[Edições Esgotadas, 2025]
ÁRVORE ARTERIAL
I
ÁRVORE ARTERIAL
há uma árvore arterial em cada momento
vagueiam humores dentro
como gente interligada
ar de treva às vezes, outras estrela sub-reptícia
pode até ser um sorriso lascando concepções ao mundo
, uma árvore de nervos e sombra
arterial na comunicação
uma árvore de sangue aguado ou transparente
[ramificação visual a anos-luz]
árvore arterial por segundos entre sinapses
em cada vazio-de-estar ou protopoema
II
COÁGULO
onde a palavra estanca
[vórtice de energia]
a palavra erradamente achada condigna
pois a sua energia
não se coaduna com pressupostos morais
o onde é a origem da transacção ―
a palavra estanca na dúvida
esguicha vida folho a folho na assumpção
de uma presunçosa ignorância
onde a palavra estanca
a boca
funcionando a boca como clausura de carne mastigante
assuntos cheios de osso e perfume
― dizer é estancar, magoar a veia no pensamento
tido por coágulo; vivemos todos os dias todos
com um borrão de tinta nos olhos, estancamos
e às vezes não reparamos no animal selvagem
que é o poema ali estancado
movimento de energia que é corpo e paisagem englobante
fosforescente e mágica cadência intermitente
peixe fugidio no sangue dentro do corpo
salpicando faiscas no fazer
com energia luzente por escrever, por inscrever
queimada a palavra e bebida a cinza
seguiremos a vida pela margem do silêncio
e então veremos ― a vida a poesia a vida
quando o olhar estanca
SEMENTE
um pé nu no frio limpo da varanda
mármore-mundi, cinzelado gesto ao piano
no que de quente se lembra a alma
as aragens ou correntes que o sangue diz e esquece
a cada momento mais pobre no salão oco
onde sementes caladas jamais germinarão
agudos silêncios de verde depois ― textura muda
de dor cravada nas frinchas do real
tom a tom no baque ridículo do coração
cambaleando e derivando ainda mais à deriva
o que é? para dentro o que de dentro se avoluma
em semente ― o que de fora sobra de casca grossa
de ver ou de haver em excesso nos olhos e nos livros
som fechado chamando vislumbres lexicais da morte
VÍRUS
acordar com um favo de lírios entre sal grosso e arruda ―
sacudida a levedura do sono
espraio os membros, lanço-os na confusão do espaço
. banho-me no som, confundo-me com o mar
a música entra-me em cada poro como que pela primeira vez
acordar assim a rondar a contínua boca do mundo
como mão cheia de piedade
as minhas entranhas quentes no núcleo da cama
rodeada de ouvidos predadores
espraio os membros ainda deitado
movem-se viscosos líquidos dentro, pressinto
hesitações de maré na alma
e a dor dos músculos funciona como um leme num barco
tanta água emocional, tantos aromas a esbofetearem
certezas a um caminho ―
daqui para o mundo um sopro que desloque continentes
abrace todas as almas de sal em cada raiz do horizonte
seja o amor um vírus deixado por herança
transformando em boa luz o que de mal tenha
em ingenuidade a humanidade
ARAME
farpados sonhos no crivo duma boca de barro
ensanguentadas palavras do que sobeja da mãe
um arame longo ou o fio encarnado de ariadne
― o caminho cardíaco faz-se a ludibriar a flauta
um dia outro dia ainda aqui, orfeu rasgou o mapa
, escalas de céu estragado na vergonha das pautas
o que resta de mãe e se ata com um lírio branco
dor deslocada por gestação virginal das lágrimas
amnésia do labirinto onírico na senda dos tempos
: a profundidade do poço como língua perfurante
POIESIS
em que verso surge morto o rouxinol diuturno
sem que uma manhã de sal suplante úlceras ao espanto?
falemos então da fome alveolar
que febrilmente vai assolando o espírito
embrenhado em perfumes no silvado
à luz da culpa
do amplexo de vómito no ocre da névoa
ou falemos do corte por onde brotam erradas
as asas contra a manhã
ou calemo-nos
uma vez metidos irremediavelmente
com a petrificação do sangue
escorchados favos de caminhos paralelos
[mel de ânsia]
versos, linhas sonoras do monólogo
linhas daninhas como pautas desirmanadas
de perguntar às flores campestres da memória
luz e corpo em tronco de respirar
de conjugar ressonâncias de outros corpos num corpo
seivas a ladear pensamentos por um desejo de vazio
mênstruo de alma a inquietar canteiros de sombras
em que verso atear o eremitério de estrelas
sem que inadvertidamente
um líquido venenoso irrompa da noite?
VOZ
voz ― quando o som se transforma em corpo
pelo timbre da água emocional na garganta
, um peito rectilíneo desenhado por código morse
todos os dedos da mão mentindo convexamente
coisa de eco por ovo ou verdade escamoteada
: o ouvido cinge a voz dum corpo estranho
que estranhando a si próprio abre-se inteiro
por descobrir-se polimorfo
como a mente na estrada do barulho
aquilo que se fizer de estrutura em toque
de levantar o mínimo átomo de uma adjudicação
aquilo que se fizer da memória nos sonhos
de apagar o cadastro mímico à alma
aquilo que se fizer de barulho ou imaginação musculada
de irrigar vénulas ao medo cardíaco feito coração
voz ― a medusa ensaiando protótipos de sangue
da presença opulenta de ditongos em música ou
vício mordente de palavras que no corpo se contorcem
FLAMA
, arde o canibalismo de remoer os mortos ― combustível
forte cheiro a plantas podres num lado inverso do espelho
redemoinho de antemanhã contranatura para distribuir os
flashes libidinais, a fina dor extenuada da centelha ritmada
dança de contrastes sobre permanência | jogo-da-cadeira
méxico invertido de jogar à cabeceira, mas a aleijar muito
e o animal passeia-se no esdrúxulo das noites incendiadas
desfolhadas noites tatuadas p'lo incenso roubado à infância
o tanto que o adulto desaprendeu nas algibeiras do sonho
passeia-se esse animal órfão contando e recontando o mal
e também o sal de cada palavra enganada de folha mineral
espanta-se repetidamente no bruxedo roxo de estar vivo
pensar ou falar de mortos subitamente precipitados vivos
em sons e movimentos soletrados pelo corpo junto à flama
complicado canibalismo quase musical de gestos e solidão
tudo confundido ou atabalhoadamente explicado na dança
que perde o fôlego, levando à sísmica arritmia da centelha
deixando entrever pétalas de decadência rumo à extinção
BEIJO
e de repente beijar tem o sabor do azul marinho
uma concha translúcida
com um pequeno veio de sal cantante
, fina flor de mosto naufragada na saliva bífida da angústia
um querer de vileza quase pura de desejo
quantos veludos do vermelho haverá nas línguas?
quantos rostos sobrepostos no beijo?
rebentam barcos feridos no mofo das perguntas
……………………………………………...................................
porque o reino azul do sonho é escrito com o sangue
de repetidos dias,
com o peso de ornamentadas portas da noite
por sua vez carregada de aromas enigmáticos
pela misteriosa fugacidade do nome
identidade imiscuída em múltiplos espelhos navegantes
e de repente respirar
abrupto respirar à tona de querer estar vivo
para beber das últimas estrelas toda a água possível
SOPORÍFERO
prestes a dormir o fundo roxo inquieto
algo de errado se chama alma
[virtude necromante do vidro negro]
o que se olha por dentro em reflexo líquido
já não é planta nem animal
antes um vírus onírico
lento pousar de cabeça no tosco ninho dos mitos
a febre é algo que se dá às crianças
algo errado na cópula dos mundos e dimensões
«toma este bago líquido de pesadelo
bola de cristal ou pérfida lágrima-de-cheiro
escolherás um dia»
― algo de errado, consciência
dita flor de solstício
sem haver um meridiano moral onde um estilete
pudesse assinalar grumos vegetativos, embrionários
apenas uma gota roxa, bago de pesadelo
pelo qual o ouvido floresce além da orelha
nada sabendo sobre moradas do inferno
florescendo oportunamente
como infinito aturdimento pela sua existência
talvez um prenunciado búzio de carne
precipitando-se em cenários da verdade-ampola
semente dos sonhos [fundo roxo inquieto]
fata morgana crepuscular da ingenuidade
III
FLECHA
de largar a flecha dos dedos no breve raio de loucura
ferindo às cegas, a amar
o globo de fogo
como lágrima-de-cheiro pontiaguda
de conhecer a lama por texto
a cimentar reflexos comunicantes
a amar como pássaro desirmanado de marionetas
na biblioteca ― era uma vez a nudez
apresentada a retórica envergonhada da cartilha
folículos perversos do casulo negro
intrometido com injúrias musculares
: que álcool apurado faz evoluir
a fúria transumante do rosto?
fugacidade de identidade? porque evolução?
as rectas paralelas do ser em tracejado vivo
para uma tenra exposição epistolar
de tendões amorfos ilusoriamente aquecidos
pela literatura prescrita,
as facciosas rectas do ser paralelo a mundos
por explorar ― o sol, o globo de fogo
substituindo o olho cego
oclusão inteira como palavra engasgada na garganta
o diário escrito dentro do corpo
com silêncios de sangue a descoberto;
e o que levar do sono para o sonho?
que prontidão alveolar antever nos outros
entrando e saindo da nova pele?
de perder altitude
de trair a velocidade de análise [quimeras e ensaios]
o diário a latejar dentro do corpo
de ferir o voo às cegas, dos dedos largar louco
a flecha
LOSANGO
respirar entre fantoches que intentam palavras
ar de sopro estilizado na renúncia, pergunto-me
que imagem cerebral preservar de uma paisagem
se sempre aleija beber o ruidoso sangue da romã?
esperar o tempo [musgo verde] sempre magoando
mãos nas fragas ― o manto púrpura da noite viúva
alento rendilhado de canções amarelas sobre o dorso
ângulos do meu losango, de estar frio entre fantoches
gruta de pesadelos cheia de visco e ruído ― vitríolo
enchendo guloso frascos nocturnos para a especiação
entrar escuro confundindo todos os gritos com o meu
desenhar noutros rostos qualquer rosto que não o meu
CÍRIO
sonho como ondulam os mantos do fogo no coração
«é uma chama»
coisa de texto por abrir no peito
, dançam dedos em volta do calor ―
há uma deiscência de amor empobrecido na fuga
coisa de viajante interior em fúria com a intimidade
com aquilo que fica justo mas desnecessário
uma existência como reminiscência de perda
sonho como são curvos estes mantos do fogo
curvos como a beleza repentina do susto de estar vivo
e escrevem epístolas imorais à decência dos órgãos
trabalham verdadeiramente o fruto da paixão
[seara quente] a vida mantida a fogo
que viver é arder cada dia escuro
com nada escrito a limpo no planalto do peito
e dói-me o coração como brasa doente
― que futuro terá este fruto maduro?
JARRO
, assim tivéssemos colhido os folículos do ventre
como gestos de rua ou mesmo orvalho das pessoas
o de dentro sobeja exagerado no papel e nas mãos
um jarro complicado de cristal e névoa assustadora
estremecimentos, palpitações de pele estrangeira
desatar a correr para os lábios gordos duma boca
assim caíssemos na tarde sobre papéis amarrotados
a saliva desenhada nas paredes fumadas duma boca
― corpo de nadas e de águas vazias já de estrelas
soubéssemos assim o real engano, isto tudo em cor
com células caminhantes em rodapés da miragem e
caindo em espiral na construção anónima do cristal
. vês no jarro a garganta do universo? os magmas,
lavas dissimuladas dum mar organicamente fatal?
CABELO
fio a fio linha a linha traço a traço
chuva de rostos na retina complacente
que denúncia significará a variação
de temperatura da manhã para a tarde?
que significam critérios de corpo
no soluçar medicinal do cérebro?
e fio a fio se conta o dia entre os dias
à noite riscado da cabeça aos pés
desfile de manequins perdulários
suficientemente humanos para o erro e sono
linha a linha o que chove meu deus
e a fonte dentro dos olhos prestes a secar
ossos enterrados no chão, humanas insígnias
desajeitadas ― manequins perdulários
traço a traço nada de nada a constatar
perigoso nada de sobrepeso exagerado
e mesmo depois da esotérica viagem
interessarão estes ossos enterrados no chão?
e ver-te na neblina outrora quiçá amor
planície desejada verde mas enfeitada
com cadavéricos galhos secos e queimados
negros negros arabescos confusos na alma
[cabelo] e ver-te ainda mesmo que difusa
no sonho azedado do concreto ou poeira
que brilhante se confunde com água emocional
ver-te ainda assim na contínua chuva
dos teus cabelos negros sobre a realidade
LIVRO
às vezes quase animal outras quase planta
no domínio do quase um reino sem fim
o livro ― uma presença de lugar inteiro
e como que se aproxima por pseudópodes
à cata dum pulso ou olhar por onde entrar
― de orvalho em orvalho o músculo do livro
diz «lê-me» e não «come-me» ou «bebe-me»
e num instante surgem pessoas desaparecidas
chaves, espectros luminescentes, algum oásis
elixir do entorpecimento revitalizante : o livro
oferece um lápis mágico a agir no pensamento
genuíno ovo filosofal rumo à música das esferas
ÁLCOOL
chegou o corvo
olhar vidrado à janela
grito mudo ao invés de música
o pé nu a chorar sangue entre os juncos
chegou o corvo de nervos umbilicais
negrume sobre a mentira de cristal
uma cama de espinhos em cada asa de amargura
perco as mãos em tanta roupa ferida
memórias estilhaçantes na parede
o corvo vê-se corpo no copo
vejo-me de súbito a matar
o pecado no líquido ascendente do aborrecimento
o corvo vê-se no copo
e eu vejo-me a matá-lo
a afogá-lo entre as pedras de gelo na bebida
a afogá-lo numa ebriez fervida de impaciência
o poliedro adensa-se na ferida em espiral
grito mudo a encarcerar nas páginas dalgum livro
o corvo
vejo-me a matá-lo, a afogá-lo
forasteiro na floresta traída da alma
entre a chuva de néon que alimenta
a farsa no álcool
PAREDE
e a sombra sobra na parede
por ramificação do sangue
num azul respirável
tornando tóxica a possibilidade
de verter medo às palavras
no anseio de falar ―
a silhueta cresce medonhamente
na comparação de mãos fictícias
ao redor das de carne que de dor
cintilam no trabalho
, tudo se cinge a uma espera
como pele tardia do tempo engolido
perversamente engolido por
indefinição existencial
tudo se mistura promiscuamente
na sombra sufocante que cresce
da parede
CÁLICE
gomo a gomo pela língua
uma nuvem gerada nos lábios
― diz-me, porque sangram
os lilases na conversa?
apenas queria escrever-me na tua pele
sílabas de vento, nada de permanente
paixão só dos dedos e de olhar uma luz
como quem se despede do crepúsculo
: vazio-de-estar o tempo.
as páginas. o tempo. nada.
que luz tem a fúria do pão?
o tempo, as páginas, o tempo
de esmurrar os lábios
de sangrá-los
em silvados vespertinos da solidão
angústia de veludos magoados
......................…………………………..
― onde a renúncia dos ciclos?
como calar o sangue? diz-me,
o que farei agora a este cálice?
IV
FRUTO
ordem de fruto, como se frutificar
estabelecesse um reduto placentário de justificação
novos significados da chuva ―
lenta conversa de pingos alheios ao pensamento
o linho enganado de outros tempos aflora de novo
no manto impróprio da noite
cantando contrários da seda em canaviais sombrios
da idade adulta
a espera é um ninho de tâmaras perigosas
metidas com os fungos;
as mãos apalpam a noite violeta
que engorda na ampola renegada aos olhos
esferas brilhantes entre a chuva felina confessada
aos telhados
um futuro nada complacente ―
nunca sangue o líquido escuro da noite
nem promessa nem teorema a esperar
resta somente o bafejar contra o vidro gorduroso
namorar a sujidade fecundadora da circunstância
e mesmo assim recomeçará a ilusão
graças ao ovo estranho gerado na dobra de papel
rente ao sangue
a perigosidade é de estar vivo, ordem de fruto
― sempre a possibilidade de descer
a um qualquer outro reduto desconhecido
NOME
memória dum nome esse som
ainda assim sem que nomeie
nada nem ninguém no plano
mas tutelarmente acendendo
arestas abandonadas ao gesto
que o som abre fissuras roxas
e através delas a pele respira
confundindo colagens tácteis
órgãos uivando de frio e medo
e os membros já desordenados
o som articula o espasmo-de-luz
eco ou um arco de fuga contínua
a vibração enevoada dum passado
ou múltiplas sombras de decalque
o que há de tensão azul nesse nome
DESERTO
desenho na areia caminhando como se escrevesse
o deserto que há em mim ―
depois do aflito azul efervescente
para loucura amnésica dos pulmões
depois da azáfama acinzentada
de mordomias civis e burocráticas
encontro-me agora com o perfil ósseo
da minha sede em mármore
, ou tenso branco expandindo mentalmente
da água e dos textos, do mar ―
julgo que me cresce no peito uma rosa-dos-ventos
pequenina como o mundo, de pétalas cárneas
aventuras do corpo | segredos com outros
na cinza hodierna
o corpo ― trevo de ânsia ensimesmado
corpo verde crescente
sobre a maré silente do horizonte
desenho-me sonhando imobilidade
um perfil nu abandonado ao sol e ao vento
CHÃO
demoro-me na magia dizedora das coisas ―
procuro nela o chão dançante
o inominável país do amanhã
, um chão que a trémula anémona de lume
segreda aos meus ouvidos e à minha pele
dando uma superfície iridescente
ao meu canto caminhante
. o barro conversa com a pedra húmida
e o resultado é um musgo humano
narrativa efémera da poeira de estrelas
in extremis na desordem da noite
cantar é perder sangue como areia entre as mãos
as raízes escrevem fundo o desalento no peito
, porque os mortos são o chão dos vivos
MÁSCARA
as mãos tectónicas entrecruzadas sobre o rosto ―
a máscara mascara profundas impressões do duplo
argênteo sonho real ou antes pesadelo
moeda do sol doente de fundo onírico
, ir até ao mosto róseo de alguma veleidade
e encontrar entre tecidos as vísceras de cristal
como constelação orgânica vital ―
as mãos escavam subterfúgios ao rosto
a máscara espelha como quartzo ferido de luz
será o rosto o caminho de casa?
poderá a máscara irradiar poemas como fio-de-sangue
as muitas cartas escritas ao sol e à lua?
a linha-de-vida é o fio-de-sangue
o quartzo junto ao coração, poema
ROCHEDO
sempre sujo falar da linhagem selvagem da natureza
uma incógnita escuridão enevoando o pensamento
perante as inalienáveis curvas fecundadoras de vida
, em vez da pureza dos rochedos tenho palavras na boca
de enganar sangue vivo o que perder em oportunidade
de abarcar ignorância em cada soluçante sílaba do tempo
o tédio é a novíssima água enganadora de mitos e seivas
tão pesada a existência se pesarosamente pensada a sério
por isso ajoelho-me e planto uma mão no peito da terra
sinto o surdo pulsar do núcleo longínquo como coração
dispo-me caminhando pelo sol até ao mais alto rochedo
NÁUSEA
que rosto o meu depois da rente revoada de pássaros
que voo vertical, quase de condenar uma pobre alma
depois da revoada na mente, que rosto transfigurado
oferecer ao mundo? talvez o que serei em transeunte
nas esquinas dobradas em luz, o que sou no momento
atendido o corpo por ebulição atroz de uma periferia
com os cingidos objectos da mundanidade quotidiana
dos ciclos entre ciclos sobre ciclos, escada em caracol
onde a nuvem de pássaros murmura desdenhosa alguns
atalhos para voos d'alma ― receio não compreender
tudo isto em aroma e cor adentro os sentidos em teia
tenso elixir de iodo e enxofre já babugem no ouvido
quando com sapiência as árvores riem mudamente e
eu no meu ciclo entre ciclos retrabalhando um rosto
QUARENTENA
apartados loucos numa redoma cíclica de contrição
― o que é sangue? o que é o vinho? o que é o pão?
METÁFORA
qualquer coisa de fruto gordo entre a fuga e a linha-de-vida
de camada em camada até ao cerne da imaginação
qualquer coisa de atender medos sob capa frágil
por anseio interno ― entre a mesoderme e a agulha cárnea
a forma curva rodopiando nas mãos entre realidades
entre sangues diferentes, diversos
. já tão longe do pericarpo até onde ir com
a intromissão de entes escorregadios na luz?
o enleio oval da língua no fruto [qualquer coisa]
a explodir de espanto numa superfície afectiva ―
que picotado azul sobra do álcool incendiário da filosofia?
para quê redimensionar o inferno depois de dante e blake?
que ferida abrirá portas coronárias ao diário do desolado?
[ardem os olhos] quantas gemas de sol gastas na metáfora?
entre sangues diferentes, diversos
a forma curva rodopiando nas mãos entre realidades
por anseio interno ― entre a mesoderme e a agulha cárnea
qualquer coisa de atender medos sob capa frágil
de camada em camada até ao cerne da imaginação
qualquer coisa de fruto gordo entre a fuga e a linha-de-vida
V
CARTA
olhos viúvos do mar ainda morrendo sobre a cama
como que aprendendo com nódulos venais do peito
redemoinho coronário de foz perdida entre duplos
cujo vórtice é transfusão do medo convulso para um
cancioneiro de veias rasgadas na púrpura desavinda
glória de mapas do submundo com música de cristal
escrevo-te escrevendo-me por dentro sob lâminas as
linhas da memória de nervuras duma árvore morta
que reverdece e orvalha ante a poalha branca da lua
escrevo-te deitado com os olhos viúvos duma ideia
esperando os arcos de lume no barco da insónia ―
vislumbrar o manto que me espera despindo as mãos
aquecendo roçagares da montanha no peito florido
pronto para entrar no jardim de violinos cortantes
jardim de espelhos e espectros arredados do prisma
as cores não são nomeáveis na gradação nem os sons
contrastes aos milhares, mil faces escavadas em mim
hora de trazer o derradeiro fogo | intocável relíquia
que o medo traz em velocidade o cavalo pelos trilhos
a música de cristal não tem nada de belo | tudo de falso
artefacto de escrita a apodrecer sangues na linguagem
o compasso a compasso é dentro cheio de humores e linfa
escrevo-te escrevendo-me dolorosamente por dentro
porque afinal não há jardim nem violinos nem espelhos
apenas os muitos espectros da solidão povoando as veias
porque as artérias secaram com o choro dos querubins
olhos viúvos do mar morrendo continuamente na cabeça
morrendo continuamente na carta ainda sem remetente
desordenadas linhas que desenham e apagam um rosto
como as ondas numa praia no desalinho vocal das marés
débil cancioneiro de veias rasgadas na púrpura desavinda
aqui só, sem rosto nem nome, escrevendo na pele assino
CORPO
luz tonal ―
o corpo
entre fissuras
traz viva
a música
das esferas,
um recanto
de fogachos
por onde a agulha
deixa o canto
perfurar-se
de encanto
na vírgula
do horizonte.
os pulmões
escrevem
com oxigénio
ritmo-sísmico
deixam fluir
o último azul
do céu como
rápida memória.
no que de químico
exala a escrita
floresce a ideia
de ser
de ferir a biologia
enquanto energia.
e o movimento
é o sangue,
sangue vivo
escrevente
no vazio,
entenda-se:
tonal e
luminoso
enquanto perda
constante ―
dele o eflúvio
pensamento
flor desarmada
dum intento
dele a fisicalidade
do movimento.
enquanto perda
constante
a vida é possível
enquanto dúvida
sangrando
esquecimento
embrulhado de
comoção numa carta
sem remetente.
manter a estrela
no corpo, faísca
entre a carne
o desenho do gesto
mantido quente.
dente-de-leão
ou pólipo
sussurro descendente
entre clarão
e semente
brisa de sal
intersticial ― a voz
ressoa a mãe
por todo o corpo
entre o bem
entre o mal
vem de longe
o cordão umbilical.
o sol caminha
para os ossos;
que o marfim
é escutado
no outro lado.
as sombras alimentam
os espíritos.
o esqueleto dum sopro
atrapalhado algures
no universo
funciona como compasso
para uma cartografia.
e trabalham
finas agulhas no
gosto lido
nas entrelinhas
da indefinição
existencial ― o que
levar do gosto para
dentro do corpo?
e entenda-se
profundidade ontológica
como fruição em
rendilhado microscópico
: miríade de cintilações
membranares que
por transumância onírica
se transformam
em ornamentados
pórticos, em tácteis
sonhos ou pesadelos.
a vírgula do espanto
assoladora vontade
e dúvida como
insólito instrumento.
interessará a viagem
do pássaro num corpo
cujo o céu é a pele?
esquecendo o pombo
intermitente
no corvo real
para entreter dentro
há que converter
livros em ave
reverter a frase
ler enfim
o voo ―
conversam os espasmos
na fundura do diálogo
entre corpos
carnais ou intangíveis,
medem-se pelo ouvido
efemeramente
medem-se na mescla
caindo sempre na
realidade doente.
a música
salva
a continuidade
dos corpos, faz
estremecer a
fissura
por onde nascem
as palavras ―
o mais puro
murmúrio
é o que valerá
a pena salvar
: som rítmico
cheio de
oxigénio
delicadas palavras
de magro papel
de tão sensível
quase música
e de quase ser
a fissura
legitima a
verdadeira música
entre corpos
que se tocam
também pelo olhar
também pela tensão
do arco imaginativo
a salientar
imprecisões de
cada âmago
reimaginado
plano a plano
em plena deserção.
e falar é
reconfigurar vida
ou morte
descer ao mais
íntimo do organismo
ainda a
organizar-se
confuso e curioso
na fuga que
é viver, descer
para reencontrar-se
absoluto
na dúvida
: indagar
do rio ao mar
a foz das bibliotecas
praia de lençol fino
onde dormir
entre alimentos.
porque a origem
do verbo enquanto
substância viva
começa numa boca
insondável; daí a
aflição dos desígnios
tatuados de civilização
em civilização ―
a garganta é
a derradeira caverna
da humanidade,
acalenta uma gravidez
para o derradeiro
silêncio.
o vento frugal
assiste o ser esperante
permeável a delírios
de narrativas diárias
d'alcova. o corpo
tem muito a aprender
com as árvores; não apenas
a nível estrutural
ou de presença
também a nível endógeno
algo alquimicamente etéreo
como a viagem interior
de apanágio botânico
raiando aparências
nos reflexos da carne.
a experiência enquanto
acto animal sobre as coisas
conserva na sua essência
a ingenuidade inteligente
dum primeiro olhar ―
e há o toque,
movimento primordial
de acção,
exímio acontecimento
de conhecimento
das esferas em translação
soando música como
sangramento preciso,
como leitura de
navegação; o que de cru
em elipse se entende
por órbita oculta de
seres em transgressão.
a borboleta-caveira
paira como ameaça fértil
entre tecidos musculares
causa dor
desconforto febril
redefine limites
a órgãos nobres;
flébil insecto
de consciência
temeroso no incenso
do sonho enquanto
ameaça, ou antes
inevitável selo de
aviso das trevas.
a noite aprimora
a luz escarlate no corpo
para a valsa ritual
de estação em estação;
no seu gume espelhado
vivem as imagens
sobreviventes
de todas as eras ―
a noite é a terra,
o útero do mundo.
contudo, o que se
ouve à partida
é a água cantante
a ecoar num
recipiente; a espiral
do pensamento
é um puzzle em
movimento. mas
ferir a verdade
falando a folhear
águas da mente
não cabe na dulcificada
forma de comunicação
entre pares, com todos
os maneirismos fúteis,
apesar de constituir
uma boa fonte
de vurmo útil.
a utilidade
é o embaraço
crepitante
do cérebro,
a cabeça pesa
no alento dos
membros em
assincronia.
que barco oco
de medusas
grávidas!
frases-serpentes
atrapalham a
biologia necessária
ao equilíbrio
caminhante das
células. tudo fora do
silêncio fecundador
e mesmo assim
o tambor coronário
precipita esguichante
vida nas situações
inesperadas ― tem a ver
com um feixe de energia
que tem um timbre
metamórfico. as
metamorfoses musicais
do que se sente
enriquecem outras
figurações mentais
e são sangue espiritual
para o desenho
dos gestos,
movimento cru
da poesia. a ideia
confunde o género
e perde importância
pela efemeridade
do ser pensante.
o traço veemente
da ideia
interessa no
sentido inevitável
da vida enquanto
acto natural
de sensibilidade
química para o
social, ainda que
abstracta essa
intenção; o ímpeto
individual vem do
feixe embrionário
da unidade
nascida ímpar e
a nível prático
desamparada ―
daí a noção de corpo
no que de si terá
a sua essência
mais absoluta. querer
não é crer, ser não
implica ter e ver
não tem ainda
a cegueira pura
necessária. erros
da ideia em si
idealizada. entre
névoa e nuvem
no corpo as mãos
reconfiguram
um véu no
espaço interior
dum vagão cárneo,
reconfiguram ecos
do cordão umbilical;
a música tende para
um líquido amniótico,
ambiência para uma
saliência à qual
as mãos se agarram.
acutilante dedilhar
de cristal sobreposto
a cartas suadas
do céu hialino ―
o corpo ama
de perder-se na
profundidade da seda
interna; de amordaçar
o grito para maior prazer
o corpo ama, derrama
engana-se inocente
de doer ―
a vaga do arterial som
redesenha o horizonte
estremece paradigmas
nos alvéolos
da contradição
corpórea. a ironia
manifesta-se pelo
frio negro de gotas
acendendo um
sistema complexo
de neurotransmissores
ou a lua contrapondo-se;
a ironia, vaga
onde sombras ombreiam
os estigmas
vaga capciosa
um casulo estranho
que se não crescer
será expelido
pela boca ― tradição
oral [mitos e bruxedos]
no lajedo reluzem
escaravelhos junto
à fogueira, o medo ―
versão lendária
da aversão ao real
por oração
: levai abantesmas
a cintura violeta
do monte azul
casa da borboleta-caveira
levai por ora
engordai o cereal
da longa noite
o cereal escuro
d'alquímicas especiarias
e não esqueçais
a dama do lago
cuja coroa é a lua cheia
pois ela espelhará
o que de melhor tereis
noutro mundo.
tossem luz as estrelas
ao luar
perante a insistência
perpetuante do
tambor coronário,
uma dança infinita
do espírito na
clareira da floresta.
uma dormência
invade do peito
às pernas o corpo
pronto para a viagem
à ilha dos pássaros
de mil cânticos.
o moinho do sono
a farinha do sonho
a teia interna
que o cérebro já
não é para pensar
vê-se reduzido a
um fruto morto
ilusão finda tida
por planeta apagado.
convém verificar amiúde
os filtros da cor biónica
o modo como a existência
sangra, partindo dum
qualquer pedaço de
realidade ― um pé
no fio de música
que ilumina o rosto
[camélias e rododendros]
mãos cheias, sorte
do astro seco nas pregas
da pele; ouvido louco
entre escamas de criaturas
vindas das fábulas
com vento mágico
do azul celeste roubado
ao nascer do sol.
aurora das entradas
mundanas
do sopro desprovido
de literatura,
sucedâneo e perene
entorpecer de
ferramentas cárneas
afectas ao texto ―
narrativa-corpo do
vento-dentro [ventre]
não-corpo do que é feito
se não-dito : coreografia
violenta do que é
lido minuto a minuto
ao ritmo de arcos
semilunares e
feixes híbridos tidos
por menores aos
propósitos da biologia.
começar por uma
pétala, ainda que
indistinta, uma
pétala vermelha
oferecida à música
o começo começado
pedra no fundo do corpo
como poço sem fundo
questão de questionar-se
corpo a corpo com
a identidade espraiada
num sonho aberto
por sugestão da
precariedade mental
entre plataformas
inomináveis. a
pétala vermelha
virá do nada?
estranho barco
na viagem da língua
insólita presença
na disposição do
tabuleiro ― o nada
é o jogo?
da apresentação submersa
que é o ser ensaiando
fragilidades ao nevoeiro
fervilhante e denso,
da apresentação escusada
o ser é e o nada se lhe
acrescenta grávido
de gritantes vazios ocos
: a pétala vermelha
é a língua?
uma nuvem de moscas
por cabeça; assim se
pensa o mundo
como emaranhado negro
por tangente no
hemisfério do próprio
pensamento-caminhada
reduto desconhecido
de ter qualquer água
demais valiosa para
uma sede implacável
ou seja, matar o peixe
na própria boca.
que boca foi pátria?
alguma vez? muito
menos a língua.
o sabor a fonte
é o risco ―
a fonte da permanência
[promíscuo visco]
para quê gritar
dentro do diário?
que terra implantar
ainda longe da
derradeira terra
como única
terra a interessar?
no fim
nenhum interesse
talvez, ou
genuíno baldio
merecido esquecimento
depois das dores, depois
da confusão de músculos
[esforço em progressão]
ou movimento-brasa
em confissão ― depois
do infernal depois cárneo
dito e escutado
infinitas vezes. alguma vez
em alguma dimensão
o texto enclausurado
como semente.
o cheiro a terra
molhada, chovida de
desencanto camarário
cheiro que se adensa
nos ossos
estremecendo todo
o corpo. o cheiro
é um buraco de luz
onde as tessituras
de aromas
fazem o que fazem
um vitral de cores
intangíveis
com a mobilidade
dum sonho.
a chuva repercutida
no crânio
memória física da acção
ou fragrância de gestos
e conversas,
enfim ― há um
caminho-luz
a abrir passo a passo
articulação a articulação
o puzzle
de infinita narrativa.
encontrar dentro
todas as pedras
incluindo as mais
minúsculas areias
de incompreensão,
espasmos de
paleta cósmica
no pensar
rodeando a raiz
do lírio.
há-de haver
uma janela onde
receber o pássaro lírico
depois da longa
travessia do deserto.
o leque de cada asa
grande no efeito de
dormir e agarrar
a deserção. e os livros
são pássaros escondidos
no papel ―
ler é chilrear.
a voz leva a pele
a deambular por
prosódias de terra
lama e cinza, a voz
pesa na pele
marchetada de estrelas
silenciosas ― se o som é
apenas vento
sem significados
ódio ou paixão
se o som é vento-dentro ―
então a leveza
perdoa a maldade
da humanidade; a leveza
apaga como borracha
qualquer indício
de existência mais pesada.
a serpente rodeia o fogo
dos pianos ― o espírito
vive no corpo uma escrita
dum cristal doloroso.
a dor com que se ajoelha
grossa boca de moscas possessas
no tendão dos ciclos
mesa estridente de perdões,
contínuos vícios.
a espera destoa, dá vida
à esperança necrosada;
trabalhos penosos da
permanência ― qualquer coisa
de reflexo musical
um qualquer ímpeto
de candura jovial
perante o velho universo.
passa a energia entre bocas
contágio poético do
descanso eufórico da
enfaixada depressão.
uma vela arde
na direcção do bardo
um armário de lágrimas
a boiar num mar gelado ―
que o choro é uma farmácia
tantos choros como antídotos
a venenos. o ouvido movimenta-se
na lonjura cárnea
dum som crepitante no
cerne da alma, coração.
a espada da paixão multiplica-se
em agulhas, antídotos.
então o ouvido não ouve
canta silenciosamente
para o coração ―
o vinho morto no sangue
faz cantar a videira;
a pedra reluz na carne
assim a verdade provisória
das leituras, um real
a fazer corpo
enquanto música.
o toque da mão parte
o que se aparte do
silêncio físico : partindo o som
desvendando
fragmentos ressonantes
dum espírito liquefeito
a refluir por concreção
lírica ― a infância,
um engano cardíaco
que prolonga o mundo;
arrasta-o para o corpo
de corpos entre corpos
submergidos na muita pele.
camada a camada a pele
apresenta-se eufórica
casulo de manchas
personalidade em sombra
numa parede.
o infinito globular da parábola
confundida fábula
passada de boca em boca.
subterfúgio do corpo
o não-sexo
enormemente idealizado
como sexo
no sentido funcional do termo.
o desejo-elixir apartado da arte
raiando aspectos anedóticos
de comparação subsidiária.
inquietude corpórea
cisma na alma como
avanço repentino que
inutilmente esclarece
a gota de água defronte
a fonte.
o suor engana os ciclos da terra
falso cristal do sonho
erro no trabalho do sono.
como e quando acordar
a gárgula?
passaram séculos
no pensamento,
tantos fantasmas
como xenobióticos; e o fígado
extremamente cansado.
à espera do dia translúcido ―
desenho vital de cada
metro cúbico de oxigénio,
contagem de vida.
um grito ― e é em luz
que o estilete diz
alguma coisa de si em
enrodilhada gota
gota prestes a cair
como palavra
gota rendilhada
do tempo
enrolada por convulsão
das ondas na língua.
a viagem faz-se nos
interstícios do som
enquanto corpo.
a viagem é o corpo
que se apresenta,
ingresso real
na conjuntura errante
de múltiplas cavernas;
que falar tem sido
a transformação
de membros em folhas.
o vegetal precipita-se
nas escadarias sombrias
dos bastidores orgânicos.
o vento aguça os cristais
das palavras, o corpo
põe-se em risco
ao imitar situações
de marionetas em sonhos
― grosso ovo do eco
no linguajar dos répteis ―
põe-se em risco
continuamente
sim, este corpo
sobejamente diagnosticado
corpo devoluto
na mínima ressonância
da mínima gotícula
de saliva ― última cortina
[breve soluço entre olhares]
desabrocha como rosa
a canção, da boca trémula
ao generoso ouvido
entre os raios de neve solar
líquido amor em néctar
de dádiva toda. vida
vida gritada
vida miudinha quente
doce e leitoso bafejar
raio solar de entrega
harmoniosa luz
que liga a terra crua
a corpos nus
perdidos no compasso
minuto a minuto
apartados da dança
fissura-luz da cicatriz
― último pano sem cor
fio a fio um olor na distância
cada um em si e muito só
vê escrita a lua no corpo.
a respiração ―
música de sopros
declive vertiginoso
alimentado pela foz
da poesia.
o eixo da dança
é o eu ferido de beleza
mosaico estonteante
de energia que brinca
no universo
a contraluz ― e um dedo
entra no umbigo
ramificando-se em
órgãos menores
estranhos tremeluzentes
ao lado dos outros.
quantos espelhos dentro?
o que olhar?
o que ver de interno
no interior?
a carne dos espelhos
dúvida em angústia
vitríolo preciso
vitríolo cantante
película a película
na memória
dos sonhos esquecidos
um a um ― enleio
duma voz que perfura
que perdura como coito
a braços com
o texto físico
a fugir da pele,
corte lancinante
de violinos
na presença irresoluta
de espectros sonâmbulos,
corte de entrada contagiando
tremores pulmonares
por oposição
ao real escatológico
da mundanidade.
a comoção no pássaro canoro
de cada endereço
da alma a funcionar como
nave-nuvem do começo
começo-viajante das essências
frases químicas dentro
do corpo ― e tudo o que
se toca e não se entende
tem dentro a sua ilha
entre mares orgânicos
da solidão. sobe o gato preto
até à boca, a fuga musical
como felina necessidade
no balançar do gesto pensado.
é preciso cuidar das
flores do estômago ― relações
de vidro azul à escuta
sujo como os outros
flores negras crescendo
em direcção à boca.
e o gato preto
balança e salta sorrateiro
lê os objectos sem lhes tocar.
de pender cresce o coração
na dúvida dos livros entre pão
e bolor fundente
entre gente
vislumbrada do alçapão.
a língua musculada
do outono
amálgama de casulos
imagem presente dum
corpo luzidio
como rio
ou poema-serpente
que se insinua
que se apresenta
rei dum lugar
por incendiar.
toda a cerveja das areias
ainda por beber ―
tudo passa pela
extrema necessidade
e ínclita desmesura
do mais ínfimo tesão
candura fasciculada
todos os nomes
em cada nome
cada nome o nome
sanguíneo e irrepetível
com raízes de carne textual
nome interpelado nas
núpcias das candeias
[risos e fugas]
na deiscência lunar
da adolescência.
a incerteza dum tu
é a certeza dum eu
afundando-se no
líquido mnésico
da existência
na desmesura universal
da escala a sangue frio.
brincadeira dos nomes
romance, brincadeira
dos corpos a serem
corpo encontrado vazio
se só quando procura
um outro com nome
e nome como fraga
onde ter pé e amar
para melhor compreender
a dádiva da solidão ―
o álcool do amor a correr
desvirtuado, sem vergonha
sobre o sexo suado da noite
abreviatura de silêncio
selado com os lábios
corpos extasiados
confundidos com «o corpo».
a que sabe a boca
de se estar vivo?
encontro adentro
defronte do espelho?
falo em vez de língua
confissão célula a célula
membro a membro
o corpo como voz inteira
de dizer palavras químicas
codificadas em silêncio.
a memória dum eu
reflectida em sombras
decalcadas nos músculos.
a memória pertence
aos ouvidos da terra
moída e incompreendida
ouvidos distantes entre a
confessionalidade da identidade.
e o rosto movediço
confunde paisagens
rostos outros
em erosão
o esqueleto cá fora
pelo leite capcioso
das imagens ― uma mão
em bruma de metal
retorcendo as pregas
ao texto visceral ―
a procura da dança
como lâmina trémula
inquebrável na
insolência atroz do riso
enquanto armação orgânica
do desassossego.
desce pairando a planta do pé
no fio doutra pele,
a água do romance
entumesce fábulas
ridículas criaturas que
cantam e rasgam clássicos
― uma miudinha chuva
de saliva cárnea
envergonha uma a uma
as pétalas vermelhas
recolhidas na branquidão
do sono.
os sonhos são como
as cidades do mundo,
impossíveis de habitar
no fundo, subtraída
a ilusão das regras.
um joelho desloca-se
e a pedra em ângulo
acende os órgãos
na tentativa de
auscultação musical
fúria dos padrões pessoais
[fluidos e pensamentos]
fúria líquida que muda
em cor, escala e desenho
o febril mapa-múndi
― isto de sentir o corpo
como que agarrado ao mundo
é escrever o corpo no escuro
ou escrever-se enquanto vida
no escuro; escrever-se vivo
na ignorância e aturdimento
no mais fundo da solidão
até que raie uma luz como
corpo inteiro na surdez
da escuridão ― coisa de pedra
no peito, coisa de pedra
no leito perdida a dimensão
das desmedidas regras a lápis
continuamente magoando
o diário das estações
gritos em túneis viscerais
das fases, dos ciclos de vida
de todos os seres multiplicados
num só escrevente corpo
como resenha de cinza.
pouco conta de tanto olhar
― uma sombra maior e escura
absorve violentamente
luz ao ecossistema
diminuindo o contraste existencial.
o pomar dos casulos está em risco
assim como em risco se pôs o corpo
em cada golada
de oxigénio ritmo-sísmico.
de visível o incómodo
ninho de rochas podres
a enxofrar os espíritos,
trata-se da correnteza
da têmpora no exercício
de mesclar águas proteicas
que se entrecruzam em
enganos de poesia e
cortesia ― corte incisivo
isso sim, claro gume
depois espelho profundo
fundo lugar
de afogamento interpessoal.
dizer-se osseamente
falar por falanges e dedos
o gaguejar das mãos
depostas na boca
que já se perdeu
boca apagada dum
rosto difuso na esperança
face à decadência
da memória ― há que
apontar halos de verdura
regar as montanhas mágicas
com poemas rasteiros
do sangue
comedidos por ovalidade
do som-sangue transcorrido.
fica o barulho urbano
na ebriez das artérias
a quente na leitura e
na subjugação das cartilagens
na falha do jogo.
manso cérebro
preso no crânio
de subir
armadilhas de bezoar
entoação da digestão
no pensamento
encontro duro no
corredor ósseo
marfim perfumado
pintassilgo na gaiola
[esvoaçar apertado]
encontro duro no
jardim de quartzo
com o bonsai a
subverter seus ramos
contando uma estória
globular ― quem chama
a si a pálida incerteza
do seu sentido?
pode chamar de seu
qualquer átomo gravítico
ao seu redor?
cabe a confessionalidade
da identidade
no trânsito molecular?
viver, uma explosão
chovam humores
chova adrenalina
sobre o negro do texto
que se quer escarlate;
e o sexo reorienta
pautas performativas
dança a soletrar
sensualmente ao ouvido.
desce as escadarias
o corpo animado de luz
[marioneta longínqua]
desce as escadarias
como se num minuto
lesse bibliotecas inteiras
e levasse todos os livros
para a cama
à espera da noite líquida
noite afiada dos espectros
onde alongar a árvore
do álcool puro
fervor inocente manchado
de honestidade térrea
impossível de esconder;
assim ter-se corpo
diante de tudo e para sempre.
porque os livros entram
dentro do corpo
são alimento etéreo do olhar
confundem linhas de vida
cosendo-as, sufragando-as
no corpo ― fermento esbelto
os livros fazem crescer
paisagens com pouca luz.
ler o interior é escrever
dedilhando pontos sofríveis
sensíveis a realidades encenadas
mergulhar por dentro
realçando mantos de carne
entre o mesentério semântico
mantos de carne acesa
intrincados feixes de baixa luz
poesia é ler o interior
usando espelhos subversivos ―
poesia, silêncio tatuado no corpo.
então estar vivo no
aturdimento próprio
do desamparo
é o poema ― movimenta-se
pelo lado pleural
todas as faces vistas e vividas
espelham-se num único rosto;
a máscara intensa de volumes
o poliedro perfumado
com que se joga
a vida, arriscar
o que se metaboliza
a partir de tudo, entrar
no labirinto plantado
por outros todos os dias
aleatoriamente.
o que é conhecer-se? o fumo
de auréola carcomida
do alter ego,
aura inconfessa tossida
na câmara das dúvidas
e do esquecimento. a névoa
metamorfoseada em
sombras debutantes
perfis sucessivos a lápis
de pessoa em pessoa
ensaios pessoa a pessoa
pessoa por pessoa. a máscara
inflamando-se na
adaptação do rosto.
e intransmissível a experiência
de aglutinação transformada
se mais fundo do que visto
e analisado ― aí a luz
continuará a falar
na sua surdina muda
e despida, continuará
por função de permanência
presença por surgimento
concreto e fulminante
dum propósito físico.
na gota de âmbar vê-se
um quarto imitando
um casulo enorme
sua história resumida
em papel e saliva
acende imagens num
reduto musical,
história implícita
por repetição
de civilização em civilização.
o quarto-casulo já corpo
borbota rosas
de boca em boca
por tradição.
impressões de luz
cambiadas freneticamente
pelo pâncreas
combinam anotações cerebrais
com música em lato senso
essência do som-sangue
enquanto identidade.
a invasão do sangue na
violência florida das palavras
permite uma antevisão
da mais nua solidão
a entregar em selos à terra.
de visita em visita
a nomeação de entes-luz
em páginas sobejadas
do cumprimento de ciclos
águas luzentes
da fuga intelectualizada.
mas o corpo não se compadece
com racionalizações;
anjos, arcanjos e outros seres
de luz baixa vêm-lhe animar
conversas químicas interiores
para transcendência lírica
que o apazigue ―
é quando o corpo vive
sem consciência de si
explodindo de vida
em cada célula mínima, o corpo
faz poemas em gomos
bebe em luz e poesia
cada vinheta do dia
ou noite, bebe incenso
de névoa ou bruma
conecta-se ao micélio semântico
das árvores nocturnas
memoriza paradeiros
de pássaros afrodisíacos.
raro e transparente
é este o corpo
frágil e complacente
à procura do raio-mãe da luz
que aprende
a cada fracção de tempo
a desaprender
por fruição exponencial,
este corpo transumando
o micélio semântico
amando e desamando
cada relação dentro de si.
lençol branco
fino arabesco escarlate
sangue e pétalas vermelhas
a música das esferas
traz vivo
[entre fissuras]
o corpo
luz tonal ―
AMPOLA DE EROS
quando a língua dorme no amor que salga a pele
confundindo aromas orientais, chás e perfumes
sonhando a adrenalina de momentos
em que trabalha feroz na boca, centriptamente perfurante
rumo a um arquipélago desconhecido
onde fauna e flora são um só movimento
e o mar apenas um lençol
quando no amor o sal incendeia a língua das palavras
e navegando ela inteira no espírito e no corpo
enumerando um a um os espigos do sol em páginas
como se lesse em sangue e saliva
do livro ao corpo para dentro de outro corpo novo
medindo a carne nesse arquipélago de descontentamento
chama desvairada ardendo o amor no branco da cama
enviei um braço em chama na vez do corpo todo
um braço florindo de fogo a mão trémula
um pássaro a aprender a voar no azul fugidio
― agora o braço é um animal sem nome
perdeu-se no suor das flores que perfumam a pele
conhecer o corpo é perdê-lo intermitentemente
sentindo-o na perda por esquecimento de posse
conhecer o corpo é enviar outro braço sabendo o outro
já perdido entre outras perdas gravitacionais
que uso fazer da árvore do sexo que se apresenta?
hesitar na performance ou ler nas raízes?
nem sempre oureja o mapa nas mãos, os dedos aquosos
divagam na intenção
uma geografia ascende por um segundo
e imediatamente apaga-se nas fibrilações flébeis do dia
― amamentar a luz passa a ser uma prioridade
nunca se sabe quando aparecerão os fantasmas do interlúdio
ciciar é sempre uma manhã espessa de nevoeiros e teias
as aranhas surpreendem com a sua seda à boca das portas
armadilha periclitante com dor nevrálgica
do olho ao cérebro
a língua prova a ferrugem tímida do dedo
que é sangue e poesia, alguma coisa escondida ou impressão
o motor do mundo | a ilusão : o sabor enganado das coisas
rendilhando o manto tenebroso da perfídia
a ferrugem antiga lembra o barro adstringente duma vida
vem o mar à boca confessá-lo
porque a saliva alumia o palato
tanta água em redemoinho por dentro, salpicos ácidos
nas raízes das membranas sobre os acontecimentos
, mas o estômago estraga por vezes a energia íntima
do fogo
tem a deslocação inusitada duma vírgula
destoa imagem a imagem a ferocidade da fervura lírica
pode o estômago realmente ser uma nau entalada
no corpo ― um caroço incómodo de literatura
as linhas cárneas cosem-se inadvertidamente
como se uma silhueta de vésperas
indicasse a radiação exacta da entropia existencial
a configurar-se corpo em expansão rotacional dos sentidos
isto tudo com música que é o líquido amniótico residual
parecendo-se às vezes com sangue
entre cores de vivo martírio ou extermínio
e até mesmo entre cores de vinho roxo entre sonhos
a música tentacular que refreia inteligência ao ouvido
. o corpo imóvel esperando a sua pedra de toque
gota parada por pensamento ―
no momento da inércia espectral
desígnios prosperam mudos e silentes, há trabalho
nos músculos
a falha declara uma escuridão introspectiva
mas uma trovoada interior procura relâmpago a relâmpago
a cirúrgica lanterna de dissolução dos mundos que roubam
contornos ontológicos ao corpo
uma espécie de ampola contra o cataclismo
de julgar propriedades minerais a duplos
rindo e comungando
aspectos de sala no lúmen orgânico do espírito ― a medida
do que se ama como carbono de incêndio
agradecendo osso a osso a cabana no lago
sobrando o luar
e um cofre onde guardar o coração
sobrando o olhar que liquidifica as margens
as lágrimas rondando a suspeita sapiência de ocasião
osso a osso um mausoléu de espanto
linhas e linhas sublinhadas nas cartas arremessadas
ao chão ―
prece de ave no canto enviesado de naturezas
sobre o plano
entre a natureza cáustica e primeva sobre os actos
e todos os cânticos de sobrevivência acima da subserviência
condão negro da desconfiança no glóbulo
sempre com dúbia energia faiscante
de contorno em contorno mistificando a matriz ―
mente o metal perto da raiz [rizoma cárneo do pensamento]
e a mente tresandando à inevitabilidade da carne tremente
gaguejando o metal pelas mãos, reluzindo contrastes
espelho do eremita renegado diante do prado verdejante
ou asco verde deposto lado a lado com o corpo em sufrágio
, o regresso faz-se pelo lençol em perfume
de temperar a pele com a angústia das gaivotas
passando por uma tempestade irresoluta de cores mal cosidas
o tampo da mesa sempre cheio de objectos
onde confundir mãos entre as mãos
num enlace desprotegido dos amantes
e leia-se «suor» no que se lembra de perfume mal-entendido
coisa funda de nós apertados como última conversa de lenços
. o silêncio entre estilhaços
revigorando ensaios de luta com o cristal interior
cápsula entre abóbadas de carne
com todo o olvido estremunhado da voz legítima
entre xailes de núpcias
redemoinhando sozinha no grande salão da intimidade
o feixe de som como feixe de energia a animar de supetão
toda a alegoria animalesca dos membros
feixe como peixe, luxúria tempestiva ou pestífera
no ajuizado filão do termo enquanto tesão humoresco
colocado ante o espectro defronte outros espectros
nenhum rosto ― pestilência criativa na destruição de mitos
um a um como cada qual, como matrioska dum sopro
por silente e silencioso corpo
esgravatando emoções nas entrelinhas
furando a própria mão que as esgravata
remoendo coração a coração o sangue às golfadas nas páginas
como tinta mordida no azul dos lábios
[promessa necrosada do beijar à pressa] enigma
de pequenas pedras preciosas, grânulos gangrenados
para um mapa estelar repentino
por alguns segundos róseo na pele, mas pouco mais ―
um movimento curvo como a vida
entre deslizes da minúcia de olhar em olhar
o corpo na curvatura sanguínea do mundo
estância entre estâncias | apogeu de entrada
vívido óleo de prostração em silêncio
o pouco que poderá haver de perene, o susto brusco
dum beijo ― perfis sucedâneos de argila branca
um esferográfica cravada na barriga latejante
escrevendo por dentro a dor sexual do vazio
sujemos a coragem da possibilidade de um ser todos
divisa extrema de comparação na incomunidade
festa galante de centauros e minotauros
parábola míope ou fábula autista da idade média
com um jarro de gladíolos ao centro
e marcas fundas no soalho de um revólver cansado
entre rosas vermelhas secas
ouvi o lodo pelos vermes que o frequentam
ouvi falar do que me contam os espasmos luzentes
dos pesadelos, assim a carne contada ou confessa
na dobra do pano sujo levado à boca
assim a narrativa dobrada e redobrada como segredo
entre aromas duma pele já esquecida
segredo cheio entre os resíduos de terra
na memória
a dor martela com a frieza dum rio traído
fecham-se as comportas, quezílias e outros mantos
é a hora dos minerais trabalharem no surro da noite
fina tessitura metálica da alma mesclada de sexo
ou véu musical e aquático a amadornar crisálidas cristalizadas
âmbar que me vai embriagando com teoria ideológica
mesmo que alquimicamente não acreditando
uma questão de cerne duro que no caminho do sono
se pensa maleável
a indústria onírica encarregar-se-á das ilusões
estigmas pelo vínculo biográfico, temendo a descontinuidade
mas até lá há que amar pequenos pormenores viscerais
coleccionar lubricamente feridas sexuais
e desejar reconhecê-las pelo tacto nas noites esdrúxulas ―
o cheiro a erva-príncipe entre a madressilva
o suco neuronal em cada tendão no esforço das horas
de chamar a si
redutos inconfessáveis da interpessoalidade indigesta
paisagem demasiado mortal mas inclitamente real
de condensar o ónus humano numa gota
gota pontiaguda quase lágrima
reduto reduzido dum âmago atroz na mínima ideia
de jugo transversal
― tremendo a escrita vê-se mais além
defeitos arquitecturais vindos da inconstância das vísceras
: quando sair da bolha humana? em que insterstício fugaz
cantar a fuga num rosário de uvas doces confuso no sexo?
que candeia húmida aperfilhar dentro do corpo
como jangada atrapalhada longe do ancoradouro?
o arcabouço respiratório traz uma arca de medos
estalidos | ruídos | gemidos de foz imperceptível
ou ocultos o suficiente para ignorar a origem
enquadrando sensitivamente o impasse
um lado outro lado dentro e fora da pele ―
enquanto búzio de sopro o corpo experimenta a poesia
faz transcorrê-la em longínquas vénulas e arteríolas
onde a dor e o medo se mesclam alquimicamente
formando uma pedra octogonal de veneno azul
. equilíbrio de véus sobre a têmpora
a assombração movimenta-se por espasmos
queda de sílabas na língua
e a saliva grossa arde de nadas químicos
a forjar laços mentirosos para um exílio acre
o gume sério dos desgostos amolenta as membranas
tão ensimesmadas na sua anatomia
grita-se de fora o de dentro
rasgando o raio centrífugo em todo o seu interior de luz
caminho de fissuras róseas no roxo da idade
oxidação e erosão | oxigénio e tempo
enigmática boca do universo operando na sombra
― a árvore do sexo marulha num verde tenso
[reacção de inverso teor a quente e diverso]
uma estrada de glândulas assexuadas
quase transcendentais por aproximamento abstracto
com a volúpia e luxúria dum cérebro a sofrer
de imersas invasões púrpuras do pensamento
, um fole que de ar sobrevive
ainda mais do que água estelar a árvore do sexo
ou então uma nave de células comezinhas
que de orquestras extrai energia ao tímpano
na acção perdulária do longínquo infinito
cavernosas camadas do som móbil
interno ouvido do tempo em gomos
de morder mais e mais ― o silêncio vira noz cárnea
e a substância roxa do tempo readquire sentidos
é de quem fica na foz à espera dos sinais
sinais de fruto gomoso a trazer para dentro
sinais de ventre obscuro para remorder pensamentos
animal translúcido de animalidade intacta
indagando vinhetas doentes do quotidiano
esfocinhando inquietudes fora do zénite para uma
calendarização sadomasoquista da sua aparente humanidade
cresce solfejo azul
[doloroso dentro marinho]
cresce no tenso nódulo de pútridas linhas
magoando o ar dos vislumbrados
erradamente acesos no chão ― as malhas prendem
ninguém acorda
assim apodrecem as linhas da rede
quase um choro cristalino na cova do sovaco húmido
como caverna de rocha perfumada
afinal ver é lamber a pedra de deus
ficar em silêncio para dentro dos olhos
os nós dos dedos como cascalho que se deseja nos trilhos
dúvida semeada em visões do necrotério, os nós dos dedos
galgando impossibilidades aos livros danificados
por material onírico de sombra ácida
a pedra lívida tem as faces com que a água engana os olhos
― um jogo de labirintos acesos na contraescrita
, a pedra caiu no poço fundo da cabeça
nada sabendo de ricochetes orgânicos
sabe-se pedra quando tocada
e sabe apenas para si
enquanto pedra do real
. o cheiro podre dum não move florestas
a solidão incorpora densos males da cólera
uma conversa ensimesmada na auto-injúria
, o que de quente se pensa frio e se esquece
sendo mais perigoso entender o toque
do que o brilho duma faca
os carreiros da dissolução engolem todos os subterfúgios
da sociedade; nem o pó, nem espinal medula ou esqueleto
poderão dar testemunho dalguma redenção
fuga para o nevoeiro de sal que é o nome
e agiganta-se como total dispersão
periclitantemente pontuada se sortilégio cru no parapeito
onde a falácia do saber arredonda mortos vocábulos
na pele das regiões mais remotas do corpo
regiões invisíveis de dupla câmara onde azeda
o leite vítreo da sexualidade ingénua
ferve a exigência de ser sobre o pano vermelho ―
teria medo de esvaziar lavas ao coração
se coubesse eu mesmo na dormência com que me quererei
no derradeiro sono?
intento de bissectrizes no corpo
vivência enquanto enquadramento de quadraturas
intersectadas : vínculo de arestas corporais abertas a sentidos
elevação horizontal perpendicular à prostração tridimensional
vivência respirante na sequência de cruzamentos físicos
para uma fisiologia da memória sem paralelo com o vitríolo
líquido alquímico da verdade | medo em estado puro
o fluxo do mármore cárneo interpela o ritmo
do achar-perdendo ― o bicho-da-seda morde a verdade
a sua folha de sedas perante o mundo
morde a sua condição de astro rasteiro
humilde respigador atento à morte
nu | na minha razão de morrer a cada momento
em unidade solitária contra a humidade dos afectos
nu e legitimamente vulnerável a espectros
esperando a cavalgada turbulenta da confrontação ontológica
ponho uma mão no sabre afiado pela língua
[outra no vazio rotacional da espera]
atendo fúrias desavindas da entropia
não procuro nada | não denuncio nada
um nenúfar cardíaco atende-me na espora da noite
, quero embriagar-me de pólen
do zumbido trôpego das abelhas
quero fechar-me num casulo de essências, óleos e perfumes
apesar do manto do coração arrefecido
nalguma reentrância maligna
do professo gelo da emboscada
no contacto impactante da vulnerabilidade humana
«bebe este meu medo
bebe-o, será o teu também, o de ninguém»
o frio acende os órgãos, depressa se aprende
ponto a ponto
a tacto de grito no corte ― quando se ouve a esfinge
: o eco do silêncio
, como se a surdez ensinasse o suficiente sobre o universo
de atear o texto às margens
ou tremendo vitalmente a possibilidade de coser
esse mesmo texto
no corpo que ainda olha as estrelas
a ideia romântica não nos prepara para o esgoto
covil do mundo
propriamente dito
a surdez e a mudez raiam caminhos em frente
mastigam paredes à espiral do devir
e os desenhos enrodilham de incenso o espírito, concedem
um lençol de arabescos para a viagem do eterno regresso
tossem pedras fervilhantes na agrosidade da grafite
[poderio de boca no halo do infortúnio edificador]
os desenhos revelam rostos
― verdades ensaiadas em cada um ―
mas não revelam na totalidade o nunca em terra decalcado
cada qual surge intermitente em sua envergonhada vez
como rosto uníssono e irrepetível | impalpável
nunca nenhuma linha de grafite entronca noutra
nunca em alguma estância uma linha remata o cerco
comprometendo em liberdade
a fixação dum esquisso da real origem
perpassando a linha do mar relido nos lábios
o sal resvala na brancura das imagens
e é de recolocar frutos de ânsia
um a um ao redor da cama de abandonos diários
. de tão só afirmar-me
de mão magnética ao peito a funcionar anemicamente
um estuário febril de órgãos
todos autonomamente respirantes
ânsia ― perpetuante inconstância constante
fibrilações do medo
electrocardiograma trágico-lírico de diademas ― vitríolo
o que é a ânsia se não um fruto do coração?
desenhem-se novas auroras para o paralelepípedo do sonho
pois machucam-se no ar baixo os seres que cantam a leitura
tantas as feridas em voo como pássaros
vísceras de livros na prosaica linha de mosaicos cardíacos
o mármore brilha de dor
auscultando febres do basalto interior
qualquer coisa de imprecação doentia de rocha exposta
o que ver de sólido no sangramento sexual das imagens?
escolhem-se as visões? que colunas arredar do mênstruo?
a chuva de sal magoa pensamentos incógnitos
alojados na espinal do sono, o que dúbio corre nas veias
encontra uma corola complicada de nojo fendido
sou na espera uma concha de males a curar
[talvez em frases lentas do corpo que ainda não sei ler]
de tão só afirmar-me
de tecer o fio salino
como choro de lágrimas-de-cheiro pontiagudas
de chorar como quem morde vaidades metastizadas
― falaram do deserto e da rosa-de-dor
porém não sabem do que falam
nada de tão visível mas indizível como um estendal de dores
dores caladas como flores decepadas
assim um embaciado pulmão de vidro, escravo do coração
de nomear as assombrações
de encalacrar vozes em sílabas rente à carne
um fole sedento de canções
fogueira de osso luzente para o choro de um índio
e na volta a flor decepada na origem, no estigma
espiral de dentro vinda como um véu tatuado de vento
sopro confundido com a memória de todas as cores
contidas no branco quebrado da flor que dança na aragem
choro grandiloquente quase montanha adivinhada
entre o orvalho mágico da pequena vegetação vista da janela
, brilha a palavra como pequenina poça de sangue
a acender o que há de permeio no voo dum pássaro
fugindo desvairado pela cortina do poema
: e o que revela esse pássaro de solidão?
sozinho subtraindo-se ao céu em cada movimento
que planície inventada na racional e lesta crueldade
o verá cair e morrer?
e quem fará estremecer as cores desse céu?
que o caminho faz-se sozinho em espiral violenta neste corpo
― fogo preso, lava entorpecida de afectos
muito cansada a colher que leva o medo à boca
porque matar a fome espiritual alimenta a morte física
nos meandros da floresta mitológica e dos trópicos da alma
surgem um a um os seres luminosos
fábulas escritas por dentro baixinho nos flancos dolorosos
do corpo
um a um os seres acesos como barcos nos lagos de vesículas
um mundo-matrioska de campânulas sobrepostas
rasgo inconsciente para uma histeria congénita da sociedade
, o que se apresenta planta também é mineral
ínfimo profundo do silabar visceral
rodopio de língua em diálogos
vestes rasgadas no plano da voz psíquica
guturalidade manchada de pesadelos
silêncio forçado na agudeza do estigma florido de pulsões
. compreender é muito além ainda
só escutando a conversa do icebergue com as raízes cárneas
qualquer coisa entre o frio-corrente e o frio-sangrante
células à parte o choro trémulo dum rio
; e passa a energia escrevente pelo corpo pontilhado
no pensamento
nem química ou delírios da física o explicam
há uma dormência do real na magia da ingenuidade
um cubo engloba outro cubo
englobando cada um parcelas intangíveis do humano
tremendo cubo espectral só ideia
porque permanece sem forma e inominável
porque exerce-se como presença de água mutável
brincando debaixo da língua ― do arrojo sanguíneo
se estruturam na arte as estátuas vitamínicas do devir
repulsando a náusea por violenta incorporação na carne
histeria como forma de solidão | casa óssea de desterro
um teatro orgânico de células fustigadas pelo silêncio
a solidão como casa óssea do desterro
corpo ― o experimento torna-se alimento
víveres às vísceras, motor de ânimo para a morte
para a morte sedenta em todas as esculcas
trabalho dos espinhos dedo a dedo ao redor
de dor pleno na fricção se distribui irrigando ideias
como se flor de cacto abandonada no estio
vento nenhum acende a razão do fruto ―
sangue vegetal na cama da língua
violáceo
o sangue pasmado dum veneno adormecido
sangue de figos do cacto medido na árida angústia do baldio
a dor fina dum dente azuláceo na noite
reabre orifícios espumosos onde gemidos florirão
na escuridão
dor fina como trabalho de estrutura sonora
a apresentar o oásis escuro dos nómadas
morrer em luz inconclusa
[ideia a guardar como suprema transumância]
morte-objecto brilhante entre os dedos
em cada sustenido de respiração na carne
morrer em luz escreve-se no momento vivo
crepitante fio da navalha cheio de seiva inoxidável
cortante nos versos do diafragma
, e para isso os epidídimos trabalham na sombra da luz
brandem o elogio ateado por beijos de outra esfera
cegos constroem a morte na ilusão da permanência
e sobe uma perna em arco despejando silêncio na cama
a água do arquipélago | chuva de nomes imperceptíveis
dunas geradas pelo movimento cru
linhas curvas
plenas não de ar nem de areia
mas de espasmos, substância hormonal quase nódulo
inflamando os glúteos e os seios
no namoro louco de ombros e espáduas
rumo à amnésia que goza o tempo sexual
tempo cravado em cada poro por suor e desvio
num timbre de sedução ― incidência ofuscante
de gestos sobre gestos | corpo sobre corpo
clonando a mímica química dos astros
com a envolvência de processos de rocha metamórfica
navegação pelo mármore róseo vislumbrado como mapa
pergaminho tatuado nos peitos dos amantes em migração
. com a purga o sol abre-se no escuro
remoem-se frutos secos
avelãs e amêndoas de amor fátuo
, a saliva como sumo escuro
um veneno a sondar traições
olhar o outro em si próprio
move-se um fundo opala
lúbrico lodo de amálgamas
de cravar imagens em pólen angelical
o desenho pensado | a cabeça do anjo
véspera colossal de mortes interiores
que espectro me escreve enquanto deitado me comovo
com solidões do implacável esquecimento ontológico?
fundo vítreo marinho
sem saber de peixes nalgum oceano por nomear
muitos estilhaços de vidro a varrer para debaixo da alma
o confronto de marés da alteridade em mim
terra ou carne indecifrável com a temperatura
de uma sensibilidade sem nome
eu-confronto como construtor do ababelado corpo
rumo ao conforto dum repouso róseo do rosto
adaga banhada em palavras
seguindo o trilho do perfume da serpente cornuda
balde após balde dentro da cabeça : requestionar
o paradigma entre o fosso e o poço
corpo e espírito
caminho de brasas entre a estrada norte e a estrada sul
o medo como negro fuso de rosas refulgentes
grinaldas de cavalos cingidos pelas valquírias
o medo como boca vulcânica entre a morte e o sexo ―
cavalgada de sangue sobre o glaciar da montanha
água de lótus e petróleo
intrincado incenso de ausência consubstanciada
lembrança de antigos pólenes acesos ainda no cemitério
; ideia de cama em tudo de plano e plena no pensamento
cemitério vivo como foz irreal bruscamente metálica
como quelícera de insecto
e o cheiro procedendo ao convívio doentio da prosperidade
o quinhão de sol nas estepes maldosas do trabalho
permanência desassossegada à procura dum roteiro estelar
um estranho vento convoca-me em páginas suadas
vento fictício de amoras lentas
sobre a púrpura dum rio d’alcova
ardendo os carvalhos em mobília fumegante
gestos perdidos no paladar das frases omissas
e o sopro confunde-se com a sombra
murmúrio de pascoaes ― o ventre do que se dirá
em figos numa figueira retorcida vinda do passado
açúcar tossido em cada verso perverso dum legado
dobram-se folhas no olhar curvo do poeta
ferido de ausências em cada página em branco
à espera de arder
onde o outro rosto de sal desamparado?
quererá beber da minha boca a saliva ácida
do meu abandono?
que os frutos estacam e apodrecem paralelos ao horizonte
― fata morgana de miríades virais do silêncio
os deuses criaram o esquecimento para cimentar o corpo
objecto dual entre todas as outras mortas coisas
: o princípio da ampola rege-se pela sucessão amnésica
ascender profuso do poema tacteador descendendo
a condição humana da falha e do proveito
asfódelos roxos na exaustão entre hormonas e razão
o princípio da ampola de eros rege-se pelo equilíbrio no uso
da poalha de sol
fustigando lentamente corações de pássaros
a cristalizarem-se na água dos espelhos
[quartzo hialino fulminante de relâmpagos em textos]
arbitrários papéis cerzidos no sangue renunciando ao
plástico tóxico da influência de maquilhagem pornográfica,
o fazer instituído ― o que dizer da grande fábrica da mentira?
que fazer de concreções do céu e afiadas aragens humanas
num engenho trôpego e deficiente servindo o sistema da
assombrosa morte artificial?
a ampola, um leito escarlate onde a púrpura brinca
onde na areia espectral dos sulcos eros escondeu um rim
e vem agora na quadriga ultravioleta dum raio solar
esquadrinhar vigílias a arcanjos confusos na aurora
do sexo ao amor pouco se fala, talvez quentura da frase
a transformar-se em brasa
em verso ritmado cosendo o tímpano ao punho escrevente
o que me disseram sobre o caramanchão das ninfas
parece errado ―
horizontes traçados em tecidos de fogo surdo
a linhagem não balança na verdade
e o sangue mente continuamente na terra
em profundidade
, assim o automatismo para assegurar uma espécie
que se autodestrói para revelar a sua integridade
como cinza estéril ― anedota catártica dos sexuados
errados no pão e no vinho, vivos enfim
com dúbios propósitos [placebo] com mágoas
o erotismo interfere magicamente na tessitura sensorial
do véu,
dinâmica de êmbolos na ampola | encriptado coito
tensão florida de estímulos em membranas húmidas
e há um plano marsupial situacionista
geografia mental
onde concorrem vectores da mais alta transcendência
um emaranhado interactivo de impressões vívidas
vinhetas linfáticas do quotidiano
a marchetarem irremediavelmente o manto de carne
turbilhão de planícies a contradizer o forro
às vezes súplica indigesta de conhecimentos de vária ordem
diria que se pode engravidar de choro
a esperanças dum retorno frequente à robustez jovem
do passado ― o teatro da infância
mesmo aleijando a tecelagem míope do labor mitocondrial
[exaspero da sede bíblica]
de arrastar existências na arena frágil dum colapso
o teatro das máscaras
esperando a sua total dissolução
arredondar violências exorciza fenómenos de contemplação
o desenho fundo de uma gota de água
que poderia ser orvalho de fruto, saliva ou sémen
o fundo pendente da força voluntária de um gesto
, gesto-ricochete como pedra rasante
num lago de lágrimas-de-cheiro
― a ilusão de justificação de uma vida inteira
entre pressupostos momentos-chave perdidos
que reorientam para uma encenação cega [huis clos]
sobrando o corpo ferido na semiologia
o fuso cromático dos sonhos alude à rosa-de-dor
[pulmão asmático de presença disforme]
poeiras cósmicas reacendem uma aorta distante
que apesar de devoluta ainda canta
o caminho-novo aglutina esmeraldas em rosário
talvez confissão ou
terra negra de enredar dedos
, areia como morte cantada de tantos poetas a caminho
mas nenhum sangue a caber vivo numa canção
: corte despido de imagens
[ponto de fuga ambíguo]
lanho no ofício de enganar o ser esperante na leitura?
a túnica musical da perfídia envenena a oralidade orgânica
aquela que diz
das vísceras | do sentimento carnal
corpóreo
baudelaire e o impasse de álcool cru na sua pira de hesitação
ânforas escuras de amores fechados, unguentos e especiarias
a rondarem o absoluto côncavo de tensão e impropério
sobras dum mel nauseado ainda a brincar de língua em língua
apresentam-se as sombras em cor
como um carrossel ácido
a luxúria no prato aguça a cama e mantém o pasto literário
mostos infindáveis na lisura das estantes em apodrecimento
as sombras como apêndices avulsos de poetas malogrados
como nódoas saídas em livros e opúsculos
pó esboroado
pó explosivo deixado nas unhas de quem folheia a morte
, ou boca para uma saída de sons-dentro em redemoinho
misturando aragem e folhagem
entrando na curvatura sanguínea da redenção última
com rebentos carnudos de sombra aureolar
cada milímetro inaugural do pesadelo uma entrada
ventre azul de lúcifer numa garrafa ou colher rasa
queda vítrea | milímetro a milímetro a despedida
ou erosão da língua pela nudez incauta dos gestos
erosão repetitiva que esculpe a cegueira dos corpos
ondas de cristal de um eu
revolteando a sombra cortante do espelho
leito de tulipas negras a resinar o sexo em perfume
palavras podres ao ouvido
trilhos de infância apagados | cinza hodierna da tarde
ondas que são braços abandonados
sem ancoradouro
e o que ouço parece-me ainda a falta de um anjo
dor lenta de seivas a encravar-me o sangue
carta sussurrante | mágoas iridescentes da árvore arterial
céu a fugir pela fúria do dinheiro menstruado da metrópole
o que ouço na verdade são cirúrgicos estalidos de ossos
coalhando som branco a membranas e cartilagens
como ânsias de anjo sob a mortalha exaurida
poderia ter-me cumprido na gota rósea da bonança
[umbigo da rapariga com labaredas nos olhos]
caminhando na pele acesa dos aromas
invertendo abismos de carácter em arestas do espelho
poderia ter-me medido na boca que contra a minha abrisse
uma ala de estames onde pudesse dormir isento de estigmas
poderia ter-me encontrado
enquanto solidão dentro de outra solidão
― a rapariga com labaredas nos olhos
na linha da neblina óssea dos fogachos vulcânicos
que acontecem no corpo
sou verso-vácuo na insaciedade de horizontes impalpáveis
como a música
reverso do inverso ou avesso da pele no suor da escrita
saiam os rostos do ruído violeta da noite acordada
um a um me verei defraudado na penúria dos ângulos
[rio envidraçado da memória]
e caiam as pétalas enrugadas do jardim magoado no peito
escarnecendo do violoncelo a cronometrar paixão e angústia
grande a fogueira lá fora, deitei fogo a todo o cancioneiro
rumo ao esquecimento
falso calor ― tremo ofegante
rodam rodas de néon e flores de plástico encardidas
em volta do calafrio
girândola perigosa de lírios secos
paixão antiga de incenso venenoso a minar leituras
tremo ofegante com o casulo disjuntado
em fragmentos de sonho
preciso das vozes da floresta
árvores, esquilos, corujas, nascentes e serpentes
preciso da onda de pinho incensada de ingenuidade
subterfúgios mágicos da infância
ardidos os mapas com atalhos afectos à harmonia das esferas
preciso de não precisar de nada
só deste corpo redefinido pelo frio na antecâmara do vitríolo
como entender o vidro da memória sem renunciar ao espelho?
como responder ao universo sem morrer?
sou o verso-vácuo dos rostos anónimos que vagabundeiam
entre as sobras de alma ao crepúsculo
sombras gordas de vestígios passionais que perderam o azul
errante nas areias
errando com os pés um rosto no deserto
estou entre a respiração cavalgante dum saxofone dourado
clamo pela aragem fina de sopros dançantes
no horizonte
acontecerá o enxame dentro do corpo
a crepitar na cabeça
uma distorcida imagem no porão dos subterfúgios musicais
ou o que poderá implicar fisiologicamente
em livro carnal
a súmula como intrincada teia de morte para ninguém ler ―
o búzio nas mãos poderia então ser uma caveira
ou melhor
nunca ter tido nenhum búzio nas mãos
mas sal a apagar-se à minha frente
, que haja um esboroar sulfúrico nas imagens da memória
inevitável esta hipótese-mãe dos apotegmas imediatos que
quebram fúria às pulsões no sangue a manchar continentes
um esboroar íntimo entre as sujidades fulcrais do mundo
construindo o ser-de-asas na visceralidade da permanência
reverso do ar inculcado em ideias à margem do pó estelar
à minha frente sombras de mil búzios anónimos sem dono
e desenham-me estas mãos que sustêm o dia
como fronteira
brilho a ossadas nuas do pensamento feroz
contra a berma
oxigénio às golfadas escavando olheiras nocturnas d’incenso
senhas vitais químicas que esquadrinham atalhos de alma
no lodo da tóxica comiseração | no antro da ácida ilusão
sucedâneas tentativas transumantes do casulo em construção
ensaios de pele : o invólucro enrugado de babilónias ocultas
as mãos crescem como exagero do corpo, crescem aos olhos
da imaginação como babugem óssea de caravelas no nevoeiro
são elas também búzios confundindo-se com caveiras lá longe
aguando em agruras escuras
sobra o casulo na bainha perigosa da luz artificial
quase uma língua maltratada
injustamente disjuntada entre os outros órgãos
e quando a estilha de osso escreve com o sangue da vergonha
o enleio licoroso pende nas palavras esguias do cadafalso
[noção de arbítrio por céu lavado de romantismo]
a carne vertebral dói de vida a rodos na ovalidade da gota
ou lágrima-de-cheiro pontiaguda
tensão entre abismo e paixão
de dedos no linho branco noite após noite
de romance em romance no engano próprio da escrita
hangar turvo de ideias perpassadas a frio
o que resta é branco liso na tez fina de uma diva
sobre os dias, sempre alguma narrativa
com laivos de carne ferida
chacal de olhos ardentes sobre o texto
sobre os meus dias que restam ― as palavras sobram fundas
como alheios seixos brilhantes no leito do rio
alguma narrativa, algum sangue vertido entre olhares
só a erosão devolve falas como ecos pobres da ilusão
ideias como efémeros glóbulos vermelhos de obrigação
não interessa a coerência mas a permanência de uma essência
repentino chacal de olhos ardentes em reflexos nocturnos
― o texto jugular plantado em sombras e janelas
por vezes envergo um último fulgor metálico
vindo do cansaço de xisto
para incendiar réstias de espuma a simular esperança
sacudindo mordaças às pautas que me regem
ainda que numa cegueira entre segmentos ―
eros surge nu numa onda
alheio e isento a panoramas, cenários e programações
quebrou a ampola
o rosto é-me difuso e toda a pele que vejo arde
por dentro dos olhos
soou a minha própria pele | fogo e mar | gelo por escrita
a palma da mão afaga táctil o ventre da maçã de esperma
palma da mão como máscara aglutinadora
rosto que cai como fruto maduro de uma traição
sumo-sangue em brincadeira de bagos de uma romã
despedindo-me do olhar cristalino
despindo-me de tarefas sem significado imediato
sem os sentidos sérios das mucosas e da pele casúlica
a viagem do corpo numa quadriga cadente
enquanto estilete ou estame
surpresa entre os muitos mistérios
entre segredos de seda suada e outros panos
viagem enquanto movimento do corpo situado
num ponto cardeal controverso
hesitando na floração ou dormência das cores inconfessas
o estrangeiro estoico em sua casa
deitado à espera que uma planta lhe irrompa do estômago
mandrágora das fábulas a engolirem uma anónima língua
xilema e floema em conflito com o âmago da alma
havendo um tratado
que violetas parirão uma canção
a sufragar artérias do coração?
, coração aflito entre erecções do infortúnio humano
― teatro atabalhoado da existência?
havendo um tratado
que anjos ou arcanjos disputarão na arena
as representações eróticas de deus?
cova funda da mão em cacho velho
[vinho antigo da lírica consumada]
entre nódulos e genitais a pelugem áurea de amantes
enceta a labareda da noite quebrada pelo espelho
uma carta toda ela escrita no sobrescrito
bebido o licor de âmbar turvo
para perfumes no interior do corpo ― adeus intermitente
entre sono e nevoeiro
malhas dum pensar fragmentado por inércia e cansaço
: um vermelho enrugado de negro como chuva
à hora da cama
MICÉLIO
que de oval e de ovo um clarão
estremece encharcado
de mínimos relâmpagos entre o sangue
como quem pela primeira vez ensaia vestir
um nome
à espera da noite
: o som-sangue de estar vivo atravessa
um ecossistema onírico de púrpuras
ensandecidos minotauros num espasmo indiciador
de cortinas e guilhotinas ―
de oval e de ovo o nome
enredado na pele e no sono
raivas de casca podre à entrada do palato
ecoando primitivos ecos de ecos
ocos relâmpagos mínimos
entre o sangue
✫
por observação entenda-se um esvaziamento progressivo
do alto esqueleto branco prostrado
ensimesmado no lenho do tempo
esqueleto branquíssimo longe do cósmico
da míngua de terras e barros para uma boca ― ou linha
de fecho
subentenda-se,
profusa chuva miudinha de embaraços
revendo fissuras de tessitura familiar nos tendões
que da pose
fomentam vergonha ontológica de cansaço
a morte falará do búzio
surgirá na última esquina da realidade enquanto dúvida
com um grosso sobretudo de burel
vinda das fábulas e dos contarelos
a morte murmurará ao ouvido palavras do eterno descanso
morrinha bífida entre vulva e boca
✫
surgir e ressurgir, artifício de dissolução do tempo
ou o corte de pássaros
num qualquer momento aleatório
nem a pomba nega de brusquidão urbana
nem o velho abandona o banco de jardim da cidade
[sobreposição de ninhos cognitivos da frustração]
o tempo por um tempo outro tempo
o da infância e o da indecisão
artifício de dissolução o tempo
ninguém sabe onde ele começa no corpo
ou onde começará o seu próprio corpo
e o de outros em si
onde na insondabilidade dos poros
em cada corpo as partes entre si começam
por confissão ― eis o micélio de
inícios corporais em sobreposição
micélio estranhamente activo sob a mínima jugular
sem qualquer noção de espaço os espectros queimam
a medo queimam o tempo no cadinho da negação
✫
cresce na caruma da garganta
visitação que mergulha na aventura áquea dos dedos
intangíveis dedos da memória
dedos de coito e relação
semi-apagados
― a presença recupera raízes antigas
reconstrói uma árvore pulmonar
ao contrário
, o peso inteiro de uma nau
no peito
✫
quando o quanto em marcha assobia
e se revela na cor e na dor
da urina
casa de enganos cárneos
medidos pelo desmedido cérebro
a promessa de uma estrela
será suficiente no alívio de sintomas indesejados
tal como o sabão
padre no banho que limpo não é de aromas
em professo ar
quanto de nada, horas frias
desdizendo a temperatura da permanência física
na terra
desencanto do quanto
quando tudo vier como má notícia
os olhos a abrirem arregalados
muito do espanto
de saber ainda a doer muito
toda a nomenclatura dos fluidos
sobre o plano
✫
mantra : o perfil de corda em meditação
refulge um peixe em labaredas com a água dos sonhos
o perfil de corda sonda as válvulas coronárias
e pequenos sistemas arteriais
dá o mote para o ingresso
na grande dispersão do sangue onírico
manter a áurea areia de uma praia conservada na memória
sem azedumes de cardumes dissuasores
manter essa imagem de areia refulgente
áurea e vívida
com pessoas em redor
pessoas-feixe ou peixe diáfano sentindo o pulso
cerebralmente aquando o salto
do lince
✫
uma espécie de caroço fulvo rindo no escuro
noz de dentro
fácil de quebrar e estalar entre cartilagens
e nada disto me entra no nome
ou na culpa
da caligrafia das mucosas sobre o cimento
naturalmente que queria
uma escrita limpa na noite das estrelas
uma última observada
noite de orvalho no terraço dos avós
mas o que cranialmente resvala
é um vazio-vácuo do luto ainda por engolir
nos intervalos da agenda
desconheço o meu próprio interior
meu verso vivo do reverso morto
desconheço-o no intuito de sobreviver
ao toque de nuvem na almofada que me vê dormir
sei que me incomoda e se intromete
esta espécie de caroço, fulvo, movendo-se no escuro
rindo ― chego a temer que seja o coração
✫
mão quente surpreendida pelo conhecimento
mão morta reservada ― a mão quente sobre a mão fria
dedos sobrepostos : uma raiz de vénulas e arteríolas
o que desdobrar da surpresa antagónica das mãos?
beber da raiz? ter medo?
… o rarefeito ar da tarde em que o trovão poda a árvore
simples memórias
risos como folhas caducas
brisa suave de cabelo muito preto
― o rizoma invertido da insegurança insondável
o que há de intervalo entre a mão quente e a mão fria
✫
a pintura decai eu respiro
olho e o painel respira também ― a pele mente em tintas
com o suor de temperaturas
como me traem as galerias vivas de uma memória
ameaçada de viscos temporais e de efemeridade
olho
a linha do nariz
sob a asa desaparecida de um subterfúgio
curva entusiasmada de um gesto contundente
aguçado no olhar
cúmulo de intentos vertiginosos
que enferruja o paladar magoado de sangue
✫
um veio dourado entre o sangue ao vento
de estreitar corredores no pensamento ―
nenhum desígnio sobre o parapeito
o milhafre morto numa página cheia de voo
nenhum remorso sobre o parapeito
apenas a espera cheia de nódulos escuros
, espasmos de irreconhecível pulso
de esperar que tudo se faça
como o desenho grosso das ondas numa praia
um veio dourado pendendo de nostalgia
o ácido das fotografias a morder a pele
, paisagens cinzentas umas sobre as outras
[almas frágeis decalcadas a frio]
e o ouvido morto feito milhafre
✫
pesa o músculo contra o sono
incidente hesitante
à escarpa do peito colhido e recolhido
de apresentação em apresentação
como enigma do espelho da nave do mundo
[diálogo entre águas espectrais]
e o enigma é o que se escolhe deixar fora
um secular contexto da cerebralidade física
da permanência ―
irrastreável esse momento da mágoa
em que surge o hematoma
formigando tecidos d’alma atormentada
sublime alimento da iconoclastia cíclica
da ignorância
✫
olhar sobre o ombro do duplo ― um anjo zangado?
o que revelar da narrativa cruamente real
dorso enfático da ideia
a crescer animalesca num antro atapetado
de angústias carmesins do passado?
a casa, o sótão? o corpo ou a mente?
a podridão retórica dada a mente infestada de ratos
a desmentirem o lixo?
funcionam ainda os autómatos da subserviência?
procuram um lugar de mácula idílica por consciência?
quando, nas escadarias, aparecerá o ridículo palhaço
dando em gargalhadas a esmola contrária do suicídio?
✫
e o glóbulo sonoro não diz nada
do fundo cónico ao gargalo gaguejador
vaso de dormência | ensaio de túmulo branco
o glóbulo sonoro não quererá dizer nada
flui no rio sanguíneo de uma frase calada
de cada momento brincado no sangue
a sombra de estatueta falsa amealha
humidade de crescimento no conhecimento
para um salvo-conduto de insatisfação
no flanco magistral da solidão em dor
um sussurro cristaliza o sabre ósseo do âmago
vai escrever no peito suado da noite sanguínea
o rio dos amieiros negros ― os peixes não entenderam
o sermão; mas fazem o que têm de fazer
✫
invariavelmente de costas a imagem é suplantada
pelo vulto rude de sombras indistintas
a porta entreaberta ― vê-se o fuso cromático
pelo qual o estigma floral ensaia abrir-se
na hora insuspeita do diafragma
[a imagem]
a alcateia de barulhos melindrosos longe da celulose
vaso de sangue sonâmbulo a incendiar a planície
as costas do medo ―
as personagens ensandecem na mente
papel químico do reverso pensado
alguém frente ao espelho nega de nojo
a melancolia absorta
de uma presença morta
✫
reconfiguro o cristal da manhã mentindo de novo às estrelas
passo e vejo ―
a água corre cristalina na prisão do quartzo
janela natural do encanto misterioso repercutido
, dizer das poças
dos regos que sulcam e cantam a fraga luzidia
brilho preparado de temor e erosão
. tanto que o cristal nem é importante
mas a possibilidade espectral dum prisma ―
que conversas arderão no quartzo apresentado como janela
no mineral atiçado por água fria do inadvertido pensamento?
tóxica ideia do cristal enquanto acto de beber em perdição
ou mera assumpção dum grotesco salto de ambição, ideia
enquanto sede exasperante à beira do riacho
mas recusando sempre de rosto transfigurado nesse espelho
e não abandonando nunca o desejo de engolir louco
uma flecha-torrente de água gelada rumo ao coração
✫
fermentam humores e tremores no lagarto
pisado na estrada ― emaranhado de fios de seda cósmica
que na funda sombra cirzem trechos de indecifrável vida
terra | água | ar | fogo
da boca do lagarto o barro vermelho de sangue ou ferrugem
de quadrangular o céu asfixia em palavras
falsos cadafalsos para azedume : o que fermenta não é ódio
antes uma natural segregação de tédio
incandescência doente de pensamento
à mínima pulsação do silêncio enquanto grito
✫
regredir para regressar ao atónito
do que se singra num qualquer momento
que o veneno atrofia vagarosamente o tronco vegetativo
da vontade ― separam-se
as mucosas litigiosas de sombras
como súmula da noite um véu urticante de cólicas
encontro perdida no chão a palavra «carnagem»
gémulas de flores gemem de função
rente às casas que choram betão ― se tão errado fugir
como que permitindo na dispersão o erro elementar
no seu último grau de pureza
a rapariga verde leva a mão à barriga
quer confessar-se à floresta
onde bichos refulgentes apressam-se a refugiarem-se
nas lacunas das árvores negras
regredir então ao atónito para regressar
à sensaboria doente dum leme perdido
como a palavra «carnagem»
ainda no chão
✫
e o traço mínimo largado no ar e na água dos duendes
vem trazer fendas ao olhar
o verso parado parece arder
de agir por dança na arena simplificam-se hierarquias
o grosso arabesco morde a mão que o desenha
infinita fábula de gestos
e malfadadas hemorragias textuais
a folha-esqueleto veio segredar antífonas do fim
estórias de anjos na terra e feridas no azul-celeste
afinal grânulos de texto gangrenam a página
passando a memória dum corpo o que era arabesco
uma promessa de árvore arterial
perdida entre ouvidos no limiar do abismo
✫
como quem assina a sua morte nalguma margem do sonho
assim o regaço
talvez legado pulmonar da ignorância
e a mortalha mais limpa do que uma vocação
enganei-me com os dedos nos lábios
estilete e linho amarelecido sobre a escrivaninha
enganei-me beijado pela secura de ditados
como quem desdiz a vida de cemitério em cemitério
― cortar o filme no sangue
com incertezas na lírica de canções prenhas de significado
aura intrincada sobre o plano ou vulto a bafejar a bafejar
e o corvo começa a roubar panos à escrita
parece-se com uma orelha necrosada ante a morte
as asas fazem menos barulho do que a cor
✫
perguntar pela lágrima numa ponta do lençol
tem sido o remédio de uma vida paralela
a coreografia necessária para dançar sozinho na margem
e atrair as panteras bravas dos livros em humidade
no inverno
perguntar pela lágrima
como que reúne o que ainda de humano subsiste
mesmo que as esferas da biologia recusem
a lírica assustada de impressões em agulha
mesmo que o manto alquímico não resista já
à fricção atroz da banalidade
perguntar pela lágrima entre a lavanda
do lençol ternamente enrodilhado numa das pernas
mesmo sem os encarnados vertiginosos de caravaggio
perguntar abandonando a lenta crueldade dos últimos dias
e dormir
BAGO
I
os dedos tocam de sangue o caderno
abrem-no
e pegam no estilete
que animado de luz arterial e pensamento
vai escrevendo
um corpo dentro do corpo
longe dos dedos
o feixe irregular toca de energia o coração
há um magma movendo-se dentro dele
um rio vivo como pórtico de uma aldeia
[os rostos acesos]
― o que está escrito?
nada está escrito, o caderno vazio
mas na planície da mão vigora
um poema-tatuagem
monte de feno | meia dúzia de seixos polidos por dedos
ainda medindo a viagem
⚜
vento de pulsão no eflúvio enganado dum verso
de estimar hemorragia na entropia
vinho doído de vida minuto a minuto
a trama revela-se por exaustão e resignação
dada ao húmus deliberadamente
fome gratuita agarrada ao cão da dor
e à miséria em papel podre de romanceiro
⚜
a medusa solar pernoita no vidro fosco da melancolia
, nunca quis saber de tapumes enjeitados
o bloqueio da sombra explica a campânula
dormir entre os vidros da memória
assombrando os espelhos
vinga o dia mas não o sentido da melancolia
oblíquas ou enviesadas as ramificações intersectadas
[veios luminosos da medusa]
são razão do memorando ―
⚜
… molinha de sílabas na inquietação do estômago ―
assim crescem as árvores onde a floresta não é possível
a partir do nó ventricular em rodopio numa canção órfã
árvores de ramos alquímicos confusos e desorientados
faiscando de anemia vegetal na clareira do desassossego
as árvores de palavras não têm xilema nem floema, usam
o coração de outros para tudo e crescem lestas no baldio
dos corpos; de boca para boca e de desenho em desenho
também pela árvore das mãos que acusará tensão ao arco
porque há uma árvore arterial em cada momento ―
⚜
então luz não é de levar
ou trazer
e a nervura da língua não será igual à da folha
que se recolhe num passeio ―
ser dá trabalho
como o de tresler | transcrever
essa inclusão perniciosa de cristais na bioleitura
refulgindo os minerais na biblioteca do sangue
não se traz nem se leva a luz
a luz perdida no conceito e na génese
entidade ela própria
diversa e divergente de identidades
aparecendo sem concessão por pura aparição e contradição
como que namorando a espiral do devir
, uma nervura intocável de tensão e esquecimento ―
no escuro fundo
a flor-de-lis atenta
com os seus veios constritos no vácuo incolor do tempo
a flor-de-lis comprometida
com a púrpura da solidão, natureza em isolamento
o feixe de energia desenha o sangue
por contraste
numa dança de sombras que atazana a língua
nervura que diz do fogo de olhar
enquanto escrita sanguínea
místico som em chama de transporte dito milagre
ou então luz
que se conhece por cegueira ―
⚜
ascende a bruma enevoada como vitral de abismo
algo aflora irremediável da ínfima rasura do horizonte
quando a imagem sabe a sangue por contraste frio
com a água vertebrada a reverberar todos os sentidos
a imagem sondando os espectros em profundidade
como que no cérebro plantada uma raiz dada à nudez
II
o estranho em mim ― uma força
de dentro para dentro
aparentemente de fora como ovo cósmico
[tremor de águas brancas]
! energia :
uma bolha humana de contradições
acirrada foz confundindo-se
entre as bocas
, a força redistribuindo tensões aos músculos
que atónitos se atrapalham de orquestralidade
sobrevindo em ondas energéticas
como estrela-de-carne ou pedra-de-toque
da solidão ― o estranho em mim
⚜
pode o torpor como funda verosímil do real
em carne nua estalar de sal e renúncia
um céu de pranto
que chova obliquamente certo
sobre falsas certezas
pode o torpor brincar ao cetim
numa era de hienas
aninhadas trôpegas no lixo
⚜
a turbulência mastigada em barulho pelo mar
resquícios luminosos de mim
ou imaginando-me eu todo boca paranormal
a funcionar desigual minuto a minuto
sobre cada momento ―
as palavras são-me erosão
no corpo
mastigam-me de ausência
por uma existência impalpável
as palavras : tão reais como os dentes do mar
⚜
o som bivalve a meias com o silêncio
intermezzo | intersecção
nódulo precursor da voz
bipartido o som conflui
[artéria solta do poema]
o que fica de sombra manchada
depois do espasmo sanguíneo?
⚜
entro na agrura do ângulo
como quem arrisca devasso uma confissão
pano a pano
a memória em cuspo frio
[fio condutor devoluto]
por asa ou barbatana na transgressão
― o ângulo diz do vértice
fala por paredes indivisíveis
inflexão a inflexão
a dúvida do brilho sobre as coisas
sobre os ângulos ―
não entro no ângulo
antes na câmara opressora
dum verso indizível
⚜
e como a lua esplende azul
olho entre os dedos
hora do anjo na plataforma ― nas mãos
um globo dormente
grão-olho-ubíquo como raiva de sol
sobre as civilizações
quando esplende a solidão
o ermo estaca
de contrição
⚜
o bago onde vou dormir
alimentou-se de nevoeiro
passaram anos sobre o pólen
um poliedro vivo este bago
temeroso e rugoso
quase pedra de sopro
para espectros ―
afastou-se da decência de gota
um líquido move-se dentro dele
e não é água mas saliva azul
fome de texto | fome de pele
paisagem ferida a contraponto
por confusão de espelhos interinos
o bago onde vou dormir
não é bago antes casulo
nave aturdida de falso encanto pelo mundo
casulo de mantos aleijados do desassossego
nave das estórias d’incenso adstringente
o sono será calculado pela rama do pesadelo
texto de fora | texto de dentro
crise óptica na revelação das essências
são imprevisíveis as estalactites no sono d’alcova
deito-me enredado de sedas do casulo
o bago que me impede de dormir ―
III
queimas de amor lírico pelejadas na calçada
glândulas ensonadas na fuga para a arte
― que dirá a pele sobre o vulcão?
⚜
a rua examinada pela traqueia epistolar da insónia
― os pulmões digerem fôlegos de imagem
, coração de vidro embaciado em movimento pendular
restará uma ponte de marfim
marchetada de crepúsculos
. e nenhum ar
⚜
ontem soprei figuras na água rósea de uma ideia doente ―
lábios confundem-me os aromas na memória
mãos conferem veios sensoriais de mágoas já corpo
nódoas negras, feridas abertas e as dezanove cicatrizes
espiral de evocações pesadas em redemoinho
estruturas fantasmagóricas perigosas
metidas em metano com a língua e outros músculos
ontem animais visuais fizeram o animal que sou hoje
perante a página turva dum relance no espelho d’água
água rósea porque contém sangue
porque contém o meu e o de outros
objectos em velocidade, gestos e rostos
sopros de dentro
, só muito de dentro floresce o sangue para o abismo ―
hoje apresento-me como alimento às feras
trago escuridões brumosas de roxos a descobrir em lilás
porém não sei porque inescrutável qualquer escuridão
mesmo que as trevas sejam a revelação da identidade
negativos do que se afirma no sabugo mental
como errada milonga a decantar num dos cantos do quarto
junto aos intestinos caramelizados da máquina de escrever
⚜
o tempo num bago de som
ronda de fósforos à espera
de alinhar manchas lunares
sem dever nada a ninguém
poder ter um momento só
a caminhar dentro do bago
rastreando rombos ao arco
futuros cancros trabalhadores
na nave de âmbar ensejando o
interlúdio de música e de dor
rasgadas as pautas de latidos
sacudidos os livros sagrados
abrindo o peito ao gérmen
do casulo em intermitência
véus instantâneos do âmago
âmnio mental e sentimental
onde as paredes húmidas dão
o humilde húmus ao humor
sangrando o podre entediado
profundidade do som na cor
interior arbusto perfumado
⚜
perfurará a palavra
a pleura descomunal da insensibilidade informada?
palavra de estepes poéticas
quasi iridescente
aleijada nas lides onde a literatura é guardanapo
ou talvez palavra como amuleto gasto
num qualquer bolso da idade menor?
que palavra vem na quadriga de hades
silenciar-me o descontentamento atroz deste marasmo?
crisântemos invertidos do fogo bravio?
e um gato-arabesco salta
vagueia ávido pelas estantes guardas do meu sono
despenteia-me o cabelo e os sonhos ronronando
[talvez a palavra em suave ritmo codificado]
tira-me da dormência e do limbo de cogitação
para eu me aperceber
entre os mantos semióticos da necessidade de ausência
que a palavra se apaga a ela própria antes de existir
⚜
olho-te entre linho e bagos de romã
minha mão embriaga-se no teu corpo
sobrevoa escutando o mar até ao osso
abraço-te na lenta escrita das algas
e com a densa neblina dum beijo
ensaio contigo a concha do sono
BOSQUEDO
entre alvéolos de sangue e pedra
o senhor dos pássaros compõe
uma nuvem de ritmo ―
do que pode viver o pobre coração roubador
entre a folhagem?
que pode a dormência ácida ante o abandono dos astros?
uma amnésia de clorofila tóxica
[sonho ou pesadelo]
não interessando à floresta cerebral
qualquer dicotomia ―
o que virão trazer pelo ruído os animais do bosque?
cultivam como dádiva vital cada som-sangue?
e porque ruído se pão ao sangue arterial
em cada vislumbre do senhor dos pássaros?
✫
a ilusão cortada na respiração
contadas as espigas de centeio nocturno pelo caminho
com a alegoria fantasmática de flashes da memória
começa eventualmente com uma proposta em forma de noz
excessivamente vegetal a demanda do nomadismo cíclico
de ausências ― a solução do extermínio por selecção natural
por condenação da cegueira gerada pela tecnologia dopante
a aranha-mãe decepa então o fio-mestre da sua própria teia
condena-se fútil emaranhando o seu corpo num xaile de seda
falando ensimesmadamente doente de dentro para dentro ―
✫
a menina das águas falou-me sobre mergulhos no sono
enquanto subíamos uma encosta
e explicou-me implicações do bolbo raquidiano
na vida corrente
depois enveredámos pelo trilho das sombras
que é como quem diz pelo trilho das folhas-esqueleto
a voz da menina das águas reiniciou energia
na cor do movimento das folhas à nossa passagem
devolveu espíritos a ausências feridas de pensamento
rodopiando surge a rapariga das pétalas vermelhas
girando vertiginosamente o véu de cinza que traz
sobre a cabeça ― o que o mundo terá a dizer agora
não andará longe do pontilhado das línguas de flores
num suave momento perfumado e sob o olhar atento
de árvores invertidas que atendem a perfusão de luz
no peito da rapariga que rodopia entre as pétalas ―
filha de duas árvores secas ela sobejou da água de palavras
não sabe o seu nome, só que nasceu no bosque; conhece
um por um todos os faunos e as mais recônditas nascentes
― a dança é a energia de berço que desde logo abraçou
e domina os trilhos do vento manobrando-o no exercício
dos aromas nomeados até à exaustão por recalcamento
em cada decalque ontológico designado de movimento
as árvores invertidas vêm de uma humanidade desdobrada
cada humilhação conta na necrose emocional das estações
perdem água por osmose a choros desamparados e limpos
seus órgãos internos atravessam os reinos animal e vegetal
intermitentemente estranhando qualquer ordem biológica
― por comoção da dádiva da rapariga rodopiando as pétalas
geram um arco de tensão como improvisada placenta de luz
✫
pressupor que a criança sacuda o ouro umbilical
e caminhe directamente na brancura adulta do sono
pressupor a existência complexa do rude ferro
em amplitudes côncavas do arco-íris
tudo na possibilidade de um cofre lenhoso
mais duro e precioso
no cerne lento de cada árvore vertical
posicionada em consonância
com a temeridade indecisa de constelações
lá no alto
✫
pelo silêncio o senhor do rochedo imolou-se fugindo
à pandemia de falsos espíritos ― escapam-se-lhe palavras
entre meatos de uma meditação mineral, dói-lhe bem fundo
no coração de quartzo; no seu corpo estão milhares de ossos
de homens e de mulheres, e de muitas crianças também
talvez a principal razão do vento cantar através das rochas
porém o cerne do senhor do rochedo não é um coração
antes um livro de basaltos e lavas antigas com um segredo
de fechadura que é um eco de montanha; eco andarilho
de trilhos tão complicados como arteríolas no cérebro ―
qualquer explicação reduzida a poeira estelar se cremada
a intelligentsia
compreendo melhor a fuga do senhor do rochedo
depois de ter falado com a minha própria sombra
na estrada ― afinal sou uma marioneta-de-sombras
um búzio com mortos a falar lá dentro, sou uma pedra
no caminho
chegado ao alto do rochedo meu senhor adormecido
com as minhas velhas sandálias aleijadas de sono e êxodo
cerro extasiado os olhos e adivinho os aromas da brisa:
pólen, restos de orvalho, algum suor ainda não apodrecido
e especiarias; humedeço os lábios com a língua, faço deles
um papel-segredo vazio de escrita como se eco de montanha
a fonte planta desordem na origem reinventada
da linguagem
começa por uma semente da fala treslida no sonho
sonho como globo de fruto arredondado
em palatos do espírito
a desordem é a árvore que a fonte não vê
embora a alimente
havendo entre dobras e recantos de membranas
um plano de sangramento da ideia à procura do corpo
a fonte planta desordem na paisagem
nem o horizonte nem o zénite do olhar
dão a medida do espanto de versos
saliva mágica da permanência
o bloco de carbono pesa como noite inteira
✫
não entendo a tulipa negra na noite
abrindo e fechando outrora mão uma flor
leque de silvos urbanos surpreendidos pelo incêndio
passo a passo desaparecendo
magoadas sombras
sobrepostas à faca ―
dançar por um segundo no átrio entre transeuntes
ler em sacrifício a morte calada pelo clarão do espasmo
emaranhado ferido de células-monstro
turvas turvas como um furacão interno a aleijar
música ferida a ferir mais e mais passo a passo
um frívolo rosto gigante da mágoa
desaparecendo traço a traço
ao queimar memórias no périplo da solidão dentro
✫
às vezes na mínima poça de água esverdeada do bosque
como que acontecendo algures dentro da barriga das palavras
consigo sentir ainda o torso do mar zangado
duma tarde chuvosa de setembro enganado ― e penso
a mínima gota da poça de água
aos meus olhos ainda é torso viril do mar
redemoinhando verdes instáveis e espuma
. sou esta manhã o que fui naquela tarde
por dentro do torso do mar
os dedos a medo pressionando o veio
prevendo nuvens negras como cachos de azedume
a pesada cabeça inteira tentando ser o sal
― na fisicalidade e na memória
a turva e feroz água-mármore do mar
esborrata as palavras no lodo fibroso do pensamento
✫
volto-me aquando a intempérie do teu rosto
volto-me revolto nu
vislumbrando a madrugada azul
e dormindo mais tarde no nervo da folha
magoada de dedos
sopé da verdade suja, desvirtuada
roupa destruída dos anjos desertores
entro e reentro na fúria do búzio
enquanto osso
o teu rosto entra no meu
e uma praia sangra no acordar lento
parte metal funcional
linha triste dum choro de frutos
despidos à mesa
é na curva do silêncio
que as árvores centenárias caminham
no pensamento
― falo da viagem que é esse teu rosto
confundindo-se com o meu ―
mais um minuto de sono
entre memórias de frutos magoados pelos dedos
bebe a minha morte branca
que a noite escura guardo para mim como vinho de lírios
ofereço-te antes
os campos onde salgo o meu cansaço entre o feno
talvez por não me veres engolir as paredes
deste quarto já corpo
retesado betão da desilusão envenenada com a fome de fetos
por não me veres a desesperar de esperas entre esperas
prenhes de ar balofo
esfriando as esferas do universo na mão, por não me veres
a desesperar bêbado com a terra moída de fogos sem língua
cai-me tinta na pele e é sangue
cai-me sangue dos olhos e é tinta
entre ervas secas tanto perfume caramelizado de livros
lidos e revolvidos nos intestinos
bebe a minha morte branca
que seja alimento de vazios engrandecidos na tua escrita
a noite escura é-me rio onde nego as faces rasgadas daquilo
que entre a névoa artificial da manhã costumam chamar
de amor ―
caronte não fala da água escura como horizonte, não fala
da noite uterina de promessas corroídas pelo esquecimento
eu espero entre esperas mas já não desespero
e rio-me e guardo entre os meus braços de rio
o que é ser noite
essa morte feita escuridão que me trará nova morada
onde sonhar como dormir lendo na minha cama
✫
eis o promontório seminal ―
ao de leve provar o sal com que a luz da manhã
fere a barriga
silvo feérico do bosque entre o suor nocturno
a enveredar por sombra
contra a luz de cada coisa a sobrar em reflexos do dia
― o promontório seminal ―
forma de brincar à perigosidade lenta de espelhos
confrontando sanguineamente cada pétala de sal
✫
está um velho cão cansado na floresta ―
nenhum amor de lobo o vai salvar
✫
mãe árvore
os nódulos da culpa toldam-me a maçã de sol
, detrás deste nevoeiro veranil quase biombo
pergunto-te:
serei digno de a trincar?
mãe árvore
minhas mãos crescem como ramos desajeitados
procuram expansivas o rumor das águas
[sede em ler nos nós o sangue mentido
como agrura alcatroada do supérfluo]
mãe árvore
visto ferida a ferida por camisa
em vez da humilde carcódia
: côdea a côdea floreio um ruído de cinza
como se dizer fosse um borrão de tinta
sobre a boca
✫
lá em cima cada nuvem equivale
a um osso
aqui abaixo
sério arranhão onírico
a cada razão de verdade
em som e delírio por palavra
cada ave
um baque do espanto
[ar ou terra]
de cada sentença
✫
pessoas há que morrem para dentro ―
algumas tentam evitar essa morte
em nicho de depressão
morrendo repetidamente para dentro de livros
✫
este céu de crivo azul onde dançam
centenas de variações de trinados de pássaros aflitos
. com um papel orgânico este céu escrevendo azul
surpreenderia humildemente rainer maria rilke ―
porque som e gravidade em movimento rotacional
a vertigem em cacho de sopros da vida incendiária
sopros postos em vitral representando becos do espírito
este céu ― pão molhado raso à boca
e nenhuma estrada faz a camisa do mendigo
vivificante vagabundo das fábulas à fogueira lunar
, mas o som com o seu peso na cor faz tremer
a água cortada pelos barcos manhãs e tardes a fio
olha-se o céu ―
uma mancha regulável em tamanho e espessura mental
invade misteriosamente cada célula e glóbulo sanguíneo
a ausência presencial | o fantasma dos sopros pulmonares
pois rainer, temos então o céu como pão universal
e o seu complexo crivo azul como morte natural
temos a tese e a antítese, o veneno e o antídoto
todos os apetrechos cenográficos em suspenso nos bastidores
e no palco o elenco em coma à mercê de uma antífona
por um fortuito encontro
entre a fagulha de chuva e a estilha acesa do corpo
como que por entre gritos interiores e membranas
surgirá por fortuito encontro a ideia de um clarão
entre o linho e a pele ―
ou mesmo um quase imperceptível soluço
estremecendo por espanto a escala crepuscular do âmago
ainda que ridicularizada por ossos dançantes
fogueira branca na clareira do bosque
alimentada por secas ramagens quebradas pela peste
e pelo esquecimento
✫
que diz a chuva ao interior de uma casa em ruínas?
tremendamente febril este retábulo à varanda
uma casa em ruínas exposta no miocárdio da cidade
, suas entranhas gritam à verticalidade intacta
de outros edifícios periféricos ― irregular linha amarela
com polpas avermelhadas que pulsam ao olhar interno
de uma solidão de esperanças
e porque a chuva diz de mim por transcorrência
esboroo a realidade como quem esboroa a carne aos tijolos
dessa casa ― também assim a vida
erosão absoluta perante uma multidão estática
conivente com a chuva
lançando imperceptivelmente sua saliva ácida de indiferença
numa girândola camaleónica entre cruezas da verdade
uma casa em ruínas exposta no miocárdio da cidade ―
quem realmente escuta o grito ontológico da memorabilia?
porque afigura-se-me importante a sua auscultação entre
inflamáveis significados do significado antes significante?
tantos ratos cantores nos corredores da chuva
e nenhum flautista de hamelin no horizonte
✫
procuro guarida no verde
como palma gorda do vício de recordar conversas
entrosando caroços de pólen nos nós da carne nauseada
conversas como agulhas
tremendas ondas concêntricas no esterno
minguando violentamente o oxigénio na flor do sismo
agora que a senhora da floresta adoeceu
todas as almas presas às árvores estão em risco
abandonadas à fome sob o plano lunar do abismo
a senhora da floresta em dor se esvai em atrocidades
e esquiva-se a pensamentos humanos de outrora
transumando-se internamente entre o vegetal e o mineral
guardando apenas uma canção que lhe corre ainda na seiva
― não sabe se azul de energia da poesia ou alucinação
pela dor de contrição de uma antiga raça a que pertenceu
os estertores das almas estão entre as variações de trinados
de pássaros inquietos na concentricidade do abismo
turbilhão de carvão pesado assombrando os olhos
de encontro ao gume imaterial que abduz a planície
[presas às árvores todas as almas a morrerem de inanição]
um objecto de plástico pulsa na aorta da senhora da floresta
miríade de falsos floemas afundando o avatar no xilema
o ramo que é braço parte e arde longe dos elementos
desdobra-se em vazios, alheia-se de qualquer dimensão
que choro petrolífero poderá almejar qualquer dignidade
a propósito de uma selvagem inteligência destruidora?
✫
recebe este sangue caminhante das estrelas ―
vê florir a mínima coroa de pão e de lágrimas
sustida pelo raio de luz da infância já longe
recebe este sangue como se um resvalar equivalesse
a cada eco da montanha que faz bater o coração ―
o caminho é de ventos cinzentos e de bolor confuso
contra o bater difuso da chuva que sulca o espírito
o caminho faz-se pela escarpa de sonhos farpados
e cada lanho de arame na pele te fará sentir vivo
não destrinces ninhos cancerígenos do passado
cauteriza fantasmas e pesadelos com a nova luz
sai do hospital como orfeu do inferno e respira o azul
depois da tempestade | rebenta como onda no areal
diz bom dia à aurora como reaparição da flor de pão
e abraça o teu corpo feito de nuvens e de pássaros
avança no dia redemoinhando as células no trabalho
ainda que o horizonte mude de cor ao crepúsculo ―
recebe então este sangue caminhante das estrelas
sim, tu que és eu num qualquer canto do planeta
✫
esquecida a cadeira de mogno
a apodrecer na clareira
uma impressão de molinha súbita sobre o bolor
de velhos mapas abandonados
, que regresso restará ao peregrino mental?
arbítrio de humidade e abandono
dissolve-se submersa uma personalidade
na angústia de felinos vapores
com cheiros mescladamente confusos
. escuro esquecido trabalhando a morte ―
uma a uma as personagens aparecem cada qual
com uma arma de seu apanágio natural
mas só a de carne e osso [fugida dos espelhos] sentirá
no peito o toque do orvalhado rebento de videira
olhar rápido como fugir ao inescapável vazio-vácuo das horas
gotas pendendo nos telhados são órgãos alheios complicados
e deturpam as pautas do casulo que em constrição convulsa
vai augurando uma aura de assombros na leitura do mundo
✫
um sono como relicário febril entre sépalas da cama ―
ela dorme e os cabelos parecem acordados de orientarem
preces da promessa de um casulo cor de fogo, nave de luz
ao toque confusa, em que o osso esboroa em neve e a carne
passa de vermelha a rósea, de granito cru a mármore diáfano
a tensão de beleza extrema provoca as gadanhas da morte
violoncelo deitado no gineceu face ao mundo tonitruante
: sob vigília ela dorme e os seus sonhos dormem com ela
o corpo expande e contrai feito mar de leite madrepérola
um grande crime se esconde dos perigos do coração ―
mato-me de vida enrodilhada nas mãos ―
que conter ainda no precipício de cristal?
sulco leitoso de sonhos, cobras enroladas
à espera na margem esburacada dum rio
escuro fundo de reabrir durante a noite
uma mão muito ferida na vez do coração
fogueira galante de árvores caminhantes
desenho de copos sobre copos no branco
gritos de cristal ecoados nesse precipício
a linfa ao lado reacendendo corpos frágeis
sede sedada, nenhum amor nenhum futuro
mato-me desacreditando a fé dos leprosos ―
onde a aura do desejo contra a melancolia?
aura veloz | contrastes que se autoanulam
trazer o perímetro flamejante para a vida
curar sombras com sombras pelas sombras
o coração ainda bate azul como fogo-fátuo
as mãos vazias, uma ácida inocuidade vital
que envenena a vontade e enegrece o linho
― sei que a crueldade curvada dos dedos
há-de rasgar a seu tempo a camisa abrindo
o caminho à morte limpa sobre as estrelas
✫
assim peregrino descanso dúvidas muitas em suspensão
de visitar amiúde as formas impalpáveis do vazio lido ―
congrego ausências pesadas de morar em silêncios vivos
e nada é foz do que digo antes sombra gotejada pela dor
assim peregrino preocupo-me com o rebanho aforístico
transmudando-me na transumância onírica das palavras
✫
diz-me por favor em que ponto da efemeridade estamos
se existir entre ossos tal ponto de resolução ou derrogação
qual caroço de adão ou maçã de eva criando bolor na bíblia
por favor diz-me como cão que cansado desistiu de ladrar
fala-me da capciosa colmeia negativa do gordo capitalismo
que força impele nesse nicho de contrariadas cabeças pesadas
que falsos favos de mel valem o tremendo trabalho sugador
fala-me também da ilusão do fruto na boca como beijo real
fazendo contar cada morte como ária de celebração da vida
riqueza do desperdício rizomático duma árvore genealógica
diz-me agora, por favor, um grande copo de água na cabeça
e esperando que a água ferva borbulhando com a mentira
assombrando pesada como papel de contrato sobre o pano
a envelhecer por contágio e de vez enrugando amarela a pele
diz-me então o que sabes da verdade de verdade, por favor
conquanto eu suspeite que nada realmente acrescentarás
ao que desassombradamente ricardo reis por herança deixou
aos cadáveres adiados que procriam entre infensas alvíssaras
ou ao que recentemente perscrutei na brisa dum crepúsculo
como omissa conversa entre grão de pólen e grão de areia
PLEURA DE PLUMAS
de escutar a água entre o real e as palavras
esperando o sono
a lentidão atendida, uma água na simplificação
da saliva e do orvalho
[memorando do escriba à sede]
assim se ouve falar de uma esgrima tentacular
sensaboria líquida
incomum na paráfrase dos movimentos
o som-sangue que é seiva sucedânea
do momento em que se escala a cor em dor
assim se ouve falar
e a água vibra bêbada nas plantas e nos animais
vibra no orvalho e no olhar
na saliva dançante
que une de energia os amantes
✫
, e depois a noite
dois olhos de gelo
a negarem excessos da boca solar
sobre um diário
― nunca linhas tão duras navegaram assim
sofregamente na cabeça
anémico surge o tigre branco
numa selva demasiado escura
[dois olhos de gelo]
✫
. o que penso morre mais à frente
alguém armadilha-me
o ouvido
não posso confiar nos sons que se me apresentam
vivos e loquazes; são a morte
de antemão
o que penso morre
porque morro instante a instante
como pão com bolor negro
, é isto o peso em dor de esforço e desalento
é isto, o vento que apaga nomes que não chegarei a ter
de voz em voz, de pele em pele
não posso confiar mais nos sons
nem no peso do vento quando penso naquilo que morre
mais à frente
✫
: um nó precipitado de vida como reduto de fuga
, a questão nem sequer existe como acontecimento
porque ser não pressupõe pressupostos nem análises
, a questão de manchar um linho por si só abstruso
estará tão longe ainda do líquido amniótico ―
e que nó de rodeios nervosos num gargalo tumular?
que nó de freios e veios apertando tendões e válvulas
à construção do ser que trabalha já a sua própria morte?
✫
quando vires o trabalho das mandíbulas naquele rosto
que te escuta
[kabuki]
foge, foge para bem longe
evita as pessoas com esse som de areia
nos músculos faciais
[kabuki]
este é um aviso à miserável sátira humana
há uma fome inextricável na rotina dos cumprimentos
um óleo na pele cujo reflexo
poderá ser fatalmente venenoso
[kabuki]
foge, foge da ladainha circunstancial do convívio
qualquer boca vira aquário
dum peixe asquerosamente só
[kabuki]
e sim, sei que este poema parece padecer
dum misantropismo desenfreado
mas trata-se da constatação cruel da natureza
ou não
[kabuki]
✫
a árvore no horizonte quase recorte
súmula de solidão
as mãos afogadas
misturadas com o vazio
das horas
linha do azul transpirante das marés
atendendo a circunvoluções tardias
do cérebro
linha que recorta as ausências
e faz falar a árvore
na sua insignificante significância genealógica
agora
subida a transparência das entranhas
[por introspecção invertida talvez]
que territórios indagar no baldio dos olhos
quando a intermitência do humor
fractura qualquer possibilidade radicular
à árvore?
✫
este poema acontece nu
entre o asco do mundo
nenhuma roupa substitui qualquer dizer de pele
sonante entre células avulsas
gritos perdidos nos becos da cidade
lábios gretados de dúvida
num qualquer frio sombrio de aura civilizacional
um corpo nu em equilíbrio alheio
ao mundo
descarnado de pseudocantos da hora adversa
um corpo despido de sons metálicos e outros
ruídos tóxicos
a tentar ser natural consigo pela neutralidade racional
a tentar não ser mais uma máquina num jardim de betão
este poema é corpo
de encontro a um branco fulgente
natural e irascível face a solavancos nebulosos da psique
este corpo é poema saído das margens da locução
saído do desenho mais basilar feito a lápis-lazúli ou a carvão
uma folha tremente de sentidos entre veias e artérias
em contracorrente ―
✫
os olhos do passado cristalizam-se de mentira
baços no pensamento representam
o vurmo incognoscível do presente
, a mentira
a cinza de corpos traídos na memória
] nomes | sombras | espectros [
cinza movente de paisagens oníricas magoadas
mentira movente
dentro da verdade inextinguível, feia
a verdade esquadrinhada pelo sílex fervoroso da retina
ou o passado vindimado pelos olhos
. um sopro azul
✫
a dança oculta estranhos rostos em borrão
montanhas que se abrem como deuses
assuntos menores de dízimo e cinza
moedas de pedra
lançadas na sorte púrpura dos dias
, moedas como
línguas mordidas de desespero na ignorância última
do universo
até como brincadeira pós-moderna de amputar teorias
ao entretenimento da ciência
enquanto se espera por uma súmula geológica reveladora
ou pela grande amnésia que apagará um a um os continentes
ao mapa-múndi
✫
nem que do iodo perfumado surja de repente
a rapariga entre as mimosas
errante em encruzilhadas de fantasia
fuga ao real ou mesmo sonho
nem que falhe a mão
outrora gato agora pássaro
[ideia de cheiro]
a fêmea incendiária num cerco de marfim
― de rever madrugadas na sombra alagada duma cama
promessas de especiarias das mil e uma noites ―
nem que da anfractuosa noite
apareça da água sobrada a mulher das fábulas
nem mesmo que os envidraçados relatos dos ausentes
guardem indelevelmente
todas as formas nos planos mineral, vegetal e animal
nem que se prolongue a rusga diurna dos fantasmas
nem que o céu ceda a infâmias e vanglórias terrestres
nem que ainda prolifere a angústia na linha da vida
como árvore branca, morta
nunca esquecerei as possibilidades cardíacas na experiência
de cada aroma
✫
ver de costas um semblante ventoso
como se rebentasse
na cabeça ― resulta da impraticabilidade
do espírito
da sua deficiência líquida na memória
, ver de costas
e na verdade em nada resultando
a não ser uma indefinição ácida
de rostos dotados de abandono
quase arriscando um síndrome de magritte
ou talvez um ver de risos podres
com sombras abjectas à realidade ― um ver torto
de ninhos vazios
nas distantes árvores do horizonte
✫
deixa-me olhar-te por dentro
nesta floresta de espelhos magoados
há um lago
a descurar a pouca água de vitral
e os olhos não olham já o real onde
apoucam as lágrimas
que acalentarão o ser sozinho
ser entre sépalas do crepúsculo
ora animal ora planta ou mineral
cerrando as pálpebras
trabalhando os olhos à alma
trabalhando imagens mutantes
a cada pensamento rotacional
da terra ―
olha também por dentro de mim
esse espelho que vês és tu
e sou eu
num labirinto de águas rápidas
o possível abrigo de sons
a soar como um búzio ao entardecer
como ínfimo murmúrio das marés
✫
parece que concebo uma pleura de plumas
ao redor de frutos e sombras
nunca sabendo
o sabor do escuro ou da polpa
numa intermitência repentina devedora ao sonho
que sufraga ardores em
minutos-agulhas
que rastreia ilusões num sufoco-caroço
abrindo lugar
à enorme solidão na planície
… porque concebo enganado uma paleta de poemas
a sujar diariamente uma existência em permanência
, e nas sombras temo a
refracção azul do que não seja azul
temo qualquer gota alarmada do orvalho roxo
sobre os joelhos
: a minha voz de xaile e mágoa
num verso faca que precede o sangue
✫
. do branco cinza a mulher sustém o abismo de ver
, e estaca balouçando na incredulidade
dos homens
porque não é um modelo sonâmbulo
nem a garantia da prole
é uma mulher
uma mulher contra a violência branca da formatação
suspensa entre pequenos pulmões
que trabalha em redor
, trabalha cada espasmo filial arredado de vinhetas sociais
porque é uma mulher suspensa na sua razão
rasgando sempre que possível
as telas ao patriarcado
― a mulher grita num aquário de gelo e surdez masculina
uma mulher indecifrável mas inteira em gesto
como as que figuram nas telas de julião sarmento
inteira na hesitação plena duma voz que cairá provavelmente
no vazio
✫
acordou um dia o diabo achando que era humano
e suas mãos acorreram instintivamente à cova do peito
[pareciam duas árvores inversas de choro]
a tentarem colher atabalhoadas reminiscências de passados
o diabo acendeu dentro de si a floresta dos olhos
procurou as crianças da vila para as enganar
[pela facilidade de ramificação fértil dos sonhos]
procurou confirmar a saúde da sua natureza cruel
sempre medindo a mínima variação de temperatura
porque resolutamente o diabo não quer ser humano
daí o seu pânico por febres e metamorfoses
as mãos acorrem sempre à cova do peito
o diabo baralha-se com a labiríntica panóplia de sangues
sangue do céu olhado pelo sangue fervente dos amantes
esse sangue puro transmitido às crianças que tenta enganar
sangue sangrado na poesia muda duma existência quase azul
confunde-se então o diabo com o que será a matéria humana
emerge uma entidade monstro do rio do esquecimento
sente que perde a identidade que nem conceito já concebe
mendigando compaixão nas sobras de sombra junto à fonte
o diabo emagrece e nos seus cornos transparecem
em via-crúcis os pecados do mundo ― à beira de morrer
uma mão de criança acorre-se-lhe à cova do peito
acendendo-lhe memórias de cada sangue que enganou
✫
esta tentação de sucumbir à figuração
intentando arranhar uma narrativa que exorte
a masturbação
por receituário benemérito da civilização
como ciclo findo de uma dor mimetizada
como que cobrando hormonas de substituição
por alguma paz
algum lugar com a licença de se estar incógnito
e sem função
✫
preso a uma ideia de vácuo como se cru o silêncio do sono
como se um corpo não conseguisse existir de novo à tona
um corpo como que a
apagar-se numa respiração conflituosa e subterrânea
afundando-se progressivamente na elisão de uma identidade
como se não se lembrasse da função da memória
por elemento tangível a uma liberdade
como se reduzisse a enigmática dor a
um complemento sideral de complexidade rasa
perigosa como uma faca de luz ininteligível
preso à ideia como que implodindo numa entropia biológica
imitando pateticamente o grande universo
num jogo de galáxias cognitivas
desintegrando qualquer reaproximação à respiração inicial
como se desafiasse a regressão celular e atómica
de uma consciência líquida
entre líquidos que de certo modo nunca entenderá
porque além entendimento é a ideia de descontinuidade
sopro conciso reabsorvido na sistemática elisão nominal
como vácuo tranquilizador de uma obrigação existencial
✫
a necessidade do poema vem de uma ebulição compulsiva
e portanto nunca me interessou saber qual a sua exacta
fórmula alquímica; há que resolver nos nós da carne apenas
assim os passeantes em desfile com os seus fios de narrativa
perante a televisão cerebral que estes olhos têm revelado
nós de súplica e indefinição em barulhos que se ouvem
apenas à noite e sem saber se em estado de vigília
ou em pleno sono ― a vida é uma febre, depois passa
✫
não mais do que um periclitante equilíbrio dum grão de sal
esta imagem gorda do mundo
como se de repente quisesse encontrar
o contrário da minha boca ―
✫
num recanto do autocarro uma bolha humana
malograda mulher
com hálito a álcool e mágoas
sôfrega no seu redemoinho de músculos
à distância
uma flor silvestre tatuada de hematomas
uma tela viva de francis bacon
✫
as sombras no areal conversam além azul
face a interlúdios da voz do mar
o areal como pergaminho envelhecido
pontilhado por pulgões de areia
testemunho calado de eras findas ―
e que conversas se perpetuarão
em cada risco de ave, gaivota ou não?
que som inteiro quão real como concha vazia?
que risos ficarão nesta praia à mercê da erosão?
na confusão de pés e iodo ao redor duma boca
que manto azul guardar de memórias e vento?
[saudades do mundo das lágrimas em maresia]
não compreendendo nunca o que as pegadas escrevem
não compreendendo nunca porque o mar as apaga
✫
o embrião da matéria, o que é?
quando pensar se revela
não mais do que um errático esboço longe do quotidiano
o gérmen volátil da palavra oca
o que é? a mística desentranha-se do absoluto indolor
desentranha-se por inquietação
defronte a máscara
[cadência de abismos múltiplos]
chuva identitária dum rosto
a apodrecer continuamente no papel
✫
. o diafragma desdiz a eternidade
, tanta lama a estragar-se em luzes incompreensíveis
dissimiláveis a cada aragem supérflua da ignorância
como quem diz grão de areia em vez de pólen
não visto e portanto realmente morto já
sem figurar em ânsias de arte
ou outras construções
, os vivos puxam fios aos mortos
e os mortos mantêm-se na sua imobilidade cantante
casmurros na sua eloquência discursiva da autêntica verdade
ou seja, a morte como mecanismo de implosão
esse diafragma variável da não paisagem
acto persecutório do sonho em carne viva
. a efemeridade desdiz o diafragma
✫
a mesa, a mesa perpassada por ângulos obscuros
segmento isolado do que a custo perdura
em forças de introspecção bromatológica
a mesa, a mesa devolvendo a grande planície
uma confissão invertida da própria renúncia
: as vozes no interior dos alimentos
✫
entre ler e dizer o que comer entre vazios de alma
entre o que fazer de vísceras floridas para o nada
que escolher entre sombras maiores do que o tamanho?
entre folhos de mentira e frutos perigosos que vêm da fome
entre fúrias de sangue e bílis que alumiam e escurecem o dia
que rosto ver em perfume e ilusão a quente, a ferver?
― há um figo a arder e esse lume vai doer e corroer ―
✫
o grito como animal estranho entre outros sons
longe já do gutural arrependimento vivo
insípido como o falso brilho da morte num recanto aceso
do lilás ― arremedadas as ameias do susto
e também ele encantado com o muco da adrenalina
a noite advém floresta
luzindo entre o carvão vegetal do olhar ― o grito
memória a esquisso sobre a laje dos músculos marmoreados
o grito-caverna como súmula de dor
que minuto a minuto destoa a cor ao
genuíno ser perdulário brincando no centro da clareira
meros ensaios de câmara afinal
e ninguém adivinha a chave que designará o estilete vital
a escrever o arvoredo das margens ao centro no horizonte
ninguém se consubstancia de novo naquele grito inaugural
apesar do intrafamiliar peso amniótico dos ultrasons
trazidos entre gestos e confidências ombro a ombro
ninguém sonha a folha de céu como pauta de antífonas
porque ao engano andam os detractores existencialistas
que se pavoneiam em tinta no jardim dos catecismos
ninguém grita afinal, vista esta miséria humana
do mais recôndito zénite do universo
✫
, e quando se mede o desperdício da juventude
passa-se a temer a fragilidade da porcelana dos ossos
e dos dentes
o tempo transcorrido fútil numa vibração criminosa
as mãos cheias de cicatrizes
de ensaios tortos
num sujo céu em tela pobre onde só poderiam estrelar
dores de cabeça e perdas
espasmos de memória deteriorada
[o desperdício]
passada rápida num apressamento caliginoso de processos
tétricos movimentos em desespero
o desperdício a nu
na escuridão da solidão
e não cabendo nunca no âmago da alma ambulante
contra si cambaleando
entre corredores que se autoanulam
não cabendo nunca no ritmo incessante de uma música
que afinal é ruído
como água perdida fria entre os dedos
o tempo transcorrido
a areia a doer no sangue
sem vermelhos ou melodia intuitiva
do romance
✫
o vento que assobia pela fissura dum abandonado metal
enferrujado ― a poesia
no seu elemento mais natural, acontecendo
entre as margens de luz e sombra de uma ideia
ou visão
a garganta enferrujada num deserto de imprecisões
do real
uma guturalidade que se perde nos sentidos
entre abismos defronte objectos, coisas que são carne visual
e magoam na intersecção das linhas
no horizonte
, que contiguidade questionar ao sangue, à terra e ao vento?
✫
se o amor ou a sua ideia é um breve fio de seda que mente
junto ao ouvido mais desprotegido
e delicodocemente se enrola em si próprio
em cheiros e fobias atraentes
tecendo-se enganado como que caindo em abismo
quase sem peso ou remorso
na página inferior da mais débil folha duma amoreira
se da falaciosa noção o fio se crê rodeado de novo
em torno da afeição
ele tão estranho como belo e nenhum todo
tinindo esticado um malogrado espelho que subtrai
todos os beijos às bocas
e devolve a verdade em aranhas malignas que escurecem
esse promontório dos bichos-da-seda
se o silêncio é amor em labirinto
fustigando tantos olhos com o
incalculável número de ovos que não chegarão a larvas
amor na ausência de fuso e roca soando o esvoaçar azul
de aves inquietas que escrevem nomes à solidão
nomes num papel de arroz em esquecimento
longe de qualquer olhar ou ouvido
✫
conheço um lugar onde
por breves momentos
deixam de se ver todas as feridas
, vermelho só um desfiladeiro mental
a rasar harmonia
conheço um lugar que é todo ele
um espanta-espíritos
onde converso comigo num magma espiritual
de água gelada
entre penedos e vegetação
um lugar de choro feliz
para uma humanidade desalinhada
com o mundo
um lugar em que acreditar é um novo continente
a habitar de almas brancas
um lugar para ceder ao toque do musgo e da pedra fria
para florir pele apaziguada
abandonando este lugar as feridas voltam à visão
― desenham um mapa-segredo para regressar