Espírito do mal? Quem? Nada sabeis disto. Pedistes a Deus que vos esclarecesse a respeito? Não; ou se o fizestes, tínheis uma ideia preconcebida. O Espírito do mal! Sabeis quem vos disse que era o Espírito do mal? Foi o orgulho, foi o próprio Espírito do mal que vos leva a condenar — coisa revoltante! — o Espírito de Deus, representado pelos Espíritos bons que Ele envia ao mundo para o regenerar!

Ao menos examinai a coisa e, conforme as regras estabelecidas, condenai ou absolvei. Ah! se ao menos quisésseis lançar um golpe de vista sobre os resultados inevitáveis que o triunfo do Espiritismo deve produzir! Se quisésseis ver os homens finalmente se considerando como irmãos, convencidos todos de que, de um momento para outro, Deus lhes pedirá contas da maneira pela qual desempenharam a missão que lhes havia sido confiada! Se quisésseis ver em toda parte a caridade tomando o lugar do egoísmo e o trabalho tomando o lugar da preguiça! Porque, bem o sabeis, o homem nasceu para o trabalho: Deus o transformou numa obrigação, à qual não pode subtrair-se sem transgredir as leis divinas. Se quisésseis ver de um lado esses infelizes que dizem: Danados neste mundo, danados no outro, sejamos criminosos e gozemos; e do outro, esses homens endurecidos, esses açambarcadores da fortuna de todos, que dizem: A alma é uma palavra; Deus não existe; se nada resta de nós depois da morte, gozemos a vida; o mundo se compõe de exploradores e explorados; prefiro fazer parte dos primeiros a estar com os segundos; depois de mim, o dilúvio! Se lançásseis o olhar sobre esses dois homens que personificam a pilhagem, a pilhagem bem-educada e que conduz às galés; se os vísseis transformados pela crença na imortalidade, que lhes dá o Espiritismo, ousaríeis dizer que é pelo Espírito do mal?

Vejo o desdém em vossos lábios e vos ouço dizer: Nós é que pregamos a imortalidade e temos crédito por isto. Terão sempre mais confiança em nós do que nesses vãos sonhadores que, se não são trapaceiros, sonharam que os mortos saíam do túmulo para se comunicarem com eles. A isto sempre a mesma resposta: Examinai e, se convencidos de boa-fé, o que não faltará se fordes sinceros, ao invés de maldizer, bendireis o que deve estar muito mais nas vossas atribuições, conforme a lei de Deus.

A lei de Deus! em vossa opinião sois os únicos depositários e vos surpreendeis que outros tomem uma iniciativa que, conforme pensais, vos pertence com exclusividade. Pois bem! escutai o que os Espíritos enviados por Deus estão encarregados de vos dizer:

“Vós que levais a sério o vosso ministério, sereis abençoados, porquanto tereis realizado todas as obras, não só prescritas, mas aconselhadas pelo divino Mestre. E vós que considerastes o sacerdócio como meio para ascender materialmente não sereis malditos, embora tenhais amaldiçoado os outros; Deus, porém, vos reserva uma punição mais justa.

“Dia virá em que sereis obrigados a vos explicardes publicamente sobre os fenômenos espíritas, e esse dia não está longe. Então vos encontrareis na necessidade de julgar, porque vos constituístes em tribunal. Julgar a quem? O próprio Deus, pois nada acontece sem a sua permissão.

“Vedes onde vos conduziu o Espírito do mal, isto é, o orgulho! Em vez de vos inclinardes e orar, obstinai-vos contra a vontade do único que tem o direito de dizer: Eu quero. E dizeis que é o demônio quem o diz.

“E agora, se persistirdes em não crer senão nas manifestações dos Espíritos maus, recordai-vos das palavras do Mestre, acusado de expulsar os demônios em nome de Belzebu: Todo reino dividido contra si mesmo perecerá.”

Hippolyte Fortoul

O Corvo e a Raposa

(Sociedade Espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 — Médium: Sr. Leymarie)

Desconfiai dos bajuladores: é a raça mentirosa; são encarnações de duas caras, que riem para vos enganar. Infeliz de quem neles acredita e escuta, porquanto neles as noções do verdadeiro logo se pervertem. E, contudo, quanta gente se deixa levar por esse engodo mentiroso da bajulação! Ouvem satisfeitos o velhaco que alimenta as suas fraquezas, enquanto repelem o amigo sincero que lhes diz a verdade e lhes dá bons conselhos; atraem o falso amigo e afastam o verdadeiro e desinteressado. Para os agradar é preciso adular, aprovar tudo, tudo aplaudir e achar tudo bem, mesmo o absurdo. E — coisa estranha! — repelem conselhos sensatos e acreditam na mentira do primeiro que vier, desde que tal mentira favoreça suas ideias. Que quereis? Querem ser enganados e o são. Muitas vezes só veem as consequências tarde demais; mas, então, o mal já está feito e não tem remédio.

De onde vem isto? A causa dessa imperfeição é, quase sempre, múltipla. A primeira, incontestavelmente, é o orgulho que os cega quanto à infalibilidade de seu próprio mérito, que julgam superior ao dos demais; tomam-no, assim, sem dificuldade, como modelo do senso comum. A segunda decorre de uma falta de senso, que lhes não permite vejam o lado bom ou ruim das coisas; mas, ainda aqui, é o orgulho que oblitera o julgamento, porque, sem orgulho, desconfiariam de si mesmos, confiando-se aos que têm mais experiência. Acreditai, ainda, que os Espíritos maus nem sempre estão alheios ao caso: adoram mistificar, armar ciladas; e quem nelas melhor poderão cair que os orgulhosos, que são lisonjeados? O orgulho, para eles, é a falta de couraça de uns e a cupidez de outros, de que sabem tirar partido com habilidade, mas não se guardam de dirigir-se aos que são mais fortes que eles, moralmente falando. Quereis subtrair-vos à influência dos Espíritos maus? Subi, subi tão alto em virtudes que eles não vos possam atingir e, então, sereis temidos por eles. Mas se vos deixardes arrastar pela ponta da corda, eles a agarrarão para vos forçar a descida; chamar-vos-ão com voz melíflua, elogiar-vos-ão e, como o corvo, farão com que deixeis o queijo cair.

Sonnet

Estilo das boas Comunicações

(Sociedade Espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 — Médium: Sr. Leymarie)

Buscai na palavra a sobriedade e a concisão: poucas palavras, muitas coisas. A linguagem é como a harmonia: quanto mais erudita quisermos torná-la, menos melodiosa. A verdadeira ciência é sempre aquela que impressiona; não alguns sibaritas entediados, mas a massa inteligente que, desde muito tempo, é desviada do caminho do belo verdadeiro, que é o da simplicidade. A exemplo de seu Mestre, os discípulos do Cristo haviam adquirido esse profundo saber de bem-dizer, sobriamente, e seu falar, como o de Jesus, era marcado por essa graça delicada, essa profundeza que, em nossos dias, numa época em que tudo mente ao nosso redor, ainda fazem as grandes vozes do Cristo e dos apóstolos modelos inimitáveis de concisão e de precisão.

Mas a verdade desceu do alto; os Espíritos superiores, como os apóstolos dos primeiros dias da era cristã, vêm ensinar e dirigir. O Livro dos Espíritos é toda uma revolução, porque é conciso e sóbrio: poucas palavras, muitas coisas; nada de flores de retórica, nada de imagens, mas apenas pensamentos elevados e fortes, que consolam e fortalecem. Por isso agrada, e agrada porque é facilmente compreendido: aí está a marca da superioridade dos Espíritos que o ditaram.

Por que há tantas comunicações oriundas de Espíritos que se dizem superiores, repletas de insensatez, de frases empoladas e floreadas? uma página para nada dizer? Ficai certos de que não são Espíritos superiores, mas pseudo-sábios, que julgam produzir efeito, substituindo por palavras o vazio das ideias, a profundeza do pensamento pela obscuridade. Não podem seduzir senão os cérebros vazios como os seus, que tomam bijuterias por ouro legítimo e julgam a beleza de uma mulher pelo brilho de seus adereços.

Desconfiai, pois, dos Espíritos verbosos, de linguagem empolada e confusa, muito difícil para ser compreendida. Reconhecereis a verdadeira superioridade pelo estilo conciso, claro e inteligível, sem esforço de imaginação. Não avalieis a importância das comunicações por sua extensão, mas pela soma de ideias que encerram num pequeno volume. Para ter o tipo da superioridade real, contai as palavras e as ideias — refiro-me às ideias justas, sadias e lógicas — a comparação vos dará a exata medida.

Barbaret (Espírito familiar)

A Razão e o Sobrenatural

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. A. Didier)

O homem é limitado em sua inteligência e em suas sensações. Não podendo compreender além de certos limites, pronuncia, então, a palavra sacramental, que põe fim a tudo: Sobrenatural.

Na ciência nova que estudais, o vocábulo sobrenatural é palavra convencional: existe para nada exprimir. Efetivamente, o que significa? Fora da Natureza; além do que é conhecido. Nada mais insensato; nada mais absurdo do que aplicá-la a tudo que está fora de nós. Para o homem que raciocina a palavra sobrenatural não é definitiva; é vaga e faz pressentir. Conhece-se a frase banal do incrédulo por ignorância: “É sobrenatural. Ora, a razão, etc., etc.” O que é a razão? Ah! quando a Natureza, alargando-se e agindo como soberana, nos mostra tesouros desconhecidos, a razão, nesse sentido, se torna irracional e absurda, pois persiste, malgrado os fatos. Ora, se há um fato, é que a Natureza o permite. Certamente a Natureza tem, para nós, algumas manifestações sublimes, mas muito restritas, se entrarmos no domínio do desconhecido. Ah! quereis explorar a Natureza; quereis conhecer a causa das coisas, causa rerum, e julgais desnecessário pôr de lado vossa razão banal? Mas estais brincando, senhores. O que é a razão humana, senão a maneira de pensar do vosso mundo? Correis de planeta a planeta e pensais que a razão vos deve acompanhar? Não, senhores; a única razão que deveis ter em meio a todos esses fenômenos é o sangue-frio e a observação quanto a esse ponto de vista, e não do ponto de vista da incredulidade.

Ultimamente temos abordado questões muito graves, como vos lembrais. Mas, no bojo do que dizíamos, não concluímos que todo o mal vem dos homens. Depois de muitas lutas, de muitas discussões chegam também os bons pensamentos, uma nova fé e esperanças novas. Como vos disse há pouco, o Espiritismo é a luz que deve iluminar, doravante, toda inteligência dedicada ao progresso. A prece será o único dogma e a prática exclusiva do Espiritismo, isto é, a harmonia e a simplicidade. A arte será nova, porque secundada pelas ideias novas. Pensai que toda obra inspirada por uma ideia filosófico-religiosa é sempre manifestação poderosa e sã; o Cristo será sempre a Humanidade, mas não a Humanidade sofredora: será a Humanidade triunfante.

Lamennais

Allan Kardec



[1] Apolônio de Tiana, sua vida, suas viagens, seus prodígios; por Filostrato. Nova tradução do texto grego, pelo Sr. Chassang, mestre de conferências na Escola Normal. – 1 vol. in-12 de 500 páginas. Preço: 3,50 francos. Casa Didier & Cia, editores, Quai des Augustins, 35, Paris.

[2] Esta proposição, a respeito do estado primitivo das almas, formulada pela primeira vez em O Livro dos Espíritos, é hoje repetida por toda parte nas comunicações; encontra, assim, a sua consagração simultaneamente nessa concordância e na lógica, porquanto nenhum outro princípio responderia melhor à justiça de Deus. Dando a todos os homens um mesmo ponto de partida, deu a todos a mesma tarefa a desempenhar para atingir o fim. Ninguém é privilegiado pela Natureza; como, porém, têm o livre-arbítrio, uns avançam mais depressa e outros mais lentamente. Tal princípio de justiça é inconciliável com a doutrina que admite a criação da alma ao mesmo tempo que o corpo, admitindo em si mesmo a pluralidade das existências, porque, se a alma é anterior ao corpo, é que ela já viveu.

[3] Admiram-se de que Espíritos possam escolher uma encarnação num desses meios onde se acham em contato incessante com a corrupção. Entre os que se encontram nessas posições ínfimas da sociedade, uns as escolheram por gosto e para darem satisfação a seus pendores ignóbeis; outros, por missão e dever, a fim de tentarem tirar da lama os seus irmãos e para terem mais mérito para lutar contra os arrastamentos perniciosos. Sua recompensa será proporcional às dificuldades vencidas. Tal é, entre nós, o operário que é pago em razão do perigo a que se expõe no exercício da profissão.

Novembro de 1862

Viagem Espírita em 1862

Acabamos de visitar alguns Centros Espíritas da França, lamentando que o tempo não nos tenha permitido ir a toda parte onde nos haviam convidado, nem prolongar nossa estada em cada localidade como o desejávamos, em razão da acolhida tão simpática e tão fraterna que por toda parte recebemos. Durante uma viagem de mais de seis semanas e um percurso total de seiscentas e noventa e três léguas, paramos em vinte cidades e assistimos a mais de cinquenta reuniões. O resultado nos proporcionou uma grande satisfação moral, sob o duplo aspecto das observações colhidas e da constatação dos imensos progressos do Espiritismo.

O relato dessa viagem, que compreende principalmente as instruções que demos nos vários grupos, é muito extenso para ser publicado na Revista, pois absorveria quase dois fascículos. Dele faremos uma publicação à parte, do mesmo formato do jornal, a fim de, caso necessário, ser a ela anexado[1].

Em nosso percurso fomos visitar os possessos de Morzine, na Sabóia; ali também recolhemos importantes observações, muito instrutivas, sobre as causas e o modo da obsessão em todos os graus, corroborados por casos idênticos e isolados, por nós vistos em outras localidades, assim como os meios de a combater. Será objeto de um artigo especial e desenvolvido, que tínhamos a intenção de inserir neste número da Revista; o tempo, porém, não nos permitiu terminá-lo, obrigando-nos adiá-lo para o próximo número. Aliás, só terá a ganhar, porque feito com menos precipitação. Além disso, vários fatos recentes vieram esclarecer essa questão, abrindo novos horizontes à patologia.

Este artigo responderá a todos os pedidos de esclarecimentos que frequentemente nos dirigem sobre casos análogos.

Julgamos oportuno aproveitar esta circunstância para retificar uma opinião que, em geral, se nos tem afigurado muito propalada.

Várias pessoas, sobretudo na província, haviam pensado que os gastos com essas viagens corriam por conta da Sociedade de Paris. Vimo-nos forçado a refutar esse erro quando a ocasião se apresentou. Aos que pudessem ainda partilhar dessa opinião, lembramos o que foi dito em outra circunstância (número de junho de 1862), que a Sociedade se limita a prover as despesas correntes e não possui reservas. Para que pudesse formar um capital, teria de visar o número; é o que não faz, nem quer fazer, pois seu objetivo não é a especulação e o número nada acrescenta à importância de seus trabalhos. Sua influência é toda moral e o caráter de suas reuniões dá aos estranhos a ideia de uma assembleia grave e séria. Eis o seu mais poderoso meio de propaganda. Assim, não poderia ela custear semelhante despesa. Os gastos de viagem, como todos os necessários às nossas relações com o Espiritismo, são cobertos por nossos recursos pessoais e por nossas economias, acrescidos do produto de nossas obras, sem o que nos seria impossível acudir a todas as despesas consequentes à obra que empreendemos. Dizemos isto sem vaidade, unicamente em homenagem à verdade e para edificação dos que imaginam que entesouramos.


Aos Nossos Correspondentes

Ao regressar, encontramos tal volume de correspondência que seria preciso um mês inteiro para responder, sem fazermos mais nada. Considerando que diariamente vem um novo contingente, sem prejuízo das ocupações correntes e estritamente obrigatórias, compreender-se-á a impossibilidade material em que nos encontramos para fazer face a semelhante trabalho. Dissemos, e ainda o repetimos: estamos longe de nos lastimarmos pelo número de cartas que nos escrevem, pois elas provam a extensão imensa que toma a doutrina e o ponto de vista moral e filosófico sob o qual é encarada, onde quer que penetre. São preciosos arquivos para o Espiritismo; entretanto, mais uma vez somos forçados a pedir indulgência pela impontualidade em responder. Só este trabalho absorveria o tempo de duas pessoas e nós somos só. Daí resulta que muitas coisas ficam em suspenso, razão do atraso da publicação de várias obras que havíamos anunciado.

Esperamos que dia virá em que teremos uma colaboração permanente e assídua, a fim de que tudo possa marchar satisfatoriamente; os Espíritos no-la prometem. Enquanto esperamos, não há alternativa: é preciso descurar da correspondência, ou dos outros trabalhos, que aumentam à medida que cresce a doutrina.


Os Mistérios da Torre de São Miguel, em Bordeaux

História de uma Múmia

Num dos jazigos subterrâneos da torre de São Miguel, em Bordeaux, vê-se um certo número de cadáveres mumificados que, talvez, não remontem a mais de dois ou três séculos, tendo sido, ao que parece, levados àquele estado pela natureza do solo. São uma das curiosidades da cidade, que os estranhos não deixam de visitar. Todos os corpos têm a pele inteiramente apergaminhada; na maioria estão conservados, de modo a permitir que se distingam os traços do rosto e a expressão da fisionomia; muitos têm as unhas de uma frescura admirável; alguns ainda conservam restos das roupas e, até mesmo, rendas finíssimas.

Entre essas múmias, uma em particular desperta atenção: a de um homem, cujas contrações do corpo, do rosto e dos braços, levados à boca, não deixam a menor dúvida quanto ao gênero de morte: é evidente que foi enterrado vivo e que morreu nas convulsões de terrível agonia.

Um novo jornal de Bordeaux publica um folhetim, sob o título de Mistérios da Torre de São Miguel. Só conhecemos a obra de nome e pelos grandes cartazes afixados nos muros da cidade, representando o jazigo subterrâneo da torre. Por isso, não sabemos em que espírito foi concebido, nem a fonte da qual o autor recolheu os fatos que descreve. O que vamos referir tem, ao menos, o mérito de não ser fruto da imaginação humana, pois vem diretamente do além-túmulo, o que talvez faça rir bastante o autor em questão. Seja como for, cremos que esse relato é um dos episódios mais surpreendentes dos dramas passados naquele lugar. Será lido por todos os espíritas com tanto mais interesse quanto encerra um profundo ensinamento. É a história de um homem enterrado vivo e de duas outras pessoas a ele ligadas, obtida numa série de evocações feitas na Sociedade Espírita de Saint-Jean d’Angely, em agosto último, de que nos deram conhecimento quando por lá passamos. No que concerne à autenticidade dos fatos, faremos referência na observação que fecha este artigo.

(Saint-Jean d’Angely, 9 de agosto de 1862 — Médium: Sr. Del..., pela tiptologia)

1. Pergunta ao guia protetor: Podemos evocar o Espírito que animou o corpo que se vê no jazigo subterrâneo da torre de São Miguel, em Bordeaux, e que parece ter sido enterrado vivo?

Resp. — Sim, e que isto sirva de ensinamento.

2. Evocação.

Resp. — (O Espírito manifesta sua presença)

3. Poderíeis dizer o vosso nome quando animáveis o corpo de que falamos?

Resp. — Guillaume Remone.

4. Vossa morte foi uma expiação ou uma prova, escolhida com vistas ao vosso progresso?

Resp. — Meu Deus! por que, na tua bondade, seguir a tua sagrada justiça? Sabeis que a expiação é sempre obrigatória e quem cometeu um crime não pode evitá-la. Eu estava neste caso: é tudo quanto posso dizer. Depois de muito sofrimento, cheguei a reconhecer meus erros e experimento o arrependimento necessário para alcançar graça diante do Eterno.

5. Podeis dizer qual foi o vosso crime?

Resp. — Eu havia assassinado minha esposa em seu leito.

(10 de agosto — Médium: Sra. Guérin, pela escrita)

6. Antes da reencarnação, quando escolhestes o gênero de provas, sabíeis que seríeis enterrado vivo?

Resp. — Não; apenas sabia que devia cometer um crime odioso, que encheria minha vida de ardentes remorsos e que a vida terminaria em dores atrozes. Em breve reencarnarei. Deus teve piedade de minha dor e de meu arrependimento.

Observação — Esta frase: Eu sabia que devia cometer um crime, é explicada adiante, nas perguntas 30 e 31.

7. A justiça perseguiu alguém por ocasião da morte de vossa esposa?

Resp. — Não; acreditaram numa morte súbita. Eu a tinha sufocado.

8. Que motivo vos levou a esse ato criminoso?

Resp. — O ciúme.

9. Foi por descuido que vos enterraram vivo?

Resp. — Sim.

10. Lembrai-vos dos instantes da morte?

Resp. — Foi algo terrível, impossível de descrever. Imaginai estar numa fossa, com dez pés de terra em cima, querer respirar e faltar o ar, querer gritar: “Estou vivo!” e sentir a voz abafada; ver-se morrer e não poder pedir socorro; sentir-se cheio de vida e riscado da lista dos vivos; ter sede e não poder saciá-la; sentir as dores da fome e não poder fazê-la cessar; numa palavra, morrer numa raiva de danado.

11. Naquele momento supremo pensastes que era o momento da vossa punição?

Resp. — Nada pensei. Morri furioso, batendo nas paredes do caixão, dele querendo sair vivo a todo custo.

Observação — Esta resposta é lógica e se justifica pelas contorções vistas ao se examinar o cadáver, em meio às quais o indivíduo morreu.

12. Já desprendido, vosso Espírito viu o corpo de Guillaume Remone?

Resp. — Logo depois da morte eu ainda me via na terra.

13. Quanto tempo ficastes nesse estado, isto é, com o Espírito ligado ao corpo, embora já não o animasse?

Resp. — Cerca de 15 a dezoito dias.

14. Quando foi possível deixar o corpo, onde vos encontrastes?

Resp. — Vi-me cercado por uma multidão de Espíritos, como eu tomados de dor, não ousando levantar para Deus o coração, ainda ligado à Terra, e desesperançado de receber o seu perdão.

Observação — Ligado ao corpo, e sofrendo ainda a tortura dos últimos instantes, pois se achava entre Espíritos sofredores, sem esperança de perdão, não é o inferno, com seu choro e ranger de dentes? Haverá necessidade de se construir um forno com chamas e tridentes? Como se sabe, a crença na perpetuidade dos sofrimentos é um dos castigos infligidos aos Espíritos culpados. Tal estado durará enquanto os Espíritos não se arrependerem e duraria sempre, caso jamais se arrependessem, pois Deus só perdoa ao pecador arrependido. Desde que o arrependimento lhe entre no coração, um raio de esperança far-lhe-á entrever a possibilidade de um termo a seus males. Mas não basta o mero arrependimento; Deus quer a expiação e a reparação, e é pelas reencarnações sucessivas que Ele dá aos Espíritos imperfeitos a possibilidade de se melhorarem. Na erraticidade eles tomam resoluções que procuram executar na vida corporal. É assim que, em cada existência, deixando algumas impurezas, conseguem aperfeiçoar-se gradualmente e dão um passo à frente para a felicidade eterna. Assim, a porta da felicidade jamais lhes é fechada, sendo atingida num tempo mais ou menos longo, conforme a vontade e o trabalho que fizerem sobre si mesmos para o merecerem.

Não se pode admitir a onipotência de Deus sem a presciência. Sendo assim, pergunta-se por que Deus, ao criar uma alma, sabendo que devia falir sem poder erguer-se, a tirou do nada para destiná-la a tormentos eternos? Quis, então, criar almas infelizes? Tal proposição é inconciliável com a ideia da bondade infinita, que é um de seus atributos essenciais. De duas uma: ou Ele sabia, ou não sabia; se não sabia, não é onipotente; se sabia, nem é justo nem bom. Ora, tirar uma parcela do infinito dos atributos de Deus é negar a Divindade. Ao contrário, tudo se concilia com a possibilidade deixada ao Espírito de reparar suas faltas. Deus sabia que, em virtude de seu livre-arbítrio, o Espírito faliria, mas sabia, igualmente, que se ergueria. Sabia que, tomando o mau caminho, retardaria a chegada; contudo, mais cedo ou mais tarde, chegaria; e é para fazê-lo chegar mais depressa que multiplica os avisos sobre o caminho. Será mais culpado se não os escutar e merece o prolongamento das provas. Qual a mais racional dessas duas doutrinas?

A. K.

(11 de agosto)

15. Nossas perguntas vos seriam desagradáveis?

Resp. — Isto me lembra pungentes recordações. Mas agora, que entrei em graça pelo arrependimento, sinto-me feliz por poder dar minha vida como exemplo, a fim de prevenir meus irmãos contra as paixões que poderiam arrastá-los, como a mim.

16. Comparado com o de vossa esposa, vosso gênero de morte nos leva a supor que vos tenham aplicado a pena de talião e que em vós se realizaram estas palavras do Cristo: “Quem fere com a espada morrerá pela espada”. Quereis dizer como sufocastes a vossa vítima?

Resp. — Em seu leito, como disse, entre duas almofadas, depois de amordaçá-la, para impedir que gritasse.

17. Gozáveis de boa reputação entre os vizinhos?

Resp. — Sim. Era pobre, mas honesto e estimado. Minha esposa também era de uma família honrada. Aconteceu numa noite, em que o ciúme me deixara acordado, que vi sair um homem de seu quarto. Ébrio de furor, e não sabendo o que fazia, tornei-me culpado do crime que vos revelei.

18. Revistes a esposa no mundo dos Espíritos?

Resp. — Foi o primeiro Espírito que se me apresentou à vista, como que para censurar meu crime. Eu a vi durante muito tempo, também infeliz. Só depois que foi decidido que eu reencarnaria é que me livrei de sua presença.

Observação — A visão incessante das vítimas é um dos castigos mais comuns infligidos aos Espíritos criminosos. Os que mergulham nas trevas, o que é muito frequente, geralmente não podem escapar. Nada veem, a não ser aquilo que lhes pode lembrar o crime.

19. Pediste a ela que vos perdoasse?

Resp. — Não. Fugíamos incessantemente um do outro e nos encontrávamos sempre frente a frente, a fim de nos torturarmos reciprocamente.

20. Entretanto, no momento do arrependimento, foi necessário que lhe pedísseis perdão?

Resp. — Desde que me arrependi não mais a vi.

21. Sabeis onde se encontra ela agora?

Resp. — Não sei o que lhe sucedeu, mas vos será fácil colher informações com São João Batista, vosso guia espiritual.

22. Quais foram os vossos sofrimentos como Espírito?

Resp. — Eu estava cercado de Espíritos desesperados; eu mesmo imaginava que jamais sairia desse estado infeliz. Nenhum vislumbre de esperança brilhava para minha alma endurecida. A visão da vítima rematava o meu martírio.

23. Como chegastes a um estado melhor?

Resp. — Do meio de meus irmãos em desespero, certo dia divisei uma meta, que logo compreendi só poder atingir pelo arrependimento.

24. Qual foi essa meta?

Resp. — Deus, do qual, mau grado seu, todos têm uma ideia.

25. Já dissestes duas vezes que em breve iríeis reencarnar. Seria indiscrição perguntar que gênero de prova escolhestes?

Resp. — A morte ceifará todos os seres que me forem caros e eu mesmo sofrerei as mais abjetas enfermidades.

26. Sois feliz agora?

Resp. — Em termos relativos, sim, pois entrevejo um termo aos sofrimentos. De fato, não.

27. Desde o momento em que caístes em letargia, até o despertar no caixão, vistes e ouvistes o que se passava ao redor?

Resp. — Sim, mas tão vagamente que julgava sonhar.

28. Em que ano morrestes?

Resp. — Em 1612.

29. [A São João Batista] Não teria G. Remone, como punição, sido obrigado a anuir à nossa evocação para confessar o crime? Isto parece resultar de sua primeira resposta, na qual fala da justiça de Deus.

Resp. — Sim. Foi forçado, mas se resignou de boa vontade, quando viu um meio a mais de agradar a Deus, servindo aos vossos estudos.

30. Por certo o Espírito equivocou-se quando disse (questão 6): “Eu sabia que devia cometer um crime.” Provavelmente sabia estar exposto a cometer um crime, mas, dotado de livre-arbítrio, bem podia não sucumbir à tentação.

Resp. — Ele se explicou mal. Deveria ter dito: “Sabia que minha vida estaria cheia de remorsos.” Era livre para escolher outro gênero de prova. Ora, para sentir remorsos, é preciso imaginar que cometesse uma ação má.

31. Não se poderia admitir que só tivesse tido o livre-arbítrio no estado de erraticidade, ao escolher tal ou qual prova? Isto é, uma vez escolhida a prova, não mais teria, como encarnado, liberdade de não cometer a ação, devendo o crime, desse modo, ser cometido necessariamente?

Resp. — Ele podia evitá-lo. Era dotado de livre-arbítrio na condição de Espírito e como encarnado; podia, pois, resistir, mas as paixões o arrastaram.

Observação — Evidentemente o Espírito não se dava perfeita conta da situação; confundiu a prova, isto é, a tentação de fazer, com a ação. E como sucumbiu, acreditou numa ação fatal, por ele mesmo escolhida, o que não seria racional. O livre-arbítrio é o mais belo privilégio do Espírito humano e uma prova incontestável da justiça de Deus, que torna o Espírito o árbitro de seu destino, pois dele depende abreviar o sofrimento ou prolongá-lo por seu endurecimento e má vontade. Supor que pudesse perder a liberdade moral como encarnado, seria tirar-lhe a responsabilidade de seus atos. Por aí se pode ver que não devemos admitir certas respostas dos Espíritos senão após maduro exame, sobretudo quando não se conformam com a lógica em todos os pontos.

A. K.

32. É lícito supor possa um Espírito escolher como prova uma vida de crimes, desde que tenha escolhido o remorso, que mais não é que a infração da lei divina?

Resp. — Pode escolher a prova e a ela ser exposto; como, porém, tem livre-arbítrio, pode também não falir. Assim, G. Remone havia escolhido uma vida cheia de desgostos domésticos, que, ao suscitar a ideia do crime, devia encher-lhe a vida de remorsos, se o realizasse. Quis, pois, tentar essa prova na expectativa de sair vitorioso.

Vossa linguagem está tão pouco em harmonia com a maneira de se comunicarem os Espíritos que muitas vezes se tornam necessárias retificações em algumas frases, dadas pelos médiuns, sobretudo dos médiuns intuitivos. Pela combinação dos fluidos nós lhes transmitimos a ideia, que traduzem mais ou menos bem, conforme seja mais ou menos fácil a combinação entre o fluido do nosso perispírito e o fluido animal do médium.

A Esposa de Remone

(12 de agosto)

33. [A São João] Poderíamos evocar o Espírito da esposa de G. Remone?

Resp. — Não; ela está reencarnada.

34. Na Terra?

Resp. — Sim.

35. Se não a podemos evocar como Espírito errante, poderíamos fazê-lo como encarnado? E não poderíeis dizer-nos quando estará dormindo?

Resp. — Podeis fazê-lo neste momento, porque, para esse Espírito, as noites são os dias para vós.

36. Evocação do Espírito da esposa de Remone.

Resp. — (O Espírito se manifesta).

37. Lembrai-vos da existência em que éreis chamada de Sra. Remone?

Resp. — Sim. Oh! por que me recordar minha vergonha e minha infelicidade?

38. Se estas perguntas vos causam algum desgosto, nós pararemos.

Resp. — Por obséquio, fazei-as.

39. Nosso objetivo não é vos causar desgosto. Não vos conhecemos e talvez jamais vos conheçamos. Queremos apenas fazer estudos espíritas.

Resp. — Meu Espírito está tranquilo; por que agitá-lo com lembranças dolorosas? Não poderíeis fazer tais estudos com Espíritos errantes?

40. [A São João] Devemos cessar as perguntas, que parecem despertar neste Espírito aflitiva recordação?

Resp. — Eu vo-lo aconselho. É ainda uma criança e a fadiga do seu Espírito reagiria sobre o corpo. Aliás, seria mais ou menos a repetição do que já disse o marido.

41. Remone e a esposa se perdoaram reciprocamente?

Resp. — Não; para isso é necessário que alcancem um grau de perfeição mais elevado.

42. Se esses dois Espíritos se reencontrassem na Terra como encarnados, que sentimentos experimentariam um pelo outro?

Resp. — Apenas antipatia.

43. Se G. Remone revisse, como visitante, o seu corpo no jazigo subterrâneo de São Miguel, experimentaria uma sensação desconhecida pelos outros curiosos?

Resp. — Sim; mas tal sensação parecer-lhe-ia muito natural.

44. Ele reviu o corpo desde que foi retirado da Terra?

Resp. — Sim.

45. Quais foram as suas impressões?

Resp. — Nulas. Sabeis perfeitamente que os Espíritos, uma vez desprendidos de seu invólucro, veem as coisas terrenas de modo diverso do dos encarnados.

46. Poderíamos obter algumas informações sobre a posição atual da esposa de Remone?

Resp. — Perguntai.

47. Qual é hoje o seu sexo?

Resp. — Feminino.

48. Seu país natal?

Resp. — Ela está nas Antilhas, como filha de um rico negociante.

49. As Antilhas pertencem a várias potências. Qual a sua nação?

Resp. — Mora em Havana.

50. Poderíamos saber o seu nome?

Resp. — Não o pergunteis.

51. Qual a sua idade?

Resp. — Onze anos.

52. Quais serão as suas provas?

Resp. — A perda da fortuna; um amor ilegítimo e sem esperança, aliados à miséria e aos trabalhos mais penosos.

53. Dizeis um amor ilegítimo. Amará, talvez, seu pai, o irmão ou um dos seus?

Resp. — Amará um homem consagrado a Deus, só e sem esperança de ser correspondida.

54. Agora que conhecemos as provas desse Espírito, se o evocássemos de vez em quando durante o sono, em seus dias de infortúnio, não poderíamos dar-lhe alguns conselhos para reerguer sua coragem e depositar sua esperança em Deus? Isto influiria sobre as resoluções que pudesse tomar em vigília?

Resp. — Muito pouco. Essa jovem já tem uma imaginação de fogo e uma cabeça de ferro.

55. Dissestes que no país em que ela vive as noites são os dias para nós. Ora, entre Havana e Saint-Jean d’Angely há uma diferença de apenas cinco horas e meia. No momento da evocação, como aqui eram duas horas, em Havana deveriam ser oito horas e meia da manhã.

Resp. — Vá lá! ela cochilava ainda quando a evocastes, ao passo que despertastes há bastante tempo. Naquelas paragens dorme-se tarde, quando se é rico e nada se tem a fazer.

Observação — Desta evocação ressaltam vários ensinamentos. Se, na vida exterior de relação, o Espírito encarnado não se lembra do seu passado, dele se recorda quando desprendido do corpo durante o sono. Não há, pois, solução de continuidade na vida do Espírito que, nos momentos de emancipação, pode lançar um olhar retrospectivo sobre suas existências anteriores e daí trazer uma intuição, que poderá dirigi-lo em estado de vigília.

Em diversas ocasiões já ressaltamos os inconvenientes que, em vigília, representaria a lembrança precisa do passado. Essas evocações nos fornecem um exemplo. Foi dito que, se G. Remone e sua esposa se encontrassem, experimentariam antipatia um pelo outro. Que seria, então, se se lembrassem das antigas relações! O ódio entre eles despertaria inevitavelmente. Em vez de dois seres apenas antipáticos ou indiferentes um para com o outro, talvez fossem inimigos mortais. Com sua ignorância, são mais eles mesmos e marcham mais livremente na nova rota que devem percorrer. A lembrança do passado os perturbaria, humilhando-os aos seus próprios olhos e aos dos outros. O esquecimento não lhes faz perder o fruto da experiência, porque nascem com aquilo que adquiriram em inteligência e em moralidade; são aquilo que se fizeram e, para eles, isto é um novo ponto de partida. Se, com as novas provas que o Sr. Remone terá de sofrer, se juntasse a lembrança das torturas de sua derradeira morte, seria um suplício atroz que Deus quis evitar, ao lançar um véu sobre o seu passado.

A. K.

Jacques Noulin

(15 de agosto)

56. [A São João] Podemos evocar o cúmplice da esposa de Remone?

Resp. — Sim.

57. Evocação.

Resp. — (O Espírito se manifesta).

58. Jurai em nome de Deus que sois o Espírito daquele que foi o rival de Remone.

Resp. — Jurarei em nome de tudo o que quiserdes. —

Jurai em nome de Deus. — Resp. — Juro em nome de Deus.

59. Parece que não sois um Espírito muito adiantado.

Resp. — Cuidai dos vossos negócios e deixai que eu me vá.

Observação — Como não há portas fechadas para os Espíritos, se este pede que o deixem ir, é que um poder superior o obriga a ficar, certamente para a sua instrução.

60. Ocupamo-nos dos nossos negócios, porque queremos saber como, na outra vida, a virtude é recompensada e o vício castigado.

Resp. — Sim, caríssimo, cada um recebe recompensa ou punição, conforme suas obras. Tratai, pois, de andar direito.

61. Vossas fanfarronices não nos intimidam; depositamos nossa confiança em Deus. Mas pareceis ainda muito atrasado.

Resp. — Como antes, sou sempre o João-Grande.

62. Então não podeis responder seriamente a perguntas sérias?

Resp. — Ó gente séria, por que vos dirigis a mim? Prefiro rir a filosofar. Semprei gostei da boa mesa, das mulheres afáveis e do bom vinho.

63. [Ao anjo-da-guarda do médium] Podeis dar-nos algumas informações sobre este Espírito?

Resp. — Não é bastante avançado para vos dar boas razões.

64. Haveria perigo em entrar em comunicação com ele? Poderíamos despertar-lhe melhores sentimentos?

Resp. — Isso seria mais proveitoso a ele do que a vós. Tentai; talvez possais decidi-lo a encarar as coisas de outro ponto de vista.

65. [Ao Espírito] Sabeis que o Espírito deve progredir e, por reencarnações sucessivas, chegar até Deus, de quem pareceis afastado?

Resp. — Jamais havia pensado nisto. E como estou longe dEle! Não quero empreender tão longa viagem.

Observação — Eis um Espírito que, em razão de sua leviandade e pouco adiantamento, não suspeita da reencarnação. Quando lhe chegar o momento de retomar uma nova existência, que escolha poderá fazer? Evidentemente uma escolha em conformidade com seu caráter e com seus hábitos, a fim de gozar e não de expiar, até que seu Espírito se ache bastante desenvolvido para lhe compreender as consequências. É a história do garoto inexperiente, que se atira aturdidamente a todas as aventuras e que adquire experiência às próprias custas. Lembremos que, para os Espíritos atrasados, incapazes de fazer uma escolha com conhecimento de causa, há encarnações compulsórias.

A. K.

66. Conhecestes G. Remone?

Resp. — Sim; na verdade um pobre diabo.

67. Suspeitastes que ele tivesse assassinado a esposa?

Resp. — Eu era um pouco egoísta, ocupando-me mais de mim que dos outros. Quando soube da morte da mulher chorei sinceramente, mas não procurei saber a causa.

68. Qual era, então, a vossa posição?

Resp. — Eu era um simples auxiliar de portaria; um contínuo, como se diz hoje.

69. Depois da morte daquela mulher, pensastes nela alguma vez?

Resp. — Não me lembreis tudo isto.

70. Queremos que vos lembreis porque pareceis melhor do que revelais.

Resp. — Pensei nisto algumas vezes, mas, como era naturalmente despreocupado, sua lembrança passava como um relâmpago, sem deixar traços.

71. Qual era o vosso nome?

Resp. — Sois muito curioso; se eu não fosse forçado, já vos teria deixado com a vossa moral e os vossos sermões.

72. Vivíeis num século religioso. Então nunca orastes pela mulher que amáveis?

Resp. — É assim mesmo.

73. Revistes G. Renome e sua esposa no mundo dos Espíritos?

Resp. — Fui encontrar gente como eu; e quando aqueles chorões queriam mostrar-se eu lhes voltava as costas. Não gosto de causar desgosto e...

74. Continuai.

Resp. — Não sou tão tagarela quanto vós. Vou ficar por aqui, caso consintais.

75. Sois feliz hoje?

Resp. — Por que não? Divirto-me em pregar peças nas pessoas crédulas, que julgam tratar com os Espíritos bons. Desde que se ocupam conosco, nós pregamos boas peças.

76. Isto não é felicidade. A prova de que não sois feliz é que dissestes que fostes forçado a vir. Ora, não é feliz quem é forçado a fazer aquilo que o desagrada.

Resp. — A gente não tem sempre superiores? Isto não impede de ser feliz. Cada um agarra a felicidade onde a encontra.

77. Com algum esforço, principalmente pela prece, poderíeis alcançar a felicidade daqueles que vos comandam.

Resp. — Não pensei nisto. Ireis tornar-me ambicioso.

Não me enganais sempre? Não inquieteis à-toa o meu pobre Espírito.

78. Não vos enganamos. Trabalhai, pois, pelo vosso adiantamento.

Resp. — É preciso dar que fazer e eu sou preguiçoso.

79. Quando se é preguiçoso, pede-se a um amigo que nos ajude. Nós vos ajudaremos, orando por vós.

Resp. — Orai, então, para que eu mesmo me decida a orar.

80. Oraremos, mas orai também.

Resp. — Credes que se eu orasse teria ideias semelhantes às vossas?

81. Sem dúvida; mas orai igualmente. Nós vos evocaremos na quinta-feira, 21, para ver o progresso que tereis feito e vos dar conselhos, caso isto vos agrade.

Resp. — Então, até logo.

82. Agora quereis dar o vosso nome?

Resp. — Jacques Noulin.

No dia seguinte o Espírito foi evocado novamente e lhe foram feitas várias perguntas sobre a esposa de Remone. Suas respostas, pouco edificantes, foram do gênero das primeiras. Consultado, São João respondeu: “Laborastes em erro ao perturbar este Espírito, nele despertando suas antigas paixões. Teria sido melhor esperar o dia marcado; ele se achava em nova perturbação; vossa perturbação o havia lançado em ideias de outra ordem, completamente diferentes das suas ideias habituais. Ainda não tinha podido tomar uma decisão firme, embora se dispusesse a experimentar a prece. Não intervenham até o dia marcado. Daqui até lá, se ele escutar os Espíritos bons, que vos querem ajudar em vossa boa obra, podereis obter alguma coisa dele.”

(Quinta-feira, 21)

83. [A São João]. Depois da última evocação Jacques Noulin emendou-se?

Resp. — Ele orou, e a luz se fez para a sua alma; agora acredita que está destinado a tornar-se melhor e se dispôs a trabalhar.

84. Que marcha devemos seguir em seu interesse?

Resp. — Perguntai-lhe pelo estado atual de sua alma e fazei-o olhar para si mesmo, a fim de que se dê conta de sua mudança.

85. [A Jacques Noulin]. Já refletistes, como prometestes? Podeis dizer qual é hoje a vossa maneira de encarar as coisas?

Resp. — Antes de tudo quero vos agradecer. Poupastes-me muitos anos de cegueira. Desde alguns dias compreendo que Deus é o meu objetivo e que devo envidar todos os esforços para me tornar digno de chegar até Ele. Abre-se para mim uma nova era: as trevas se dissiparam e agora vejo o caminho que devo seguir. Tenho o coração cheio de esperança e sou sustentado pelos Espíritos bons que vêm em auxílio dos fracos. Vou seguir esta nova via, na qual já encontrei a tranquilidade e que me deve levar à felicidade.

86. Éreis realmente feliz, como dissestes?

Resp. — Agora vejo que era muito infeliz; mas eu me sentia feliz, como todos aqueles que não olham para cima. Não pensava no futuro; como na Terra, vagava tal qual um ser despreocupado, não me dando ao trabalho de pensar seriamente. Oh! como deploro a cegueira, que me fez perder um tempo tão precioso! Ganhastes um amigo, não o esqueçais. Chamai-me quando quiserdes e, se puder, virei.

87. Que pensam de vossa disposição os Espíritos com os quais vos reuníeis habitualmente?

Resp. — Zombam de mim por ter escutado os Espíritos bons, cuja presença e conselho nós detestávamos.

88. Seria permitido que fôsseis vê-los?

Resp. — Agora só me ocupo com o meu adiantamento. Aliás, os bons anjos que velam por mim e me cercam de cuidados não me permitem mais olhar para trás, salvo para me mostrarem a que aviltamento cheguei.

Observação — Certamente não existe nenhum meio material de constatar a identidade dos Espíritos que se manifestaram nas evocações acima; assim, não o afirmaremos de maneira absoluta. Fazemos esta restrição para os que creem que aceitamos cegamente tudo quanto vem dos Espíritos. Preferimos pecar por excesso de desconfiança. É que devemos evitar dar como verdade absoluta aquilo que não pode ser controlado. Ora, na ausência de provas positivas, devemos limitar-nos a constatar a possibilidade e buscar as provas morais, em falta de provas físicas. No fato em questão, as respostas têm um caráter evidente de probabilidade, principalmente de alta moralidade; aí não se vê nenhuma contradição, nem faltas de lógica que chocam o bom-senso e denunciam o embuste; tudo se liga e se encadeia perfeitamente; tudo concorda com o que já demonstrou a experiência. Pode, pois, dizer-se que a história é, ao menos, verossímil, o que já é muito. O que é certo é que não se trata de um romance inventado pelos homens, mas, sim, de uma obra mediúnica. Se fosse uma fantasia do Espírito, só poderia vir de um Espírito leviano, pois os Espíritos sérios não se divertem em contar histórias e os levianos sempre se deixam trair. Acrescentemos que a Sociedade Espírita de Saint-Jean d’Angely é um dos centros mais sérios e mais bem dirigidos que já vimos, constituída por pessoas tão recomendáveis pelo caráter quanto pelo saber, levando, por assim dizer, o escrúpulo ao excesso. Pode-se julgá-la pela sabedoria e pelo método com que as perguntas são apresentadas e formuladas. Assim, todas as comunicações ali obtidas atestam a superioridade dos Espíritos que se manifestam. As evocações acima foram feitas em excelentes condições, tanto pelo meio quanto pela natureza dos médiuns. Para nós é, pelo menos, uma garantia de sinceridade absoluta. Acrescentaremos que a veracidade do relato foi atestada da maneira mais explícita por vários dos melhores médiuns da Sociedade de Paris.

Encarando a coisa apenas do ponto de vista moral, apresenta-se uma grave questão. Eis dois Espíritos, Remone e Noulin, tirados de sua situação e trazidos a melhores sentimentos pela evocação e pelos conselhos que lhes foram dados. Pode perguntar-se se teriam continuado infelizes, caso não tivessem sido evocados, e o que acontece com todos os Espíritos sofredores que não são evocados? A resposta já foi dada na História de um danado (Espírito de Castelnaudary), publicada na Revista de 1860. Acrescentaremos que, tendo chegado a esses dois Espíritos o momento em que poderiam ser tocados pelo arrependimento e receber a luz, circunstâncias providenciais, embora fortuitas em aparência, provocaram sua evocação, quer para o seu bem, quer para a nossa instrução. A evocação era um meio, mas, em falta desta, Deus não se veria privado de recursos para vir em auxílio aos infelizes; e podemos estar certos de que todo Espírito que quiser progredir sempre encontrará assistência, de uma maneira ou de outra.

A. K.


Remédio dado pelos Espíritos

Este título fará sorrir os incrédulos. Que importa! Eles riram de muitas outras coisas, o que não as impediu de serem reconhecidas como verdades. Os Espíritos bons se interessam pelos sofrimentos da Humanidade. Não é, pois, de admirar que busquem aliviá-los e, em muitas ocasiões, provaram que o podem, quando bastante elevados para disporem dos necessários conhecimentos, porquanto veem o que não podem ver os olhos do corpo; preveem o que o homem não pode prever.

O remédio de que se cuida foi dado nas circunstâncias seguintes à Srta. Hermance Dufaux, a qual nos remeteu a fórmula com autorização de publicá-la, em benefício dos que dela necessitassem. Um de seus parentes, falecido há muito tempo, havia trazido da América a receita de um unguento, ou, melhor, de uma pomada, de maravilhosa eficácia para toda sorte de chagas ou feridas. Com sua morte, perdeu-se a receita, cujo conhecimento não foi dado a ninguém. A Srta. Dufaux estava afetada de um mal na perna, muito grave e muito antigo, e que havia resistido a todos os tratamentos. Cansada de ter empregado inutilmente tantos remédios, um dia perguntou ao seu Espírito protetor se para ela não haveria cura possível. “Sim”, respondeu ele. “Usa a pomada de teu tio.” — Mas sabeis perfeitamente que a receita se perdeu. — “Eu vou ta dar”, disse o Espírito. Depois ditou o seguinte:

Açafrão ................................................. 20 centigramas

Cominho ............................................... 4 gramas

Cera amarela ......................................... 31 a 32 gramas

Óleo de amêndoas doces ....................... 1 colher

Derreter a cera e pôr em seguida o óleo de amêndoas doces; juntar o cominho e o açafrão acondicionados num saquinho de pano e ferver, em fogo brando, durante dez minutos. Para usar, deita-se a pomada num pedaço de pano, aplicando-a sobre a parte doente. Repetir diariamente.

Tendo seguido a prescrição, em poucos dias a perna da Srta. Dufaux estava cicatrizada e a pele restaurada. Desde então se sente bem, não lhe sobrevindo nenhum acidente.

Felizmente a sua lavadeira também foi curada de mal idêntico.

Um operário se ferira com um fragmento de foice, o qual penetrou profundamente na ferida, produzindo inchaço e supuração. Falavam em amputar-lhe a perna. Com o emprego daquela pomada o edema desapareceu, cessou a supuração e o pedaço de ferro saiu da ferida. Em oito dias aquele homem pôde caminhar e retornou ao trabalho.

Aplicada sobre furúnculos, abscessos, panarícios, ela os faz irromper em pouco tempo e logo cicatrizar. Atua extraindo da chaga os princípios mórbidos, saneando-a e provocando, se for o caso, a saída de corpos estranhos, como lascas de ossos, de madeira, etc.

Parece que é também muito eficaz para os dartros e, em geral, para todas as afecções da pele.

Como se vê, sua composição é muito simples, fácil e, em todo o caso, inofensiva. Pode-se, pois, experimentá-la sem receio.


Poesias Espíritas

(Bordeaux — Médium: Sra. E. Collignon)

Meu Testamento

Posto que assim, rimado, ele mau não será,

Compreendamos. Exalto nele assim

Não é a rima: ela é ruim;

É o sentido... Ao Diabo a gíria vá!

O espírito da coisa, ah, que ele não se esquive;

Compreenda-o quem possa: O Espírito é que vive.

É assim que entendo pois o termo.

Eu que ainda não sou mas em breve hei de ser, —

Ao menos é o que espero, — e lá comparecer,

Não como um tolo no seu ermo,

Mas como um pobre Ser humilde, arrependido,

Esperando no Pai ser então compreendido,

E contando alcançar o reino dos eleitos,

Mais por bondade Sua em face aos meus defeitos!

Expliquemo-nos mais, que sempre me equivoco;

É a bondade de Deus que eu sempre aqui invoco;

Reassumindo a minha crença,

Portanto antes de ouvir minha sentença

Que me condene ou justifique,

Eu quero consertar como puder,

As contas que assumi pondo-me a pique.

Umas confessarei conforme a lei requer

Trago-as no coração. Como o fazer vejamos

Para tudo arranjar e do modo melhor.

Não é isto entre nós um negócio, entendamos!

Meu Espírito, assim que do corpo se for,

Reclamará de vós uma terna oração

Que sirva então de passaporte

A quem a morte

Lhe faz seu pó entregue ao chão.

Assim, o meu sepultamento

Pensar se faz preciso, presto

E, sem qualquer constrangimento,

Seja um enterro bem modesto.

Aliás, neste mundo eu fui sempre chocado

Ante as tumbas ao ver tal luxo acumulado,

Quando à massa de argila então fazem entrega

Do pouco que formados fomos.

Ocupar-nos por que de uma glória tão cega?

Quantos perdidos por excesso de assomos!

A prece enviada a Deus Sua clemência alcança;

Nós o cremos; também tenho nela esperança.

Mas por que só por uns apenas pedir mais?

E para isso por que tantos petrechos tais?

Por que um que é infeliz e na miséria morre

O concurso não tem da prece que socorre?

Por que, pois, exibir luxo assim tão custoso

Que inveja fez gerar no que a tal se iludira?

É pra o homem enganar sobre um céu venturoso?

Se é para ele enganar, anátema à mentira!

Mas se é para atrair as graças do Senhor,

Orai, antes, então pelos que sem amor

Pensam achá-lo nas riquezas,

Tendo sofrido tanto, anseiam tais larguezas

Que não vos custam um vintém!

Mesmo vendo-me um tolo, apercebei-vos bem:

Meu pobre Espírito ao partir,

Somente em prece quer a Deus se conduzir

Com o coração,

A única me crede, e que Ele escuta então.

Sem gastos me levai, sem pompas, sem fanal;

E bem contrário ao usual,

Com vossos olhos bem radiantes!

Em vez de lágrimas marcantes

Sustentai ares de alegria!

Nem dúvida ou melancolia.

Na fé em Deus sede constantes!

Filhos meus, não penseis que é por economia

Que meu falar assim me guia!

Pouco ocupou-se do dinheiro

Meu ser inteiro,

Julgai-me após a morte!

Pois quero em seu suporte,

Equilibrada essa balança;

E desse luxo que é abastança

Para do corpo o mal dourar,

Aos tristes faz melhor seus danos reparar.

Dessa mortalha enfim só ao morto é salubre

Se os seus adornos forem retirados.

Por uma mesma mão somos todos ceifados.

Ela é a porta do Céu, não aquela do Louvre

Que o bom São Pedro se me vir

Arrependido manda abrir.

Uma cruz de madeira, em silente eloquência,

Faz da ofensa ao Senhor não vingança, clemência.

Pois se eleve minha alma em simpleza e honradez,

E que esse ouro perdido extinga a atroz nudez

Da criança e do velho, irmãos meus nesta vida,

Na morte meus iguais, quiçá bem mais no Céu,

Aqueles que oram de alma fida,

Aos que do bem envolve o véu!

Antes de concluir, dar-vos-ei um conselho

Que pode, aqui, ter seu lugar:

Fazei da caridade o mais fiel espelho;

E nunca vos prendais dos néscios ao julgar.

Do luxo enganador que tanto exibe o orgulho

Sempre desconfiai. Nada iguala ao doce arrulho

De um coração no bem vivido.

Na fraqueza amparai sempre o oprimido;

Que responda vossa alma ao grito da aflição;

E um eco encontre aí a repetir a ação.

Que, filhos, vossa mão não cesse de servir,

Com o ouro que convosco eu possa repartir;

Tesouros ajuntai para a grande viagem

Da qual, virtuoso o Ser, já não retorne mais!

Semeai sempre o bem nesta vossa romagem,

Virtudes conquistando e, do Senhor, as luzes;

Achareis sempre irmãos em meio às suas cruzes,

E vos conceda Deus em Sua alta bondade,

Só terdes vós por lei o Amor e a Caridade!...


Fábulas e Poesias Diversas

POR UM ESPÍRITO BATEDOR

Embora a tiptologia seja um meio muito lento de comunicação, com paciência é possível obter trabalhos de fôlego. O Sr. Jaubert, de Carcassonne, houve por bem remeter-nos uma coleção de fábulas e de poesias obtidas por ele através daquele processo. Se nem todas são obras-primas, com o que o Sr. Jaubert não se sentiria ofendido, pois não lhe dá a menor importância, algumas são notáveis, abstração feita à fonte de onde procedem. Eis uma que, a despeito de não fazer parte da coleção, pode dar uma ideia do espírito daquele Espírito batedor. É dedicada à Sociedade Espírita de Bordeaux, pelo próprio Espírito.

Monólogo de um Burro[2]

Fábula

Um burro, sim, — não confundir,

Eu nunca digo mal de alguém de qualidade, —

Um Asno bem peludo, um burro de verdade,

Bem arreiado, é bom convir

Ralhava na estação com uma locomotiva.

O seu olhar brilhava a uma palavra viva.

“És tu, gritava então, tu que estás em repouso!

“Do carneiro vizinho ouvi atencioso,

“Que andas tu sem cavalo, ou asno, sem manobra;

“Que ruges a arrastar qual uma imensa cobra

“Esses caixotes, como aldeia de madeira;

“Um milagre que outrora eu crera, uma besteira!

“Chegados finalmente os tempos são! sem troça!

“Eu por trigo não tomo a alfafa de uma roça;

“Sei o cardo deixar por feixe de capim.

“Ninguém tão longe vai com os pés de ferro assim.

“Eu tenho a minha regra; e na razão confio.

“Sem cavalos marchar? Só tu? Eu desafio.”

Um asno, vede vós, invocava a razão,

Chama que, muita vez, ao néscio faz perder.

Ah! quantos sábios que como um jerico são!

Doutores, vós negais do Espírito o poder;

Negai o movimento, a força do motor.

Do nada o homem tirou a elétrica energia?

Toda locomotiva exige, enfim, vapor;

Aos mortos evocar... só à prece que irradia

De um coração pleno de amor.

O Médium e o Dr. Imbróglio

Correi, correi, doutor Imbróglio

A mesinha anda só: é patente, tangível

— Que nada! vou provar num in-fólio

Que a coisa não é possível.

Faremos uma observação sobre a qualificação dada ao Espírito que ditou as poesias acima citadas. Os Espíritos sérios rejeitam com razão o qualificativo de batedores: este título convém apenas àqueles que poderiam ser chamados de batedores profissionais, isto é, Espíritos levianos ou malévolos, que se servem de pancadas para se divertirem ou atormentarem; as coisas sérias não são da sua conta. Mas a tiptologia, como qualquer outro, é um meio para comunicações inteligentes, de que se podem servir os Espíritos mais adiantados, em falta de outro meio, embora prefiram a escrita, porque responde melhor à rapidez do pensamento. É certo dizer que, neste caso, não são eles próprios que batem; limitam-se a transmitir a ideia, deixando a execução material a Espíritos subalternos, como um escultor deixa ao aprendiz o cuidado de talhar o mármore.

A carta seguinte foi enviada pelo Sr. Jaubert ao Sr. Sabò, de Bordeaux. Temos o prazer de apresentá-la, como prova dos laços que se estabelecem entre os espíritas de diversas localidades e para edificação dos timoratos.

Senhor,

Sou sensível à vossa carta. Aceito com satisfação o título que me confere a Sociedade Espírita de Bordeaux; aceito-o como recompensa por meus insignificantes trabalhos, por minhas profundas convicções e, por que não dizê-lo? pelas amarguras passadas. Ainda hoje a nova fé é mal compreendida. Os sábios se insurgem, o clero grita que é o demônio, e alguns, convencidos, guardam silêncio. Neste século de materialismo, de apetites grosseiros, de guerras fratricidas, de apego cego e imoderado aos reinos deste mundo, Deus intervém: os mortos falam e nos encorajam. Por isso cada um de nós deve inscrever, sem temor, o nome na bandeira da causa santa. Somos sempre os soldados do Cristo. Proclamamos a grandeza, a imortalidade da alma, os laços patentes que ligam os vivos aos mortos; pregamos o amor e a caridade. Que temos a recear dos homens? Ser fraco é ser culpado. Eis por que, senhor, na medida de minhas forças, aceitei a tarefa que Deus e minha consciência me impõem. Ainda uma vez, obrigado por me haverdes admitido entre vós. Sede meu intérprete junto aos nossos irmãos de Bordeaux e contai com os meus mais afetuosos sentimentos.

J. Jaubert,

Vice-presidente do Tribunal Civil

Observação — O Espiritismo conta hoje numerosos adeptos nas fileiras da magistratura e da advocacia, bem como entre os funcionários públicos. Mas nem todos se atrevem a enfrentar a opinião pública. Esse medo, aliás, diminui diariamente e, em pouco tempo, os galhofeiros ficarão surpreendidos por terem posto no rol dos loucos, sem qualquer cerimônia, tantos homens estimáveis por suas luzes e por sua posição social.


Dissertações Espíritas

O Duelo

(Bordeaux, 21 de novembro de 1861 — Médium: Sr. Guipon)

1º Considerações gerais

O homem, ou Espírito encarnado, pode estar na Terra em missão, em progressão e em punição.

Isto posto, é preciso saibais, uma vez por todas, que o estado de missão, progressão ou punição deve, sob pena de recomeçar a prova, chegar ao termo fixado pelos desígnios da suprema justiça.

Adiantar por si mesmo, ou por provocação, o instante fixado por Deus para o retorno ao mundo dos Espíritos é, pois, enorme crime. O duelo é ainda um crime maior, porque não só é um suicídio, mas, além disso, um assassinato premeditado.

Com efeito, pensais que o provocado e o provocador não se suicidem moralmente ao se exporem voluntariamente aos golpes mortais do adversário? Credes que não sejam ambos assassinos, no momento em que procuram mutuamente tirar a vida por eles mesmos escolhida ou imposta por Deus como expiação ou como prova?

Sim, eu to digo, meu amigo: os duelistas são duplamente criminosos aos olhos de Deus; duas vezes terrível será a punição, porquanto nenhuma desculpa será admitida, desde que tudo calcularam com frieza e premeditação.

Leio em teu coração, meu filho, porque também foste um pobre transviado, e eis minha resposta.

Para não sucumbir a essa terrível tentação não necessitais senão de humildade, sinceridade e caridade para com vosso irmão em Deus. Ao contrário, só sucumbireis pelo orgulho e pela ostentação.

2º Consequências espirituais

Aquele que, por humildade, como o Cristo tiver suportado o maior ultraje e, por amor de Deus, perdoado de coração, além das recompensas celestes da outra vida, terá a paz de coração nesta e uma alegria inconcebível por haver respeitado duas vezes a obra de Deus.

Aquele que, por caridade para com o próximo, lhe houver provado seu amor fraterno, terá na outra vida a santa proteção e o concurso todo-poderoso da gloriosa mãe do Cristo, pois ela ama e abençoa os que cumprem os mandamentos de Deus, os que seguem e praticam os ensinos de seu Filho.

Aquele que, a despeito de todos os ultrajes, tiver respeitado a sua e a existência de seu irmão, encontrará, ao retornar ao mundo etéreo, milhões de legiões de Espíritos bons e de Espíritos puros que virão, não honrá-lo por sua ação, mas provar, por seu desvelo em lhe facilitar os primeiros passos na nova existência, a simpatia que soube atrair e os verdadeiros amigos que fez entre eles, seus irmãos. Todos em conjunto elevarão a Deus sinceras ações de graça por sua misericórdia, que permitiu ao seu irmão resistir à tentação.

Aquele, digo eu, que tiver resistido a essas tristes tentações, pode esperar, não a mudança dos desígnios de Deus, que são imutáveis, mas contar com a sincera e afetuosa benevolência do Espírito de Verdade — o filho de Deus — o qual de maneira incomparável inundará sua alma com a felicidade de compreender o Espírito de justiça perfeita e bondade infinita e, por conseguinte, salvaguardá-lo de qualquer outra emboscada semelhante.

Ao contrário, aqueles que, provocados ou provocadores, tiverem sucumbido, podem estar certos de que experimentarão as maiores torturas morais pela presença incessante do cadáver de sua vítima e do seu próprio; durante séculos serão consumidos pelo remorso por haverem transgredido tão gravemente os decretos celestes e serão perseguidos, até o dia da expiação, pelo espectro terrível das duas horrendas visões de seus cadáveres ensangüentados.

Felizes ainda se eles próprios aliviarem os sofrimentos por um arrependimento sincero e profundo, que lhes abra os olhos da alma, porque, então, ao menos entreverão um termo para as suas penas, compreenderão a Deus e lhe pedirão força de não mais provocar sua justiça terrível.

3º Consequências humanas

As palavras dever, honra, coração, muitas vezes são postas à frente pelos homens para justificar suas ações e seus crimes.

Compreenderão sempre tais palavras? Não resumem as intenções do Cristo? Por que, então, lhe mutilar o sentido? Por que, então, regredir ao barbarismo?

Infelizmente, na sua generalidade, os homens ainda se acham sob a influência do orgulho e da ostentação. Para se justificarem aos próprios olhos, fazem soar bem alto as palavras dever, honra e coração, sem suspeitarem de que estes significam cumprimento dos mandamentos de Deus, sabedoria, caridade e amor. Entretanto, com tais palavras degolam seus irmãos; com elas se suicidam e com elas se perdem.

Como estão cegos! julgam-se fortes por terem arrastado um infeliz, mais fraco que eles. Estão cegos, quando crêem que a aprovação de sua conduta por outros cegos e maus como eles próprios lhes suscitará a consideração humana! A mesma sociedade onde vivem os reprova e em breve os amaldiçoará, pois chega o reino da fraternidade. Entretanto, deles fogem os homens sensatos, como se fugissem das feras.

Examinemos alguns casos e veremos se o raciocínio justifica sua interpretação das palavras dever, honra e coração.

Um homem tem o coração trespassado de dor e a alma cheia de amargura, porque surpreendeu provas irrefutáveis da má conduta da esposa. Provoca um dos sedutores dessa pobre e infeliz criatura. Tal provocação seria resultado de seus deveres, de sua honra, de seu coração? Não, porquanto sua honra não lhe será devolvida, sua honra pessoal não foi nem pode ter sido atingida. Isto será vingança.

Melhor ainda. Para provar que sua pretensa honra não está em jogo, é que muitas vezes sua infelicidade é mesmo ignorada e assim ficaria se não fosse propalada por mil vozes provocadas pelo escândalo que sua vingança ocasiona.

Enfim, se sua desventura fosse conhecida, seria sinceramente lamentada por todos os homens sensatos, resultando numerosas provas de verdadeira simpatia, e contra ele não haveria o riso dos corações maliciosos e endurecidos, mas desprezíveis.

Num e noutro caso sua honra não seria devolvida nem retirada.

Assim, o orgulho é, sozinho, o mentor de quase todos os duelos, e não a honra.

Credes que, por uma palavra, a falsa interpretação de uma frase, o roçar insensível e involuntário de um braço ao passar, enfim por um sim ou um não e até, por vezes, por um olhar que não lhe era dirigido, seja o duelista impelido por um sentimento de honra, a exigir uma pretensa reparação pelo assassinato e o suicídio? Oh! não duvideis: o orgulho e a certeza de sua força são seus únicos móveis, muitas vezes corroborados pela ostentação. Porque ele quer exibir-se, dar prova de coragem, de saber e, às vezes, de generosidade: Ostentação!!!

Ostentação, repito, porque seus conhecimentos em duelos são os únicos verdadeiros; sua coragem e sua generosidade são mentirosas.

Quereis, realmente, provar esse espadachim corajoso? Ponde-o em frente a um rival, de reputação infernal acima da sua, embora, talvez, de saber inferior: ele empalidecerá e tudo fará para evitar o combate. Ponde-o, ao contrário, em frente a um mais fraco que ele, ignorante dessa ciência duplamente mortal, e o vereis impiedoso, altivo e arrogante, mesmo quando constrangido a ter piedade. Isto é coragem?

A generosidade! Oh! falemos disto. Ora, será generoso o homem que, confiante em sua força, depois de ter provocado a fraqueza, a esta concede a continuação de uma existência ultrajada e levada a ridículo? Será generoso aquele que, para conseguir uma coisa desejada e ambicionada, provoca seu frágil possuidor para a obter a seguir, como recompensa de sua generosidade? Será generoso aquele que, usando seus talentos criminosos, poupa a vida de seres fracos que injuriou? Será, ainda, generoso quando dá semelhante prova de generosidade ao marido ou ao irmão, a quem ultrajou indignamente, e assim o expor, pelo desespero, a um segundo suicídio?

Oh! meus amigos! crede todos que o duelo é uma horrenda e terrível invenção dos Espíritos maus e perversos, digna do estado de barbárie, que aflige ao máximo o nosso pai, o Deus tão bom.

Cabe a vós, espíritas, combater e destruir esse triste hábito, esse crime digno dos anjos das trevas; compete a vós, acima de tudo, dar o nobre exemplo da renúncia a tão funesto mal; a vós, espíritas sinceros, cabe fazer compreender a sublimidade destas palavras: dever, honra e coração; e Deus falará por vossa boca. Cabe-vos, enfim, a felicidade de semear entre vossos irmãos aquele grão tão precioso, que ignoramos em nossa existência terrena: o Espiritismo.

Teu pai, Antônio

Observação — Os duelos tornam-se cada vez mais raros — pelo menos na França — e se vemos ainda, de vez em quando, dolorosos exemplos, seu número não é comparável aos de outrora. Antigamente um homem não saía de casa sem prever um encontro e, em consequência, tomava todas as precauções. Um sinal característico dos costumes da época e dos povos estava no uso do porte habitual, ostensivo ou oculto, de armas ofensivas e defensivas. A abolição deste uso testemunha o abrandamento dos costumes, e é curioso seguir-lhe a gradação desde aquela época, em que os cavaleiros jamais cavalgavam sem armadura e armados de lança, até o simples porte da espada, mais como ornamento e acessório do brasão, do que arma agressiva. Um outro traço dos costumes é que outrora os combates particulares ocorriam em plena rua, perante a multidão que se afastava para deixar o campo livre, e hoje são ocultos. Atualmente a morte de um homem é um acontecimento que comove; outrora não se lhe prestava atenção. O Espiritismo varrerá estes últimos vestígios da barbárie, inculcando nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.

A. K.

Fundamentos da Ordem Social

(Lyon, 16 de setembro de 1862 — Médium: Sr. Émile V...)

Nota — Esta comunicação foi obtida numa sessão particular, presidida pelo Sr. Allan Kardec.

Eis que vos reunis para ver o Espiritismo em sua fonte, a fim de olhar de frente esta ideia e de apreciar as grandes ondas do amor que ela prodigaliza aos que a conhecem.

O Espiritismo é o progresso moral; é a elevação do Espírito na estrada que conduz a Deus. O progresso é a fraternidade em seu nascedouro, porque a fraternidade completa, tal qual pode o Espírito imaginá-la, é a perfeição. A fraternidade pura é um perfume do alto, uma emanação do infinito, um átomo da inteligência celeste; é a base de todas as instituições morais e o único meio de elevar um estado social que possa subsistir e produzir efeitos dignos da grande causa pela qual combateis.

Sede, pois, irmãos, se quiserdes que o germe lançado entre vós se desenvolva e se torne a árvore que buscais. A união é a força soberana que baixa à Terra; a fraternidade é a simpatia na união; é a poesia, o encanto, o ideal no positivo.

Precisais ser unidos para serdes fortes e ser fortes para fundar uma instituição que repouse unicamente na verdade, tornada tão comovente e tão admirável, tão simples e tão sublime. Divididas, as forças se aniquilam; reunidas, são cada vez mais fortes.

Se considerarmos o progresso moral de cada criatura, se refletirmos no amor e na caridade que brota de cada coração, a diferença será muito maior. Sob o sublime influxo desse sopro inefável, os laços de família se apertam, mas os laços sociais, tão vagamente definidos, se esboçam, se aproximam e acabam formando um único feixe de todos esses pensamentos, de todos esses desejos, de todos esses objetivos de natureza diversa.

O que é que vedes sem a fraternidade? O egoísmo, a ambição. Cada um tem o seu objetivo e por seu lado cada um o persegue; cada um marcha a seu modo e todos são fatalmente arrastados para o abismo em que se evaporam, há séculos, todos os esforços humanos. Com a união apenas há um objetivo, porquanto há um só pensamento, um só desejo, um só coração. Uni-vos, pois, meus amigos: é o que incessantemente vos repete a voz de nosso mundo. Uni-vos e chegareis muito mais depressa ao vosso objetivo.

É principalmente nessa reunião tão simpática que deveis tomar a resolução irrevogável de serdes unidos pelo pensamento comum a todos os Espíritos da Terra, para oferecerdes o preito do vosso reconhecimento àquele que vos abriu o caminho do bem supremo, que trouxe a felicidade às vossas cabeças e aos vossos corações, e a fé em vossos Espíritos. Vosso reconhecimento é a recompensa atual; não a recuseis e, oferecendo-a de um só fôlego, dareis o primeiro exemplo da verdadeira fraternidade.

Léon de Muriane, Espírito protetor

Observação — Este nome é completamente desconhecido, até do médium. Isto prova que para ser um Espírito elevado não há necessidade de ter o nome inscrito no calendário ou nos fastos da História e que, entre os que se comunicam, muitos há cujos nomes são desconhecidos.

Aqui Jaz Dezoito Séculos de Luzes[3]

(Lyon, 16 de setembro de 1862 — Médium: Sr. Émile V...)

O Sr. Émile, que obteve a comunicação acima e muitas outras igualmente notáveis, é muito jovem. Além de excelente médium escrevente é, também, médium pintor, embora não tenha aprendido desenho nem pintura. Pinta a óleo paisagens e temas diversos, para o que é levado a escolher, misturar e combinar as cores necessárias. Do ponto de vista da arte, seus quadros não são perfeitos, conquanto se veja, em certas exposições, algumas telas que não valem mais que as suas. Falta-lhes principalmente acabamento e suavidade, os tons são vigorosos e muito acentuados. Mas quando se pensa nas condições em que são feitos, não são menos admiráveis. Quem sabe se, com o exercício, não adquirirá ele a habilidade que lhe falta e não se tornará um verdadeiro pintor, como aquele operário bordelês que, mal sabendo assinar o nome escreve como médium e acabou por ter uma linda letra para uso pessoal, sem outros mestres além dos Espíritos?

Quando vimos o Sr. Émile V..., estava ele concluindo um quadro alegórico, onde se vê uma urna fenerária sobre a qual estava escrito: Aqui jaz dezoito séculos de luzes. Permitimo-nos criticar tal inscrição, do ponto de vista gramatical e, para começar, não compreendemos o sentido dessa alegoria, colocando dezoito séculos de luzes num caixão, considerando-se que, como dizíamos, graças sobretudo ao Cristianismo, a Humanidade está hoje mais esclarecida do que outrora. A comunicação acima foi por ele recebida na sessão do dia 16. O Espírito respondeu às nossas observações, acrescentando o que se segue.

“Aqui jaz é posto de propósito. O assunto não é expresso pelo número dezoito, representando séculos; é um total de séculos, uma ideia coletiva, como se houvesse um lapso de tempo de dezoito séculos. Podeis dizer aos vossos gramáticos que não confundam uma ideia coletiva com uma ideia de separação. Eles próprios não dizem da multidão, que pode ser composta de um número incalculável de pessoas, que ela pode mover-se? É o bastante sobre o assunto, porque é a própria ideia.

“Agora abordemos a alegoria. Dezoito séculos de luzes num caixão! Esta ideia representa todos os esforços feitos pela verdade durante esse tempo, esforços que foram sempre destruídos pelo espírito de partido e pelo egoísmo. Dezoito séculos de luzes em pleno dia, seriam dezoito séculos de felicidade para a Humanidade, dezoito séculos que apenas começam a germinar na terra e que teriam tido seu desenvolvimento. O Cristo trouxe a verdade à Terra e a colocou ao alcance de todos. O que lhe aconteceu? As paixões terrestres dela se apoderaram e a encerraram num caixão, donde vem tirá-la o Espiritismo. Eis a alegoria.”

Léon de Muriane

Papel da Sociedade de Paris

(Sociedade de Paris, 24 de outubro de 1862 — Médium: Sr. Leymarie)

Paris é o terminal de passageiros do mundo. Todos aí aportam à cata de uma impressão, de uma ideia.

Quando me achava entre vós, muitas vezes me perguntava por que essa grande cidade, ponto de encontro do mundo inteiro, não possuía uma reunião espírita numerosa, tão numerosa quanto pudessem conter os mais vastos anfiteatros.

Algumas vezes cheguei a pensar que os espíritas parisienses se entregavam muito aos prazeres; até pensei que, para muitos, a fé espírita era um prazer de amador, uma distração entre as muitas que Paris oferece continuamente.

Mas longe de vós e, no entanto, tão perto, vejo e compreendo melhor. Embora assentada às margens do Sena, Paris está em toda parte; e, todos os dias, sua cabeça poderosa agita o mundo inteiro. Como ela, a Sociedade central espírita faz jorrar seu pensamento no Universo. Sua força não está no círculo onde se realizam suas sessões, mas em todos os países onde são seguidas as suas dissertações, em toda parte onde ela faz lei, no que respeita aos seus ensinos inteligentes. É um sol, cujos raios benfazejos se refletem ao infinito.

Por isso mesmo a Sociedade não pode ser um grupo comum; seus pontos de vista são predestinados e seu apostolado maior. Não pode ela limitar-se a um pequeno espaço, porquanto o mundo lhe é necessário, invasora que é, por natureza. E, de fato, hoje ela conquista pacificamente grandes cidades; amanhã conquistará reinos e mais tarde o mundo inteiro.

Quando um estrangeiro vos faz uma visita de cortesia, recebei-o dignamente, generosamente, para que leve uma grande ideia do Espiritismo, esta poderosa arma da civilização, que deve aplanar todos os caminhos, vencer todas as divergências e até todas as dúvidas. Dai com prodigalidade, a fim de que cada um receba esse alimento do Espírito, que tudo transforma em sua passagem misteriosa, porque a crença nova é forte como Deus, grande como Ele, caridosa como tudo quanto emana do poder superior, que fere para consolar, oferecendo à Humanidade laboriosa a prece e a dor como meios de progredir.

Bendita sejas, Sociedade que amo, tu que dás sempre com benevolência; tu que realizas uma tarefa árdua sem olhar as pedras que obstruem a passagem. Muito mereceste de Deus. Não serás e não poderás ser um centro ordinário, mas, repito, a fonte benfazeja onde o sofrimento encontrará sempre o bálsamo reparador.

Sanson,

(Antigo membro da Sociedade de Paris)

Origem da Linguagem

(Sociedade Espírita de Paris — Médium: Sr. d’Ambel)

Pedis-me hoje, caros e amados ouvintes, que vos dite ao meu médium a história da origem da linguagem. Esforçar-me-ei por vos satisfazer. Deveis, porém, compreender que me será impossível, nalgumas linhas, tratar inteiramente esta grave questão, à qual se liga, forçosamente, outra ainda mais importante: a da origem das raças humanas.

Que Deus Todo-Poderoso, tão benevolente para com os espíritas, conceda-me a lucidez necessária para afastar de minha dissertação a obscuridade, a confusão e, principalmente, todo o erro!

Entro na matéria dizendo-vos: Admitamos como princípio esta verdade: que o Criador deu a todos os seres da mesma raça um modo especial, mas seguro, para se entenderem e para se comunicarem entre si. Entretanto, essa linguagem, esse modo de comunicação era tanto mais restrito quanto mais inferiores as espécies. É em virtude desta verdade, desta lei, que os selvagens e as tribos pouco civilizadas possuem línguas tão pobres que uma porção de termos utilizados nas regiões favorecidas pela civilização lá não encontram palavras correspondentes. E é em obediência a essa mesma lei que as nações que progridem criam novas expressões para descobertas e necessidades novas.

Como disse alhures, a Humanidade já atravessou três grandes períodos: a fase bárbara, a fase hebraica e pagã e a fase cristã. A esta última sucederá o grande período espírita, cujos fundamentos iniciais lançamos entre vós.

Examinemos, pois, a primeira fase e o começo da segunda. Não repetirei senão o que já disse. A primeira fase humana, que poderemos chamar pré-hebraica ou bárbara, arrastou-se lentamente e por tempo prolongado em horrores e convulsões de uma terrível barbárie. Aí o homem é peludo como um animal selvagem e, como as feras, abriga-se em cavernas e nos bosques. Vive de carne crua e se repasta de seu semelhante, qual se fora excelente caça. É o mais absoluto reino da antropofagia. Nada de sociedade, nada de família! Alguns grupos dispersos aqui e ali, vivendo na mais completa promiscuidade e sempre prontos a se entredevorarem: tal é o quadro desse período cruel. Nenhum culto, nenhuma tradição, nenhuma ideia religiosa. Apenas necessidades animais a satisfazer, eis tudo! Prisioneira de uma matéria estupefaciente, a alma fica morna e latente em sua prisão carnal; nada pode contra o invólucro grosseiro que a encerra e sua inteligência apenas se pode mover nos recônditos de um cérebro limitado. O olho é apagado, a pálpebra pesada, o lábio grosso, o crânio achatado e a linguagem se restringe a alguns sons guturais. Nada prenuncia que desse animal bruto sairá o pai das raças hebraicas e pagãs. Todavia, com o tempo eles sentem necessidade de se defenderem contra outros carnívoros, como o leão e o tigre, cujas presas terríveis e garras afiadas venciam facilmente o homem isolado. Entretanto, o reino da matéria e da força bruta se manteve durante toda essa frase cruel. Não procureis no homem dessa época nem sentimentos, nem razão, nem linguagem propriamente dita; ele apenas obedece à sensação grosseira e só tem um objetivo: beber, comer e dormir. Nada além disso. Pode dizer-se que o homem inteligente aí está em germe, mas não existe ainda. Contudo é preciso constatar que, entre as raças brutais, já aparecem alguns seres superiores, Espíritos encarnados com a incumbência de conduzir a Humanidade ao seu objetivo e apressar o advento das eras hebraica e pagã. Devo acrescentar que, além desses Espíritos encarnados, o globo terrestre era visitado frequentemente por esses ministros de Deus, cuja tradição a memória consagrou sob os nomes de anjos e arcanjos e que, quase todos os dias, estes se punham em contato com os seres superiores, Espíritos encarnados, de que acabo de falar. A missão de alguns desses anjos continuou durante grande parte da segunda fase, ou humanitária. Devo aditar que o quadro que acabo de esboçar, dos primeiros tempos da Humanidade, vos ensina um pouco a que leis rigorosas estão submetidos os Espíritos que ensaiam viver em planetas de formação recente.

A linguagem propriamente dita, como a vida social, só começa a ter um caráter certo a partir da era hebraica e pagã, durante a qual o Espírito encarnado, sempre sujeito à matéria, começa a se revoltar e a quebrar alguns elos de sua pesada cadeia. A alma fermenta e se agita em sua prisão carnal; por esforços reiterados reage energicamente contra as paredes do cérebro, cuja matéria sensibiliza; melhora e aperfeiçoa, por um trabalho constante, o jogo de suas faculdades, desenvolvendo, consequentemente, os órgãos físicos; enfim o pensamento pode ser lido num olhar límpido e claro. Já estamos longe das frontes achatadas! É que a alma se sente, se reconhece, tem consciência de si mesma e começa a compreender que é independente do corpo. Desde então luta com ardor para se desvencilhar da opressão de sua robusta rival. O homem se modifica cada vez mais e a inteligência se movimenta mais livremente num cérebro mais desenvolvido. Constatamos, todavia, que nessa época o homem ainda é circunscrito e considerado como animal; o homem é escravo do homem. A escravidão é consagrada pelo Deus dos hebreus, tanto quanto pelos deuses pagãos; e Jeová, assim como Júpiter Olímpico, pede sangue e vítimas vivas.

Esta segunda fase oferece aspectos curiosos, do ponto de vista filosófico. Já tracei um quadro rápido, que meu médium vos comunicará oportunamente. Seja como for, e para voltar ao tema em estudo, tende certeza de que não foi senão na época dos grandes períodos pastorais e patriarcais que a linguagem humana tomou um aspecto regular e adotou formas e sons especiais. Durante essa época primitiva, em que a Humanidade se libertava das fraldas e do balbuciar da primeira infância, poucas palavras bastavam aos homens, para os quais ainda não tinha nascido a ciência, cujas necessidades eram muito restritas e as relações sociais não ultrapassavam a porta das tendas, o âmbito da família e, mais tarde, os confins das tribos. Era a época em que o pai, o pastor, o ancião, o patriarca, numa palavra, dominava como senhor absoluto, com direito de vida e morte.

A língua primitiva era uniforme; porém, à medida que crescia o número de pastores, estes, deixando por sua vez a tenda paterna, foram constituir novas famílias em regiões desabitadas, formando novas tribos. Então a língua por eles usada se modificou gradativamente, de geração em geração, da que era usada na tenda paterna, que outrora haviam abandonado. Assim foram criados os vários idiomas. Aliás, embora não seja minha intenção dar um curso de linguística, já deveis ter notado que as línguas mais discordantes apresentam palavras cujo radical pouco variou e cujo significado é quase o mesmo. Por outro lado, conquanto tenhais a pretensão de formardes um velho mundo, a mesma razão, que corrompeu a língua primitiva, ainda reina soberana em vossa França tão orgulhosa de sua civilização, onde vedes as concordâncias, os termos e a significação variarem, já não direi de província em província, mas de comuna em comuna. Apelo aos que percorreram a Bretanha, como aos que viajaram à Provença e ao Languedoc. É uma variedade de idiomas e de dialetos que espanta a quem os quisesse coligir num único dicionário.

Uma vez que os homens primitivos, ajudados pelos missionários do Eterno, emprestaram a certos sons especiais outras tantas ideias especiais, foi criada a língua falada; as modificações que mais tarde ela sofreu o foram sempre em razão do progresso humano. Por conseguinte, conforme a riqueza da língua, pode estabelecer-se facilmente o grau de civilização a que chegou o povo que a fala. O que posso acrescentar é que a Humanidade marcha para uma língua única, consequência forçada de uma comunhão de ideias morais, políticas e, sobretudo, religiosas. Tal será a obra da filosofia nova — o Espiritismo — que hoje ensinamos.

Erasto


Respostas

Ao Sr. B. G., de La Calle (Argélia): O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns ainda não foram traduzidos para o italiano.

Ao Sr. Dumas, de Sétif (Argélia): Recebi o Écho de Sétif e li com atenção os dois notáveis e cultos artigos sobre o Espiritismo, publicados nesse jornal. Deles falarei em detalhe no próximo número. Sinto-me feliz por ver esse estimável jornal chamar a si a causa da doutrina e tratá-la de modo sério.

Errata

No 9, setembro de 1862, Peregrinações da alma, no quarto verso da segunda quadra:

Son être se dégage ou se trouve attiré.

lede: atterré.

A quadra a seguir foi omitida após a quarta:

No tempo certo Deus permite que almas puras

Encarnem entre nós só por dedicação;

Pois são ministros Seus, trazendo-nos venturas,

Que a lei do amor pregar é deles a missão.

Esta omissão, ocorrida durante a impressão, tira o sentido da estrofe seguinte, que começa por: “Sua santa missão”, etc., e que se torna a sexta.

Allan Kardec



[1] Brochura grande in-8o, formato e tipo da Revista. — Preço: 1 fr., isento de porte para toda a França. (No prelo.)

[2] Um vol. in-18. — Preço: 2 fr. — Em Carcassonne, L. Labau; em Paris, Ledoyen, Palais-Royal.

[3] N. do T.: O correto seria: Aqui jazem dezoito séculos de luzes. Vide explicação dada pelo próprio Espírito, inserida no terceiro parágrafo.


Dezembro de 1862

Estudos sobre os Possessos de Morzine — Causas da Obsessão e Meios de Combatê-la

As observações que fizemos sobre a epidemia que se abateu e ainda investe sobre a comuna de Morzine, na Alta Sabóia, não nos deixam dúvidas quanto à sua causa. Mas, para apoiar nossa opinião, devemos entrar em algumas explicações preliminares, que melhor ressaltarão a analogia desse mal com casos semelhantes, cuja origem não poderia ensejar dúvida a quem esteja familiarizado com os fenômenos espíritas e reconheça a ação do mundo invisível sobre a Humanidade. Para tanto se faz necessário remontar à própria fonte do fenômeno e seguir-lhe a gradação, desde os casos mais simples, explicando, ao mesmo tempo, a maneira pela qual se processa. Daí deduziremos muito melhor os meios de combater o mal. Embora já tenhamos tratado do assunto em O Livro dos Médiuns, no capítulo da obsessão, e em vários artigos desta Revista, acrescentaremos algumas considerações novas, que tornarão a coisa mais fácil de compreender.

O primeiro ponto que importa nos compenetremos, é da natureza dos Espíritos, do ponto de vista moral. Não sendo os Espíritos senão as almas dos homens, e não sendo bons todos os homens, não é racional admitir-se que o Espírito de um homem perverso se transforme subitamente; caso contrário não haveria necessidade de castigo na vida futura. A experiência vem confirmar a teoria ou, melhor dizendo, esta teoria é fruto da experiência. De fato, as relações com o mundo invisível nos mostram, ao lado de Espíritos sublimes em sabedoria e conhecimento, outros ignóbeis, ainda com todos os vícios e paixões da Humanidade. Depois da morte, a alma de um homem de bem será um Espírito bom. Do mesmo modo, encarnando-se, um Espírito bom será um homem de bem. Pela mesma razão, ao morrer, um homem perverso dará um Espírito perverso ao mundo invisível; e um Espírito mau, ao se encarnar, não pode transformar-se num homem virtuoso, pelo menos enquanto o Espírito não se houver depurado ou experimentado o desejo de melhorar-se. Porque, uma vez entrado na via do progresso, pouco a pouco se despoja de seus maus instintos; eleva-se gradualmente na hierarquia dos Espíritos, até atingir a perfeição, acessível a todos, porquanto não pode Deus ter criado seres eternamente votados ao mal e à infelicidade. Assim, os mundos visível e invisível se interpenetram e se alternam incessantemente, se assim nos podemos exprimir, e se alimentam mutuamente; ou, melhor dizendo, na realidade esses dois mundos não constituem senão um só, em dois estados diferentes. Esta consideração é muito importante para melhor compreender-se a solidariedade que existe entre eles.

Sendo a Terra um mundo inferior, isto é, pouco adiantado, resulta que a maioria dos Espíritos que o povoam, quer no estado errante, quer como encarnados, deve compor-se de Espíritos imperfeitos, que fazem mais mal que bem. Daí a predominância do mal na Terra. Ora, sendo a Terra, ao mesmo tempo, um mundo de expiação, é o contato do mal que torna infelizes os homens, pois se todos os homens fossem bons, todos seriam felizes. É um estado a que ainda não alcançou nosso globo, e é para tal estado que Deus quer conduzi-lo. Todas as tribulações que os homens de bem aqui experimentam, tanto da parte dos homens, quanto da dos Espíritos, são consequências deste estado de inferioridade. Poder-se-ia dizer que a Terra é a Botany-Bay dos mundos: aí se encontram a selvageria primitiva e a civilização, a criminalidade e a expiação.

É preciso, pois, apresentar-se o mundo invisível como formando uma população inumerável, compacta, por assim dizer, que envolve a Terra e se agita no espaço. É uma espécie de atmosfera moral, da qual os Espíritos encarnados ocupam a parte inferior, onde se agitam como num vaso. Ora, do mesmo modo que o ar das partes baixas é pesado e insalubre, esse ar moral é também prejudicial, porque corrompido pelos miasmas dos Espíritos impuros. Para resistir a isso são necessários temperamentos morais dotados de grande vigor.

Digamos, entre parênteses, que tal estado de coisas é inerente aos mundos inferiores. Mas estes seguem a lei do progresso e, quando atingirem a idade requerida, Deus os purifica, deles expulsando os Espíritos imperfeitos, que aí não mais se reencarnam e são substituídos por outros mais adiantados, que farão reinar a felicidade, a justiça e a paz. No momento se prepara uma revolução desse gênero.

Examinemos, agora, o modo recíproco de ação dos Espíritos encarnados e desencarnados.

Sabemos que os Espíritos são revestidos de um envoltório vaporoso, formando para eles um verdadeiro corpo fluídico, ao qual damos o nome de perispírito, e cujos elementos são colhidos do fluido universal ou cósmico, princípio de todas as coisas. Quando o Espírito se une a um corpo, aí vive com seu perispírito, que serve de ligação entre o Espírito propriamente dito e a matéria corporal; é o intermediário das sensações percebidas pelo Espírito. Mas o perispírito não está confinado no corpo, como numa caixa; por sua natureza fluídica, ele irradia para o exterior e forma em torno do corpo uma espécie de atmosfera, como o vapor que dele se desprende. Mas o vapor liberado de um corpo enfermiço é igualmente insalubre, acre e nauseabundo, o que infecta o ar dos lugares onde se reúnem muitas pessoas doentes. Assim como esse vapor é impregnado das qualidades do corpo, o perispírito é impregnado de qualidades, isto é, do pensamento do Espírito, e irradia tais qualidades em torno do corpo.

Aqui um outro parêntese para responder imediatamente a uma objeção oposta por alguns à teoria dada pelo Espiritismo do estado da alma. Acusam-no de materializar a alma, ao passo que, conforme a religião, a alma é puramente imaterial. Como a maior parte das outras, esta objeção provém de um estudo incompleto e superficial. O Espiritismo jamais definiu a natureza da alma, que escapa às nossas investigações; não diz que o perispírito constitui a alma: a palavra perispírito diz positivamente o contrário, pois especifica um envoltório em torno do Espírito. Que diz a respeito O Livro dos Espíritos? “Há no homem três coisas: a alma, ou Espírito, princípio inteligente; o corpo, envoltório material; o perispírito, envoltório fluídico semimaterial, servindo de laço entre o Espírito e o corpo.” Do fato de a alma conservar, com a morte do corpo, o seu envoltório fluídico, não significa que tal envoltório e a alma sejam uma só e mesma coisa, do mesmo modo que o corpo não se confunde com a roupa nem a alma com o corpo. A Doutrina Espírita nada tira à imaterialidade da alma, apenas lhe dá dois invólucros, em vez de um, na vida corpórea, e só um depois da morte do corpo, o que é, não uma hipótese, mas o resultado da observação; é com o auxílio desse envoltório que melhor se compreende a sua individualidade e melhor se explica a sua ação sobre a matéria.

Voltemos ao nosso assunto.

Por sua natureza fluídica, essencialmente móvel e elástica, se assim nos podemos exprimir, como agente direto do Espírito, o perispírito é posto em ação e projeta raios pela vontade do Espírito. Por esses raios ele serve à transmissão do pensamento, porque, de certa forma, está animado pelo pensamento do Espírito. Sendo o perispírito o laço que une o Espírito ao corpo, é por seu intermédio que o Espírito transmite aos órgãos, não a vida vegetativa, mas os movimentos que exprimem a sua vontade; é, também, por seu intermédio que as sensações do corpo são transmitidas ao Espírito. Destruído o corpo sólido pela morte, o Espírito não age mais e não percebe senão pelo seu corpo fluídico, ou perispírito, razão por que age mais facilmente e percebe melhor, já que o corpo é um entrave. Tudo isto é ainda resultado da observação.

Suponhamos agora duas pessoas próximas, cada qual envolvida — que nos permitam o neologismo — por sua atmosfera perispiritual. Esses dois fluidos põem-se em contato e se interpenetram; se forem de natureza antipática, repelem-se e os dois indivíduos sentirão uma espécie de mal-estar ao se aproximarem um do outro, sem disso se darem conta; se, ao contrário, forem movidos por sentimentos de benevolência, terão um pensamento benevolente, que atrai. Tal a causa pela qual duas pessoas se compreendem e se adivinham sem se falarem. Um certo não sei quê por vezes nos diz que a pessoa com a qual nos defrontamos deve ser animada por tal ou qual sentimento. Ora, esse não sei quê é a expansão do fluido perispiritual da pessoa em contato com o nosso, espécie de fio elétrico condutor do pensamento. Desde logo se compreende que os Espíritos, cujo envoltório fluídico é muito mais livre do que no estado de encarnação, já não necessitam de sons articulados para se entenderem.

O fluido perispiritual do encarnado é, pois, acionado pelo Espírito. Se, por sua vontade, o Espírito, por assim dizer, dardeja raios sobre outro indivíduo, os raios o penetram. Daí a ação magnética mais ou menos poderosa, conforme a vontade; mais ou menos benfazeja, conforme sejam os raios de natureza melhor ou pior, mais ou menos vivificante. Porque podem, por sua ação, penetrar os órgãos e, em certos casos, restabelecer o estado normal. Sabe-se da importância das qualidades morais do magnetizador.

Aquilo que pode fazer o Espírito encarnado, dardejando seu próprio fluido sobre uma pessoa, um Espírito desencarnado também o pode, visto ter o mesmo fluido, ou seja, pode magnetizar. Conforme seja bom ou mau o fluido, sua ação será benéfica ou prejudicial.

Assim, facilmente nos damos conta da natureza das impressões que recebemos, de acordo com o meio onde nos encontramos. Se uma assembleia for composta de pessoas animadas de maus sentimentos, o ar ambiente será saturado com o fluido impregnado de seus sentimentos. Daí, para as almas boas, um mal-estar moral análogo ao mal-estar físico causado pelas emanações mefíticas: a alma fica asfixiada. Se, ao contrário, as pessoas tiverem intenções puras, encontramo-nos em sua atmosfera como se estivéssemos num ar vivificante e salubre. Naturalmente o efeito será o mesmo num ambiente repleto de Espíritos, conforme sejam bons ou maus.

Isto bem compreendido, chegamos sem dificuldade à ação material dos Espíritos errantes sobre os encarnados e, daí, à explicação da mediunidade.

Quando um Espírito quer agir sobre uma pessoa, dela se aproxima e a envolve, por assim dizer, com o seu perispírito, como num manto; os fluidos se interpenetram, os dois pensamentos e as duas vontades se confundem e, então, o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio, fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Tais são os médiuns. Se o Espírito for bom, sua ação será suave, benéfica, e só fará boas coisas; caso seja mau, fará maldades; se for perverso e mau, ele o constrange como se o imobilizasse numa camisa-de-força, até paralisar a vontade e a própria razão, que abafa com seus fluidos, como se apaga o fogo sob um lençol d'água. Faz com que pense, fale e aja por ele, induzindo-o contra a vontade a praticar atos extravagantes ou ridículos; numa palavra, magnetiza-o e o faz entrar numa espécie de catalepsia moral, de modo que o indivíduo se torna um instrumento cego de sua vontade. Tal é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se apresentam em diversos graus de intensidade. O paroxismo da subjugação é vulgarmente chamado possessão. É de notar-se que, neste estado, muitas vezes o indivíduo tem consciência do ridículo daquilo que faz, mas é constrangido a fazê-lo, como se um homem mais vigoroso que ele fizesse com que movesse, contra a vontade, os braços, as pernas, a língua. Eis um curioso exemplo.

Numa pequena reunião em Bordeaux, em meio a uma evocação, o médium, um jovem de caráter suave e de perfeita urbanidade, de repente começa a bater na mesa, levanta-se com olhar ameaçador, mostrando os punhos aos assistentes, proferindo as mais grosseiras injúrias e querendo atirar-lhes um tinteiro. A cena, tanto mais chocante quanto inesperada, durou cerca de dez minutos, depois do que o moço retomou sua calma habitual, desculpou-se do que se havia passado, dizendo saber perfeitamente que fizera e dissera coisas inconvenientes, mas que não pudera impedir. Tomando conhecimento do fato, pedimos explicação numa sessão da Sociedade de Paris, sendo-nos respondido que o Espírito que o havia provocado era mais leviano do que mau e que simplesmente quisera divertir-se com o pavor dos assistentes. O fato não mais se repetiu e o médium continuou a receber excelentes comunicações, o que vem provar a veracidade da explicação. É bom dizer o que provavelmente tenha excitado a verve daquele Espírito farsista. Um antigo maestro do teatro de Bordeaux, o Sr. Beck, tinha experimentado, durante vários anos antes de morrer, um fenômeno singular. Todas as noites, ao sair do teatro, parecia-lhe que um homem lhe saltava às costas, escarranchava-se nas suas espáduas e se mantinha agarrado até que chegasse à porta de sua casa. Aí o suposto indivíduo descia e o Sr. Beck se via livre. Nessa reunião quiseram evocar o Sr. Beck e pedir-lhe uma explicação. Foi então que o Espírito intrujão julgou por bem substituí-lo, fazendo o médium representar uma cena diabólica, certamente por nele ter encontrado as necessárias disposições fluídicas para o secundar.

O que não passou de acidental naquela circunstância, por vezes toma um caráter permanente, quando o Espírito é mau, porque para ele o indivíduo se torna uma verdadeira vítima, à qual ele pode dar a aparência de verdadeira loucura. Dizemos aparência, porquanto a loucura propriamente dita sempre resulta de uma alteração dos órgãos cerebrais, ao passo que, neste caso, os órgãos estão de tal modo intactos quanto os do rapaz de quem acabamos de falar. Não há, pois, loucura real, mas aparente, contra a qual os recursos da terapêutica são impotentes, como o prova a experiência. Ainda mais: eles podem produzir o que não existe. As casas de alienados contam muitos doentes desse gênero, aos quais o contato com outros alienados só poderá ser muito prejudicial, porque este estado denota sempre uma certa fraqueza moral. Ao lado de todas as variedades de loucura patológica, convém, pois, acrescentar a loucura obsessiva, que requer meios especiais. Mas como poderá um médico materialista estabelecer essa diferença, ou mesmo admiti-la?

Bravo! — irão exclamar os nossos adversários. Não se pode demonstrar melhor os perigos do Espiritismo e temos muita razão de proibi-lo.

Um instante! O que dissemos prova precisamente a sua utilidade.

Credes que os Espíritos maus, que pululam no meio da Humanidade, esperaram ser chamados para exercerem sua influência perniciosa? Desde que os Espíritos existiram em todos os tempos, em todos os tempos representaram o mesmo papel, porque esse papel está na Natureza; e a prova disso está no grande número de pessoas obsidiadas, ou possessas, se quiserdes, antes que se pensasse nos Espíritos ou, atualmente, sem que jamais se tivesse ouvido falar de Espiritismo e de médiuns. A ação dos Espíritos, bons ou maus, é, pois, espontânea; a dos maus produz uma porção de perturbações na economia moral e mesmo física que, por ignorância da verdadeira causa, são atribuídas a causas erradas. Os Espíritos maus são inimigos invisíveis tanto mais perigosos quanto não se suspeitava de sua ação. Pondo-os a descoberto, o Espiritismo vem revelar uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não se buscará mais combater o mal por meios que, doravante, sabemos inúteis; procurar-se-ão outros mais eficazes. Ora, o que levou à descoberta desta causa? A mediunidade. Foi pela mediunidade que esses inimigos ocultos traíram sua presença; ela fez para ela o que fez o microscópio para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo. O Espiritismo não atraiu os Espíritos maus; ele os revelou e forneceu os meios de lhes paralisar a ação e, consequentemente, de os afastar. Não trouxe, pois, o mal, pois este sempre existiu; ao contrário, trouxe o remédio ao mal, mostrando-lhe as causas. Uma vez reconhecida a ação do mundo invisível, ter-se-á a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos e a Ciência, enriquecida com esta nova lei, verá desdobrarem-se novos horizontes à sua frente. Quando lá chegará? Quando não mais professar o materialismo, pois o materialismo detém o seu avanço e lhe opõe uma barreira intransponível.

Antes de falar do remédio, expliquemos um fato que confunde muitos espíritas, sobretudo nos casos de obsessão simples, isto é, naqueles muito frequentes, em que o médium não se pode desembaraçar de um Espírito mau, que por ele se comunica obstinadamente, pela escrita ou pela audição; aquele, não menos frequente, em que, por meio de uma boa comunicação, vem um Espírito imiscuir-se para dizer coisas más. Pergunta-se, então, se os Espíritos maus são mais poderosos que os bons.

Reportemo-nos ao que dissemos inicialmente, quanto à maneira por que age o Espírito e imaginemos um médium envolvido e penetrado pelo fluido perispiritual de um Espírito mau. Para que o do bom possa atuar sobre o médium, é necessário que penetre esse envoltório e já se sabe que dificilmente a luz penetra um nevoeiro espesso. Conforme o grau da obsessão, o nevoeiro será permanente, tenaz ou intermitente e, por conseguinte, mais ou menos fácil de dissipar.

O Sr. Superchi, nosso correspondente em Parma, enviou-nos dois desenhos feitos por um médium vidente, representando perfeitamente a situação. Num deles vê-se a mão do médium envolta numa nuvem escura — imagem do fluido perispiritual dos Espíritos maus — atravessada por um raio luminoso que lhe clareava a mão; é o bom fluido que a dirige e se opõe à ação do mau. No outro, a mão está na sombra; a luz está em volta do nevoeiro, que não pode penetrar. Aquilo que o desenho restringe à mão do médium deve ser entendido como envolvendo todo o seu corpo.

Resta sempre a questão de saber se o Espírito bom é menos poderoso que o mau. Não é o Espírito bom que é mais fraco e, sim, o médium, que não é bastante forte para livrar-se do manto que sobre si foi lançado e se desembaraçar da opressão dos braços que o enlaçam, nos quais, é bom que se diga, por vezes se compraz. Compreende-se que, neste caso, o Espírito bom não possa triunfar, pois o outro é preferido. Admitamos, agora, o desejo de desvencilhar-se desse envoltório fluídico, de que o seu se acha penetrado, como uma roupa penetrada de umidade: não bastará o desejo e nem sempre a vontade é suficiente.

Trata-se de lutar contra um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, é o de músculos mais fortes que vencerá o outro. Com um Espírito deve-se lutar, não corpo a corpo, mas de Espírito a Espírito; e é ainda o mais forte que vencerá. Aqui a força está na autoridade que se pode exercer sobre o Espírito e tal autoridade está subordinada à superioridade moral. Esta é como o Sol: dissipa o nevoeiro pela força de seus raios. Esforçar-se por ser bom; tornar-se melhor se já se é bom; purificar-se de suas imperfeições; numa palavra, elevar-se moralmente o mais possível, tal é o meio de adquirir o poder de dominar os Espíritos inferiores, para os afastar. Do contrário zombarão de vossas ordens. (O Livro dos Médiuns, nos 252 e 279).

Todavia — indagarão — por que os Espíritos protetores não lhes ordenam que se retirem? Certamente o podem e o fazem algumas vezes; mas, permitindo a luta, também deixam o mérito da vitória. Se deixam se debatendo pessoas merecedoras de certa consideração, é para provar sua perseverança e fazer que adquiram mais força no bem; para elas é uma espécie de ginástica moral.

Eis a resposta que demos a um coronel do estado-maior austríaco, na Hungria, o Sr. P..., que nos consultava sobre uma afecção atribuída aos Espíritos maus, desculpando-se por nos intitular de amigo, embora só de nome nos conhecesse:

“O Espiritismo é o laço fraterno por excelência e tendes razão de pensar que os que partilham essa crença devem, mesmo sem se conhecerem, tratar-se como amigos. Agradeço-vos por terdes tido de mim uma boa opinião e me dardes esse título.

“Sinto-me contente por encontrar em vós um adepto sincero e devotado dessa consoladora doutrina. Mas, por isso mesmo que é consoladora, deve dar força moral e resignação para suportar as provas da vida que, no mais das vezes, são expiações.

Disto a Revista Espírita vos fornece numerosos exemplos.

“No que respeita à moléstia que sofreis, não vejo prova evidente da influência de Espíritos maus, que vos obsidiariam. No entanto, admitamo-la como hipótese. Só uma força moral poderia opor-se a outra força moral e esta não pode vir senão de vós. Contra um Espírito é necessário lutar de Espírito a Espírito, e é o mais forte que vencerá. Em casos semelhantes é preciso esforçar-se para adquirir a maior soma possível de superioridade pela vontade, pela energia e pelas qualidades morais, para ter o direito de lhe dizer: Vade retro! Assim, pois, se estiverdes neste caso, não será com o sabre de coronel que o vencereis, mas com a espada do anjo, isto é, a virtude e a prece. A espécie de pavor e angústia que experimentais nesses momentos é um sinal de fraqueza, que o Espírito aproveita. Dominai o medo e com a vontade triunfareis; dominai-o resolutamente, como o fazeis perante o inimigo e crede-me vosso mui dedicado e afeiçoado,

A. K. ”

É possível que certas pessoas preferissem uma receita mais fácil para expulsar os Espíritos maus: algumas palavras a dizer, ou sinais a fazer, por exemplo, o que seria mais cômodo do que corrigir os próprios defeitos. Lamentamos bastante, mas não conhecemos processo mais eficaz para vencer um inimigo do que ser mais forte que ele. Quando estamos doentes, temos de nos resignar a tomar remédios, por mais amargos que sejam. Mas, também, quando tivemos a coragem de tomá-los, como nos sentimos bem e ficamos fortes! Devemos, pois, persuadir-nos de que, para alcançar tal objetivo, não há palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. Os Espíritos maus se riem e muitas vezes se deleitam em indicar alguns, cuidando sempre de dizer que são infalíveis, para melhor captar a confiança daqueles de que querem abusar, porque estes, então, confiantes na virtude do processo, se entregam sem temor.

Antes de esperar dominar o Espírito mau, é preciso dominar-se a si mesmo. De todos os meios para adquirir a força de o conseguir, o mais eficaz é a vontade, secundada pela prece, entendida a prece de coração e não de palavras, nas quais a boca participa mais que o pensamento. É necessário pedir ao seu anjo-da-guarda e aos Espíritos bons que o assistam na luta. Mas não basta lhes pedir que expulsem o Espírito mau; é preciso lembrar-se da máxima: Ajuda-te, e o céu te ajudará e, sobretudo, pedir-lhes a força que nos falta para vencer nossas más inclinações. Para nós tais inclinações são piores que os Espíritos maus, pois são elas que os atraem, como a corrupção atrai as aves de rapina. Orando também pelo Espírito obsessor estamos lhe retribuindo o mal com o bem e nos mostrando melhor que ele, o que já é uma superioridade. Com perseverança, na maioria dos casos acabamos por conduzi-lo a melhores sentimentos e, de perseguidor que era, o transformamos num ser reconhecido. Em resumo, a prece fervorosa e os esforços sérios por melhorar-se são os únicos meios de afastar os Espíritos maus, que reconhecem como senhores aqueles que praticam o bem, ao passo que as fórmulas os fazem rir. A cólera e a impaciência os excitam. É preciso cansá-los, mostrando mais paciência que eles.

Acontece, porém, que em alguns casos a subjugação chega a ponto de paralisar a vontade do obsidiado, não se lhe podendo esperar nenhum concurso sério. É principalmente então que a intervenção de um terceiro se torna necessária, seja pela prece, seja pela ação magnética. Mas o poder dessa intervenção também depende do ascendente moral que o interventor possa ter sobre os Espíritos, porquanto, se não valerem mais, sua ação será estéril. Neste caso a ação magnética terá por efeito penetrar o fluido do obsidiado por um fluido melhor e liberar o fluido do Espírito mau. Ao operar, deve o magnetizador ter o duplo objetivo de opor uma força moral a outra força moral e produzir sobre o paciente uma espécie de reação química, para nos servirmos de uma comparação material, expulsando um fluido por outro fluido. Por aí, não só opera um desprendimento salutar, mas dá força aos órgãos enfraquecidos por uma longa e por vezes vigorosa opressão. Aliás, compreende-se que o poder da ação fluídica não só está na razão da energia da vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, conforme dissemos, tal qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador comum, que agisse maquinalmente para magnetizar pura e simplesmente, produziria pouco ou nenhum efeito. É absolutamente necessário um magnetizador espírita, que age com conhecimento de causa, com a intenção de produzir, não o sonambulismo ou uma cura orgânica, mas os efeitos que acabamos de descrever. Além disso, é evidente que uma ação magnética dirigida nesse sentido não deixa de ser útil nos casos de obsessão ordinária, porque, então, se o magnetizador for secundado pela vontade do obsidiado, em vez de um só o Espírito será combatido por dois adversários.

É preciso dizer, também, que muitas vezes responsabilizamos os Espíritos estranhos por malefícios de que não são responsáveis. Certos estados mórbidos e certas aberrações, atribuídos a uma causa oculta, em geral são devidos exclusivamente ao Espírito do indivíduo. As contrariedades que ordinariamente concentramos em nós mesmos, sobretudo as decepções amorosas, têm levado ao cometimento de muitos atos excêntricos, atribuídos por engano à obsessão. Muitas vezes a criatura é o seu próprio obsessor.

Acrescentemos, enfim, que certas obsessões tenazes, principalmente de pessoas de mérito, por vezes fazem parte das provas a que se acham submetidas. “Por vezes, acontece mesmo que a obsessão, quando simples, seja uma tarefa imposta ao obsidiado, que deve trabalhar pela melhoria do obsessor, como um pai por um filho vicioso.”

Remetemos o leitor, para mais detalhes, a O Livro dos Médiuns.

Resta-nos falar da obsessão coletiva ou epidêmica e, em particular, da de Morzine; mas isto exige considerações de certa extensão para mostrar, pelos fatos, sua similitude com as obsessões individuais. E a prova disto nós a encontramos em nossas próprias observações e nas que são consignadas nos relatórios dos médicos. Além disso, resta-nos examinar o efeito dos meios empregados e, em seguida, a ação do exorcismo e as condições nas quais este pode ser eficaz ou nulo. A amplitude desta segunda parte obriga-nos a fazê-la objeto de um artigo especial, a ser publicado no próximo número.


O Espiritismo em Rochefort — Episódio de Viagem do Sr. Allan Kardec

Rochefort não é ainda um foco de Espiritismo, embora tenha alguns adeptos fervorosos e numerosos simpatizantes das novas ideias. Mas lá, menos que alhures, há coragem de opinião e muitos crentes se mantêm à margem. No dia em que ousarem mostrar-se ficaremos surpreendidos ao vê-los tão numerosos. Como apenas íamos ver algumas pessoas isoladas, esperávamos ali demorar poucas horas. Mas um passageiro, que se achava na mesma viatura, havendo nos reconhecido por um retrato que vira em Marennes, preveniu os seus amigos da nossa chegada. Então recebemos com insistência um amável convite, da parte de vários espíritas, que nos desejavam conhecer e receber instruções. Adiada nossa partida para o dia seguinte, tivemos a satisfação de passar a noite numa reunião de espíritas sinceros e dedicados.

Durante a reunião recebemos outro convite, em termos não menos obsequiosos, em nome de um alto funcionário e de várias notabilidades da cidade, manifestando o desejo de uma reunião na noite seguinte, o que ocasionou novo adiamento de nossa partida. Não teríamos mencionado tais detalhes se não fossem necessários às explicações que julgamos um dever dar a seguir, a propósito de um jornal da localidade.

Nesta última reunião fizemos, ao início da sessão, a seguinte alocução:

“Senhores,

“Embora não tivesse a intenção de passar senão algumas horas em Rochefort, o desejo que me manifestastes para esta reunião e, sobretudo, a maneira por que o convite foi feito, era muito lisonjeiro para que eu não o aceitasse. Ignoro se todas as pessoas que me honram em assistir a esta reunião são iniciadas na ciência espírita; suponho que muitos ainda são noviços na matéria; poder-se-ia até mesmo encontrar alguns que são hostis. Ora, em consequência da falsa ideia que fazem do Espiritismo aqueles que não o conhecem, ou só o conhecem imperfeitamente, poderia o resultado desta sessão causar algumas decepções aos que não encontrassem aquilo que esperavam. Devo, pois, explicar claramente a sua finalidade, para que não haja equívocos.

“Antes de tudo, devo informar quanto ao objetivo que me proponho nessas excursões. Vou unicamente visitar centros espíritas e lhes dar as instruções de que possam necessitar. Enganar-se-ia quem pensasse que vou pregar a doutrina aos incrédulos. O Espiritismo é toda uma ciência que reclama estudos sérios, como as outras ciências, e requer numerosas observações. Para expô-la minuciosamente seria necessário dar um curso regular, e um curso de Espiritismo não pode ser dado em uma ou duas aulas, como não o poderia um curso de Física ou de Astronomia. Para os que lhes não conhecem as primeiras noções, sou obrigado a enviá-los à fonte, ou seja, ao estudo das obras onde se acham todos os ensinamentos necessários e a resposta à maioria das perguntas que poderiam fazer e que, em sua maior parte, recaem sobre os princípios mais elementares. Eis por que, em minhas visitas, só me dirijo aos que já sabem, aos que precisam de ensino complementar, e não de á-bê-cê. Jamais vou dar o que se chama sessões, nem convocar o público para assistir a experiências ou demonstrações e, menos ainda, fazer exibição de Espíritos. Os que esperassem ver aqui coisa semelhante estariam completamente equivocados e devo apressar-me em lhes tirar a ilusão.

“A reunião desta noite é, de certo modo, excepcional e fora de meus hábitos. Pelos motivos que acabo de expor, não posso ter a pretensão de convencer os que rejeitassem as bases mesmas dos meus princípios. Só uma coisa desejo: é que, em falta de convicção, preservem a ideia de que o Espiritismo é uma coisa séria e digna de atenção, pois atrai o cuidado dos homens mais esclarecidos de todos os países. Que não o aceitem cegamente e sem exame, é compreensível; mas seria presunção contestar uma opinião que conta seus mais numerosos partidários na fina flor da sociedade. As pessoas sensatas dizem: Há tantas coisas novas que nos vêm surpreender e que, um século atrás, pareceriam absurdas; todos os dias presenciamos a descoberta de novas leis, a revelação de novas forças da Natureza que seria ilógico admitir que a Natureza houvesse dito a última palavra. Assim, antes de negar, é prudente estudar e observar. Para julgar uma coisa é preciso conhecê-la. A crítica só é permitida ao que fala do que sabe. Que diriam de um homem que, não sabendo música, criticasse uma ópera? daquele que, ignorando as primeiras noções de literatura, criticasse uma obra literária? Pois bem! dá-se o mesmo com a maioria dos detratores do Espiritismo: julgam com dados incompletos, muitas vezes, até, por ouvir dizer. Assim, todas as suas objeções denotam ignorância absoluta da coisa. Só lhes poderíamos responder: estudai antes de julgar.

“Como tive a honra de vos dizer, seria materialmente impossível, senhores, expor minuciosamente todos os princípios da ciência espírita. Quanto a satisfazer à curiosidade de quem quer que seja, há entre vós quem me conheça bastante para saber que jamais representei esse papel. Mas, na impossibilidade de vos expor as coisas em detalhes, talvez seja útil vos dar a conhecer o fim e as tendências. É o que me proponho fazer. Depois julgareis se o objetivo é sério e se é permitido zombar. Peço, pois, permissão para ler algumas passagens do discurso que pronunciei nas grandes reuniões de Lyon e Bordeaux. Para os que não têm do Espiritismo senão uma ideia incompleta, sem dúvida a questão principal é hipotética, pois me dirijo a adeptos já instruídos; todavia, até que as circunstâncias vos tenham transformado a hipótese em verdade, podeis ver as suas consequências, assim como a natureza das instruções que dou, e por aí julgar o caráter das reuniões a que assisto.

“Posso, contudo, dizer do Espiritismo que nele nada é hipotético: de todos os princípios formulados em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns, nenhum é produto de um sistema ou de uma opinião pessoal. Todos, sem exceção, são fruto da experiência e da observação; eu não poderia reivindicar um só como produto de minha iniciativa. Aquelas obras contêm o que aprendi, e não o que criei. Ora, o que aprendi, outros podem aprender, mas, como eu, devem trabalhar. Apenas lhes poupei o esforço dos primeiros trabalhos e das primeiras pesquisas.”

Depois desse preâmbulo lemos alguns trechos do discurso pronunciado em Lyon e Bordeaux, dando, em seguida, algumas explicações, forçosamente muito sumárias, sobre os princípios fundamentais do Espiritismo, entre outras sobre a natureza dos Espíritos e os meios por que se comunicam, destacando, sobretudo, a influência moral que resulta das manifestações pela certeza da vida futura, e os efeitos desta certeza sobre a conduta na vida presente.

Pelo preâmbulo era impossível estabelecer a situação de maneira mais clara e melhor precisar o objetivo a que nos propúnhamos, a fim de evitar qualquer equívoco. Tivemos de tomar tal precaução, pois sabíamos que a assembleia estava longe de ser homogênea e inteiramente simpática. Isto naturalmente não satisfez aos que aguardavam uma sessão do gênero das do Sr. Home. De forma polida, um dos assistentes chegou mesmo a declarar que não era exatamente o que ele esperava, no que acreditamos sem esforço, porquanto, em vez de exibir coisas curiosas, vínhamos falar de moral. Ele pediu com tanta insistência que déssemos provas da existência dos Espíritos que fomos forçados a lhe dizer que não os tínhamos no bolso para lhos mostrar. Creio que por pouco nos teria dito: “Procurai bem!”

Sob o pseudônimo de Tony, um jornalista que assistia à reunião julgou por bem noticiar o ocorrido no Spectateur, jornal hebdomadário de teatros, número de 12 de outubro. Começa assim:

Atraído pelo anúncio de um sarau espírita, apressei-me em ir ouvir um dos hierofantes mais autorizados desta ciência... assim classificam os adeptos o Espiritismo. Repleto, o auditório esperava com certa ansiedade a exposição meticulosa das bases desta ciência... pois há ciência. O Sr. Allan Kardec, autor de O Livro dos Espíritos e de O Livro dos Médiuns iria iniciar-nos em terríveis segredos! Movido por um sentimento de curiosidade muito compreensível e que nada tinha de hostil, esperávamos sair da sessão com uma certa convicção se o professor, homem de habilidade incontestável, se tivesse dado ao trabalho de expor sua doutrina. O Sr. Allan Kardec pensou de maneira diferente, o que é lamentável. Não lhe pediam que evocasse Espíritos, mas, pelo menos, que desse explicações claras ou mesmo elementares para facilitar a experimentação dos profanos.

Este começo caracteriza perfeitamente alguns ouvintes, que se julgavam espectadores. A palavra atraído diz mais que o resto. O que queriam eram explicações claras para facilitar a experimentação dos profanos. Em outras palavras, uma receita para que cada um, ao chegar em casa, pudesse divertir-se a evocar Espíritos.

Segue-se uma tirada sobre a base da doutrina: a caridade e outras máximas que, diz ele, vêm diretamente do Cristianismo e nada ensinam de novo. Se um dia aquele senhor se der ao trabalho de ler, saberá que o Espiritismo jamais pretendeu trazer aos homens outra moral senão a do Cristo e que não se dirige aos que a praticam em sua pureza. Mas como há muitos que não creem em Deus, nem na alma, nem nos ensinamentos do Cristo, ou, pelo menos, duvidam, e cuja moral se resume na expressão cada um por si, o Espiritismo, ao provar a existência da alma e da vida futura, vem dar uma sanção prática, uma necessidade a essa moral. Queremos mesmo acreditar que o Sr. Tony dele não precise, que tenha uma fé viva, uma religião sincera, pois toma a defesa do Cristianismo contra o Espiritismo, apesar de algumas más línguas o acusarem de ser um pouco materialista. Queremos mesmo acreditar que ele pratique a caridade como verdadeiro cristão; que, a exemplo do Cristo, seja brando e humilde; que não tenha orgulho, nem vaidade, nem ambição; que seja bom e indulgente para com todos, mesmo para com seus inimigos; numa palavra, que tenha todas as virtudes do divino modelo e, ao menos, que não aborreça os outros por isso. Prossegue ele:

Tem o Espiritismo a pretensão de evocar os Espíritos. É verdade que os Espíritos não se submetem a caprichos e exigências. Se necessário, podem revestir um corpo reconhecível, inclusive roupas e só entram em relação com os médiuns sob a condição de serem envolvidos numa camada de fluidos da mesma natureza... e por que não de natureza contrária, como na eletricidade? A ciência do Espiritismo não o explica.

Lede e vereis.

Não sei se os adeptos se retiraram satisfeitos. Mas, com toda a certeza os ignorantes, sinceramente desejosos de instruir-se, nada lucraram com essa sessão, a não ser que o Espiritismo não se demonstra. É culpa do professor ou o Espiritismo só desvenda os seus arcanos aos fiéis? Não vo-lo diremos... e com razão!

Tony

Conclusão — O Espiritismo não se demonstra. O Sr. Tony deveria ter explicado claramente, já que gosta tanto de explicações claras, a razão pela qual o Espiritismo é demonstrado a milhões de homens que nem são tolos nem ignorantes. Que se dê ao trabalho de estudar e saberá se, como diz, está com tanto desejo de instruir-se. Mas, desde que se julgou no dever de dar explicações ao público de uma reunião que nada tinha de pública, como se fizesse a apreciação crítica de um espetáculo aonde se vai atraído pelos cartazes, deveria, para ser imparcial, ter-se referido às palavras que dissemos no início.

Seja como for, estamos muito satisfeitos com a urbanidade que presidiu à reunião e aproveitamos o ensejo para dirigir ao eminente funcionário, Sr. La Maison, os nossos agradecimentos pela acolhida cheia de benevolência e de cordialidade e a iniciativa de pôr o salão à nossa disposição. Pareceu-nos útil demonstrar-lhe, assim como à elite reunida em sua casa, as tendências morais do Espiritismo e a natureza do ensino que ministramos nos centros visitados.

O Sr. Tony ignora se os adeptos ficaram satisfeitos. Em seu ponto de vista, evidentemente, a sessão não deu resultado. Quanto a nós, preferimos ter deixado em alguns ouvintes a impressão de um moralista enfadonho à ideia de um produtor de espetáculos. Um fato indubitável é que nem todos partilharam de sua opinião. Sem falar dos adeptos que lá se encontravam, e dos quais recebemos calorosos testemunhos de simpatia, citaremos dois senhores que, ao fim da sessão, perguntaram se as instruções que tínhamos lido seriam publicadas, acrescentando que haviam feito do Espiritismo uma ideia completamente falsa, mas, agora, o viam sob outro prisma, compreendiam o lado sério e útil e se propunham estudá-lo profundamente. Tivéssemos obtido somente esse resultado e nos daríamos por satisfeito. É pouco, dirá o Sr. Tony. Seja. Mas ele ignora que dois grãos que frutificam se multiplicam. Aliás, não sabemos se todos os que semeamos nessa circunstância estarão perdidos e se o vento provocado pelo Sr. Tony não terá levado alguns a uma terra fértil.

O Sr. Florentin Blanchard, livreiro de Marennes, sentiu-se no dever de responder ao artigo do Sr. Tony, por uma carta que foi inserida nas Tablettes des deux Charentes, edição de 25 de outubro.

Responde o Sr. Tony, assim concluindo:

“O Espiritismo superexcita o espírito dos crédulos, agrava o estado das mulheres dotadas de grande irritabilidade nervosa, enlouquece-as ou as mata, caso persistam em suas aberrações.

“O Espiritismo é uma doença e, como tal, deve ser combatido. Além disso, entra no quadro das coisas... malsãs, estudadas pela higiene pública e moral.”

Aqui surpreendemos o Sr. Tony em flagrante delito de contradição. No primeiro artigo, acima referido, disse que vinha à sessão “movido por um sentimento de curiosidade muito compreensível e que nada tinha de hostil.” Como compreender que não fosse hostil a uma coisa que diz ser uma doença, uma coisa malsã, etc.?

Mais adiante diz que esperava explicações claras ou mesmo elementares para facilitar a experimentação dos profanos. Como podia desejar iniciar-se, ele e os profanos, na experimentação de uma coisa que, diz, pode enlouquecer e matar? Por que veio? Por que não convenceu os amigos a que não viessem assistir ao ensino de uma coisa tão perigosa? Por que lamenta não tenha o ensino correspondido à sua expectativa, nem sido tão completo quanto desejava? Desde que, em sua opinião, esta coisa é tão perniciosa, em vez de nos censurar por termos sido pouco explícitos, deveria ter-nos parabenizado.

Outra contradição. Já que veio à reunião para saber o que é, o que quer e o que pode o Espiritismo; uma vez que nos censura por não o termos instruído, é que não o conhecia. Ora, desde que não o estudou, como sabe que é tão perigoso? Então julgou sem conhecimento. Assim, estribado na própria autoridade, decide que uma coisa é má, malsã e pode matar, quando acaba de declarar que não sabe o que ela é. Isto é linguagem de um homem sério? Há críticas que se refutam por si mesmas de tal maneira que basta assinalá-las, sendo supérfluo ligar-lhes importância. Em outras circunstâncias, uma alegação como a de matar poderia ensejar uma ação judicial por calúnia, pois a acusação é de extrema gravidade contra nós e contra uma classe hoje imensamente numerosa de homens honradíssimos.

Isto não é tudo. O segundo artigo foi seguido de vários outros, nos quais desenvolve sua tese.

Ora, eis o que se lê no Spectateur de 26 de outubro, por ocasião da primeira carta do Sr. Blanchard:

A redação do Spectateur recebeu de Marennes, assinada por Florentin Blanchard, uma carta em resposta ao nosso primeiro artigo do dia 12, quando este já estava composto. A redação lamenta que a exiguidade de seu formato não lhe permita abrir suas colunas para uma controvérsia sobre o Espiritismo. A pedido expresso do Spectateur, as Tablettes publicaram a carta in-extenso.

Reservamo-nos o direito de responder oportunamente e procuraremos não ceder, como seu autor, às inspirações de um Espírito inconveniente.

Tony

Depois de uma segunda carta do Sr. Blanchard, desta vez publicada no Spectateur, lê-se:

Concedemo-vos hospitalidade com prazer, Sr. Florentin Blanchard, mas seria bom que não abusasse. Vossa carta de hoje me acusa de não ter estudado o Espiritismo. Como sabeis? Por certo não quereis discutir senão com iluminados e, a esse título, não sou a pessoa mais indicada. De acordo?

Por que não respondeis, senhor, a algumas proposições que terminam minha última carta... em vez de me acusar vagamente? Esta correspondência prolongada não oferece interesse; permiti-me, pois, não a continuar.

Em breve retomarei minha série de artigos sobre o Espiritismo, mas só ocasionalmente, pois o pequeno formato do Spectateur não permite a publicação de longos estudos sobre este assunto pitoresco.

Por mais que façais, senhor, não levaremos os espíritas a sério nem poderemos considerar o Espiritismo como uma ciência.

Tony

Assim, está muito claro que o Sr. Tony quer atacar o Espiritismo, arrastá-lo na lama, qualificá-lo de malsão, dizer que mata, sem, contudo, dizer quantas pessoas matou. Mas não quer controvérsia. Seu jornal é bastante grande para os seus ataques, mas muito pequeno para as réplicas. Falar sozinho é mais cômodo. Ele esqueceu que, em razão da natureza e do caráter de seus ataques a lei poderia obrigá-lo à inserção de uma resposta de dupla extensão, em que pese a exiguidade de seu jornal.

Ao relatar as particularidades de nossa estada em Rochefort, quisemos mostrar que não buscamos nem solicitamos aquela reunião e, consequentemente, não atraímos ninguém para nos ouvir. Também tivemos o cuidado de dizer sem rodeios, logo de início, qual era a nossa intenção. Os que se sentissem desapontados tinham liberdade de retirar-se. Agora nós nos congratulamos pela circunstância fortuita, ou, melhor, providencial, que nos levou a ficar, pois provocou uma polêmica que apenas serve à causa do Espiritismo, dando-o a conhecer pelo que ele é: uma coisa moral, e não pelo que não quer ser: um espetáculo para satisfação dos curiosos; e por dar à crítica, uma vez mais, ocasião de mostrar a lógica de seus argumentos.

Agora, Sr. Tony, mais duas palavras, por favor. Para adiantar publicamente coisas como as que escrevestes, é preciso estar bem seguro dos fatos e deveis empenhar-vos em as provar. É muito cômodo discutir sozinho. No entanto, não pretendo estabelecer convosco nenhuma polêmica. Não tenho tempo para isto e, por outro lado, vossa folha é muito pequena para admitir a crítica e a refutação. Além disso — seja dito sem vos ofender — sua influência não se estende muito longe. Ofereço-vos coisa melhor: vinde a Paris, ante a Sociedade que presido, isto é, perante cento e cinquenta pessoas, sustentar e provar o que adiantais. Se tendes certeza de estar com a verdade, nada deveis recear e eu vos prometo, sob palavra de honra, que, através da Revista Espírita, vossos argumentos e os efeitos que tiverdes produzido irão da China ao México, passando por todas as capitais da Europa.

E notai, senhor, que vos faço uma boa proposta. Não, certamente, na expectativa de vos converter, já que ficareis inteiramente livre para conservar vossas convicções. É para oferecer às vossas ideias contra o Espiritismo ocasião para uma grande publicidade. Para que saibais com quem ireis lidar, dir-vos-ei que a Sociedade se compõe de advogados, negociantes, artistas, homens de letras, cientistas, médicos, capitalistas, bons burgueses, oficiais, artesãos, príncipes, etc., tudo entremeado de um certo número de senhoras, o que vos garante uma apresentação irrepreensível quanto à urbanidade; mas todos impregnados até a medula dos ossos, como os cinco ou seis milhões de adeptos, desta coisa malsã que estuda a higiene pública e a moral, e que desejareis ardentemente curar.


O Espiritismo é Possível?

(Extraído do Écho de Sétif, de 18 de setembro de 1862)

Tal é o título de um artigo erudito e profundo, assinado por Jalabert, publicado sob a epígrafe de Mens agitat molem, pelo Écho de Sétif, um dos jornais mais acreditados da Argélia. Lamentamos que sua extensão não nos permita transcrevê-lo na íntegra, considerando-se que a interrupção prejudicaria o encadeamento dos argumentos pelos quais chega o autor, numa imensa sorites, da criação do corpo e do Espírito por Deus, à ação do Espírito sobre a matéria, depois à possibilidade das comunicações entre o Espírito livre e o encarnado. Suas deduções são tão lógicas que, a menos que se negue Deus e a alma, não se pode deixar de dizer: Não pode ser de outro modo. Só citaremos alguns trechos, principalmente a conclusão.

Quando Fulton expôs a Napoleão I seu sistema de aplicação do vapor à navegação, afirmou e prometeu provar que, sendo seu sistema verdadeiro em teoria, não o seria menos na prática.

Que lhe respondeu Napoleão? — Que em teoria sua ideia não era realizável e não a aceitava a priori, desconsiderando as experiências já feitas pelo imortal mecânico, inclusive aquelas que pediu que ele fizesse e fez. O grande Imperador não mais pensou em Fulton e no seu sistema, até o dia em que o primeiro navio a vapor lhe apareceu no horizonte de Santa Helena.

Coisa singular, sobretudo num século de observações físicas, de ciências materiais e de positivismo. Mais uma vez, só por ser extraordinário, inaudito e novo, o fato, se assim se pode dizer, foi descartado por uma simples exceção de direito.

É assim que, para não falar senão das manifestações de Espíritos, que lembram a expressão do Espiritismo, ouvimos homens, aliás, sérios e instruídos, despejarem impropérios depois do relato consciencioso de certas manifestações vistas ou atestadas por homens inteligentes, convictos e de boa-fé. Deixai, pois, o vosso Espiritismo, as vossas manifestações e os vossos médiuns! O que contais é impossível!

Impossível! Muito bem, seja! Mas de graça, ó gênios transcendentes! Permiti vos lembre o dito célebre de um Antigo e, antes de nos ferir com o vosso supremo desdém, escutai-nos.

Lede estas linhas por inteiro, séria e atentamente; e, depois, com a mão na consciência e a sinceridade nos lábios, ousai, ousai negar a possibilidade, a racionalidade do Espiritismo!

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Dizeis: Não compreendo este mistério! — Mas para nós, como para vós, o movimento material produzido pelo movimento espiritual, a matéria agitada pelo pensamento, o corpo movido pelo Espírito, é o incompreensível! Mas o incompreensível não é o impossível. Negai esta ação, negai esta influência, negai esta comunicação! Nada de criação, nada de encarnação, nada de redenção, nada de distinção entre a alma e o corpo, nada de diversidade na unidade; nada de Deus, nada de corpo, nada de Espírito, nada de religião, nada de razão! O caos! o caos ainda e sempre ou, o que é pior, o panteísmo ou o niilismo.

Resumamos. Filosoficamente, fisiologicamente, religiosamente, o Espiritismo nem é irracional, nem absurdo.

Por conseguinte, é possível.

O homem age — sobre si mesmo por seu verbo interior ou sua vontade e por seus sentidos — sobre seus semelhantes, por seu verbo exterior ou sua palavra e, ainda, pelos sentidos. Por que, então, somente com seu verbo interior não se comunicaria com Deus, com os anjos e com os Espíritos, numa palavra, com qualquer outro ser incorpóreo por natureza, ou acidentalmente não corporificado, desprendido dos sentidos?

O Espírito é uma força que atua sobre a matéria, isto é, sobre um ser que com ele nada tem de comum, inerte, desprovido de inteligência. Entretanto, existem relações do Criador à criação, do anjo ao homem, como da alma do homem ao corpo do homem e, por ele, ao mundo exterior.

Todavia, o que é que impediria uma ação, uma comunicação recíproca de Espírito a Espírito? Se o Espírito se comunica com seres de natureza oposta à sua, seria inconcebível que não se pudesse comunicar com outros de idêntica natureza.

De onde viria o obstáculo? — Da distância? Mas, entre Espíritos, não existe distância. “O ar está cheio deles,” disse São Paulo, para nos fazer compreender que, de certo modo, eles gozam da ubiquidade divina. — De uma diferença hierárquica? Mas a hierarquia não importa: desde que são Espíritos, e assim o reclama a sua natureza, agem e se comunicam entre si. — De sua estada momentânea nos laços corporais? Mas, neste caso, salvo a diferença dos meios de comunicação, nem por isso deixa esta de ocorrer. Meu Espírito se comunica com o vosso e, como o meu, vosso Espírito habita um corpo. Com mais forte razão comunicar-se-á com um Espírito livre ou liberto da matéria, quer se trate de um Espírito de anjo, quer da alma do homem.

Há mais! Longe de qualquer impedimento, tudo, ao contrário, favorece tal comunicação; “Deus é amor” e tudo quanto tem algo de divino participa do amor. Mas o amor vive de comunicações, de comunhões. Porque ama o homem, Deus se comunica com ele: no Éden, pela palavra; no Sinai, pela escrita; no estábulo de Belém e no Calvário por seu Verbo encarnado; e no altar, por seu Verbo transubstanciado no pão e no vinho eucarísticos.[1]

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Tenhamos, pois, como certo, que as comunicações de alma a alma, de Espírito a Espírito são ainda mais possíveis que as de Espírito à matéria.

Agora, qual será o instrumento, o meio de comunicação dos seres entre si?

Entre seres corpóreos, tal comunicação se opera pelo movimento, que é como que o verbo do corpo; entre os seres puramente espirituais, pelo pensamento ou pela palavra interior, que é como que o movimento dos Espíritos; entre os seres ao mesmo tempo espirituais e corpóreos, por esse mesmo pensamento revestido de um sinal ao mesmo tempo corporal e espiritual, pela palavra exterior; entre um ser espiritual e corpóreo, de um lado, e um ser simplesmente espiritual, do outro, via de regra pela palavra interior, manifestando-se exteriormente por um sinal material.

E qual será este sinal? — Todo objeto material que, num dado momento, se desloca com movimento antecipadamente convencionado, sob a única influência, direta ou indireta, da vontade ou da palavra interior do Espírito com o qual desejamos entrar em comunicação.

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Recomendamos este artigo ao Sr. Tony, de Rochefort. Eis um de seus confrades, que diz exatamente o contrário; um diz branco, o outro diz preto. Quem tem razão? Há entre ambos uma diferença: um sabe, o outro não sabe. Deixamos ao leitor o cuidado de pesar as duas lógicas.

O mesmo jornal publicou vários artigos sobre o assunto, de outros escritores que, como este, têm o cunho de profunda observação e de estudo sério. Deles tornaremos a falar mais tarde.


Charles Fourier, Louis Jourdan e a Reencarnação

Extraímos a passagem seguinte de uma carta, que um amigo do autor teve a gentileza de nos enviar.

“Imagina qual não foi a minha surpresa quando, na Doutrina Espírita, da qual não fazia a menor ideia, reconheci toda a teoria de Fourier sobre a alma, a vida futura, a missão do homem na vida atual e a reencarnação das almas. Julga tu mesmo. Eis, em resumo, a teoria de Fourier:

“O homem está ligado ao planeta; vive sua vida e não a deixa nem mesmo morrendo.

“Tem duas existências: a vida atual, que Fourier compara ao sono, e a vida que chama aromal, outra vida, numa palavra, que é o despertar. Sua alma passa alternadamente de uma vida a outra e volta periodicamente a reencarnar na vida atual.

“Na vida atual a alma não tem o sentimento de suas vidas anteriores, mas o tem na vida aromal e vê todas as suas existências pretéritas.

“As penas na vida aromal são os temores que as almas experimentam, quando reencarnam, de serem condenadas a animar o corpo de um infeliz; porque, diz Fourier, veem-se diariamente pessoas implorando caridade à porta dos castelos, dos quais foram proprietárias em suas vidas anteriores. E acrescenta: ‘Se os homens estivessem bem convencidos da verdade que trago ao mundo, cada um se esforçaria por trabalhar pela felicidade de todos.’

“Por esse breve extrato, caro amigo, podes ver o quanto a doutrina de Fourier e o Espiritismo se assemelham, e que, sendo falansteriano, não era difícil fazer de mim um adepto da Doutrina Espírita.”

É impossível ser mais explícito sobre o capítulo da reencarnação. Não é apenas uma ideia vaga de existências sucessivas, através de diferentes mundos: é neste que o homem renasce para se depurar e expiar. Tudo aí está: alternativas da vida espiritual, que chama aromal, e da vida corpórea; nesta, esquecimento momentâneo das existências anteriores e lembrança do passado durante a primeira; expiação pelas vicissitudes da vida. Seu quadro dos infelizes, vindo mendigar à porta dos castelos, de que foram donos em existências precedentes, parece calcado nas revelações dos Espíritos. Por que, então, os que hoje tanto se obstinam contra a doutrina da reencarnação, nada disseram quando Fourier dela fez uma das pedras angulares de sua teoria? É que, naquela ocasião, ela lhes parecia confinada nos falanstérios, ao passo que hoje corre o mundo, além de outras razões, facilmente compreensíveis, não havendo necessidade de as desenvolver.

Aliás, ele não foi o único a ter a intuição desta lei da Natureza. O germe dessa ideia é encontrado numa multidão de escritores modernos. O Sr. Louis Jourdan, redator do Siècle, formulou-a de modo inequívoco no seu encantador opúsculo Prières de Ludovic, publicado pela primeira vez em 1849, por conseguinte, antes que se cogitasse do Espiritismo. Sabe-se que esse livro não é obra de ficção, mas de convicção. Entre outras coisas, nele se lê o seguinte:

“Para mim, confesso, creio firmemente, apaixonadamente, como se cria nas épocas primitivas, que cada um de nós prepara hoje a sua transformação futura, do mesmo modo que nossa existência atual é produto de existências anteriores.” O livro é inteiramente calcado nesse elemento.

Agora encaremos a questão de outro ponto de vista, para responder a uma interrogação que a respeito nos foi feita várias vezes.

Algumas pessoas se opõem à doutrina da reencarnação porque contraria os dogmas da Igreja, daí concluindo que não deve existir. O que lhes podemos responder?

A resposta é muito simples. A reencarnação não é um sistema que dependa dos homens adotar ou rejeitar, como se faz com um sistema político, econômico ou social. Se existe, é que está na Natureza; é uma lei inerente à Humanidade, como beber, comer e dormir; uma alternativa da vida da alma, como a vigília e o sono são alternativas da vida do corpo. Se for uma lei da Natureza, não será uma opinião favorável que a fará prevalecer, nem uma opinião contrária que a invalidará. A Terra não gira em torno do Sol porque se crê que ela o faça, mas porque obedece a uma lei; e os anátemas lançados contra esta lei não impediram que a Terra girasse. Dá-se o mesmo com a reencarnação; não será a opinião de alguns homens que os impedirá de renascerem, se tiverem de renascer. Admitindo que a reencarnação é uma lei da Natureza, suponhamos que ela não possa conciliar-se com um dogma; trata-se de saber quem tem razão, se o dogma ou a lei. Ora, quem é o autor de uma lei da Natureza, senão Deus? No caso direi que não é a lei que contraria o dogma, mas o dogma que contraria a lei, levando-se em conta que qualquer lei da Natureza é anterior ao dogma e os homens renasciam antes que o dogma fosse estabelecido. Se houvesse incompatibilidade absoluta entre um dogma e uma lei da Natureza, isto seria prova de que o dogma é obra dos homens, que não conheciam a lei, porquanto Deus não se pode contradizer, desfazendo de um lado aquilo que fez do outro. Sustentar essa incompatibilidade é, pois, fazer o processo do dogma. Segue-se que o dogma é falso? Não, mas simplesmente pode ser susceptível de uma interpretação, como interpretaram o Gênesis quando se reconheceu que os seis dias da criação não se conciliavam com a lei da formação do globo. A religião ganhará com isso, pois encontrará menos incrédulos.

A questão é saber se existe ou não a lei da reencarnação. Para os espíritas há milhares de provas contra uma que é inútil repetir aqui. Direi apenas que o Espiritismo demonstra que a pluralidade das existências não só é possível, mas necessária, indispensável; e ele encontra a sua prova, abstração feita à revelação dos Espíritos, numa inumerável multidão de fenômenos de ordem moral, psicológica e antropológica. Tais fenômenos são efeitos que têm uma causa. Buscando-se a causa, nós a encontramos na reencarnação, posta em evidência pela observação daqueles fenômenos, como a presença do Sol, embora oculto pelas nuvens, é posta em evidência pela luz do dia. Para provar que a lei está errada, ou que não existe, seria preciso explicar melhor, por outros meios, tudo o que ela explica, o que ninguém ainda fez.

Antes da descoberta das propriedades da eletricidade, àquele que tivesse anunciado que, em cinco minutos, poderia corresponder-se a quinhentas léguas, não teriam faltado especialistas que lhe provassem cientificamente, pelas leis da Mecânica, que a coisa era materialmente impossível, pois não conheciam outras leis. Para tanto havia necessidade da revelação de uma nova força. Foi assim com a reencarnação. É uma nova lei, que vem projetar luz sobre uma imensidão de questões obscuras e modificará profundamente todas as ideias quando for conhecida.

Assim, não é a opinião de alguns homens que prova a existência dessa lei: são os fatos. Se invocamos o seu testemunho, é para demonstrar que ela havia sido entrevista e suspeitada por outros antes do Espiritismo, que não é o seu inventor, mas que a desenvolveu e lhe deduziu as consequências.


A Cabana e o Salão — Estudos de Costumes Espíritas

Dentre nossa correspondência antiga encontramos a seguinte carta, que vem a propósito do artigo precedente.

Paris, 29 de julho de 1860.

Senhor,

Tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões sugeridas por dois fatos que observei e que, com toda justiça, poderiam ser qualificados de estudos dos costumes espíritas. Vereis por aí que os fenômenos morais têm valor para mim. Desde que me dediquei ao estudo do Espiritismo, parece que vejo cem vezes mais coisas que antes; tal fato, ao qual não teria dado a mínima atenção, leva-me hoje a refletir. Estou — poderia dizer — diante de um espetáculo perpétuo, no qual cada indivíduo tem o seu papel, e me oferece um enigma a decifrar. É verdade que uns são tão fáceis, quando se possui a chave admirável do Espiritismo, que não se tem grande mérito; mesmo assim despertam grande interesse, como se nos encontrássemos, graças ao Espiritismo, num país cuja língua compreendemos. A doutrina me tornou meditativo e observador, pois agora para mim tudo tem uma causa. Os mil e um fatos que noutro tempo me pareciam obra do acaso e passavam despercebidos, hoje têm a sua razão de ser e sua utilidade. Um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esquecia que é a propósito de uma lição que quero vos entreter.

Sou professor de piano. Tempos atrás, indo à casa de uma de minhas alunas, oriunda de família da alta sociedade, entrei casualmente nos aposentos destinados ao porteiro. Uma senhora com os punhos nos quadris, de físico e moral recomendáveis, ocupava um recanto. Repreendia o comportamento da filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras contrastavam de modo admirável com a mãe. “Que fez a Srta. Justina — perguntei, para excitar a tal ponto a vossa cólera? — Não me faleis disso, senhor; esta sirigaita não se dá conta de seus ares de duquesa! Não gosta de lavar louça; acha que lhe estraga as mãos, que cheira mal, logo ela que foi criada com as vacas, na casa da avó. Tem medo de sujar as unhas; precisa de perfume para o lenço! Olha o perfume que eu te darei!” Nisto uma vigorosa bofetada a fez recuar quatro passos. “Ah! senhor, é preciso corrigir as crianças quando imaturas. Jamais estraguei as minhas; todos os meus filhos são bons operários e é preciso que esta lambisgóia perca seus ares de grande dama.”

Depois de haver dado alguns conselhos de serenidade à mãe e de submissão à filha, subi à residência de minha aluna, sem dar importância àquela cena de família. Lá, por singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade, de belas maneiras, também repreendia a filha, mas por motivo completamente oposto. Dizia-lhe: “Olha os modos, Sofia; mais te assemelhas a uma cozinheira, o que não é de admirar: tua predileção particular pela cozinha faz que ali te sintas melhor que no salão. Garanto que Justina, a filha do porteiro, se envergonharia de ti. Dir-se-ia que a ama-de-leite trocou uma pela outra no berço.”

Eu jamais havia dado atenção a estas particularidades. Foi necessária a aproximação das duas cenas para que as notasse. A Srta. Sofia, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, muito bonita, mas os traços têm algo de vulgar; suas maneiras são comuns e sem distinção; sua postura, seus movimentos têm algo de pesado e de maljeitoso. Eu ignorava sua inclinação pela cozinha. Pus-me, então, a comparar a pequena Justina, de instintos tão aristocráticos, e me perguntei se aí não estaria um exemplo admirável de pendores inatos, considerando-se que nas duas a educação foi impotente para os modificar. Por que uma, educada no seio da opulência e do bom-tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra, desde a infância vivendo num meio mais rústico, tem o sentimento da distinção e das coisas delicadas, apesar dos corretivos da mãe, para que perca o hábito? Ó filósofos! que quereis sondar o âmago do coração humano, explicai estes fenômenos sem as existências anteriores. Para mim, é indubitável que as duas moças têm o instinto daquilo que foram. Que pensais disto, caro mestre?

Aceitai,

D...

Pensamos que a Srta. Justina, a porteira, bem poderia ser uma variante do que diz Charles Fourier: “Veem-se todos os dias pessoas mendigando à porta dos castelos dos quais foram donos em vidas precedentes.” Quem sabe se a Srta. Justina não teria sido a senhora desse palácio, e a Srta. Sofia, a grande dama, sua porteira? Este pensamento é revoltante para certa gente que não admite a ideia de ter sido menos do que é, ou tornar-se criado de seu criado; se fosse assim, em que se tornariam as raças de puro sangue, que se teve tanto cuidado em não acasalar? Consolai-vos. O sangue dos vossos antepassados pode correr em vossas veias, porquanto o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito é outra coisa. Mas que fazer, se assim é? Porque um homem se aborrece com a chuva, não deixará de chover. Sem dúvida é humilhante pensar que de senhor se possa passar a servo e de rico a mendigo; mas nada é mais natural que assim seja. Basta não ser vão e orgulhoso para não se ser rebaixado; bom e generoso para não ser reduzido a pedir aquilo que se recusou aos outros. Ser punido por aquilo em que se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande podemos nos tornar pequenos; mas, se fomos bons, não voltaremos a ser maus. Ora, não é preferível ser um proletário honesto a um rico vicioso?


Dissertações Espíritas

Dia de Todos os Santos

I

(Paris, 1º de novembro de 1862 — Médium: Sr. Perchet, Sargento da 40a linha, Caserna do Príncipe Eugênio; membro da Sociedade de Paris)

Meu caro irmão, neste dia de comemoração dos mortos, sinto-me feliz por poder conversar contigo. Não podes imaginar quão grande é o prazer que experimento. Chama-me, pois, mais vezes, e ambos lucraremos.

Aqui, nem sempre posso vir a ti, porque, muitas vezes, estou junto às minhas irmãs, especialmente junto à minha afilhada, que quase não deixo, pois pedi a missão de ficar junto a ela. Não obstante, posso com freqüência responder ao teu apelo e será sempre uma alegria poder ajudar-te com meus conselhos.

Falemos da festa de hoje. Nesta solenidade cheia de recolhimento, que aproxima o mundo visível do invisível, há felicidade e tristeza.

Felicidade, porque une em piedoso sentimento os membros dispersos da família. Neste dia a criança se acerca de seu túmulo e encontra sua terna mãe, a regar a pedra sepulcral com suas lágrimas. O anjinho a abençoa e mistura seus votos aos pensamentos que caem, gota a gota, com as lágrimas da mãe querida. Como são agradáveis ao Senhor estas castas preces, temperadas na fé e na saudade! Assim, subam aos pés do Eterno, como o suave perfume das flores e, do alto do céu, lance Deus um olhar de misericórdia sobre este pequeno recanto da Terra e envie um de seus Espíritos bons para consolar esta alma sofredora e lhe dizer: “Consolai-vos, boa mãe; vosso filho querido está na mansão dos bem-aventurados; ele vos ama e vos espera.”

Eu disse: dia de felicidade e o repito, porque aqueles que são levados pela religião da saudade a orar aqui pelos que se foram, sabem que não é em vão e que um dia irão rever os seres bem-amados, dos quais se acham momentaneamente separados. Dia de felicidade porque os Espíritos veem com alegria e ternura aqueles que lhes são caros virem participar, por sua confiança em Deus, da felicidade que desfrutam.

Nesse dia de Todos os Santos, os defuntos que sofreram corajosamente todas as provas impostas em vida, que se despojaram das coisas mundanas e educaram os filhos na fé e na caridade, estes Espíritos, repito, de boa vontade vêm associar-se às preces dos que deixaram, e lhes inspiram a firme vontade de marchar constantemente pela via do bem. Crianças, parentes ou amigos, ajoelhados junto aos túmulos, experimentam uma satisfação íntima, porque têm consciência de que os restos que lá estão, sob a lápide, não passam de uma lembrança do ser que eles aprisionavam e que agora se acha liberto das misérias terrestres.

Estes, meu caro irmão, os felizes. Até amanhã!

II

Prezado irmão: fiel à minha promessa, venho a ti. Como havia dito, ao deixar-te ontem à tarde, fui fazer uma visita ao cemitério. Lá examinei atentamente os vários Espíritos sofredores. É de causar pena. Esse espetáculo lamentável arrancaria lágrimas ao mais duro coração.

No entanto, em bom número essas almas são aliviadas pelos vivos e pela assistência dos Espíritos bons, sobretudo quando se arrependeram das faltas terrenas e fazem esforços por se despojarem de suas imperfeições, causa única de seus sofrimentos. Então compreendem a sabedoria, a bondade, a grandeza de Deus, e pedem o favor de novas provas para satisfazerem à justiça divina, expiar e reparar suas faltas e conquistar um futuro melhor.

Orai, pois, meus caros amigos, de todo o coração, por esses Espíritos arrependidos que acabam de ser esclarecidos por uma fagulha de luz. Até então só haviam acreditado nas delícias eternas, porque, em sua punição e para cúmulo de seus tormentos, não lhes era permitido esperar. Imaginai sua alegria quando o véu das trevas finalmente se rompeu e o anjo do Senhor lhes abriu os olhos, feridos de cegueira, à luz da fé. São ditosos, mas, em geral, não têm ilusões quanto ao futuro; muitos, até, nem sabem que têm provas terríveis a sofrer; assim reclamam insistentemente as preces dos vivos e a assistência dos Espíritos bons, a fim de poderem suportar com resignação a tarefa difícil que lhes será imposta.

Digo-vos ainda, e nunca seria demais repetir, para bem vos convencer desta grande verdade: orai do fundo do coração por todos os Espíritos que sofrem, sem distinção de casta nem de seita, porque todos os homens são irmãos e se devem mútuo apoio.

Espíritas fervorosos, sobretudo vós, que conheceis a situação dos Espíritos sofredores e sabeis apreciar as fases da vida; vós que conheceis as dificuldades que eles devem superar, vinde em seu auxílio. É uma bela caridade orar pelos pobres irmãos desconhecidos, muitas vezes por todos esquecidos, e cujo reconhecimento não sabeis avaliar, quando se veem assistidos. Para eles a prece é qual orvalho, a irrigar a terra calcinada pelo calor. Figurai um desconhecido em noite escura, caído nalgum cruzamento de estrada desconhecida; os pés estão feridos pela longa caminhada; sente o aguilhão da fome e uma sede ardente; aos sofrimentos físicos juntam-se todas as torturas morais; o desespero está a dois passos; em vão solta aos quatro ventos lancinantes gritos: nem um eco amigo responde ao apelo desesperado. Pois bem! imaginai que no instante em que essa infeliz criatura chegou aos derradeiros limites do sofrimento, mão compassiva vem pousar suavemente em seu ombro e lhe trazer o socorro que sua situação reclama. Imaginai, então, se possível, o êxtase desse homem e tereis uma pálida ideia da felicidade que a prece proporciona aos Espíritos infelizes, que suportam as angústias da punição e do isolamento. Eles vos serão eternamente agradecidos, porque, ficai certos, no mundo dos Espíritos não há ingratos como na vossa Terra.

Eu disse que Todos os Santos é uma solenidade marcada de tristeza; realmente uma grande tristeza, pois também chama a atenção para a classe desses Espíritos que, durante a existência terrena, se consagraram ao materialismo, ao egoísmo; que não quiseram reconhecer outros deuses senão as miseráveis vaidades de seu mundo inferior; que não temeram empregar todos os meios ilícitos para aumentar suas riquezas e, muitas vezes, atirar gente honesta na miséria. Entre esses também se acham os que interromperam a existência por morte violenta; os que, na vida, se arrastaram na lama pestilenta da impureza.

Para todos esses, meu caro irmão, quantos tormentos terríveis! É como diz a Escritura: Haverá choro e ranger de dentes. Serão mergulhados no abismo profundo das trevas. Esses infelizes são vulgarmente chamados os danados e, embora seja mais exato chamá-los os punidos, nem por isso sofrem menos as torturas, tão terríveis quanto as atribuídas aos danados em meio às chamas. Envolvidos nas trevas mais espessas de um abismo que lhes parece insondável, posto não circunscrito, como vos ensinam, experimentam sofrimentos morais indescritíveis, até abrirem o coração ao arrependimento.

Por vezes, alguns permanecem durante séculos nesse estado, sem que lhes seja possível prever o fim de seus tormentos. Assim, se julgam condenados para a eternidade. Durante muito tempo essa opinião errônea gozou de crédito entre vós. É um erro grave, porque, mais cedo ou mais tarde, esses Espíritos se abrem ao arrependimento e, então, Deus, tomado de piedade por suas desgraças, lhes envia um anjo, que lhes dirige palavras consoladoras e lhes abre um caminho tanto mais largo quanto mais para eles tiverem sido feitas preces ao Eterno.

Como vês, irmão, as preces são sempre úteis aos culpados; e se elas não alteram os decretos imutáveis de Deus, nem por isso dão menos alívio aos Espíritos sofredores, trazendo-lhes o doce pensamento de ainda estarem na lembrança de algumas almas compassivas. Assim o prisioneiro sente o coração saltar de alegria quando, através das grades, percebe o rosto de algum parente ou amigo que não o esqueceu na sua desventura.

Se o Espírito sofredor for muito endurecido, muito material, para que a prece alcance a sua alma, um Espírito puro a recolhe como um aroma precioso e a deposita nas ânforas celestes, até o dia em que puderem servir ao culpado.

Para que a prece dê frutos, não basta balbuciar as palavras, como faz a maioria dos homens. A única prece agradável ao Senhor é a que parte do coração, a única que é levada em conta e alivia os Espíritos que sofrem.

A irmã que te ama,

Margarida

P. [Feita na Sociedade] — Que pensar da seguinte passagem desta comunicação: “Ficai certos de que no mundo dos Espíritos não há ingratos como na vossa Terra?” Sendo as almas dos homens Espíritos encarnados, trazem seus vícios e virtudes; as imperfeições dos homens vêm das imperfeições do Espírito, como suas qualidades procedem das qualidades adquiridas. Desse modo, e desde que se encontram nos Espíritos os vícios mais ignóbeis, não se compreenderia que não se pudesse deparar com a ingratidão, tantas vezes encontrada na Terra.

Resp. — [Pelo Sr. Perché] — Sem dúvida há ingratos no mundo dos Espíritos e podeis colocar em primeiro lugar os Espíritos obsessores e os perniciosos, que envidam todos os esforços por vos inculcar pensamentos perversos, a despeito do bem que lhes façais, orando por eles. Entretanto, sua ingratidão é apenas momentânea, porque, para eles, a hora do arrependimento soa mais cedo ou mais tarde. Então seus olhos se abrem à luz e seus corações serão eternamente reconhecidos. Na Terra não é assim, e a cada passo encontrareis homens que, a despeito de todo o bem que lhes façais, não vos pagam, até o fim, senão pela mais perversa ingratidão.

A passagem que ensejou esta observação só é obscura porque lhe falta desenvolvimento. Eu só encarava a questão do ponto de vista dos Espíritos abertos ao arrependimento e, por isso mesmo, aptos a colher imediatamente os frutos da prece. Comprometidos com o bom caminho, e não podendo retroceder, é claro que neles não poderia extinguir-se o reconhecimento.

A fim de não haver confusão, escrevei assim a frase que suscitou a observação: “Eles vos serão eternamente reconhecidos, porque, não duvideis, entre os Espíritos, aqueles a quem tiverdes levado ao bom caminho não poderiam ser ingratos.”

Margarida

Observação — Estas duas comunicações, como muitas outras de moralidade não menos elevada, foram recebidas pelo Sr. Perché, em sua caserna, onde conta vários camaradas que partilham de suas crenças espíritas e a estas conformam sua conduta. Perguntaremos aos detratores do Espiritismo se esses militares receberiam melhores conselhos de moral no cabaré. Se for esta a linguagem de Satã, ele se fez eremita! É verdade: já está tão velho!

Na mesma ocasião perguntaremos ao Sr. Tony — o espirituoso e, sobretudo, muito lógico jornalista de Rochefort, que acredita que o Espiritismo é um dos males saídos da caixa de Pandora e uma dessas coisas malsãs, estudadas pela higiene pública e a moral — o que há de malsão e de contrário à higiene nesta comunicação e se esses militares perderam a moralidade e a saúde, ao renunciarem aos prazeres em favor da prece.


Dispensário Magnético

FUNDADO PELO SR. CANELLE — 11, RUE NEUVE-DES-MARTYRS — PARIS

O primeiro artigo deste número destaca as relações existentes entre o magnetismo e o Espiritismo e mostra o auxílio que, em numerosos casos, pode o magnetizador obter dos conhecimentos espíritas, casos nos quais a ideia materialista só poderia paralisar a influência salutar. Estas relações serão evidenciadas mais ainda no segundo artigo, a ser publicado no próximo número. Levando ao conhecimento dos leitores a formação do estabelecimento dirigido pelo Sr. Canelle, que conhecemos pessoalmente e de longa data como magnetizador experimentado, não só espiritualista, mas sinceramente espírita, sentimo-nos feliz ao lhe dar este testemunho de nossa simpatia. Os tratamentos são conduzidos por ele e por vários médicos magnetizadores. Sessões especiais são consagradas às magnetizações gratuitas. Para mais amplas informações vejam os prospectos.


Resposta a um Senhor de Bordeaux

Um senhor de Bordeaux escreveu-nos uma carta, aliás muito polida, contendo uma crítica do ponto de vista religioso ao artigo publicado no número de novembro sobre a Origem da linguagem, o qual, diga-se de passagem, encontrou numerosos admiradores. Como a carta não traz assinatura nem endereço, fizemos com ela o que se deve fazer com toda carta anônima: lançamos no fogo.

Errata

A propósito do artigo publicado no último número — Um remédio dado pelos Espíritos — foi omitido que, antes da aplicação do ungüento, se deve lavar cuidadosamente a ferida com água de malva ou outra loção calmante.

Allan Kardec


Nota Explicativa[2]

Hoje creem e sua fé é inabalável, porque assentada na evidência e na demonstração, e porque satisfaz à razão. [...] Tal é a fé dos espíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornarem melhores, domarem suas inclinações más e porem em prática as máximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, sem acepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seus inimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divino modelo. (KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1868. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 28, janeiro de 1868.)

A investigação rigorosamente racional e científica de fatos que revelavam a comunicação dos homens com os Espíritos, realizada por Allan Kardec, resultou na estruturação da Doutrina Espírita, sistematizada sob os aspectos científico, filosófico e religioso.

A partir de 1854 até seu falecimento, em 1869, seu trabalho foi constituído de cinco obras básicas: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865), A Gênese (1868), além da obra O Que é o Espiritismo (1859), de uma série de opúsculos e 136 edições da Revista Espírita (de janeiro de 1858 a abril de 1869). Após sua morte, foi editado o livro Obras Póstumas (1890).

O estudo meticuloso e isento dessas obras permite-nos extrair conclusões básicas: a) todos os seres humanos são Espíritos imortais criados por Deus em igualdade de condições, sujeitos às mesmas leis naturais de progresso que levam todos, gradativamente, à perfeição; b) o progresso ocorre através de sucessivas experiências, em inúmeras reencarnações, vivenciando necessariamente todos os segmentos sociais, única forma de o Espírito acumular o aprendizado necessário ao seu desenvolvimento; c) no período entre as reencarnações o Espírito permanece no Mundo Espiritual, podendo comunicar-se com os homens; d) o progresso obedece às leis morais ensinadas e vivenciadas por Jesus, nosso guia e modelo, referência para todos os homens que desejam desenvolver-se de forma consciente e voluntária.

Em diversos pontos de sua obra, o Codificador se refere aos Espíritos encarnados em tribos incultas e selvagens, então existentes em algumas regiões do Planeta, e que, em contato com outros pólos de civilização, vinham sofrendo inúmeras transformações, muitas com evidente benefício para os seus membros, decorrentes do progresso geral ao qual estão sujeitas todas as etnias, independentemente da coloração de sua pele.

Na época de Allan Kardec, as ideias frenológicas de Gall, e as da fisiognomonia de Lavater, eram aceitas por eminentes homens de Ciência, assim como provocou enorme agitação nos meios de comunicação e junto à intelectualidade e à população em geral, a publicação, em 1859 — dois anos depois do lançamento de O Livro dos Espíritos — do livro sobre a Evolução das Espécies, de Charles Darwin, com as naturais incorreções e incompreensões que toda ciência nova apresenta. Ademais, a crença de que os traços da fisionomia revelam o caráter da pessoa é muito antiga, pretendendo-se haver aparentes relações entre o físico e o aspecto moral.

O Codificador não concordava com diversos aspectos apresentados por essas assim chamadas ciências. Desse modo, procurou avaliar as conclusões desses eminentes pesquisadores à luz da revelação dos Espíritos, trazendo ao debate o elemento espiritual como fator decisivo no equacionamento das questões da diversidade e desigualdade humanas.

Allan Kardec encontrou, nos princípios da Doutrina Espírita, explicações que apontam para leis sábias e supremas, razão pela qual afirmou que o Espiritismo permite “resolver os milhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos, teológicos, psicológicos, morais, sociais, etc.” (Revista Espírita, 1862, p. 401). De fato, as leis universais do amor, da caridade, da imortalidade da alma, da reencarnação, da evolução constituem novos parâmetros para a compreensão do desenvolvimento dos grupos humanos, nas diversas regiões do Orbe.

Essa compreensão das Leis Divinas permite a Allan Kardec afirmar que:

O corpo deriva do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre os descendentes das raças apenas há consanguinidade. (O Livro dos Espíritos, item 207, p. 176.)

[...] o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na Criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz com que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor. (Revista Espírita, 1861, p. 432.) Os privilégios de raças têm sua origem na abstração que os homens geralmente fazem do princípio espiritual, para considerar apenas o ser material exterior. Da força ou da fraqueza constitucional de uns, de uma diferença de cor em outros, do nascimento na opulência ou na miséria, da filiação consanguínea nobre ou plebeia, concluíram por uma superioridade ou uma inferioridade natural. Foi sobre este dado que estabeleceram suas leis sociais e os privilégios de raças. Deste ponto de vista circunscrito, são consequentes consigo mesmos, porquanto, não considerando senão a vida material, certas classes parecem pertencer, e realmente pertencem, a raças diferentes. Mas se se tomar seu ponto de vista do ser espiritual, do ser essencial e progressivo, numa palavra, do Espírito, preexistente e sobrevivente a tudo cujo corpo não passa de um invólucro temporário, variando, como a roupa, de forma e de cor; se, além disso, do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do Espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o Espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o Espiritismo. Vós que negais a existência do Espírito para considerar apenas o homem corporal, a perpetuidade do ser inteligente para só encarar a vida presente, repudiais o único princípio sobre o qual é fundada, com razão, a igualdade de direitos que reclamais para vós mesmos e para os vossos semelhantes. (Revista Espírita, 1867, p. 231.)

Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade. (A Gênese, cap. I, item 36, p. 42-43. Vide também Revista Espírita, 1867, p. 373.)

Na época, Allan Kardec sabia apenas o que vários autores contavam a respeito dos selvagens africanos, sempre reduzidos ao embrutecimento quase total, quando não escravizados impiedosamente.

É baseado nesses informes “científicos” da época que o Codificador repete, com outras palavras, o que os pesquisadores europeus descreviam quando de volta das viagens que faziam à África negra. Todavia, é peremptório ao abordar a questão do preconceito racial:

Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada creem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de fraternidade e deveres sociais. (KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863 — 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. — janeiro de 1863.)

O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVII, item 3, p. 348.)

É importante compreender, também, que os textos publicados por Allan Kardec na Revista Espírita tinham por finalidade submeter à avaliação geral as comunicações recebidas dos Espíritos, bem como aferir a correspondência desses ensinos com teorias e sistemas de pensamento vigentes à época. Em Nota ao capítulo XI, item 43, do livro A Gênese, o Codificador explica essa metodologia:

Quando, na Revista Espírita de janeiro de 1862, publicamos um artigo sobre a “interpretação da doutrina dos anjos decaídos”, apresentamos essa teoria como simples hipótese, sem outra autoridade afora a de uma opinião pessoal controversível, porque nos faltavam então elementos bastantes para uma afirmação peremptória. Expusemo-la a título de ensaio, tendo em vista provocar o exame da questão, decidido, porém, a abandoná-la ou modificá-la, se fosse preciso. Presentemente, essa teoria já passou pela prova do controle universal. Não só foi bem aceita pela maioria dos espíritas, como a mais racional e a mais concorde com a soberana justiça de Deus, mas também foi confirmada pela generalidade das instruções que os Espíritos deram sobre o assunto. O mesmo se verificou com a que concerne à origem da raça adâmica. (A Gênese, cap. XI, item 43, Nota, p. 292.)

Por fim, urge reconhecer que o escopo principal da Doutrina Espírita reside no aperfeiçoamento moral do ser humano, motivo pelo qual as indagações e perquirições científicas e/ou filosóficas ocupam posição secundária, conquanto importantes, haja vista o seu caráter provisório decorrente do progresso e do aperfeiçoamento geral. Nesse sentido, é justa a advertência do Codificador:

É verdade que esta e outras questões se afastam do ponto de vista moral, que é a meta essencial do Espiritismo. Eis por que seria um equívoco fazê-las objeto de preocupações constantes. Sabemos, aliás, no que respeita ao princípio das coisas, que os Espíritos, por não saberem tudo, só dizem o que sabem ou que pensam saber. Mas como há pessoas que poderiam tirar da divergência desses sistemas uma indução contra a unidade do Espiritismo, precisamente porque são formulados pelos Espíritos, é útil poder comparar as razões pró e contra, no interesse da própria doutrina, e apoiar no assentimento da maioria o julgamento que se pode fazer do valor de certas comunicações. (Revista Espírita, 1862, p. 38.)

Feitas essas considerações, é lícito concluir que na Doutrina Espírita vigora o mais absoluto respeito à diversidade humana, cabendo ao espírita o dever de cooperar para o progresso da Humanidade, exercendo a caridade no seu sentido mais abrangente (“benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros e perdão das ofensas”), tal como a entendia Jesus, nosso Guia e Modelo, sem preconceitos de nenhuma espécie: de cor, etnia, sexo, crença ou condição econômica, social ou moral.

A EDITORA



[1] N. do T.: A última afirmativa reflete o pensamento católico sobre a eucaristia, de que o autor, provavelmente, ainda se achava impregnado.

[2] Nota da Editora: Esta “Nota Explicativa”, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na Doutrina Espírita.