AÇÕES DESENVOLVIDAS - 2024-2025
Eu, Camilo Castelo Branco, apresento-me
Receção, por uma turma de 8º ano, dos alunos da Escola Básica do Bairro parceira da Rede de Bibliotecas de Vila Real, que iniciaram na nossa escola uma visita guiada pela geografia camiliana.
No dia 6 de junho, o professor bibliotecário Nelson Carneiro, do Centro Escolar do Bairro, do Agrupamento Diogo Cão, dinamizou um evento comemorativo do bicentenário de Camilo Castelo Branco - Visita pela geografia camiliana, em Vila Real, orientada pelo professor Álvaro Pinto.
O percurso teve início às 14:30, junto da escadaria da ES Camilo Castelo Branco. Da parte da nossa escola, a receção esteve a cargo das professoras coordenadoras da Biblioteca e do Departamento de Línguas Clássicas e Românicas e contou com a colaboração das professoras de Educação Especial.
Participaram na iniciativa os alunos do 8º A. Coube à aluna Isabel Fernandes, vestida a rigor, ler o texto "Eu, Camilo Castelo Branco, apresento-me".
A cerimónia contou com a presença da Sra. Vereadora da Cultura, Dra. Mara Minhava, e da Dra Ana Bela Baldaia (da Direção da Escola).
Olá a todos! Sejam muito bem-vindos!
O meu nome é Camilo Castelo Branco e, mesmo que já não viva neste mundo, hoje voltei para vos receber com muita alegria! Sabiam que fui um dos escritores mais conhecidos de Portugal? Escrevi mais de cem livros, muitos deles cheios de amor, aventura, tristeza e até mistério!
Mas hoje quero contar-vos um bocadinho da minha história... especialmente da parte que vivi aqui, em Vila Real.
Nasci em Lisboa, em 1825, mas vim viver para Vila Real ainda pequenino, depois de perder os meus pais. Fui criado por uma tia e passei aqui muitos dos meus anos de infância e juventude. Esta cidade marcou muito a minha vida! Brinquei nas ruas, li muitos livros, sonhei com personagens e histórias… e foi aqui que comecei a imaginar o mundo através da escrita.
Mais tarde, estudei no seminário e tentei ser médico… mas percebi que o que eu queria mesmo era escrever. Escrevi livros como "Amor de Perdição", que fala de um amor impossível, e "A Queda de um Anjo", uma história divertida sobre política e confusão.
A minha vida teve momentos tristes, mas também muitos cheios de paixão, coragem e vontade de mudar o mundo com palavras.
Por isso, quando hoje visitarem os lugares ligados à minha vida aqui em Vila Real, lembrem-se que cada canto pode guardar uma memória, um segredo… ou uma ideia para uma nova história!
Obrigado por estarem aqui. Desejo-vos uma visita fantástica — e quem sabe se, a meio do passeio, não descobrem o escritor que há dentro de cada um de vocês?
Texto produzido pela Biblioteca, com recurso ao ChatGPT
Ler contigo
Dinâmica de leitura entre pares, interciclos. Alunos do Secundário partilham leituras, em sala de aula, com alunos do 3º Ciclo. Atividade desenvolvida ao longo do ano letivo.
Nos dias 12 e 13 de março, alunos do secundário partilharam a leitura de excertos de O Condenado (teatro), A Morgadinha de Vald'Amores (teatro) e Folhas caídas apanhadas na lama (poesia humorística) com alunos do 3º Ciclo.
ATO PRIMEIRO
Sala pomposamente trastejada, mas em desordem. Portas ao fundo e laterais. Dois criados estão espanando a mobília. O criado João, mais montezinho que os outros, denota a estupidez velhaca do aldeão.
Cena I
JOAQUIM e JOÃO
JOAQUIM (refestelando-se num sofá) - Ó João, toca a descansar; senta-te, mas com jeito, se não afundas.
JOÃO (apalpando o estofo) - Isto foi amanhado com bexigas cheias de vento? Queres tu ver que eu vou rebentar o fole? (Deixa-se cair e levantar pelo elastério das molas) Ih! Pensei que dava com o costado no solho! Um homem regala o cadáver nestas enxergas!
JOAQUIM - Isto sempre é melhor que andar a guardar ovelhas na Samardã, heim?
JOÃO - O quê? Pois não fostes? Tomara-me eu lá com as minhas ovelhas. Assim que me lembram os nossos montes, começo a esbagoar e atrigar-me aqui dentro do coração (pondo a mão na barriga).
JOAQUIM - O coração não é aí, bruto! Aí são os rins.
JOÃO - Onde é então?
JOAQUIM - Aqui. (Pondo a mão perto do sovaco do braço direito).
JOÃO (com espanto) - Aqui?! Credo!
JOAQUIM - Aí mesmo. Aqui foi sempre o coração; e o bucho está aqui, salvo tal lugar (apontando o umbigo).
JOÃO - O bucho aqui? Aqui é a espinhela; o bucho é onde cai a trincadeira.
JOAQUIM (rindo-se com ar de irónica piedade)
JOÃO - Tu chegaste da Samardã há quinze dias, e eu tenho palmilhado todas as capitais do reino de Portugal. Olha se me ensinas onde está o bucho, a mim, que tenho sido criado de conselheiros, de cónegos, de barões, e mesmamente de ministros de estado! O bucho desde que o mundo é mundo, foi sempre aqui (insiste na demarcação). Faz-te esperto, rapaz! O patrão já me disse ontem: «Ó Joaquim, este teu primo é um burro.»
JOÃO - Eu bem ouvi. Não foi assim que te disse o patrão. O que ele disse foi: «Ó Joaquim, este teu primo é tão burro como tu.»
JOAQUIM - Não disse isso.
JOÃO - Na minha salvação, disse; e cá a mim, se o patrão me torna a chamar burro, vou-me pra a terra. Eu não sou burro, sou cristão batizado. Alcunhas não nas quero. Cá no Porto é costume essa chalaça.
JOAQUIM - Que chalaça?
JOÃO - Todos são bichos.
JOAQUIM - Todos são bichos? Más maleitas me tolham, se eu te percebo!
JOÃO - Lembras-te quando eu fui pra porta da rua saber quem vinha cá? Pois olha, ao primeiro veio um fidalgo que se chamava Lobo; depois um Raposo; depois um Leão; depois um Coelho e um Lebre, e outro senhor chamado Camelo, e outro Pato, e um Rola. Olha que bicharia! Eu estava a ver quando chegava um Urso e um Boi. Lá na Samardã toda a gente aveza nomes de gente, pois não aveza?
JOAQUIM - Homem, tu nunca viste nada. Faz minga correr todas as capitães do reino de Portugal como eu. Olha que os fidalgos quase todos tem bichos...
JOÃO (atalhando) - Tem bichos? Arrenego-os eu!
JOAQUIM - Não me fales à mão; quase todos têm bichos no nome é o que eu queria declarar na minha proposta. Tu não examinaste as armas reais que o patrão tem nas quintas lá de riba?
JOÃO - Olha que já estive a malucar que na porta da quinta do Corgo estão as armas do rei com dois lagartos e um lacrau. Os lagartos, salvo seja, têm assim as unhas (recurvando os dedos). E o lacrau tem a língua à dependura (figurando). Mas cá o patrão não se chama lagarto nem lacrau, que eu saiba.
JOAQUIM - O animal que viste não é lacrau. O bicho que bota a língua de fora chama-se leopardo.
JOÃO - Isso é nome de cristão... Leonardo!
JOAQUIM - Leopardo, asno!
JOÃO - Tu não me chames asno, primo! Não me desfeiteies. Quem não sabe, aprende. Então porque tem o patrão o leopardo nas armas reais?
JOAQUIM - É história antiga lá da família.
JOÃO - Então esse bruto era da família do patrão? Tu também não és pequeno animal, Joaquim! Estás um bom fistor! Olha se me engrampas a mim. Olha... (Arregaça o olho esquerdo).
JOAQUIM (alvoroçado) - Espana, que aí vem gente...
CASTELO BRANCO, Camilo (s/d). O Condenado, Lisboa: Luso Livros, pp. 9-16.
Para celebrar o Dia Mundial da Poesia, alunas do 11º H partilharam a leitura de poemas de Eugénio de Andrade e de Augusto Gil nas turmas do 7º ano e no 9º C e 9º D.
UM NOME
Di-lo-ei pela cor dos teu olhos,
pela luz
onde me deito;
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte;
pelo mar
azul, azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece;
di-lo-eu pelo sangue
violado
e limpo e inocente;
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!
Eugénio de Andrade
CANÇÃO
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
-mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
-mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
-mãe, dou-lho ou não?
Eugénio de Andrade
MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE
Dez da manhã. Vento da
serra. Três graus negativos
Mãos frias, coração quente!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar sorridente,
Apertando-me as mãos frias...
Agora decerto o tenho
Num braseiro, num vulcão.
O frio é tanto, é tamanho
Que a pena cai-me da mão...
Queria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá ser extenso
Com este frio maldito!
Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
Mãos frias, coração quente
Lá diz o velho rufião...
Augusto Gil
Escola a ler Camilo Castelo Branco
Semana Camilo 200. Dia 12 de março.
Na 1ª aula do dia de cada turma (ou na 2ª, caso a respetiva turma tenha avaliação), os professores deverão aceder ao link disponibilizado na página da escola, onde se encontram excertos de obras de Camilo escolhidos pela Biblioteca para cada ano escolar:
O Condenado (teatro);
A Morgadinha de Vald'Amores (teatro);
Vinte horas de Liteira (ficção narrativa);
No Bom Jesus do Monte (ficção narrativa);
Folhas caídas apanhadas na lama (poesia humorística).
Partilha de leituras em voz alta.
Entre palavras e acordes
Celebração do Dia mundial do livro com a leitura de textos em voz alta ao som do piano (música ao vivo na Biblioteca).
Leituras na Biblioteca
Celebração do dia mundial da poesia. Partilha de leituras de textos selecionados pelos alunos.
Escola a ler Luís de Camões
No dia 23 de janeiro, a nossa escola prestou homenagem ao grande poeta português Luís de Camões, celebrando a sua obra e legado literário. A iniciativa "Escola a Ler Luís de Camões", promovida pela Biblioteca Escolar, convidou toda a comunidade escolar a participar num dia especial dedicado à leitura e celebração da poesia camoniana.
Modo de implementação:
Poemas de Camões selecionados pela biblioteca de acordo com o ano de escolaridade (idade dos alunos) foram colocados em todas as salas de aula (no 1º tempo do turno da manhã e da tarde), para serem lidos em voz alta, interpretados e discutidos com a orientação dos professores.
As turmas tiveram a oportunidade de explorar os temas universais explorados por Camões – amor, destino, mudança, heroísmo e humanidade – e relacioná-los com o mundo atual.
Sempre que possível, as leituras e atividades foram registadas em áudio ou vídeo e remetidos à Biblioteca escolar – bib.gest@esccbvr.pt - para partilha nas redes sociais da escola, mostrando o talento e o empenho dos nossos alunos.
Atividades complementares:
Criação de poemas e ilustrações inspirados nos temas de Camões.
“Concurso” de declamação.
Camões 500: Leitura em sinfonia
E a palavra fez-se música...
Leitura coral e sequencial, em várias línguas, das 2 primeiras estrofes de Os Lusíadas. Para além do Português, foram selecionadas as línguas dos alunos estrangeiros que frequentam a escola (mandarim, árabe, urdu, indu) e as línguas das epopeias clássicas (latim e grego).
No dia de celebração do nascimento de Camões, 23 de janeiro, o intervalo cultural encerrou com a “Leitura em Sinfonia”, uma leitura coral e sequencial, que trouxe um momento especial à celebração deste dia. Para esta atividade foram selecionadas as duas primeiras estrofes d’ Os Lusíadas:
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Depois de identificadas as diferentes línguas maternas dos alunos da escola, recorreu-se ao CHATGPT e aos próprios estudantes migrantes, para se proceder à tradução do excerto nas diferentes línguas. À leitura em português, feita pelos alunos do 11.º H, segue-se a leitura em mandarim, árabe e urdu, por alunos oriundos da China, Síria e Paquistão, e por alunos de PLA – Português Língua de Acolhimento - Bilal Ahmed e Zeeshan Zafar, do Paquistão, em urdu, e Amirul Basur, do Bangladesh, em indu. Como não podia deixar de ser, ou não fosse Os Lusíadas uma epopeia clássica, o latim e o grego também se irão fazer ouvir nas vozes de Juliana Gando e Maya Nhampoca. A leitura das duas estrofes constitui uma celebração simbólica da diversidade cultural.
A leitura em sinfonia teve uma segunda sessão, no dia 29 de abril, no âmbito do evento Um dia com Camões, promovido pelo Município de Vila Real e que contou com a presença de alunos de todas as escolas da cidade.
Ler Camões: Arruada de Leitura
Leitura de textos camonianos em espaços públicos. A arruada contou com a participação da Senhora Vereadora da Cultura, Dra Mara Minhava, e o Senhor Presidente da Câmara, Dr. Alexandre Favaios.
23 de janeiro.
AÇÕES DESENVOLVIDAS - 2023-2024
Boletim Cultural
Revista da ES Camilo Castelo Branco.
O conteúdo é diversificado (poesia, teatro, artes visuais, ficção, artigos científicos, estudos de fundo, …) e conta com o apoio da Associação dos Antigos Alunos.
De publicação anual, vai já no nº 31.
Sai no Dia do Patrono - 16 de março -, dia do nascimento de Camilo.
À conversa sobre Manuel Vaz de Carvalho
No espaço intimista da Biblioteca, familiares e amigos do escritor partilharam, com humor e com amor, episódios da vida de Vaz de Carvalho e leituras de excertos da sua obra.
Participação de Fábio Timor, diretor artístico do teatro Urze, que partilhou a leitura dramatizada de um dos poemas de MVC: Arena e Morte.
Horário pós-laboral.
Tertúlia aberta à Comunidade.
22 de março
Imagens da Tertúlia
Noites dos livros censurados
" As noites dos livros censurados pretendem celebrar os livros como resistência e o papel que a literatura tem desempenhado no desafio aos regimes, ao longo de séculos." - Plano Nacional de Leitura (PNL).
A Biblioteca aceitou o repto do PNL e organizou duas Noites dos Livros Censurados.
Equipa da Biblioteca Escolar, membros do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal e Vereador da Educação, Dr. Alexandre Favaios.
Tertúlias abertas à Comunidade.
23 e 24 de abril
Escola a ler em memória do Holocausto
Colocação de livros e revistas da coleção da Biblioteca sobre o Holocausto em todas as salas de aula para partilha de leituras e reflexão sobre as mesmas.
Os livros são escolhidos pela equipa da Biblioteca de acordo com o ano de escolaridade.
29 de janeiro
Escola a ler contra a violência de género
Colocação de livros e revistas da coleção da Biblioteca, em todas as salas de aula, sobre a violência contra mulheres e meninas, para partilha de leituras e reflexão sobre as mesmas.
Os livros são escolhidos pela equipa da Biblioteca de acordo com o ano de escolaridade (idade dos alunos).
27 de novembro
Escola a Ler… Contra a violência de género
Sugestão de leitura - 7º ano
Capítulo 29 - "Preenchendo os espaços em branco"
Sugestão de leitura - 8º ano
Meriam entrou na sala de audiências em passo lento. As correntes mordiam-lhe os tornozelos, já lacerados durante a longa detenção, e produziam um ruído sinistro, semelhante a um lamento. Mas avançava de cabeça erguida, com um olhar firme e decidido.
Quando se sentou no banco dos réus, lançou um olhar em direção à cadeira mais elevada, aquela onde se erguia a figura daquele que dali a pouco ia decidir a sua existência. O juiz do tribunal periférico de Cartum, Abbas Mohammd Al-Khalifa, tinha uma expressão hostil que confirmava a fama de magistrado intransigente e severo, o mais cruel da capital.
- Adraf Al Hadi Mohammed Abdullah – perguntou, em tom depreciativo, tratando-a pelo seu nome islâmico – que tens a dizer?
- O meu nome é Meriam, meretíssimo, e não tenho nada a acrescentar àquilo que já declarei – respondeu com uma voz calma e clara. – Sou uma ortodoxa praticante e não cometi apostasia,[1] uma vez que nunca conheci outra religião pra além da cristã.
Sabia que podia pagar um preço altíssimo por aquelas palavras, mas a voz da consciência era demasiado forte para calar. Já tinha aprendido a dominar o medo, a suportar ameaças e humilhações, estava quase habituada. Por outro lado, o processo tinha assumido uma péssima orientação desde o início, não era mais do que o culminar de uma perseguição iniciada alguns meses antes, quando uns supostos parentes do pai, de quem Meriam não recordava sequer o nome, a tinham denunciado porque, apesar de ser muçulmana, se tinha casado com um cristão. Afirmavam que o seu verdadeiro nome era Adraf Al Hadi Mohammed Abdullah e que o tinha mudado depois de ter abandonado a família e de se ter convertido.
Os seus advogados tinham pedido ao juiz para ouvir algumas testemunhas que falassem em sua defesa, prontas para desmentir a tese dos acusadores, mas o pedido não foi aceite. Durante todo o debate não foi admitida nenhuma testemunha a seu favor.
- Foram-te concedidas setenta e duas horas para regressares ao Islão, mas não quiseste aceitar a benevolência dos teus irmãos muçulmanos. Por isso, mereces ser enforcada.
As palavras do magistrado ecoaram na sala e tiveram repercussão nos rostos aterrados dos presentes. Meriam voltou-se para os advogados, depois olhou para Daniel. Permaneceu impassível, enquanto o rosto do marido se enchia de lágrimas. Ela não, não conseguia chorar. Observava um juiz, olhava-o diretamente nos olhos.
NAPOLI, Antonella – Condenada à morte. Lisboa: ASA, 2015, pp. 13-15. ISBN 9789892333670
[1] Apostasia - Renúncia ou abandono de uma crença religiosa.
SINOPSE
Meriam nasceu no Sudão, em 1987. Abandonada pelo pai muçulmano, foi criada no seio da fé cristã da sua mãe. Licenciou-se em Medicina e, mais tarde, casou com Daniel, também ele cristão.
Meriam nunca se considerou muçulmana. Mas, em 2013, um parente não pensou da mesma maneira e acusou-a de adultério com o argumento de que a lei islâmica não reconhece o casamento entre mulheres muçulmanas e homens cristãos.
Grávida e com um filho pequeno nos braços, Meriam foi presa e chicoteada cem vezes. Nem mesmo a sua condição impediu que os maus-tratos continuassem e, no oitavo mês da gravidez, deu à luz acorrentada. Entre as paredes da prisão e em condições desumanas, nasceu Maya, a sua linda filha. Seria de esperar que tamanha crueldade quebrasse o espírito de Meriam. Mas ela não cedeu. Não renunciou à sua fé. Como castigo, os seus carrascos condenaram-na à morte.
Sugestão de Leitura - 9º e 10º ano
Se a mamã tem tão boas razões para estar nervosa, foi porque cometeu, há alguns anos um crime relativamente ao qual nunca irá perdoar-se. Digo “crime” porque é assim que ela o vive, embora no Afeganistão o ato dela não tenha nada de repreensível. Pelo contrário, é algo perfeitamente comum. A mamã, seguindo os conselhos da avó, vendeu a minha irmã mais velha, Farzana, a um talibã que a cobiçava há algum tempo. Já não tínhamos dinheiro ou o que quer que fosse para comer. Por isso, quando Rachid veio a casa pedir a minha irmã em casamento, a minha mãe não teve outra escolha senão dizer “sim”. Farzana tinha 13 anos. A idade que tenho hoje. Penso muitas vezes nisso.
Lembro-me perfeitamente da boda. Não teve nada de habitual. Os casamentos, de qualquer forma, nunca são muito felizes. A noiva tem de estar triste e chorar um pouco para mostrar aos pais que está triste por ter de os abandonar. A minha irmã não teve de se esforçar. No seu vestido verde tradicional, o rosto dela parecia ainda mais pálido. Não tinha a maquilhagem exagerada que, de um modo geral, as noivas ostentam, porque os talibã proibiam-na. Parecia tão pequena sentada no chão, com as pernas atrás de uma almofada. Baixava a cabeça, e a sua inclinação não nos permitia distinguir-lhe a boca, que ela mordia com força para não chorar. Não houve música. Não houve dança. A mamã penteara-nos lindamente, às raparigas. Excecionalmente, a refeição tinha carne. O papá sorria. A mamã também. Ela dizia a Farzana: “Vais ser feliz com ele. É um homem respeitado. Protegerá a tua virtude e cuidará de ti.” Farzana olhava para ela e aquiescia[1], como se também ela quisesse acreditar naquilo, naquela hipocrisia de felicidade familiar. Tudo era então mentira.
Percebo-o melhor hoje, quando vejo quanto a minha mãe sofre na pele por ter sacrificado e vendido a filha. Do dia para a noite, Farzana teve de se despedir da infância e entrar com fracasso na sua nova vida de adulta e de mulher. Tudo isto em troca de cerca de 2000 dólares.
Hoje tenho a idade de Farzana e apercebo-me de como esse casamento forçado e a saída precipitada de casa devem ter sido uma violência terrível para ela. Era apenas uma menina, e os adultos não souberam protegê-la. Decoramos vagamente um táxi com flores de plástico e grinaldas. Não houve fotografias nem vídeos, porque o novo marido da minha irmã, na sua fúria iconoclasta[2], bania qualquer reprodução humana ou animal. A minha irmã entrou no táxi com o marido, um homem 20 anos mais velha do que ela. Repetia-me: “Não posso, Diana, não sei… Não sei ser uma esposa.” Eu era ainda tão pequena… O que podia dizer-lhe? Comprada por 2000 dólares para enterrar a sua infância e aceder a uma vida de miséria…Farzana levou dois anos a ficar grávida. O marido dela começava a dizer que lhe tínhamos vendido uma má rapariga. De facto, ela ainda não entrara na puberdade!
Com certeza que a mamã gostaria de ser uma mãe como as outras. Uma mãe que protege os filhos das rudezas do mundo. Mas não teve alternativa. Ao sacrificar uma filha, salvava os outros 13 filhos. Deve ter sido o que pensou para aceitar o impensável. É o que me diz quando consegue falar nisso. A maioria das raparigas no Afeganistão é casada antes da idade legal de 16 anos. Com os pachtuns, uma tribo do Sul e do Leste, acontece frequentemente que meninas de 5 anos sejam já prometidas a homens bem mais velhos. Dito de forma menos consensual, nós, raparigas afegãs, temos um verdadeiro valor mercantil. Essa situação mete-me nojo, a ponto de me prometer a mim mesma nunca vir a casar-me. Não sei se conseguirei opor-me a essa tradição, pois os costumes são tão resistentes!
[1] Aquiescia: concordava.
[2] Iconoclasta – pessoa que é contra a representação e o culto de imagens sagradas (daí defender a destruição de estátuas e imagens religiosas).
MOHAMADI, Diana – A pequena vendedora de fósforos de Cabul. Lisboa: Livros de Seda, 2010, pp. 79-81. ISBN 9789727707829
SINOPSE
Aos 13 anos, Diana é uma presença incontornável em Chicken Street, o grande bazar da capital do Afeganistão. Nascida numa família de 14 irmãos, é nas ruas que trava uma batalha diária pela sobrevivência, numa nação que respira as opressivas tradições dos talibãs. Entre a infância que não teve e uma adolescência precoce, Diana continua a ir à escola e a brincar com os amigos, restos do que seria uma vida normal num quotidiano de miséria e horror.
A partir de 2021-2022, a violência contra as mulheres e meninas agravou-se no Afeganistão, com a retirada dos americanos, após a retoma do poder pelos Talibã. Hoje, Diana já não poderia ir à escola.
Veja os vídeos sobre a situação atual das mulheres e meninas no atual Afeganistão:
Sugestão de leitura - 11º ano
Quatro dias após o parto, Kirane ordena-me que me levante, embora ainda seja de noite:
- Então, Naziran, pensas que vais repousar como se nos tivesses dado um filho? Que julgas tu? Vai trabalhar?
Apesar do meu estado e da dor que ainda me rasga o ventre, levanto-me com dificuldade. Segundo as nossas tradições, uma mulher descansa até 40 dias depois do parto. Mas não é assim que Kirane vê o problema. Recomeço, pois, a trabalhar, constrangida e forçada. Tenho de lavar a roupa, de cozinhar, de limpar a casa. Uma vez terminadas estas tarefas, vergada pelas dores, vou trabalhar para o campo. Levo a minha filha ao colo. Ela adormece, enrolada numa manta.
[…] Sinto-me apaziguada quando a estreito contra mim. Preciso, todavia, de dar um filho a Adil. O próximo bebé terá de ser rapaz.
Passados seis dias, damos um nome à menina. Adil quer absolutamente que ela se chame Hina. Não gosto do nome, recorda-me demasiado a minha cunhada, mas deixo-o escolher. Com o decorrer do tempo, Adil acaba por se afeiçoar à filha.
Em casa, recomeçou o pesadelo. Adil faz-me pagar a deceção de não lhe ter dado um rapaz. As agressões, os insultos… A minha sogra não se cansa de me censurar, considera-me demasiado lenta. Choro frequentemente, sinto-me cada vez mais deprimida. Após um dia de trabalho, desfaço-me em lágrimas atrás do muro que cerca a casa, à beira da valeta.
Certa manhã, estou agachada no pátio a diluir pesticidas na água de uma bacia. […] Adil está ao meu lado, aguarda com impaciência que eu termine a tarefa. Olho para ele, tenho uma pergunta para lhe fazer:
- O casamento da tua cunhada realiza-se m breve, não é verdade? Não tenho roupa apropriada.
Adil lança-me um olhar maldoso, replica:
- Pede ao teu pai, já que é tão generoso!
Desfaço-me em lágrimas.
- Estás a ser injusto, agora és tu o meu marido, e és tu que deve ocupar-se de mim.
- Cala-te e termina o que estás a fazer.
Com os olhos marejados de lágrimas, continuo a remexer a mistura na selha. Adil acha-me demasiado lenta.
- Transmites infelicidade! Estou farto de te ver sempre a chorar. Despacha-te!
Adil esbofeteia-me. Debato-me. Então, ele apodera-se de uma pesada barra de ferro guardada na cabana dos utensílios e atinge-me a cabeça. Grito, tenho o crânio fendido, o sangue espalha-se por toda a parte e já não vejo nada.
NAZIRAN – Naziran – uma mulher sem rosto. Lisboa: Albatroz, 2022, pp. 93-94. ISBN 9789720045713
SINOPSE
Naziran tem 22 anos e deixou de ter rosto - em plena noite, enquanto dormia, a sua cara foi regada com ácido. O objetivo era matá-la, desembaraçar-se dela definitivamente, mas Naziran sobreviveu.
Para esta jovem paquistanesa, a vida foi uma sucessão de violências e de humilhações: o pai, um homem brutal, vendeu-a num casamento forçado aos 13 anos; o marido espancava-a sob o pretexto de ela não lhe dar um herdeiro do sexo masculino e, depois da sua morte, obrigaram-na a casar com um cunhado, muito mais velho do que ela e já casado. No auge do seu sofrimento, a família do marido roubou-lhe uma das filhas.
Mas Naziran resistiu a tudo e hoje, cega e com o rosto destruído, ousa dar testemunho sobre uma prática cruel: os ataques com ácido.
Sugestão de Leitura - 12º ano
Carta de D. Joana de Vasconcelos para Mariana Alcoforado freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição em Beja
Minha querida Mariana [1]
Só hoje consegui autorização da tua Madre Superiora para te escrever, às escondidas de teus pais e meu marido, que embora não te conheça de ti não pode ouvir falar sem raiva, certamente pela amizade que sabe eu te dedicar e isso o enfurece. Por princípio odeia tudo o que amo, ridicularizando sempre os meus sentimentos, destruindo-os pela sua delicadeza e sensibilidade com grande prazer e riso, brutalmente.
As de ti o que é feito, minha Mariana? Que resta de ti, aí de clausura posta à força? Recordarei sempre teus gritos com altivez, tua raiva, tua recusa enlouquecida em aceitares o convento, teu ódio; depois perante o inevitável, teu mutismo, teu aceitar dos factos com altivez, o desprezo por todos a subir-te aos olhos e o sorriso cortante a paramentar-te de ironia a boca em jeito de vingança…
Que desgraça o se nascer mulher! Frágeis, inaptas por obrigação, por casta, obedientes por lei a seus donos, senhores sôfregos até de nossos males…
Quantas vezes lembro dos desabafos que tínhamos, das revoltas! Oh, vida-madrasta, que separadas nos pôs, a nós, tão amigas, tão unidas quase desde o berço. A ti te deram clausura, a mim marido que recusaria caso pudesse ou me ouvissem a vontade, mas bem sabemos, minha pobre amiga, quão pouca valia têm nossos desejos ou quereres, sejam eles de razão ou de coração.
Pensavas já, certamente, que te havia esquecido, esquecendo as horas passadas juntas, nossas conversas e jogos, nossas promessas que não nos deixaram manter, pois em nós nada mandamos e de nós nada decidimos, os desejos vergando aos de nossos pais que nos ordenam ou de nossos maridos que nos compram, homens sempre bem talhados em fatos, avançada idade e dinheiro, em posição na vida. – Que repugnância, Mariana, que martírio! – Sabes tu o que é sermos tomadas nuas por mãos apressadas e bocas moles de cuspo? […] Mariana, sabes tu, minha irmã, o que é calarmos, dia após dia, o nojo, a aflição já sem lágrimas, nem lágrimas tendo pra nos chorarmos, nem pena conseguirmos arranjar por nós próprias?
[…]
Dizem que sou estéril, ouve! Dizem-me que sou estéril, disso me culpando meu marido como se de pecado me acusasse, jamais pensando ele a mansa, dolorosa, mas total alegria que isso me dá. Como poderia eu conceber um filho de semelhante homem, a quem o meu corpo se recusa, mesmo quando rendido, crispado todo ele de ânsia e repugnância…
Estéril, seca, despojada de tudo. Que indignidade, que abjeção! Que lenta morte a que nos condenam.
Joana
25/4/71
BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria velho da – Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1998, pp. 146-148. ISBN 9722015001
SINOPSE
“Reescrevendo, pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e atualidade, do ponto de vista literário e social. Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à catalogação ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão.” Ana Luísa Amaral in “Breve Introdução”
Com a publicação da obra, foi aberto um processo contra as autoras, que viria a ser suspenso após o 25 de Abril de 1974. Os textos foram considerados “imorais” e “pornográficos”, pois retratavam mulheres livres, que questionam a sua identidade e expressam o desejo de ter acesso a novas ideias sociais e religiosas.
[1] Mariana Alcoforado foi uma freira portuguesa. Com onze anos, foi obrigada a entrar para o convento, a fim de ficar a salvo do brutal conflito provocado pela guerra com Espanha e para honrar o testamento materno que a nomeava freira do Convento da Conceição, em Beja. Sem ter nenhuma inclinação religiosa, foi destinada a uma vida enclausurada na Ordem de Santa Clara, partilhando da sorte de muitas raparigas da sua época, que eram encerradas em conventos por decisão paternal. A ela é atribuída a autoria de Cartas Portuguesas (Cartas de Amor ao Cavaleiro de Chamilly).
Escola a ler... Manuel Vaz de Carvalho
Colocação de conjuntos de poemas de Manuel Vaz de Carvalho nas salas de aula para partilha de leituras em voz alta e reflexão sobre os mesmas.
Os poemas são escolhidos pela equipa da Biblioteca de acordo com o ano de escolaridade (idade dos alunos).
NOTA BIOGRÁFICA
Nasceu em Cerva, pequena vila transmontana, situada “num vale fundeiro nas caídas do planalto do Alvão”.
Único filho de uma família de ancestrais tradições rurais, cedo se viu dividido, por razões de ordem familiar, entre a vetusta Casa de Pombeiro, em Alvite, seu berço materno, e a Quinta das Cruzes na Timpeira, Vila Real, terra de seu pai, onde a família fixou residência há várias gerações.
Estudou em Vila Real, no Liceu Camilo Castelo Branco, onde vem a publicar, aos 19 anos, com o apoio do seu professor Dr. Pinto Soares, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Poentes, dedicado à sua mãe.
Parte para Coimbra onde se licencia em Direito com distinção. Aí desenvolve a sua grande paixão pela guitarra portuguesa, que o acompanha ao longo de toda a sua vida.
Finda a licenciatura, regressa a Vila Real, à quinta de seu pai, onde o ligam indissolúveis laços de afetos e de tradições familiares.
Casa com Maria Teresa, sua amiga de infância, também de Cerva. Desse amor “novos amores vieram”, e juntos, foram “a vida efémera dobando (…) no chão e telheiro da Timpeira”.
No seu “tugúrio” do Largo do Pelourinho, situado no centro histórico de Vila Real, Vaz de Carvalho exerce durante mais de 50 anos uma carreira brilhante, em que a sagacidade e um sentido humanista da Justiça lhe valeram grande respeito e admiração.
Mais tarde, é condecorado com a Medalha de Honra da Ordem dos Advogados.
De igual modo é homenageado pela Delegação da Ordem dos Advogados de Vila Real.
Já no final da sua vida é condecorado com a MEDALHA DE HONRA E MÉRITO DA ORDEM DOS ADVOGADOS.
Outras homenagens aconteceram, imbuídas de afeto, simpatia e reconhecimento por este homem de temperamento eclético, de grande humanismo e afabilidade.
Possuidor de uma inteligência brilhante e de uma loquacidade viva e catalisadora, era frequente reunir à sua volta amigos e ouvintes atentos às suas estórias e reflexões.
A sua paixão pela guitarra portuguesa levou-o ao encontro de Artur Paredes e Carlos Paredes, com quem tocou em pequenas tertúlias familiares nas suas ocasionais passagens por Lisboa.
De igual modo, e seguindo a tradição musical da família Vaz de Carvalho, enriquecia os serões com amigos, tocando também acompanhado por alguns dos filhos em momentos de afetuoso convívio.
A Poesia e o Conto fluem a par da sua vida profissional e afetiva, de forma impulsiva e apaixonada, em momentos de lazer e de tensão, tendo por cenário a paisagem transmontana, em toda a sua grandeza e intimismo.
Da sua obra vieram a lume apenas quatro publicações: Poentes (na juventude) Poemas do Solstício (com uma 2ª edição), Visão Alvânica e Poemas do Afélio.
A título póstumo, e assinalando o centenário de nascimento do autor, surge agora uma nova publicação, CONTOS, um registo de episódios profissionais e de caçadas, no palco agreste do Planalto do Alvão.
Leonor Vaz de Carvalho (filha do escritor), in MEMORIAM
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POEMAS SELECIONADOS
Arena e morte
“O boi, o rijo operário, esse animal antigo
Que faz florir a vinha e faz crescer o trigo”
(Junqueiro)
Arena e morte! O rude gladiador,
Traído na antiquíssima aliança
Grande rei da lezíria, enfrenta a lança
Do falso aliado e pérfido traidor.
Aceita o corpo-a-corpo nobremente!|
E um peralvilho em vestes de palhaço
Com sadismo boçal no olhar de aço
Esguelha-se ao confronto frente-a-frente.
Eis quando, enlameado em sangue e bosta
O duro lutador decai na aposta
A um ferro de traição de inglória sorte…
E o povo alvar, sedento de martírio,
Aplaude o vil massacre, entra em delírio
No sórdido festim… gloriando a morte!
M. Vaz de Carvalho in Visão Alvânica
Teresa
Nos teus olhos singelos, inquietos
Feitos só de bondade e de perdão
Encontro alívio aos meus temores secretos
Que trago a oprimir-me o coração.
Eu vejo em ti, bondosa companheira
Uma daquelas almas que Deus cria
Para cobrir a nossa vida inteira
De uma bênção de paz e de alegria.
A ti, que sofreste os meus ideais perversos
Hei-de imortalizar-te nos meus versos
Dizer por eles aos deuses quem tu és.
Esquece os meus desatinos, se puderes
Que eu te bendigo e amo entre as mulheres
E beijo a terra que pisares aos pés!
Manuel Vaz de Carvalho, in Visão Alvânica
Jurámos por amor viver a vida
Jurámos por amor viver a vida
Numa só vida, em comunhão de dois,
À vista do “já quase”, de cumprida
Ao mesmo teto e pão, aos mesmos sóis…
Longa gesta de amor! Entrega de alma
Em comunhão de afetos e desejos,
Horas de angústia, de incerteza e calma
Numa jura de amor, cobrando beijos…
Fomos dobando o tempo que nos foge
Vivendo a vida, o dia-a-dia de hoje,
Aos benignos desígnios do teu Deus…
E se o teu Deus é justo e ordena a vida
Dele fio a graça, se a houver merecida,
Que os meus olhos se apaguem quando os teus!
M. Vaz de Carvalho, In Visão Alvânica
MEUS FILHOS
Eu tive como vós um sonho ardente
E amei com o mesmo amor que vós amais
E acreditei na vida ingenuamente
À luz do mesmo sol que vós fitais.
Voei de céu em céu, meu sonho alado
Não me bastava a vida p’ra viver.
Louvei a boa estrela do meu fado
E a humana ventura de nascer!
Julguei-me um iluminado e fui um crente!
Até que a vida, impiedosamente
Me revelou o rosto corrompido.
E então compreendi, mudo de espanto
Como era ingénuo e vão meu pobre canto
Que nem o próprio Deus tinha entendido!
Manuel Vaz de Carvalho, In Visão Alvânica
CANTATA DOS CUCOS
Moro na Timpeira, Alto das Cruzes. É o paraíso das aves que ali vivem e nidificam. E é tal a garrulice que o meu neto ergueu protesto por não dormir e a minha neta sugeriu “ o avô podia fazer uma canção da mata dos passarinhos”.
E escrevi a cantata (que nunca cantaram...).
Ainda mal acende o dia
A luzir por entre a mata
Começa a cacofonia
Entra a tocar a tocata.
O Gaio rompe ao rasgado
O Cuco toca ocarina
A Pêga de mau olhado
Dá risadas, desafina.
O cantaréu Papa-Figos
De vestimenta amarela
Engrola notas e figos
Faz papel de tagarela.
Os Mochos, de olhos noiteiros
Não têm voz nem cantar
Eremitas dos outeiros
Levam a noite a piar.
O Melro, esse assobia
É solista competente
Toca flauta e bateria
Tem prosápias de regente.
O grão-mestre Gavião
A espionar lá do alto
Picador de profissão
Põe a malta em sobressalto.
O resto da passarada
Que não leva aqui menção
Entra na algaraviada
De pandeiro ou rabecão!
E nesta alegre jornada
De sol a sol a varrer
Mesa posta, vida airada
Esta vida foi-nos dada
Deus é grande - é só viver!
M. Vaz de Carvalho, In Visão Alvânica
Os rouxinóis
Cerva, ponte de Alvite
Os rouxinóis da ribeira
Levam a noite a cantar
Dormem sesta a tarde inteira
E a noite a chilrear.
Cantam longe dos seus ninhos
Onde têm seus amores
Para iludir os caminhos
Da praga dos caçadores.
Oiço-os da minha janela
Na sua voz tilintada
Rouxinóis de vida bela
Rouxinóis da vida airada!
Vidas curtas e singelas
Guardadas em bom segredo
Não sei se a voz é das estrelas
Ou trovas do arvoredo.
Rouxinóis, a vida é bela
Rouxinóis do salgueiral
Quem me dera a vossa estrela
E a vossa voz de cristal!
M.Vaz de Carvalho in Visão Alvânica
Transfiguração
Meu telheiro de loja e de sobrado
Com hidrângeas e ulmos em redor
Foi todo o meu império encantado
Onde vivi o meu primeiro amor.
Ali rodaram sóis, dobraram eras,
De remansoso e longo acontecer
Na sedução de outonos, primaveras
E a ditosa surpresa de viver!
E assim me fui a vida desdobando
No descuido do tempo, perpetuando
O sonho maravilhoso que vivi...
E foi um encantamento longo e tanto
Que só na decadência do meu canto
Dei conta que sonhando, envelheci!
Manuel Vaz de Carvalho in Poemas do Solstício
O Pelourinho
O Pelourinho, que deu nome ao largo onde atualmente se encontra (e também o meu posto de trabalho), foi concedido, cerca de 1282, por real decreto d’ El rei Dom Dinis.
Aí permaneceu ereto durante séculos, como símbolo da autonomia do burgo na Real Vila.
Porém (...), o monumento foi desterrado para as entulheiras da Câmara Municipal no dia 15 de Julho de 1875, por iniciativa do então edil Francisco Vitorino Vaz de Carvalho (da Timpeira, claro, e mais evidentemente, avô do autor). (...)
O vetusto Pelourinho
Com seu nobre pergaminho
Já no limite da idade,
Foi no século passado
Apeado e desterrado
P’ras escombreiras da cidade.
Com estatuto de “Excelência”
Símbolo da independência
Do velho burgo real,
Tinha as inconveniências
De tresandar as fedências
Do frago do jumental.
Por isso a Edilidade
Ciosa da sanidade
Mais que de velhos orgulhos,
Fez desterrar o topeço
Mono inútil, sem apreço
P’ro “Pantheon” dos entulhos.
Foi um tal Vaz de Carvalho
Que embirrando com o espantalho
Lhe ditou a extradição.
Mas descontentou a malta
Que protestou pela falta
Do venerando ancião!
Rodaram mais de cem anos
A sofrer tratos profanos
Até que nobres edis,
Num ato justo e carinho
Restituíram o Pelourinho
Aos seus direitos civis!
Agora é vê-lo aprumado
De granito escanhoado
A condizer com a Sé!
Fidalgo rececionista
Ali recebe o turista
Dizendo “Entre quem é!”
Só gente sem sentimento
Quer impor o monumento
À extradição do país.
Mas na cidade ainda há gente
Mui fidalga e competente:
Parabéns, Senhores Edis!
M. Vaz de Carvalho in Visão Alvânica
Carvalhos & Companhia
Ao famoso e bravo herói José de Carvalho Araújo
Carvalho foste e eu Carvalho sou.
E de bom cerne e muito leais vizinhos.
Mas de nada nos serviram os pergaminhos
Que em brônzea esfinge a Pátria homologou.
Tu, caíste ao ataque, alçaste à Glória
Nome que a fama ecoou depois.
Mas dos sem-nome não falou a história
E à vitória não bastam só heróis.
Mais temerário do que ao mar afeito,
Não lograste vitória nem proveito
Ao atirares com a jangada ao fundo!
Pois também eu, no meu tugúrio torvo
Esbanjei a vida a bem do “Nobre Povo”
Por crédito a pagar... no outro mundo!
M. Vaz de Carvalho, in Visão Alvânica
Última mensagem do cão
Chamava-se Sinai. Era um pura raça Breton. Peludo, dócil e humano. Gostava de música. Quando eu tocava guitarra, vinha a correr, deitava-se a meus pés, extasiado!
Perdoa ter morrido assim tão cedo.
Eu bem vi os teus olhos marejados
A fitarem os meus embaciados
No infinito sem luz, já frio e quedo...
Mas não podia mais, era um tormento
No meu tão débil corpo aquela ferida
A devorar dia a dia a minha vida.
E cedi, resignado, ao sofrimento!
Adeus, dono fiel, faz por esquecer
O teu cão que choraste ao ver morrer
E humilde te seguiu a vida inteira...
Enterra-me no chão do teu caminho
Onde eu oiça os teus passos, do meu ninho
Ali, na terra amiga da figueira...
M.Vaz de Carvalho. In Poemas do Solstício
Império da pedra
Vamos até Lamas D’Olo a pé!
A serra é minha, assim a amo e canto!
Em seus perfis de luta e desespero
Moro deuses proscritos no desterro
Das grandes solidões de eterno encanto!
E há esfinges misteriosas de granito
De caídos heróis, faunos bravios
Nos torturados píncaros esguios
Em ascese de espaço e de infinito!
Noites de assombro e luta e sobressaltos
E virgens nostalgias de planaltos
Onde sonhando, me liberto e esqueço...
E há prados de seda, sol esplandente
Onde a minha alma ascética, de crente,
Se entrega a voos livres, sem regresso!...
M. Vaz de Carvalho in Poemas do Solstício
Documentário | Manuel Vaz de Carvalho: Percursos
Visionamento do documentário, seguido de debate. Partilha de leituras de poemas de MVC selecionados pelos alunos, nomeadamente o poema autobiográfico "O cisne", em diálogo com a dança e com a música: visionamento da parte final do bailado "A morte do cisne", de Saint-Saens.
Sessões orientadas pelo professor-escritor António Fortuna. Participação de Leonor Vaz de Carvalho, filha do escritor.
Clube de Leitura
Espaço de encontro e interação, onde os jovens podem trocam ideias e desenvolver o sentido crítico, compartilhando as suas experiências e descobertas de leitura.