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Um tremor percorre meu corpo, arrancando-me de um sono agitado. A sensação é a de estar afogando em um mar, distante e revolto, o coração martelando contra as costelas, como um pássaro aprisionado. Uma angústia viscosa me envolve, sufocando cada centímetro do meu ser. Os olhos se abrem, encontrando a escuridão total. Nenhum rastro de luar se infiltra pelas frestas das cortinas, e a noite parece ter se tornado ainda mais densa, mais opressiva.
Com as mãos trêmulas, tateio o criado-mudo em busca de algum conforto. Meus dedos deslizam sobre a superfície fria, procurando o relógio digital que sempre me acompanha. Mas ele não está lá. Um nó se forma em minha garganta. O celular também não está no carregador. Estou sem referências e o silêncio é ensurdecedor.
Com cuidado, para não perturbar o sono tranquilo de Marta, deslizo para fora da cama e me dirijo à porta do quarto. A madeira fria sob meus pés me desperta para a realidade da noite. O corredor, normalmente familiar e reconfortante, agora se apresenta como um labirinto sombrio. Cada passo ecoa nos meus ouvidos, amplificado pelo silêncio da casa adormecida.
A porta da sala se abre com um rangido discreto, e a escuridão me envolve como um manto. Estendo a mão, tateando as paredes frias, procurando o interruptor. A tentativa de acender a luz é em vão. A casa inteira parece ter sido engolida por um apagão. Um arrepio me percorre a espinha.
Com os olhos ajustando-se à penumbra, percebo uma tênue luz amarelada que se infiltra pela porta de vidro da sacada. A luminosidade, pulsante e indefinível, corta a escuridão da sala, projetando sombras estranhas nas paredes. A origem daquela luz me intriga, despertando em mim uma sensação de inquietação. É como se uma presença invisível estivesse me observando através da janela, convidando-me a avançar para o desconhecido.
Hesitante, abro a porta. O condomínio está imerso nas trevas, assim como as casas vizinhas. Um silêncio sepulcral paira no ar. A fonte da luz enigmática se perde no horizonte, distante e misteriosa. Uma névoa amarelada, quase irreal, envolve tudo, como um véu tênue e inquietante.
A situação me deixa cada vez mais inquieto. A falta de energia, em uma noite tão quieta e sem qualquer indício de tempestade, é algo completamente anormal. Normalmente, um apagão está associado a condições climáticas adversas, mas o céu estava límpido durante todo o dia anterior. As luzes estranhas no horizonte só intensificam meu desconforto. Será que algum incidente nas linhas de transmissão pode ter causado isso? A ideia de subir até a cobertura me ocorre, quase como um impulso. De lá, talvez eu consiga ter uma visão mais ampla da região e entender o que está acontecendo.
Um fio de hesitação me percorre a espinha. "O que estou prestes a fazer?" Uma pequena voz interior tenta me advertir dos perigos, mas a curiosidade e a necessidade de respostas a silencia rapidamente. Com o coração acelerado, abro a porta do apartamento. A escuridão é total, interrompida apenas pelo tênue brilho amarelado que se infiltra pela pequena janela do corredor. O silêncio é sublime e causa medo. A cada andar que subo, a sensação de estar adentrando em um território desconhecido se intensifica. O prédio, que sempre me pareceu tão familiar, agora se revela um labirinto sombrio. Com muita ansiedade, subo os lances de escada. A cada degrau, a impressão de que estou subindo mais do que deveria se intensifica. O prédio tem apenas quatro andares, mas a escada parece interminável. A penumbra e o silêncio absoluto me deixam cada vez mais inquieto, antecipando o que me aguarda no topo.
Vencendo a desorientação e a exaustão, finalmente alcanço a cobertura. A porta se abre com um rangido, revelando uma paisagem que me deixa sem fôlego. Percebo que não estou na cobertura do meu prédio e sim no topo de uma torre imponente, mais alta que qualquer outro edifício da cidade. Blumenau se estende a meus pés, imersa em uma escuridão profunda e pontuada por inúmeros focos de incêndio. A luz amarelada que vi da minha janela agora se revela como um labirinto de chamas que consome a cidade.
Mas há algo mais. Entre as chamas e a escuridão, vejo uma vegetação escura, semelhante a tentáculos gigantescos, se espalhando rapidamente. Ela avança sobre as construções, consumindo tudo em seu caminho. Uma sensação de horror me invade. O que está acontecendo? O que é essa criatura das sombras?
Imediatamente, a imagem vívida do Jardim das Crianças me invade, e com ela, a memória da Floresta do Esquecimento. Sinto os feixes malignos de luz rasgando a névoa, vejo os animais esguios e sinistros que a habitavam e sinto a atmosfera opressiva que pairava sobre aquele lugar. Angustiado, corro até o lado sul da torre, meus olhos buscando o morro do "Spitzkopf".
E lá está ele, imponente e ameaçador, como um monstro despertado de um sono profundo. Um turbilhão selvagem de vento, um tornado colossal, coroa seu cume, sugando as nuvens escuras e carregadas de chuva. A floresta que o circunda, tão exuberante em minhas memórias, agora é um emaranhado de galhos retorcidos e folhas secas, um cemitério de podridão. Raios raivosos rasgam o céu, iluminando a tempestade com uma luz crua e intermitente. O trovão ecoa pelos ares, um rugido primordial que me faz tremer.
Ali está a origem dos tentáculos negros que se espalham pela cidade, crescendo a cada segundo como raízes malignas. A floresta do Esquecimento se liberta das suas amarras e devora tudo em seu caminho. Uma ideia sinistra me assombra: a floresta está sem contenção. O caos se instala e a ordem que conheço foi destruída.
A imagem de Rafael e sua tropa de anjos surge em minha mente. Vejo Gabriel, com suas magníficas asas de luz e sua espada flamejante. Onde estarão agora? Estarão lutando contra essa nova invasão? Ou foram subjugados pelas forças das trevas?
A lembrança da grande batalha na Floresta do Esquecimento me invade. Vejo-nos, guerreiros da luz, enfrentando as sombras. Eu, Guilherme, Rafael, Gabriel e todos os outros, juntos, derrotamos a escuridão. Em meio àquela batalha épica, erguemos nossas espadas, brilhantes como estrelas, e combatemos com fé inabalável. O Senhor estava conosco, e a vitória parecia certa. Mas agora, tudo parece ter sido em vão.
"Como a Floresta do Esquecimento pode ter retornado com tanta força? O que aconteceu?" Milhares de perguntas ecoam em minha mente, mas nenhuma resposta.
Enquanto organizo os pensamentos, um estrondo retumbante sacude a torre, seguido por um tremor que me faz estremecer. O som parece vir de uma das laterais. Corro até o parapeito e, ao olhar para baixo, um grito preso na garganta quase me sufoca. Ali, a poucos andares de distância, pairando sobre o abismo como um pesadelo vivo, está uma criatura grotesca e aterrorizante. Um lagarto colossal, com chifres retorcidos como facas e uma couraça azulada que cintila como aço. Seus olhos, dois abismos negros e brilhantes, fixam-se em mim com uma intensidade que me paralisa.
Com um rugido que ecoa pela cidade, a criatura cospe labaredas de fogo, incendiando as estruturas do prédio. As chamas se alastram rapidamente, transformando a torre em uma fogueira infernal. A criatura, imponente e ameaçadora, começa a escalar a parede externa, suas garras afiadas cravando-se na pedra como se fossem ganchos.
O pânico me invade.
"Onde posso me esconder dessa aberração?" Corro na direção oposta, meus pés tropeçando nos degraus, meu coração martelando no peito. Encontro uma estrutura elevada, uma caixa d'água, e me escondo atrás dela, tentando me tornar invisível. A cada momento, o rugido da criatura se aproxima, cada vez mais alto e mais intenso.
"Isto é um sonho", repito para mim mesmo, tentando racionalizar o absurdo da situação. "Preciso acordar. Preciso sair desta situação. Esta torre não existe. Este monstro que está se aproximando é fruto de minha imaginação. Acalme-se, relaxe. Isto tudo vai desaparecer..." Mas a cada ruído, a cada tremor, a cada labareda de fogo, a realidade se impõe, crua e implacável.
Assim permaneço por um momento, repetindo para mim mesmo, ansioso por acordar, quando sou interrompido por uma voz que ecoa como um trovão dentro da minha mente.
— Caro padrinho, — a voz retumba, clara e firme como a percussão de um sino, — assustado assim parece uma criança perdida no escuro. Não adianta ficar repetindo para si mesmo que é um sonho, pois não se trata de um sonho. A realidade, por mais cruel que pareça, é esta.
Sobressaltado, olho em todas as direções, buscando a origem daquela voz poderosa. E então, um brilho intenso surge diante da caixa d'água, ofuscando minha visão. Quando meus olhos se ajustam à luz, vejo diante de mim uma figura majestosa, um ser alado de proporções divinas. Suas asas, imensas e luminosas, pairam suavemente no ar, e seu corpo, envolto em uma aura resplandecente, exala uma sensação de poder e sabedoria.
— Rafael, é você? Por favor, Rafael, me ajude a entender o que está acontecendo. Me defenda neste caos em que estou, — suplico, minha voz tremula.
— Certamente estou aqui para ajudar, — a voz ressoa, — mas não sou Rafael. Ele também virá, mas está em combate com sua tropa de anjos, enfrentando as forças das trevas que se infiltraram neste mundo. A Floresta do Esquecimento, que foi derrotada no Jardim das crianças, renasceu das cinzas aqui nessa realidade, mais forte e mais cruel do que nunca. E com ela vieram criaturas abomináveis como a que você viu, arautos do caos e da destruição.
Antes que eu possa me aproximar daquele ser celestial, um rugido ensurdecedor me faz congelar. O enorme lagarto, com olhos escarlates de ódio, alcança o topo da torre. Sua boca, um forno infernal, cospe labaredas que devoram tudo em seu caminho. A torre se transforma em uma pira funerária. Aterrorizado, me atiro ao chão, buscando qualquer abrigo contra o inferno que se desenrola acima de mim.
Ali encolhido, vejo o ser celestial iluminar a escuridão com a beleza de mil sóis, empunhando sua espada de fogo, cintilando como um cometa. Seus movimentos são rápidos como o raio, precisos como a flecha. Sem um pingo de hesitação, ele se lança contra o lagarto, sua espada traçando um arco mortal no ar. Com um golpe certeiro, a cabeça da criatura é separada do corpo, jorrando um líquido negro e viscoso. O lagarto, agora decapitado, convulsiona por alguns instantes antes de se desintegrar em cinzas, levadas pelo vento, como se nunca tivesse existido.
O anjo, com a serenidade de um deus, pousa no chão, sua aura divina dissipando o calor e a fumaça. Seus olhos, profundos e penetrantes, varrem o cenário de destruição. E então, ele se volta para mim. Vejo que não é Rafael, nem Gabriel, nem qualquer outro dos anjos que conheci na visão do Jardim das Crianças. Este ser é diferente, mais antigo, mais poderoso. Seu corpo é como o crisólito; seu rosto brilha como o relâmpago, seus olhos, como tochas ardentes, seus braços e pés tem o aspecto do bronze polido e sua voz ressoa como o rumor de uma multidão (Dn 19,6). Sua voz, profunda e reverberante, ecoa em meus ouvidos como o rugido distante de um trovão. É uma voz que carrega a força dos ventos e a sabedoria dos séculos. Sinto um misto de temor e reverência diante de sua presença. Seus olhos, profundos como poços sem fundo, parecem penetrar minha alma. Ele me olha com uma serenidade que me tranquiliza, apesar do caos que nos cerca. Estende sua espada, não como uma ameaça, mas como um gesto de paz. A lâmina, incandescente e reluzente, parece pulsar com uma energia divina.
— Eu sou Miguel, — sua voz retumba, profunda e melodiosa ao mesmo tempo, como o som de um órgão em uma catedral. — O Arcanjo de Deus, o príncipe defensor dos filhos do teu povo, aquele que expulsou o inimigo dos céus.
Cada palavra que sai de sua boca é como um raio que me atinge em cheio. A presença de Miguel é tão avassaladora que me sinto pequeno e insignificante. Aquele que outrora era apenas uma figura em meus pensamentos agora se materializa diante de mim, em toda a sua glória e poder.