Saindo do Teatro municipal de São Paulo, Albert colocou seu chapéu panamá e seguia andando pelo Viaduto do Chá, tentando entender o que tinha acabado de presenciar. Não compreendia nada daquela língua estranha que falavam, mas compreendeu perfeitamente as vaias e gritos e urros, gemidos e grunhidos, sons guturais de gorilas, símios, neandertais de casaca, cartola, pérolas, binóculos de madrepérola, estolas, perfumes, luvas e modos cafonas, êmulos anacrônicos de uma Paris de anos antes... “Que há com esse povo? Fingem uma coisa que não existe... e os urros? De onde vinha aquilo? Será que os ofendi com o poema? Parecia algo tão infantil... Os sapos... Passei dias decorando aquela pronúncia estrangeira, que, segundo o sr. Bandeira, o autor, estaria perfeita... que papel de tolo fiz?” Subitamente, a memória do Sr. Thebas se plantou de fininho no inconsciente dele... Tudo teria sido em vão?
Estava tão intrigado com o que havia presenciado que nem percebeu quando Mario de Andrade o alcançou no sinaleiro fechado, esbaforido:
– sr. Einstein! Por favor, espere!
– O, desculpe, sr. Mário... eu estava relativamente distraído e...
Mas foi interrompido por um entusiasmado Mário, que atropelava as palavras enquanto tentava recuperar o fôlego:
– Albert, posso te chamar de Albert, certo? Então, queria agradecer! Você foi incrível, maravilhoso! Que pronúncia! Que impostação de voz! Que presença de palco! Maravilhoso! Venha conosco celebrar o sucesso da nossa primeira noite dA Semana! – e enquanto falava, passava o braço pelo ombro de Albert, virando-o para refazer o caminho em direção ao teatro, para um restaurante que ficava em frente.
Albert se deixou levar, mas estava ficando cada vez mais confuso com tudo aquilo...
– Wait! Sucesso?? Are you crazy, man?! As pessoas gritavam, urravam!! Foi horrível, foi humilhante... eu ofendi aquelas pessoas... E eu não consigo entender porque... – Albert estava tenso com tudo que estava acontecendo, com as dificuldades que ele estava encontrando para entender aquilo tudo. Para ele, era uma gente muito estranha, esses brasileiros...
– Não, não, Albert! Veja, eles não estão acostumados com arte moderna ainda. Ainda! Esse é o grande barato! Estamos na vanguarda da parada! O Brasil é uma vila! Somos todos ainda muito bugres! Precisamos justamente entender isso! Essa poesia, moderna, simples, acessível, é a poesia brasileira de fato! Você não viu a roupa daquelas pessoas? Chiques, finas, elegantes, se achando parisienses... uma cafonalha! Brega, jeca! Cartola e casaca num calor desses?? Certo é o senhor, com terno de linho branco, chapéu panamá! Entende? Eles ainda não sabem o que é o Brasil, a arte brasileira! E é o modernismo quem vai ensinar o que somos! Entende?
O rosto de Albert foi se iluminando com a empolgação de Mario de Andrade. Era isso então! A revolução das artes! Romper as estruturas! Recomeçar!
– Certo... estou entendendo... acho que estou entendendo...
Enquanto acompanhava Mário, foi se esquecendo novamente das aulas de grego.
Sentado em um banco de frente para o mar, Albert segura aberto seu exemplar amassado da Antologia poética, de Vinícius de Morais. Já estava ali há algumas horas e começava a sentir um ventinho mais gelado a medida em que o sol se punha.
– A rosa de Hiroshima, de novo?
– Você gosta mesmo desse poema, hein, Albert.
E abancaram-se um de cada lado de Albert Einstein, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Haviam estranhado o atraso do amigo, novamente. Albert andava relativamente distraído nos últimos dias. Geralmente ele era o primeiro a chegar no boteco do Dito, logo ali na esquina, ficava comendo torresmo e tomando cerveja até que chegavam os colegas mais novos. Falavam de tudo um pouco. Albert ainda insistia algumas vezes que queria voltar à casa dos pais, visitar a irmã, ver o que tinha restado daquele passado tão distante no tempo e no espaço. “Mas, relativamente vivo na memória”, ele sempre dizia.
– Hein? Já estava na hora? Esqueci de novo? É? Puxa vida... é que eu fiquei aqui lendo... eu sei que vocês não vão acreditar. Mas, nos anos 90, quando vocês não eram nem nascidos ainda, eu tive uma revelação... um alumbramento, como você gosta, Manu. Eu li “Humano, demasiado humano”, do Friedrich Wilhelm Nietzsche, e...
Virando os olhos, Bandeira emendou:
– E lá vamos nós de novo, de Nietzsche...
– Hein? Eu já contei essa história para vocês?
– Umas sete ou oito vezes, só na última quinzena. Mas tudo bem, conte de novo. Sempre tem um detalhe novo.
– Ou uma mentira, alma de poeta, não esqueça, Carlos.
E os três riram, numa cumplicidade que só a arte pode oferecer. Um pouco envergonhado, Albert continuou:
– Então, é que esse poema... ele me coloca pensando no que foi, no que fui... no que poderia ter sido, mas não como você, Bandeira... eu tinha um futuro certo... a física, a química, a matemática... as descobertas da Mme Courie...o Nobel do Max Planck... eu podia ter participado de tudo isso... e sabe, seria indiretamente responsável por essa barbaridade da bomba! PIOR! Poderia ter até ficado na Alemanha, ser recrutado pelo maluco do Hitler... Vocês conseguem imaginar o que poderia ter sido se eu não tivesse jogado a bússola na cabeça do sr. Thebas?
Carlos, prevendo as lágrimas do amigo, fez um sinal de cabeça a Manuel, que ele lhe ajudasse a levantar Albert daquele banco, atravessassem a rua e o deixassem em casa.
– Precisamos fazer uma festa para esse senhor Thebas, porque graças à ignorância tecnicista dele, tivemos um dos maiores artistas do século XX! Agora, força, levante, vamos para casa. Opa, segura o livro! Não se pode deixar um exemplar do Vinícius com a assinatura de Albert Einstein! Imagine que sorte desse sujeito! Tomara que ele goste de literatura!
Chegando em casa, Einstein pousou seu velho chapéu panamá na mesa, serviu-se de uma dose de Parati, a última da noite, e pensou em sua vida. Sua trajetória até ali, pensou em sua casa de infância e na “vida que poderia ter sido e não foi”. No final das contas, sentia-se satisfeito. Teve sua dose de alegrias, sua dose de tristezas, viu horrores e belezas, e tinha muitos poucos arrependimentos. Sentado em sua poltrona, pegou mais uma vez o livro de Vinícius. “não se esqueçam/Da rosa da rosa/Da rosa de Hiroshima”. Como se esquecer, Vinícius, como? Como se esquecer do que há de pior no ser humano, de que os homens conseguem manipular elementos químicos com o único objetivo de conseguir destruir mais, sempre mais. Pensando nos horrores que lera sobre a guerra, sobre os campos de concentração em que seu povo sofreu e foi dizimado, pensando na sorte e no peso de ter escapado de tudo isso por ter se apaixonado pelos trópicos, Einstein adormeceu naquela que seria sua última noite na terra. No dia seguinte, os jornais veiculavam elegias àquele que foi um dos maiores artistas do seu tempo assinadas por Drummond e por Bandeira.
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