Apocalypsis sub astris
[Revelação sob as estrelas]
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[Revelação sob as estrelas]
Minha rotina diária é uma trama de simplicidade e profundidade. Sou um homem de fé inabalável, e começo minhas manhãs com uma oração fervorosa. Meu despertar é marcado pelo silêncio reverente enquanto agradeço por mais um dia, um ritual que acalma minha mente e prepara meu espírito para os desafios que virão. A rotina da casa é simples.
Minha esposa Marta, diligente e atenciosa, começa o dia ajeitando o quarto e separando as roupas que vamos usar. Sua atenção aos detalhes é um reflexo do amor que coloca em cada tarefa. Mas seu cuidado não se limita às atividades domésticas. Marta também acompanha atentamente a família pelo smartphone, buscando saber de todos e estar presente nas vidas dos filhos e netos. E essa atividade já começa cedo, antes mesmo de sair da cama.
Ela tem um grupo de mensagens onde se comunica com nossos filhos e netos diariamente, verificando se todos estão bem, perguntando sobre o dia a dia, oferecendo conselhos e ajuda sempre que necessário. Não importa a distância que nos separa, Marta encontra formas de estar conectada e ser um pilar de apoio para a família. Se algum dos filhos está passando por um problema, ela oferece palavras de conforto, um ombro amigo mesmo que virtual. Suas mensagens são recheadas de amor e sabedoria, sempre buscando aliviar preocupações e trazer tranquilidade. Assim ela inicia seu dia já conectada.
Eu, sem qualquer hesitação, vou diretamente para a cozinha, ou melhor, diretamente para a cafeteira. Meu primeiro pensamento é preparar um delicioso café preto, bem quente. O aroma do café fresco e o som suave das torradas no forno trazem uma sensação de conforto e familiaridade.
Enquanto saboreamos o café, trocamos palavras de carinho, com a sabedoria de quem compartilha a vida há muitos anos. As conversas giram em torno das pequenas coisas: o cuidado do jardim, a visita dos netos, a situação dos filhos, as leituras da Bíblia. Marta é apaixonada pelo jardim, ela encontra paz e alegria nas tarefas simples de plantar e colher. As flores e plantas que crescem sob seus cuidados são mais do que um hobby; são uma metáfora viva para sua fé e paciência. Ver Marta cuidando das plantas é um momento de contemplação e gratidão para mim, pois reflete a dedicação e amor que ela coloca em tudo o que faz.
Depois do café, dedico um tempo à leitura das Escrituras no meu celular. Usando um aplicativo, acompanho o Evangelho do dia e as leituras bíblicas, e medito as palavras sagradas, buscando compreender os desígnios divinos e aplicar os ensinamentos no meu dia a dia. A Bíblia digital é meu guia constante, e cada meditação bíblica é uma pedra na construção de minha espiritualidade.
Minhas tardes são preenchidas com a preparação de encontros de catequese e estudos do catecismo. Dedico horas planejando encontros e atividades que vão nutrir a fé de jovens e adultos da comunidade. Meu escritório é um espaço onde livros de teologia e anotações manuscritas se acumulam, evidenciando meu compromisso com a missão de educar para a fé. Acredito que cada lição preparada é uma oportunidade de tocar corações e inspirar vidas.
Entre os preparativos, faço pausas para refletir e buscar inspiração. Às vezes, dou uma volta no jardim para conversar com Marta e apreciar a beleza das flores que ela cuida com tanto zelo. Outras vezes, gosto de caminhar até a igreja local, onde encontro serenidade e uma conexão mais profunda com Deus.
Em determinadas noites do mês, Marta e eu frequentemente nos reunimos com amigos da igreja, do nosso grupo de casais, para rezarmos o terço em família e meditarmos a Palavra de Deus. Esses encontros são momentos valiosos de comunhão e crescimento espiritual, onde fortalecemos nossos laços e nos apoiamos mutuamente em nossa jornada de fé.
Hoje, porém, algo mudou minha rotina.
Um fato que não sei explicar de maneira clara alterou meu dia. São quase 16 horas e ainda não consegui terminar a preparação do próximo encontro de catequese para os adultos. As luzes acabaram de piscar pela segunda vez e a impressora parou de funcionar. O fato me irrita um pouco, pois vai atrasar meu trabalho e atrapalhar meu programa da noite com Marta.
Mas não é só uma irritação por conta do transtorno. Sinto uma presença estranha. É como se alguém estivesse me observando. Paro para pensar nas sensações que estou sentindo e fico perplexo, pois é algo até absurdo. Tento me concentrar e dissipar a sensação, mas ela continua, como se estivesse fora do meu controle.
Olho ao redor, mas não vejo ninguém. No entanto, a sensação persiste, uma presença quase palpável que paira no ar. Ouço um som, um murmúrio suave, como se o vento estivesse carregando palavras que não consigo entender. Fico inquieto, mas continuo meu trabalho, tentando afastar a sensação, até para não me comportar como uma criança assustada.
A tarde se despede, marcada por esse fato estranho, e vem a noite, úmida e silenciosa, e a sensação não me abandona. Sentado em minha cadeira no escritório, reflito sobre o acontecido. Marta nota minha inquietação e pergunta se algo está errado, mas eu apenas balanço a cabeça, sem saber como explicar. É uma sensação misteriosa, algo que nunca vivenciei na vida. Antes de deitar, rezo fervorosamente, pedindo orientação e proteção divina, e deixo Marta dormir, ficando com meus pensamentos e o mistério que permanece.
A noite está serena e silenciosa. Certamente a grande maioria já dorme, mas eu estou aqui, viajando em meus pensamentos. Marta, se estivesse acordada, certamente diria que já passou da hora de dormir e recuperar as forças, principalmente para alguém que já tem cabelos grisalhos e há muito tempo deixou os caminhos da juventude. Mas é durante a noite que me sinto verdadeiramente vivo e ativo, quando a imaginação aflora e o desejo de decifrar os dilemas da vida vem à tona.
Hoje, contudo, sinto uma atmosfera diferente. De uma forma estranha e inexplicável, sou arrastado da quietude da minha cama e colocado aqui, no meio da rua, como se uma força invisível e poderosa me guiasse, ou melhor, me sequestrasse. Tento resistir, mas a energia que me puxa é inescapável, uma presença quase tangível que me conduz com determinação. Olho para cima e vejo um céu magnífico, completamente aberto, salpicado por milhões de estrelas, galáxias, quasares e pulsares. A vastidão do cosmos parece se alinhar com a força que me conduz, como se houvesse um propósito maior por trás de cada movimento. Um brilho forte no horizonte, a leste, indica que a lua em breve surgirá para compor o enredo dessa noite.
Cada passo que dou reforça a sensação de estar sob o domínio dessa energia inexplicável. Meu coração bate acelerado, não de medo, mas de antecipação. A leve brisa da noite carrega consigo murmúrios do desconhecido, enquanto o silêncio das ruas amplifica cada som, cada pensamento. Sinto-me como um viajante noturno, levado por um destino que ainda não compreendo totalmente.
Meu caminhar é involuntário, quase como se meus pés estivessem seguindo uma coreografia invisível, guiados por uma força ancestral e poderosa. Cada esquina, cada sombra parece carregar um fragmento desse mistério. O ambiente ao meu redor se torna surreal, quase onírico, onde a realidade e a imaginação se fundem em uma dança hipnótica.
A lua, prestes a emergir no horizonte, promete trazer respostas ou talvez mais enigmas. Tudo ao meu redor está imbuído de uma sensação de significado profundo, como se esta noite fosse um capítulo crucial em uma história ainda não revelada. E assim, deixo-me levar, curioso e atento, cercado de sinais que extrapolam o que é comum.
Absorto nessa visão, perco totalmente a noção da realidade e me sinto desprendido de qualquer limitação, mas também de qualquer segurança. O que importa agora é o espaço e suas possibilidades. O véu do cotidiano está rompido e o mundo real não me controla, nem o sono pode me reter. Estou desapegado de tudo, entregue aos meus pensamentos, buscando entender o motivo dessa inquietação, dessa necessidade de desvendar o que me trouxe aqui, sob esse céu espetacular. Meus pensamentos, porém, são como um turbilhão, uma mistura de ideias, sentimentos, sonhos e desejos que me confundem e, ao mesmo tempo, me impulsionam a prosseguir. Preciso encontrar respostas.
Enquanto caminho pelas ruas vazias, cada passo ecoa na quietude da noite, reforçando a sensação de isolamento e introspecção. As casas ao redor, adormecidas, parecem testemunhas silenciosas da minha busca. A brisa leve acaricia meu rosto, trazendo consigo aromas sutis de flores silvestres e da terra úmida, como se a própria natureza estivesse em sintonia com meu estado de espírito.
Meus pensamentos se desenrolam como um novelo de fios entrelaçados, cada um puxando memórias e emoções há muito tempo guardadas. Lembro-me de sonhos esquecidos, de momentos de alegria e tristeza, de decisões que moldaram o caminho até aqui. A sensação de liberdade que sinto é paradoxalmente acompanhada por um peso, o peso das responsabilidades e das escolhas feitas ao longo da vida.
A noite estrelada é uma tela que reflete meus anseios e dúvidas. As constelações parecem contar histórias antigas, histórias de herois, de amor e de tragédia, como se estivessem lá para me lembrar que todos nós temos nossos próprios dilemas e jornadas. A lua, agora surgindo lentamente no horizonte, ilumina o caminho à minha frente com uma luz prateada e suave, um farol na escuridão.
Caminho sem destino certo, guiado apenas pela necessidade de compreender o que me move. As ruas familiares da vizinhança, normalmente cheias de vida durante o dia, agora são um labirinto de sombras e silêncio, um palco perfeito para a contemplação e o autoconhecimento. Sinto-me como um explorador, desbravando não apenas o espaço físico, mas os recônditos mais profundos da minha mente e alma.
Cada passo me aproxima das respostas que busco, ou talvez apenas de mais perguntas. E, no fundo, sei que essa jornada noturna, essa viagem insólita, é parte essencial de algo mais profundo, que aos poucos vai sendo revelado.
O ar frio da noite envolve meu rosto enquanto percorro as ruas desertas do bairro, habitualmente tão acolhedor, mas agora profundamente silencioso e deserto. O som de meus passos sobre o asfalto é a única interrupção no silêncio absoluto. Avanço por muitas quadras sem passar por um veículo ou uma pessoa sequer. A noite está silenciosa e serena, quase se pode ouvir as estrelas.
A tranquilidade, porém, é enganosa. Um som distante, mas inconfundível, rompe o silêncio e cresce na atmosfera, suprimindo qualquer outro som. Eu ouço claramente a melodia que me arrebata:
Ego sum Alpha et O
primus et novissimus
Initium et Finis
qui ante mundi principium
et in saeculum saeculi vivo in aeternum:
manus meae, quae vos fecerunt
clavis confixae sunt;
propter vos flagellis caesus sum, spinis coronatus sum;
aquam tetii pendens
et acetum porrexerunt
in escam meam fel dederunt;
et in latus lanceam
mortuus et sepultus, resurrexi, vobiscum sum.
Videte, quia ego ipse sum
et non est Deus praeter me.
Alleluia.
Ego sum vestra redemptio;
ego sum rex vester;
Ego vos resuscitabo in die novissimo.
A música, como uma entidade viva, pulsa no ar, envolvendo-me em um manto de mistério. A cada nota, a sensação de que algo está por vir se intensifica. Seu significado vai entrando em minha mente, acelerando meu coração, cada palavra transformando meus pensamentos.
Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o Início e o Fim, aquele que vive desde antes do princípio do mundo e pelos séculos dos séculos, vivo eternamente: minhas mãos, que vos fizeram, foram pregadas com cravos; por vós, fui açoitado e coroado com espinhos; enquanto pendurado, ofereci água e me deram vinagre; para meu alimento, me ofereceram fel; e com uma lança traspassaram meu lado. Morri e fui sepultado, ressuscitei e estou convosco. Vede, sou eu mesmo, e não há outro Deus além de mim. Aleluia. Eu sou vossa redenção; eu sou vosso rei; Eu vos ressuscitarei no último dia.
Num impulso repentino, todo o céu brilha com uma luz mais intensa que a do sol, fazendo a noite desaparecer por um breve momento e transformando todos os elementos ao meu redor. Em seguida, a escuridão retorna, mas a música permanece.
Ela pulsa enquanto caminho, envolvendo-se aos meus pensamentos. Seu ritmo me faz caminhar com mais determinação. O som vai se elevando aos poucos e, de repente, surgem outros sons. Dos cantos mais escuros surge uma sensação, uma vibração. Sons furtivos aparecem no meio da música, denunciando a presença de olhares em meio às sombras. A música cresce e se torna um clamor, e com ela crescem as percepções na noite.
A melodia traz consigo um sentimento de resignação e euforia que preenche toda a atmosfera. No entanto, a presença dos sons furtivos, que se intensificam, cria uma tensão, uma opressão, eu diria. As estrelas ainda brilham, mas já não se pode ouvi-las.
Sigo caminhando pelas ruas principais do bairro, em direção ao centro da cidade. Ao longo do trajeto, percebo movimentos nas casas próximas, nas esquinas sombrias e em meio à vegetação ao longe. Ali estão os olhares furtivos, a presença escondida e velada. Sinto que são pessoas temerosas acerca de mim e de minha busca. São testemunhas vigilantes de minha passagem, à espreita, mas parceiros da escuridão, escondem-se nas sombras. Seus olhares me amedrontam, mas percebo que eles também estão amedrontados.
À medida em que avanço, os movimentos se tornam mais perceptíveis. Às vezes, vislumbro silhuetas rápidas, mal delineadas na penumbra das casas. São figuras fantasmagóricas, quase espectrais, que desaparecem assim que tento identificá-las. O farfalhar de folhas e o sussurro dos ventos entre as árvores amplificam a sensação de ser observado, como se a própria noite conspirasse contra minha busca.
Ao passar por um beco escuro, noto um par de olhos brilhando na escuridão, observando-me fixamente antes de desaparecer na sombra. Minha respiração se torna pesada, e um calafrio percorre minha espinha. Os passos se tornam mais cautelosos, cada som parece ampliado, cada sombra mais profunda e ameaçadora.
Nas esquinas, percebo sombras se movendo furtivamente, esgueirando-se como predadores à espera de um momento de vulnerabilidade. Os detalhes das casas e ruas começam a se desvanecer na penumbra, transformando o familiar em algo misterioso e inquietante. Sinto os olhares pesando sobre mim, cada vez mais opressivos, como se milhares de olhos invisíveis estivessem testemunhando minha jornada solitária.
A presença velada dessas pessoas, essas testemunhas ocultas, cria uma atmosfera de paranoia e tensão. Sinto que a qualquer momento podem emergir das sombras, confrontando-me ou talvez apenas continuando a observar, silenciosos e distantes. Cada olhar furtivo parece carregar um julgamento, um segredo não revelado, aumentando a sensação de ser um intruso em minha própria cidade.
Enquanto sigo em direção ao centro, a opressão desses olhares se intensifica, misturando-se ao medo que sinto. Há uma estranha simetria entre mim e essas figuras ocultas; assim como eles, estou amedrontado, mas determinado a continuar. Minha busca parece incomodar, perturbar um equilíbrio sombrio que mantém todos, incluindo eu, presos em um jogo de sombras e luzes.
Nas janelas, ao longo do trajeto, quase posso vê-los, mas permanecem ocultos. A música misteriosa agora toca no volume máximo e sinto minha pulsação acelerada, minha respiração ofegante. Ao meu redor, um farfalhar de vozes confusas e, nelas, um sentimento claro e inconfundível de que muitos desejam me agredir, me calar, me matar, talvez, pois sabem que minha pretensão pode afetá-los, que minha revelação pode lhes tirar a paz.
Em meio ao clamor, percebo uma sombra emergindo lentamente do meio das casas, vindo em minha direção. Meu corpo congela ao vislumbrar a sinistra criatura que se aproxima em silêncio. Ela é alta e esguia, com braços longos e esqueléticos que balançam de forma ameaçadora. Sua pele é pálida, quase translúcida, refletindo a luz fraca das estrelas. Seus olhos, profundos e vazios, brilham com um mal antigo. O farfalhar de vozes ao meu redor cresce e me apavora, como se guiasse a criatura até onde estou.
O medo toma conta de mim enquanto as vozes gritam em coro ao redor, delineando um caminho para a abominação que se aproxima. A criatura move-se com uma graça macabra, seus passos quase imperceptíveis no chão. Seus dedos longos e ossudos parecem prontos para agarrar minha alma. Sinto que, se continuar congelado pelo medo, serei destroçado pela entidade sombria que se agiganta à minha frente. Ela abre seus braços desumanos para tomar a insignificância de minha presença e interromper minha busca. Já considerando o inevitável, junto minhas mãos em meu escapulário e digo em silêncio:
"Anjo de Luz, guardião da minha vida. A ti fui confiado pela santa misericórdia de Deus. Ilumina a minha alma, guarda-me dos males, orienta a minha inspiração, fortalece a minha sintonia com Deus e torna-me forte diante dos percalços."
Termino a oração e, com a força que ela me desperta, encaro a criatura. Seus olhos brilhantes fixam-se nos meus, e o mundo ao meu redor parece desaparecer. Aguardo o desfecho fatal. O ambiente, tomado por uma sensação sufocante de medo e desespero, parece encolher em torno de nós.
Porém, antes que a criatura me domine, o farfalhar de vozes subitamente é abafado por um som de trombeta, que pulsa sobre tudo, vibrando no ar com uma intensidade quase palpável. Instantaneamente, uma luz deslumbrante rasga a escuridão e um ser luminoso emerge diante de mim. Sua presença é imponente e, ao mesmo tempo, tranquilizadora. Ele veste uma armadura reluzente, feita de um material etéreo que parece brilhar com a luz de mil estrelas. Suas asas são majestosas e resplandecentes. Em suas mãos, segura uma poderosa espada em chamas, cuja luz incandescente corta a escuridão como uma lâmina afiada.
O ser luminoso avança sem hesitação e, com um único golpe de sua espada flamejante, rechaça a criatura sombria. A espada atravessa o ar com um silvo agudo, e a criatura, tomada pelo terror, é lançada para trás, subjugada por um feixe de chamas purificadoras. As vozes do coro opressivo silenciam pela presença divina e pelo poder avassalador do ser angelical.
O ar ao meu redor parece vibrar com uma nova energia, uma mistura de alívio e reverência. A criatura, antes ameaçadora e invencível, se encolhe lentamente, expelindo fumaça e cinzas. Sua forma sombria e ameaçadora se desvanece diante da luz celestial que agora preenche o espaço. O que restou do poder das sombras, sem possibilidade de enfrentar seu oponente, se afasta rapidamente para a escuridão, emitindo guinchos e grunhidos, como se vociferasse maldições contra o ser que a expulsou.
De apavorado, quase abatido, fico extasiado com o que vejo. Sinto um calor reconfortante preencher meu coração, uma sensação de segurança e paz que não sentia há muito tempo. Com a ameaça dissipada, volto meu olhar para o magnífico ser luminoso que está diante de mim. Um sereno anjo de luz, com cabelos prateados esvoaçantes e uma expressão pacífica, segurando uma longa e poderosa espada em chamas brancas, puras. Asas de um branco deslumbrante, brilhando como neve. A espada, erguida com uma mão gentil, emite um brilho suave e etéreo, lançando uma luz quente sobre a área ao redor. Os olhos do anjo são de um azul profundo e celestial, refletindo a pureza e a tranquilidade de um ser divino. Antes que eu possa questionar a situação, o anjo, dirigindo-se a mim, se antecipa:
- Acalme seu coração, filho de Adão! Não há mais perigo. A sombra maléfica se foi e não te perturbará mais nesse caminho. Siga sua jornada para que se cumpra o propósito do Senhor para muitos que esperam por justiça. O Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o Início e o Fim, aquele que vive desde antes do princípio do mundo e pelos séculos dos séculos vive eternamente me enviou para te proteger e orientar. Em breve você receberá esclarecimentos sobre a natureza dessa missão. E também receberá ajuda para cumprir seu propósito.
Eu, ainda atordoado, questiono sobre o que está acontecendo. Ele me responde com brevidade, mas com uma profundidade que toca minha alma:
- Deus te concede uma visão e isto é um privilégio. Teu espírito foi arrebatado para essa realidade e aos poucos o véu que a encobre será retirado, para que compreendas e sejas uma testemunha. Pelos méritos de Cristo, creia e te será revelado o propósito dessa jornada e seu papel nessa luta entre a luz e a escuridão.
Ele passa ao meu lado e coloca sua mão sobre meu ombro, dizendo:
- Confie em Deus e prossiga sem temor. Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus. Eu e muitos outros que servem ao Altíssimo estaremos ao teu lado.
Sem rodeios, o enorme ser abre suas asas e alça voo, gritando para mim:
- Nos encontraremos novamente em breve e nessa ocasião me apresentarei a ti!
Acompanho o voo do anjo até desaparecer em meio às luzes das estrelas. Ainda perplexo com tudo o que presenciei, olho ao redor e vejo que tudo é silêncio. Foi um encontro inesperado e ainda não compreendi o que houve. Uma visão? Um Anjo de Deus? E o que era aquela criatura das sombras?
Com a mente cheia de perguntas, acelero meu passo. Agora já não há mais música, e as vozes sumiram junto com a sombra que desapareceu na escuridão. A pressão desaparece e, enquanto caminho, volto a perceber o céu estrelado. A lua, já bem acima do horizonte, percorre seu trajeto celeste sobre a cidade.
É madrugada quando finalmente chego ao centro da bela Blumenau, minha doce e amada cidade. O estranho silêncio e o vazio marcam o ambiente. Nenhum transeunte, nenhum veículo circulando, nenhum movimento. Apenas o silêncio, o som de meus passos e uma leve brisa que ameniza o calor do vale. É como chegar numa cidade abandonada.
Caminho pelas ruas largas e arborizadas do centro, cada esquina uma lembrança dos tempos passados. As fachadas dos prédios antigos, com sua arquitetura germânica, estão mergulhadas em sombras, mas ainda emanam um certo charme nostálgico. As ruas de paralelepípedo refletem a luz fraca da lua, criando um jogo de luz e sombras que transforma a cidade em um cenário deslumbrante.
A "Rua XV de Novembro", tão majestosa, tão impregnada de história e tradição, de clamores do passado, das vozes esquecidas de seus poetas, é o coração pulsante de Blumenau. Mas está deserta. Suas calçadas, normalmente repletas de vida e movimento, estão vazias. As vitrines das lojas, ainda iluminadas, brilham como pequenos farois na escuridão, expondo a riqueza e o glamour da cidade.
Caminho lentamente, absorvendo cada detalhe, cada sensação. O som de meus passos ecoa pelas ruas, reforçando a solidão da madrugada. Enquanto avanço, a inquietação que antes sentia começa a diminuir, substituída por uma sensação de serenidade. A beleza e a paz da noite começam a ter um efeito calmante sobre minha mente agitada. Passo pelas praças silenciosas, onde as árvores parecem sussurrar segredos milenares, e pelos pequenos cafés fechados, que aguardam a chegada de um novo dia.
O edifício da Prefeitura, imponente e majestoso, surge à minha frente. Suas paredes elevadas contrastam com o céu estrelado, criando uma cena digna de um conto de fadas. Continuo meu percurso pelas ruas estreitas e charmosas, cada uma com sua própria história, cada pedra do calçamento contando um fragmento do passado.
Ao passar na frente do Teatro Carlos Gomes, ouço um som abafado e tenebroso. Novamente me domina uma percepção, uma inquietação. Sinto surgir uma opressão em meio aos prédios. O espaço entre eles se torna por demais pequeno, e sinto as paredes me empurrando e comprimindo. A atmosfera é pesada e me causa angústia.
Corro por algumas quadras e finalmente consigo chegar à escadaria da Catedral São Paulo Apóstolo, um refúgio em meio à vastidão da noite. A torre da Catedral, tão imponente, é belíssima, mas está às escuras, o que torna meu refúgio desconfortável e inseguro. A construção imponente de enormes granitos rosas está sombria e gelada, como se estivesse abandonada. Os grandes sinos, Jesus, Maria e José, estão em completo silêncio. Um tímido feixe da luz da lua me permite ver, à minha frente, a imagem de São Paulo, olhando em minha direção. A grande estátua do Santo parece me observar, como se acompanhasse meus movimentos.
O farfalhar de vozes começa novamente, mas não como antes. Agora são vozes de crianças, confusas, distantes. Não consigo entender o que dizem, apenas ouço uma avalanche de vozes angustiadas, vindas das ruas e dos prédios, como se milhares de crianças estivessem escondidas nas ruas centrais. As vozes infantis são etéreas, quase como um lamento que ecoa pelas ruas vazias, criando uma sensação de desolação e mistério.
As vozes aumentam em intensidade, suas inflexões carregadas de medo e curiosidade. Olho ao redor, tentando identificar de onde vêm, mas não consigo ver ninguém. É como se as crianças estivessem presentes apenas como espectros, suas presenças invisíveis, mas palpáveis no ar. Sinto a pressão dessas vozes em minha mente, como se tentassem me comunicar algo importante, algo que necessito ouvir e entender.
Cada passo que dou parece atrair mais dessas vozes, crescendo em um coro de sussurros e murmúrios. Posso quase visualizar os rostos das crianças, suas expressões de medo e desespero, escondidas nas sombras das janelas e portas entreabertas. A sensação é avassaladora, como se carregasse o peso de suas tristezas e segredos.
De repente, da direção da estátua de São Paulo, irrompe uma voz forte, que ressoa clara e profunda, como se ecoasse diretamente da revelação cristã transmitida pelo grande Apóstolo. A voz proclama com uma autoridade incontestável, como se estivesse imbuída da sabedoria divina que o Santo trouxe ao mundo.
— Siga as vozes, elas te conduzirão. Observe os sinais celestes e siga a precipitação da lua cheia. Teu protetor te conduzirá por um caminho impossível. Não tema, o que verás será uma revelação para o mundo!
A natureza da voz que irrompe em meio ao caos é, ao mesmo tempo poderosa e serena, como as palavras das epístolas de São Paulo, que ecoam verdades profundas e eternas. Ela carrega uma mensagem de esperança e orientação divina, lembrando-me das passagens da Bíblia em que São Paulo revela a vontade de Deus aos fiéis.
Sinto um calafrio percorrer minha espinha, percebendo que estou na presença de algo verdadeiramente sagrado. A revelação da voz me toca profundamente, lembrando-me das histórias vivídas por São Paulo, que mesmo diante das maiores adversidades, manteve sua fé e trouxe luz àqueles que estavam perdidos. Essa conexão me faz refletir sobre minha própria jornada e os propósitos que talvez ainda não compreenda completamente.
Com o coração batendo forte, percebo que estou destinado a seguir essas orientações, acreditando que, assim como São Paulo, estou sendo chamado a uma missão maior. A voz não apenas me guia, mas também me conforta, trazendo uma sensação de paz e clareza em meio ao caos das vozes espectrais ao meu redor.