No ano de 2000 fundamos na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) o Grupo de Pesquisa Autopoiesis com a intenção de estudar profundamente o conceito que estava no coração de uma biologia complexa: a Biologia da Cognição. Esta teoria, desenvolvida por Humberto Maturana e Francisco Varela, já sinalizava a força de um novo paradigma que se propunha a juntar o que havia sido separado pela ciência clássica: o conhecer do viver. Na Biologia da Cognição, os dois biólogos vão mostrar estas dimensões como inseparáveis e a cognição como experiência vivida. Como corolário desta teoria, emerge a questão do ser singular que constrói a si mesmo no processo de viver. A generalização da ciência cartesiana, portanto, cede lugar à singularização e a experiência de cada um que, ao conhecer, abre-se para a autotransformação. Segue-se o consequente resgate do sujeito como autor desaparecido no velho paradigma. Autopoiesis, portanto, não é apenas mais um conceito no campo da Epistemologia ou da Biologia, é um meta-conceito que marca um novo paradigma na história da ciência: a Auto-Organização que está no cerne de qualquer campo do conhecimento e no coração da sabedoria perene.
Este momento do mundo da ciência é fascinante porque coincide com um contexto cultural no qual as práticas integradoras influenciadas por um conhecimento ancestral e pela filosofia oriental começam a ser valorizadas no ocidente, o que contribui para um nova atitude diante da realidade na qual vamos resgatando nosso pertencimento ao cosmos. É o caso, por exemplo, da Yoga, que é uma filosofia e prática complexas por excelência porque junta corpo, mente e emoções, dimensões que foram cindidas na modernidade. A origem da palavra Yoga vem do sânscrito, do vocábulo Yug que significa unir. É a união não somente das dimensões humanas referidas, mas destas com um todo maior: “Todos somos um”. Isso corresponde na filosofia ocidental à “Substância Única” de Espinosa (1983). Essas tarefas de ir tecendo as tramas da vida e da ciência é o que têm nos ocupado desde então.
O grupo Autopoiesis foi constituído por algumas companheiras que acreditavam que algo novo surgia no horizonte e que era preciso investigar o que estava acontecendo no mundo acadêmico e na vida dos seres humanos.Éramos, e ainda somos, educadoras cheias de élan vital (para usar a expressão de Bergson) movidas por uma força afetiva sustentada pelo desejo de fazer algo pela educação, aproximando-a cada vez mais do fluxo vital e tentando arrancá-la do abismo de formalismos e fragmentações em que caiu a ciência em geral e a educação em particular. a partir da modernidade. O Movimento de Auto-Organização (MAO), organizado na Europa, na sequência do movimento cibernético, trazia pressupostos revolucionários para repensar a ciência e a realidade de cada um de nós. Assim, Elizabeth Pires Rizzato (in memoriam), Bettina Steren dos Santos, Helga Haas, Dulci Boettcher e Nize Pellanda, fomos configurando um processo que deu muitos frutos em seus desdobramentos posteriores e que hoje se encontra num patamar bem produtivo abrindo caminho nas sendas “onde os anjos temem pisar” 1
como é o caso dos Subsídios Para Uma Epistemologia da Complexidade e a da Abordagem Complexa do Autismo. Do grupo inicial, ficaram as sementes que germinaram e hoje trabalhamos para levar adiante essas construções com outros colegas pesquisadores que foram se juntando a nós ao longo desse tempo. Da mesma forma, os bolsistas de iniciação científica que passaram pelo grupo deixaram suas marcas e foram marcados pelo grupo.
Foi assim que, em 2006, reconfiguramos o grupo mudando o nome para GAIA (Grupo de Ações e Investigações Autopoiéticas), para dar conta da demanda de diferentes projetos que emergiram durante nosso processo de construção do grupo. O eixo do grupo é “Educação e Complexidade”. Nossa grande meta tem sido entender e praticar a educação, a partir da perspectiva complexa. Ou seja, juntar o que foi separado pelo antigo paradigma, como já referido, e que tantas consequências deletérias tiveram para as vidas dos seres humanos em termos existenciais, cognitivos, ontológicos, éticos e sociais. Novas companheiras e novos companheiros vieram se juntar ao GAIA e foram potencializando nosso grupo: Eunice Piazza Gai, Felipe Gustsack, Monica Pons, Lizete Lima, Daiane Keller, Beatriz Araujo, Maira Meira Pinto, Marco de Moura Batista, Ana Lucia Chedid e outros que chegaram e partiram. Parceiros e parceiras de outras universidades, através de convênios, fizeram e ainda fazem parte desse grupo como pesquisadoras colaboradoras: Clara da Costa Oliveira da
1 Livro de Gregory Bateson
(UMINHO), Karla Demoly da UFERSA (Mossoró- RN), Cleci
Maraschin (UFRGS) e Deisimer Gorczevski da UFC (Fortaleza-CE); Lia Oliveira (UMINHO), Jorge Collus (UMINHO) e Rosa Maria Fontes (UVIGO). Esses reforços nos impulsionaram em direção a outros horizontes complexos.
Nesse processo de complexificação de nossas pesquisas foi se configurando um caminho complexo que se tornou inseparável das tecnologias. Essas são as tecnologias da alma, como diria Ortega y Gasset ou, como na antiga cultura grega com as tékhnai, que são técnicas para cuidar de si e, ainda, com a prática das autonarrativas e outras que nos colocam no GAIA como observadores incluídos, para dar conta de nossas próprias operações sobre nós mesmos. Estamos bem atentos a uma mudança paradigmática que sinaliza uma passagem dos “sistemas observados para os sistemas observantes” (DUPUY, 1996). Mas, essas tecnologias são também sociais ao trabalhar a Inclusão Digital com adolescentes em situação de vulnerabilidade social e com tecnologias assistivas no projeto de acoplamento de crianças diagnosticadas com autismo com o iPad. O Projeto de Inclusão Digital teve várias edições e teve como sujeitos, jovens da periferia de Santa Cruz do Sul. Muitos desses sujeitos, como pudemos constatar mais tarde, a partir de suas vivências nessa pesquisa, transformaram suas vidas e alguns chegaram ao mestrado e um deles ao doutorado em Biologia. Esse projeto foi apresentado em muitos congressos em vários países (Grécia, Itália, Hungria, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Inglaterra, República Tcheca) e muito bem recebido por colegas pesquisadores.
Este caminho complexo de juntar as diferentes dimensões da realidade através da tecnologia é uma marca que construímos para nosso grupo. Como coroamento de tudo isso, estamos construindo o conceito de Ontoepistemogênesse que consideramos, uma das grandes conquistas Epistemo-ontólogica do GAIA, destinada a responder uma necessidade que emergiu no fluxo de nossos estudos: Tentar mostrar que cognição e subjetivação emergem juntas no processo de viver.
Por que o conceito de ontoepistemogênese? A crise do paradigma da ciência moderna, que atinge hoje as mais diferentes áreas do conhecimento, também perpassa o discurso e as práticas pedagógicas que constituem o cotidiano educacional das instituições de ensino. As novas tendências epistemológicas emergentes nos estudos das ciências afetam a compreensão do conhecimento e do processo ensino-aprendizagem e, por essa razão, pretendemos enfatizar a percepção da inseparabilidade ser/conhecer, que é nosso objeto central de pesquisa. Portanto, para expressar este fenômeno complexo do viver, cunhamos o conceito de ontoepistemogênese com a intenção de abordar o ser humano de forma integrada, articulando todas as dimensões do viver. Este conceito vai sendo construído a partir das emergências da pesquisa em cada projeto vinculado.
O que pretendemos com o GAIA? Aprender a viver de maneira complexa, ou seja, saber juntar o que foi separado vivendo em harmonia no fluir da vida. No fundo, queremos articular, profundamente, os pressupostos do paradigma da complexidade com uma sabedoria de viver. Fazer ciência não pode ser algo separado do saber-viver. Como diz Bergson: “[...] a teoria do conhecimento e a teoria da vida nos parecem inseparáveis uma da outra” (BERGSON,d 1979, p.10). Isso seria nosso Dharma, uma espécie de missão para o hinduísmo, aquilo que mantém unido.
Mas então, qual é o nosso Dharma no GAIA?
Criar um espaço de amorosa convivência para aprendizagens do viver, para vivências do que significa educar a partir de exercícios de autoria/autonomia. O amor não é uma questão menor. Ele é a própria urdidura da rede da vida. É o que junta. Portanto, está no coração da complexidade. Como diz Maturana: “Na verdade, eu diria que 99% das doenças têm a ver com a negação do amor. [...] estou falando a partir da Biologia” (MATURANA, 1991, p. 23).
Neste espaço pretendemos aprender a ser “mestre de si mesmo”, como dizia Yogananda, o primeiro yogue a divulgar no ocidente a filosofia oriental, no melhor estilo autopoiético. E Nietzsche, o desconstrutor da modernidade, expressava esta mesma necessidade com as palavras: “Então, quais foram as tuas dez vitór ias sobre ti mesmo?” (NIETZSCHE, 2007, p. 40). Com isso, ele abria caminho para um novo paradigma. É preciso, antes de tudo, que estabeleçamos nossas ligações cósmicas, que nos sintamos conectados com o sentimento de que somos uma “Única Substância”, para lembrar as lições de Espinosa (1983). Enfim, um espaço onde se possa estetizar a vida fazendo dela, como diria Nietzsche, uma obra de arte.
O mundo foi desencantado com a modernidade. Pratiquemos, pois, exercícios de reencantamento do cosmos interno e externo. Parece haver na natureza humana uma espécie de autopoiesis radical, ou seja, uma demanda profunda de autonomia de cada ser humano que teria a tarefa cósmica de construir o universo e a si mesmo. Uma tarefa voltada para a nossa condição de coautores da criação, o que é muito diferente de uma relação com o mundo onde este já está pronto e no qual nós não somos responsáveis pelo que acontece com ele.
Tudo está a indicar, na atual ciência, considerada sob a ótica da complexidade, que há uma criação constante da realidade por nós mesmos e uma inseparabilidade entre um ser humano e a sua realidade circundante. Não há realidade dada. Não há cognição sem sujeito. É preciso, então, nesse sentido, aprender para além da representação de tal forma que o mundo e nós sejamos um só. Dessa forma, somos responsáveis pelo que acontece com o mundo e com nós mesmos. E, então, vem o papel da ação de cada um de nós no mundo. Ou seja, nosso Karma (em sânscrito - ação). Na antiga sabedoria dos vedas encontramos isso de maneira explícita: “Se eu não agisse, estes mundos pereceriam” (Baghavad Gita – III, 24).
Nos filósofos da vida (Nietzsche, Espinosa, Bergson) encontramos conceitos que remetem a forças criadoras na base do ser (vontade de potência, conatus, elan vital) que existem em potência. Em Bergson, encontramos a ideia complexa de que “aquilo que fazemos depende do que somos; mas impõe-se acrescentar que somos, até certo ponto, o que fazemos e o que criamo-nos a nós mesmos continuamente” (BERGSON, 1979, p. 28). Em Simondon, encontramos a potência genética que é a força para atualizar o devir. E é interessante lembrar que Simondon foi um dos filósofos que resgatou a técnica como parte do humano (SIMONDON, 1958).
Ao nos debruçarmos sobre as questões da complexidade no nosso grupo temos dado muita atenção à obra de Prigogine, um dos integrantes do Movimento de Auto-Organização. Prigogine, que foi Prêmio Nobel de Química (1977), fez uma releitura da Segunda Lei da Termodinâmica que enunciava que tudo no universo tende à morte térmica. Prigogine mostrou que isso é válido para os sistemas em equilíbrio, mas que nos sistemas vivos, que estão longe do equilíbrio, o princípio da auto-organização reverte esta entropia. Com isso, podemos pensar no papel da ação consciente transformando a entropia no seu oposto - a energia. Este cientista é complexo porque ele faz convergir o mundo interno e o externo. Diz ele, referindo-se a Bergson: “Nós poderíamos entender o mundo externo por observar nosso mundo interno” (PRIGOGINE, 2003, p. 60). E ainda afirma Prigogine: “A visão de mundo que nos rodeia converge com a do nosso mundo interior” (2004, p. 38).
O Dharma do grupo se constitui na aprendizagem do fluxo: entender que a vida é fluxo, que criamos no fluxo, abrindo mão das coisas dadas. Teilhard de Chardin, cientista/filósofo tão importante para o nosso grupo anuncia a mudança de paradigma: “Até então o mundo parecia repousar, estático e fragmentável, nos três eixos de sua geometria. Agora, sustenta-se unicamente no fluxo” (TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 8).
Um momento importante do GAIA foi a elaboração de um projeto para vivências autopoiéticas denominado Laboratório de Si com oficinas de “Auto-experimentação” para elaborar de maneira profunda a ideia do que significa conhecer. Nesse momento, a coordenadora do Projeto foi desligada da UNISC em plena vigência de sua Bolsa Produtividade, Edital Universal e Bolsas de Iniciação Científica e Apoio Técnico. A UFERSA acolheu imediatamente a pesquisadora com o Projeto GAIA e passou a fazer parte, do quadro de docentes permanentes do PPGCTI (Programa de Pós-Graduação em Cognição, Tecnologias e Instituições).
Nesse momento, é importante destacar, estamos entregando ao público e não somente à academia, uma Plataforma Digital com realidade aumentada, chamada de GaiaAR, destinada ao uso de crianças e adolescentes diagnosticados com TEA. O mérito dessa plataforma é ter sido construída a partir dos pressupostos teóricos da complexidade criando um ambiente de desafio para os usuários de tal forma que acaba por levar a uma reconfiguração cognitiva e ontogênica disparando na rede neural movimentos sinápticos que se constituem a partir da neuroplasticidade.
Hoje chegamos à elaboração de um Portal para o GAIA com o grande objetivo de fazer convergir projetos complexos e libertários do humano nos quais os estudos e pesquisas tem como eixo a amorosidade, a compaixão, a ética do cuidar, o autoconhecimento e o resgate da sabedoria perene em práticas empíricas ancoradas no maior rigor científico. Dessa forma, à ciência triste do racionalismo absoluto negadora da vida e dos desejos, Nietzsche contrapunha a alegre GAIA ciência, afirmadora do existir e que nos ensina a dançar a vida com a leveza que esquece os ressentimentos (NIETZSCHE, 2000).