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As palavras de Miguel ecoam em meus ouvidos como um trovão em uma noite tempestuosa. Estou paralisado, a mente um turbilhão de confusão e medo. A imensa torre se ergue imponente, como um monólito negro que desafia as leis da natureza. Blumenau, usualmente adormecida sob um manto de estrelas, agora se encontra imersa em uma escuridão profunda e opressiva, iluminada apenas pela luz dos grandes focos de incêndio. A Floresta do Esquecimento, com suas árvores retorcidas e criaturas grotescas, parece ter se expandido, engolindo tudo ao seu redor com seus imensos tentáculos. E no meio de todo esse caos, a figura assustadora do lagarto grotesco, cuspindo fogo.
Mas é a presença de Miguel que me deixa verdadeiramente perplexo. O chefe da milícia celeste, aqui, neste lugar? Neste labirinto de sombras e mistérios? Quando acordei, a realidade era clara: meu quarto, a cama macia, o silêncio da noite. Mas ao subir as escadas, tudo se transformou em um pesadelo. A cada passo, a sensação de estar em um lugar proibido, um lugar onde a realidade se esvai e a loucura se instala, se intensifica.
Com um misto de coragem e desespero, decido confrontar Miguel.
— Poderoso Miguel, peço-lhe que me ilumine com sua sabedoria. Sou apenas um insignificante mortal, perdido neste labirinto de sombras. Por que estou aqui? O que este lugar representa? E qual o significado da sua presença neste reino de trevas?
O imenso arcanjo recolhe suas asas magníficas, cintilantes como a luz das estrelas. Seus olhos, profundos como a imensidão do cosmos, fixam-se em mim com uma ternura que me desconcerta. A voz, melodiosa e poderosa ao mesmo tempo, me acalma:
— Procure se acalmar, padrinho. Certamente ouvirei e responderei todas as suas dúvidas. Não diga que és insignificante, pois não o és. Se fosses, não serias digno de receber a visão que o Senhor te envia. Me fale o que te perturba.
Puxo o fôlego, a mente um turbilhão. A presença de Miguel, tão próxima, tão real, me causa um misto de temor e admiração. Como um náufrago agarrado a um último escombro, apego-me a cada palavra do arcanjo, buscando nelas alguma luz que ilumine a escuridão que me envolve.
— Arcanjo Miguel, esta visão me trouxe novamente para o Jardim das Crianças? Não compreendo o que aconteceu. Quando subi as escadas fui trazido novamente para a Blumenau de Cristal que abriga as crianças esquecidas? Atravessei um portal quando subi, assim como aconteceu em minha outra visão, quando me precipitei no rio de sangue, junto com Rafael? Mas, então o que aconteceu? A floresta do Esquecimento se refez e tomou conta do Jardim das crianças? Mas... e as crianças? Estão seguras?
A pergunta escapa de meus lábios antes mesmo que eu possa controlá-la. A imagem das crianças, indefesas e assustadas, me atormenta. A Floresta do Esquecimento, com suas sombras ameaçadoras e criaturas sinistras, representa um perigo iminente para elas.
Miguel abre suas asas e me interrompe a fala com um gesto suave da mão. A luz que emana de suas asas cintila sobre meu rosto, banhando-me em uma aura de paz e harmonia.
— Calma, padrinho... Não pergunte tudo ao mesmo tempo. Mantenha a serenidade e a ordem nos pensamentos. Vou lhe explicar uma coisa de cada vez, para que entenda tudo o que está vendo... e tudo o que ainda irá ver.
Sua voz, grave e melodiosa, ecoa em meus ouvidos como um cântico divino. Sinto-me mais calmo, mas uma pontinha de apreensão persiste. A frase "tudo o que ainda irá ver" me causa um arrepio. Meus pensamentos voltam aos diálogos com Rafael, às profecias enigmáticas e às visões desconcertantes que me acometeram no Jardim das Crianças.
Miguel prossegue, sua voz firme e segura, dissipando o temor, mas não minhas dúvidas:
— Aqui não é o Jardim das Crianças, caro padrinho. Quando acordou estava em sua casa, como disse, e ao subir as escadas, sua visão iniciou. Digamos que você "atravessou o portal", como afirmou, se assim compreender melhor o que falo. Porém, mesmo que lhe pareça impossível ou inexplicável, o que você vê do alto desta torre é a "sua" Blumenau, sua singela e ordeira Blumenau.
Quase desfaleço com a afirmação de Miguel, sentindo minha pulsação disparar e minha respiração tornar-se ofegante. O impacto de suas palavras é devastador, deixando-me ainda mais confuso. Interrompo Miguel angustiado, minha voz tremendo:
— Mas Miguel, se o que vejo é minha Blumenau, quer dizer que se trata de algo que vai acontecer a ela? Isto é uma visão do futuro? Está sendo revelado a mim aquilo que virá a acontecer, como um sinal de alerta?
Miguel me lança um olhar profundo, como se pudesse vasculhar o fundo de minha alma. Ele caminha lentamente até o parapeito norte da torre e aponta na direção do centro de Blumenau. A cidade, outrora vibrante e acolhedora, agora está mergulhada em trevas e incêndios. O cenário é devastador e apocalíptico, com construções em chamas e ruas desertas. Com a voz firme e categórica, Miguel afirma:
— Esta é a Blumenau do presente, a Blumenau de sua realidade, a "sua" Blumenau.
Fico em silêncio por um momento, tentando assimilar o que ele disse. Minhas mãos tremem e minha mente é um turbilhão de pensamentos confusos e terríveis sobre minha cidade, minha gente. Como isso pode ser real? Como pode a cidade que conheço e amo estar em tal estado de destruição? Miguel continua sua explicação, sua voz carregada de uma gravidade que amplifica o mistério da situação:
— O que a visão está te mostrando, padrinho, é o que está presente em sua realidade de forma velada. Tudo o que você está testemunhando é exatamente o que se transcorre em sua realidade. Apenas sua percepção dentro desta visão é que está ampliada. Você está vendo duas realidades que se completam, que se conectam, e se estendem em planos diferentes.
Minha mente luta para compreender as palavras de Miguel. Ele está dizendo que minha percepção está limitada, que a verdadeira realidade é muito mais complexa e sombria do que jamais imaginei. É como se um véu tivesse sido retirado, revelando uma verdade oculta e perturbadora. As duas realidades que se conectam formam um quadro mais completo e inquietante de minha própria existência e da cidade que considero meu lar. O sentimento de impotência e desorientação é esmagador, enquanto tento processar essa revelação assombrosa.
Mais uma vez penso em Rafael e nas suas revelações que me deixavam atordoado. Sem compreender completamente o que Miguel fala, passo a questionar, com um misto de surpresa e temor na minha voz.
— Por favor, Miguel, é difícil compreender esta estranha "realidade". Estou presenciando um completo caos aqui, do alto desta torre. Minha Blumenau está mergulhada em trevas e chamas de tantos incêndios, e vejo a Floresta do Esquecimento mais forte, se expandindo por toda a cidade. Ela não foi derrotada por Rafael e sua tropa? Guilherme e os demais jovens crismados não ajudaram na grande batalha? Lembro que até mesmo eu ajudei, empunhando minha espada de dois gumes. Como vejo ela tão imensa, se espalhando por Blumenau?
Miguel se aproxima de mim lentamente, caminhando até o centro da torre. Seus olhos encontram os meus e, com paciência e um tom quase sublime, ele começa a explicar.
— Padrinho, a grande batalha da Floresta do Esquecimento foi um feito magnífico e inesquecível. Naquele momento marcante, anjos e jovens, padrinhos e crismados, e até um homem - diz Miguel, deixando transparecer um sorriso - mostraram coragem e determinação, destruindo o núcleo da floresta. Foi uma batalha difícil e perigosa. O Jardim das Crianças viveu um momento de paz, e celebramos com alegria, louvando a Deus em tudo.
Ele continua, e o tom de Miguel é solene, carregando um peso de sabedoria e reverência pelos eventos passados.
— Mas, padrinho, a Floresta do Esquecimento não é uma entidade que pode ser completamente destruída. Ela se alimenta das fraquezas humanas, dos medos e das dúvidas. Embora tenhamos vencido uma grande batalha, a floresta encontrou novas formas de crescer, silenciosamente, nas trevas da alma humana. O que você vê agora é a manifestação dessas fraquezas, um reflexo da luta interna que ainda persiste em cada um de nós.
Miguel faz uma pausa antes de prosseguir, sua expressão se tornando ainda mais séria.
— Naquela grande batalha apenas o núcleo da Floresta do Esquecimento, no Jardim das Crianças, foi destruído. Ele foi vencido naquele momento de glória. Mas aqui é outra realidade, ou melhor, é "sua" realidade, sem véus. Por isso te foi concedida esta nova visão. Para que sejas testemunha e possas revelar a todos de sua Blumenau, de sua realidade, que existem muitos outros elementos, muitas coisas além do que podem ver e que é preciso alargar o horizonte da visão, é preciso ver com o olhar da fé.
Me sinto confuso, talvez até apavorado. As palavras de Miguel ecoam em minha mente, despertando uma compreensão dolorosa da realidade. A vitória que celebramos foi apenas temporária, e a verdadeira batalha continua, não apenas contra a Floresta do Esquecimento, mas dentro de cada coração humano. Sinto um calafrio percorrer minha espinha enquanto encaro a magnitude dessa revelação. O caos que vejo ao meu redor é tanto externo quanto interno, e a luta pela redenção e pela luz revela-se cada vez mais incessante e contínua.
Miguel retorna à lateral da torre e, com um gesto firme, ergue sua espada em chamas, apontando para a cidade. As chamas dançam na lâmina da espada, refletindo a gravidade de suas palavras enquanto ele continua sua fala.
— Você e seus irmãos precisam entender que são seres espirituais, que o mundo criado por Deus não está limitado às suas percepções e suas leis. Precisam compreender que todos estamos envolvidos numa grande batalha, muito maior que a batalha da Floresta do Esquecimento. Esta luta é travada em todas as dimensões da existência, entre forças que procuram trazer luz e outras que propagam a escuridão. Tudo o que fazemos, tudo que escolhemos, contribui para um ou para outro lado das forças que se digladiam nesta batalha eterna.
Eu fico estarrecido, meu coração disparando com a enormidade do que Miguel está dizendo. A ideia de que todos somos guerreiros em uma guerra espiritual, cósmica, está além da minha compreensão. Como pode esta ser a realidade que vivemos? E como tudo isso nos afeta? Minhas mãos tremem e sinto um frio na espinha ao tentar assimilar suas palavras. Miguel observa minha dificuldade em processar o que foi dito e aguarda que eu me refaça. Ele certamente deve imaginar a confusão que se passa em minha mente. O poderoso anjo me permite respirar e me acalmar, dando-me um momento para reunir meus pensamentos.
Mas depois de uma breve pausa, Miguel segue sua explicação com imponência:
— Venha comigo até o extremo sul da torre, quero lhe mostrar algo muito importante.
Miguel estende suas asas, de maneira que a asa direita fica sobre mim, como que me abraçando. Este movimento me transmite uma profunda paz, pois uma energia emana de sua asa e me envolve. Sentindo-me reconfortado por essa presença celestial, seguimos até o parapeito do lado sul, onde Miguel passa a me explicar.
— Padrinho, veja a situação da Floresta do Esquecimento, sobre este lugar que vocês chamam "Spitzkopf", a cabeça pontiaguda. Observe esta imensa tempestade sobre ela. Ela parece atemorizante, terrivelmente assustadora, mas ela é só o princípio do que virá. Você deve procurar compreender esta visão e levar a teus irmãos a Palavra de Deus.
Miguel faz uma pausa, permitindo que eu absorva a visão apocalíptica da tempestade sobre o Spitzkopf. Relâmpagos cortam o céu, e a força da tempestade parece quase palpável, como se a natureza estivesse em revolta. Com uma voz firme, carregada de autoridade e reverência, o Arcanjo declara as palavras sagradas:
— O Senhor diz a você e a todos: "O mandamento que hoje te dou não está acima de tuas forças, nem fora de teu alcance. Ele não está nos céus, para que tu digas: quem subirá ao céu para o buscar e o fazer ouvir para que o observemos? Não está tampouco do outro lado do mar, para que tu digas: quem atravessará o mar para o buscar e o fazer ouvir para que o observemos? Mas essa palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração: e tu a podes cumprir. Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal." (Dn 30, 11-15)
Então, Miguel vira sua face em direção ao céu e abre sua boca, de onde surge um feixe de luz tão forte, tão intensamente brilhante que sou incapaz de olhar diretamente para ele. O feixe de luz sai de sua boca e se prolonga até as nuvens do céu, iluminando tudo ao seu redor como um farol celestial. A cena é de uma beleza avassaladora, uma demonstração do poder divino. Miguel leva suas mãos à boca, envolvendo-as no feixe de luz, e retira dele um pequeno rolo branco, brilhante. Fechando sua boca, o feixe de luz desaparece, deixando em suas mãos o pequeno rolo. Observo tudo maravilhado, incapaz de esconder minha perplexidade diante de tal visão e poder. O Arcanjo estende a mão, segurando o rolo luminoso, e fala para mim com uma voz carregada de importância e gravidade:
— Toma este rolo, padrinho, e o coma!
Sou tomado de surpresa e fico em dúvida, sem saber ao certo o que fazer. Olho o pequeno rolo brilhante, que não me parece ser algo a se comer. A aparência dele é tão estranha e etérea, quase irreal. Olho novamente para Miguel e, com ar de incredulidade, questiono:
— Comer o rolo? É isso mesmo, Miguel? Mas o que ele é? Não me parece ser alimento...
Miguel, com a mesma paciência e firmeza de antes, reafirma sua palavra, colocando o rolo em minhas mãos com delicadeza, mas também com uma sensação de urgência.
— Sim, padrinho. Coma todo o rolo. Coma e compreenda o que ele é.
Ainda em dúvidas, olho para o imenso Arcanjo, cuja presença imponente me faz acreditar que devo obedecer, mesmo sem compreender totalmente. Respiro fundo e decido confiar em Miguel. Levo o rolo à boca e começo a comê-lo, pouco a pouco. No início, o gosto é amargo, quase intolerável, mas persisto. À medida que continuo, o sabor começa a mudar, tornando-se cada vez mais saboroso e instigante.
Enquanto como, sinto minha percepção se alterar. É como se uma nova dimensão de entendimento se abrisse diante de mim. Minhas dúvidas e incertezas começam a dar lugar a uma sensação de revelação. De repente, ouço uma voz, como se viesse dos quatro cantos do céu, uma voz vibrante e poderosa, que fala como um grande mar em fúria:
— Que fareis vós no dia do ajuste de contas, e da tempestade que virá de longe? Junto de quem procurareis auxílio, e onde deixareis vossas riquezas? (Is 10, 3). Quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater sobre vós a calamidade, como a tempestade; e quando caírem sobre vós tribulação e angústia. Então me chamarão, mas não responderei; procurar-me-ão, mas não atenderei. (Pr 1, 27-28)
A força e a autoridade da voz são avassaladoras. Sinto cada palavra reverberar em minha alma, trazendo uma compreensão profunda e inquietante. A voz parece ecoar pelos céus e pela terra, ressoando com uma potência indescritível. As palavras formam uma revelação celestial que me envolve por completo, tornando impossível ignorar a grandiosidade da mensagem. Sinto que estou sendo chamado a um entendimento mais elevado e a uma responsabilidade maior, como se um fardo divino fosse colocado sobre meus ombros.
Fico completamente atordoado, meio zonzo, e caio de joelhos, incapaz de suportar o peso da revelação. Miguel, com sua presença imponente, me ampara com gentileza e me faz sentar. Em minha pequenez, sinto a profundidade da mensagem e a grandeza do portador. De alguma forma incompreensível, o próprio Senhor se faz presente e fala a mim. Mas sua voz poderosa me deixa assustado, por minha insignificância e fragilidade. Miguel, percebendo meu temor, senta a meu lado e me diz com uma voz serena e tranquilizadora:
— Não temas, porque desde o primeiro dia em que aplicaste teu espírito a compreender, e em que te humilhaste diante de teu Deus, tua oração foi ouvida, e é por isso que eu vim. Aqui estou para fazer-te compreender o que deve acontecer a teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos. (Dn 10, 12-14)
Transtornado, ouvindo tudo isto, questiono a Miguel, sentindo uma profunda contrariedade:
— Miguel, grande anjo de Deus, eu não tenho condições de ser este mensageiro que o Senhor precisa. Sou fraco e pecador, e a mensagem precisa de um fiel corajoso, forte, que seja um verdadeiro guerreiro. Um guerreiro como vós, Miguel, como Rafael e Gabriel.
Com uma ternura profunda e um semblante luminoso, Miguel me ergue, suas mãos firmes mas gentis, e me faz olhar para o céu. Sua expressão é de uma paciência infinita e uma força inabalável. Ele fala com segurança e uma convicção que me toca o coração:
— Nada temas, Padrinho. O Senhor afirma: - "Tu, que eu trouxe dos confins da terra, e que fiz vir do fim do mundo, e a quem eu disse: Tu és meu servo, eu te escolhi, e não te rejeitei; Nada temas, porque estou contigo, não lances olhares desesperados, pois eu sou teu Deus; eu te fortaleço e venho em teu socorro, eu te amparo com minha destra vitoriosa." Isaías, 41, 9-10
A declaração de Miguel me assusta e ao mesmo tempo me enche de uma energia que nunca senti. Sinto uma renovação de espírito, como se uma chama interior fosse acesa. Ele me deixa sentado no centro da torre e se coloca na lateral norte, olhando para a área central de Blumenau. Num movimento grandioso, ergue sua espada flamejante de dois gumes. Dela emanam chamas luminosas que ofuscam minha vista e parecem como o brilho da aurora em meio às trevas. O grande arcanjo brada contra toda aquela escuridão e confusão, sua voz um trovão que rompe as trevas:
—Nosso Deus vem vindo e não se calará. Um fogo abrasador o precede; ao seu redor, furiosa tempestade. (Salmos 49, 3)