Fidelidade

    O capítulo começa discutindo o conceito de passagem do tempo e história. O universo tem suas leis físicas, mas ninguém planejou nada e tudo acontece ao acaso, sem ordem. O ser humano difere disso por ter memória e por causa disso é capaz de criar algo novo. A natureza é desprovida de consciência, não tem memória e a repetição de uma estação do ano como a primavera apenas reflete este fato da ausência de memória. Cada primavera que se repete a cada ano é nova, pois a natureza não tem memória da primavera anterior. A memória requer uma consciência, por isso objetos inanimados representam a inexistência de uma memória. No fim dos tempo a única coisa que resta é o vazio, o nada.

A memória humana é suscetível a falhas, imprecisões e é instável. Apesar disto é por causa dela que tomamos consciência da finitude da vida. Precisamos da memória para tomar uma decisão ou para criar algo. O autor recorre a Santo Agostinho para definir que o corpo é o presente do presente. Isto é, o corpo é matéria e se mantém no tempo presente. A mente é o presente do passado. Isto é, a mente retém memórias daquilo que foi ou aconteceu e ao mesmo tempo vive o presente.

Como a memória esta atrelada ao tempo, temos preocupações referentes ao passado e ao futuro. Casos extremos podem acontecer como uma pessoa que se preocupa exclusivamente com o próprio futuro em detrimento de outras pessoas. Ou pessoas que se preocupam com o futuro alheio ou do mundo em detrimento de si mesmo, como por exemplo o clima global. O futuro é incerto e por não ter existência material, é apenas uma ideia do que ainda não aconteceu, é um poderoso influenciador das nossas mentes. O passado, ao contrário do futuro, é real e já aconteceu, é concreto. Ao invés de incerto é certo, fixo. Nesse sentido a clareza e certeza do passado impede de termos medo ou esperar algo de algo que já foi. Podemos esquecer o passado e criar um refúgio. Ou podemos ficar presos ao passado em memórias, sejam elas positivas ou negativas. Para Nietzsche a felicidade e a vida estão em viver se esquecendo (sem especificar o que). Animais podem viver alegremente sem ter a noção de tempo e podemos viver quase sem se lembrar de nada. Mas é impossível viver sem esquecer. A mente e a memória são tanto uma bênção quanto uma maldição, dependendo do ponto de vista.

Segundo o autor do livro a fidelidade é o porquê e a razão das outras virtudes e dos valores. Afinal, uma virtude depende de ser fiel aquela virtude em si. Valores morais acabam implicando em fidelidade. Não seguir valores e não aderir a princípios implica em não ter fidelidade. Um valor ou virtude só faz sentido se existem os fiéis seguidores, o que significa que precisamos da fidelidade primeiro. A fidelidade é a virtude da memória, como se a própria memória fosse uma virtude. Afinal, ser fiel a algo implica em algo que se mantém ao longo do tempo.

A fidelidade, porém, não pode ser indiscriminada a qualquer coisa. Ser fiel a algo qualquer pode levar ao fanatismo, teimosia, mente fechada, mente pequena ou a rotinas inúteis. Uma outra forma de fidelidade podem ser tradições culturais, que podem ou não ter valor ou sentido. A fidelidade se encontra entre os extremos da teimosia e da inconstância. Inconstância significa a falta de fidelidade. Já a teimosia seria a fidelidade em excesso, o que acaba perdendo o sentido da palavra fidelidade.

O que dá valor à fidelidade é o objeto pelo qual se é fiel. Pode ser algo material como uma roupa, como pode ser uma ideia, ideologia ou pessoa. Aqui não entra em questão se ser fiel a algo tem mais valor do que ser fiel a outra coisa. Mas sem dúvidas a fidelidade pode ser em relação a algo criminoso, como o nazismo por exemplo. Citando Jankélévitch o autor discute se a fidelidade pode ser negativa, como no caso de alimentar a mágoa ou o rancor, o que pode ser interpretado como fidelidade ao sentimento da raiva. A definição de fidelidade que o autor do livro busca é algo mais nobre, a fidelidade direcionada para fins positivos.

Seguindo a citação de Jankélévitch, fidelidade é a "virtude da mesmice". O que significa que tudo muda com a passagem do tempo, fica mais velho. O dia de hoje não é o mesmo dia de ontem, passou o tempo. As águas de um rio sempre se movimentam e nunca se mantém paradas. A fidelidade depende da memória para manter as coisas dentro de certos limites, como por exemplo seguir algum valor moral ao longo do tempo. O inverso da fidelidade, a infidelidade, depende da memória pois para não mais seguir algo precisamos saber o que esquecer ou abandonar. A ideia da traição esta atrelada ao tempo, à memória de algo.

Aplicando o mesmo conceito para uma pessoa, a fidelidade é o que faz uma pessoa reter valores ao longo do tempo. O corpo muda com o tempo, mas a fidelidade mantém os valores os mesmos independentemente do tempo. Segundo Montaigne a fidelidade forma a base da identidade de uma pessoa, pois é um voto de fidelidade para si mesmo. A infidelidade por sua vez significa trair convicções e depois esquecer-se das mesmas. A infidelidade tem a natureza de se autodestruir. pois ao não seguir convicções e esquecer-se de si mesma, a infidelidade joga contra si mesma. A fidelidade por sua vez luta por si e nas memórias nos lembra daquilo que devemos ser ou fazer (assumindo que estamos tratando de fidelidade em respeito a valores positivos aqui).

Para o autor a fidelidade pode ser interpretada como um amor fiel, mas não pode ser reduzida a amor em si. Um cuidado aqui é que atos altruístas tem valor e um desses valores é o amor, mas isso não significa que o sacrifício e o sofrimento sejam bons. O sofrimento é sinônimo de dor e não é através da dor que encontramos a salvação. Pelo menos não no sentido que o autor quer chegar. A fidelidade aqui seria uma forma de amor em que apesar da dor, a fidelidade triunfa. Por ex: fidelidade à raiva é fidelidade? Ao pé da letra sim, mas no caso é melhor chamar isso de rancor e não mais de fidelidade. Voltando ao exemplo do nazismo, ser fiel ao nazismo não é definição de fidelidade que o autor quer chegar. O que o autor prega é que devemos ter amor por aqueles que sofrem, compaixão em outras palavras, não amor pelo ou para com o sofrimento.

A esfera da fidelidade de pensamento. A atividade de pensar exige ordem e lógica, pois sem ordem e sem lógica os pensamentos se tornam apenas ruído ou perdem o sentido. O livro cita a dialética para sustentar que o pensar, lógico e organizado, nos dá uma virtude enquanto formos fieis a determinados valores. Isto incorre em memória, pois lembramos daquilo que somos fieis a para não cairmos na infidelidade como nos parágrafos anteriores. Ao termos esta vontade de lembrar de nossos valores e sermos fieis a eles, temos a nossa virtude.

A fidelidade implica em não mudar? Em constância? No sentido de manter valores e a memória destes é verdade, a fidelidade nos leva a uma constância. De outra forma esses valores seriam esquecidos, a memória perdida e não seríamos fieis. Mas ao mesmo tempo os valores não estão fixos no tempo, eles podem mudar, podem ser questionados ou ressignificados. O voto de fidelidade não deveria ser para com pensamentos ou ideias, mas para com a verdade. Se recusar a abandonar valores ou a questioná-los incorre em fanatismo, dogmatismo ou a uma fé cega em que se acredita apenas por acreditar.

A ciência busca resultados e comprovações sem viés, sem votos de fidelidade. A ciência busca provar no presente alguma tese e se baseia em fatos concretos, dados verificáveis. O avanço da ciência é feito com esquecimento, no sentido de que uma vez que uma tese é validada, não é necessário voltar e rediscutir todas as vezes que for necessário usá-la. A filosofia por outro lado sempre busca refletir e lembrar. O exemplo que o autor dá é que Newton não é revisitado, mas Aristóteles sim. Uma lei de Newton é válida e não precisa de mais discussões ou validações. Já um argumento de Aristóteles é sempre revisitado e rediscutido. Nesse sentido a filosofia é uma forma extrema de fidelidade ao pensamento.

A fidelidade é indispensável para a moralidade. Leis morais incorrem um dever de serem seguidas e de fidelidade, caso contrário não servem de nada. Para o autor a fidelidade precede a moral. Para Kant a fidelidade é um dever, mas para o autor do livro não pode ser reduzida puramente a dever. A discussão aqui é que fidelidade não é sinônimo de obrigação e obediência, daí não podemos dizer que fidelidade é um dever.

Para Kant a lei moral é atemporal e absoluta. Já o autor do livro desconhece uma definição absoluta e universal para a moralidade. Nos dias atuais precisamos da moral, mas ao mesmo tempo não acreditamos mais numa verdade absoluta da moralidade. Afinal a moralidade é difícil de definir e não é apenas um valor, mas muitos. Em nome de que devemos ser virtuosos?  Em nome da fidelidade, de ser leal à fidelidade. A moralidade precisa ser racional e lógica, mas a razão por si só é insuficiente. A avareza e a generosidade são ambas lógicas. Assim como a civilização tem preceitos coerentes para ser, a barbárie também tem os seus. A razão é a fidelidade à verdade. Enquanto a moralidade é a fidelidade ao amor e à lei. Combinando a moralidade com a razão temos o espírito ou a mente. Valores morais podem variar com o tempo, mas a fidelidade não varia com o tempo. Nossas ações são guiadas ou limitadas por leis morais que estejam vigentes. Como um valor pode mudar com o tempo, a fidelidade nos permite dar valor a história de um valor. Se um valor muda com o tempo, podemos não mais sermos fieis a ele. A história de um valor, por outro lado, não varia e podemos ser fieis a ela então. Deste modo somos fieis à humanidade, ao processo que levou aquele valor em si.

A moralidade começa com a polidez e continua a ganhar forma com a fidelidade. Muitos dos valores morais começam na educação e na família. Primeiro respeitamos os bons costumes e as boas maneiras, depois a bondade. Aprendemos pelos exemplos que são dados, principalmente os exemplos de pai e mãe.  André cita Hitler e Stalin como exemplos de abandono de valores morais do passado que vem desde milhares de anos atrás. Exemplos de infidelidade, pois defendiam a ideia de um futuro promissor ou ideal e para isso incorriam em barbárie e atrocidades no presente para justificar o almejado futuro. Não conseguiram atingir os seus objetivos, pelo menos não da forma como eles queriam. Ambos os citados abandonaram valores antigos em nomes do futuro que eles queriam. André começou o capítulo discutindo a importância de valores que são construídos ao longo do tempo. A família seria um exemplo disso, passagem de valores de uma geração para outra. André já discutiu anteriormente a questão de que a fidelidade age contra o tempo no sentido de manter valores vivos ao longo do tempo, pois se alguém é fiel a um valor, este não é perdido no tempo. O que serviu de resistência contra Stalin e Hitler foi a fidelidade a valores que precedem ambos. Rejeitar o passado e não aprender com ele significa rejeitar o que a humanidade construiu até então.

A fidelidade no caso de relacionamentos, especificamente um casal, significa que uma pessoa é fiel à outra. Mas a fidelidade não implica em unicidade ou exclusividade. Ser fiel a um amigo, parceiro(a), não implica em sermos fieis a uma ideia só, uma pessoa só. No caso de um casal, em geral a cultura diz que a fidelidade é para uma pessoa, há um contrato social que garante uma exclusividade. Para o autor a fidelidade num casal traz felicidade e outros benefícios caso esteja acompanhada do amor. A exclusividade por sua vez não garante moral e amor. Por exemplo, um relacionamento abusivo é, geralmente, exclusivo e as duas partes declararam fidelidade uma à outra. No caso de um relacionamento, a infidelidade é sinônimo de traição. Já o sofrimento é uma outra questão. Pois o sofrimento pode estar associado à traição e infidelidade, mas também pode estar junto da própria fidelidade se o relacionamento continua por outras razões.

Um casamento é construído em cima de amor e fidelidade. A duração do casamento depende da duração do amor, que por sua vez depende de uma paixão duradoura. Outros valores ainda são necessários ao casamento. O livro fala em gratidão, respeito, confiança e não apenas em direção de um para o outro. Mas algo compartilhado, mútuo e em que o casal seja o bem mais importante. A fidelidade é sinônimo de amor fiel. Afinal, um amor duradouro significa uma fidelidade para com algo e que dura além do tempo. O livro termina o capítulo falando de amor infiel. Um relacionamento pode não estar atrelado a um casamento e ter maiores liberdades por causa disso, mas amor infiel é outra história. O amor infiel é amor mesmo, pergunta o livro? Infidelidade implica em esquecimento do passado como disse o autor anteriormente. Como bem disse o autor, a infidelidade acaba com si mesma.

Em inglês os termos "faithfulness", "allegiance" e "fidelity" são traduzidos como fidelidade em português. "Faithfulness" vem da palavra "faith", fé. Em português uma aproximação é "fidedignidade". "Fidelity" pode ser usada como sinônimo de nitidez ou clareza, já "faithfulness" não. Uma cópia fiel ou fidedigna, em inglês pode ser "faithful".

Em relação a transtornos de personalidade, a questão da fidelidade é bem difícil. Por isso é difícil ou impossível tratar casos extremos. Em alguns vídeos tratando de borderline por exemplo, muitas pessoas relatam que uma dificuldade é a sensação de que você se conhece com as características borderline desde sempre, então o tratamento passa a sensação de que você esta deixando de ser você. Todo tipo de transtorno de personalidade envolve crenças e valores e são tão fortes, por mais que sejam distorcidos ou contrários à expectativa da sociedade, que abandonar essas crenças e valores é difícil. Quando não impossível.

    Algumas pessoas relatam que o relacionamento com uma mãe, pai, parente, com narcisismo patológico é muito difícil e que somente o afastamento funciona. Pensando pela definição de fidelidade como virtude da mesmice como disse Jankélévitch. Então um narcisista patológico jurou lealdade a si mesmo? O narcisismo patológico vem junto de crenças e valores e um dos problemas é exatamente que essas pessoas mantém uma fidelidade muito forte para si mesmas que não aceita questionamentos. Aí temos a teimosia e o fanatismo que tornam o relacionamento com pessoas teimosas ou fanáticas bastante complicado. Como é o caso de religiões onde toda a vida da pessoa é ditada por regras religiosas que muitas vezes só tem sentido para um grupo muito pequeno de pessoas. Ou hábitos de limpeza que são tão rígidos e inflexíveis que conviver com a pessoa é duro. No extremo oposto ao narcisismo patológico, se uma pessoa vive em função de se sacrificar para o outro sempre, também é problemático e também é uma mesmice de sempre fazer algo que não funciona.

O trecho do autor que fala do sofrimento não ser um caminho de redenção é interessante porque dependendo dos valores e crenças, esse argumento de que sofrer é necessário acaba sendo validado e distorcido. Tem uma categoria de narcisistas que é o oculto ou encoberto e curiosamente há essa crença de que o sofrimento é necessário e que justifica as atitudes que essas pessoas tem. Algumas religiões, ou pelo menos interpretações destas, podem pregar que o sofrimento é necessário e que você será premiado por sofrer, mas aí já estamos entrando numa discussão de fé e não mais de fidelidade.

A questão da fidelidade em relação a pensar e memórias é interessante se formos pensar em transtornos diversos, como a depressão por exemplo. Muitas vezes mudar de ponto de vista é difícil e até doloroso. A memória é bastante complexa e pode tanto ajudar quanto atrapalhar. Mesmo quando o livro trata do nazismo e de ser um seguidor daquilo que não seria bom, questões interessantes podem surgir. A depressão por exemplo afeta a capacidade de raciocínio e julgamento, vai além da falta de vontade. A pessoa se declarar fiel ao nazismo, existem forças maiores além da própria vontade em jogo?

Sobre  a questão de tempo, história e fidelidade, uma das características das pessoas narcisistas é o esquecimento. Pessoas que fazem coisas ruins que tem um impacto muito negativo no entorno, mas que para o(a) narcisista não tem importância. A pessoa sempre quer que os outros esqueçam. Ao mesmo tempo a pessoa cria uma fantasia, uma projeção de futuro maravilhoso e nunca se importa com erros passados. A começar que a capacidade de reflexão já é reduzida, então nem ao mesmo ver que foi um erro a pessoa vê. Eu já passei por algo assim, uma pessoa que sempre falava para os outros esquecerem tudo e sempre ficava vislumbrando um futuro promissor que nunca acontecia. Era uma pessoa realmente incapaz de assumir qualquer responsabilidade por qualquer coisa. Varrer para debaixo do tapete era a norma e inclusive incentivado para todo mundo fazer igual.