[Edições Esgotadas, 2024]
allegretto
GLÓBULO
seguindo perdido a fúria emergente do anjo
no glóbulo de sons d’água que é este jardim
labirinto de lágrimas de sono em desarranjo
a construir pela música bem dentro de mim
, à passagem vozes e sombras redemoinham
qualquer acção precipita o glóbulo dançante
os sons são as vértebras que se enclavinham
constituem o novíssimo mundo murmurante
e assim o anjo perde-se numa torre de babel
nenhuma noção dessa arquitectura emocional
que compõe a arbitrariedade do glóbulo fiel
almejo compreender esta velocidade arterial
com que as musas confundem vazios no papel
e os fixam absortas por cristalização imaterial
RAIO
. o raio grita amplo sobre o veludo
não se precipita, pelo contrário, vê
. o raio como visão a meio de tudo
não perguntando onde nem porquê
, estranha espécie de escrita calada
a remoer como que por insubmissão
, ou então ingrata luz suja de escada
sem espectro, vicissitude ou escalão
memória da lua esta luz a soçobrar
nalgum derradeiro vão de escada?
ou talvez um falso veludo do limiar?
por mais que a escuridão em si tome
uma explosão do sangue por fachada
o raio sempre gritará amplo seu nome
NEBLINA
densa neblina do sentir, estas vestes
não vingam o sangue despido agora
outra barca do som flamejando estes
instantes arremedados de outrora ―
vacilando à noite esta chama no peito
nada percebe das panteras à espreita
nem desse incenso de lugar perfeito
ela vacila como caminha, insatisfeita
instante a instante o pulso não muda
aos cofres de pólen é inútil recorrer
o fio de ariadne confusamente ajuda
a incerteza de trilhos fulge em cartas
muitos os significados acesos de viver
ó densa neblina que tudo me apartas
CANDEIO
árvores cruzam-se no pensamento
por melodia enleiam-se ao vento
que vida as observa? o que assenta
das seivas este sangue estrangeiro?
encher de luz o que não alimenta?
pode a seiva ser sangue por inteiro?
e o que diz de mim o barulho fora
quando me sinto logo a ir embora?
cruzam-se as barrigas de pássaros
em pleno voo pingando trinados
as árvores pensam pardais avaros
a vida multiplica-se em mil fados
é um retábulo de céu esquecido
o que sobra dum mundo ferido
NUVENS
. à distância um gesto fervoroso de nuvens
coração lodoso de acantos na flora nenhuma
vertiginosa temperatura à maneira de rubens
: em que ciosos disfarces se esconde a pluma?
o bico fosco entre plasmas na delação do suor
se a casa vai falhando na ilusão do trabalhador
a ideia de pintar as sombras ao gato no telhado
aparenta dívidas à lua e míngua de água estelar
ou somente um memento ao oásis abandonado
ainda procuro nos lábios reminiscências do mar
apesar de perniciosas lembranças com trovoada
numa incontrolável girândola de bocas por nada
: posso permitir-me à ilusão dum futuro risonho
quando nuvens assumem a ideia óssea do sonho?
CÃO
entra-me no espírito este cão
o seu olhar húmido e aleijado
diz-me que toda a fala em vão
como cancro se tem espalhado
conto-lhe no corpo as feridas
«grandeza humana inteligente»
a enganar naturezas perdidas
à civilização industrial doente
age em mim a água emocional
como benta saliva atmosférica
acorda-me a grandeza animal
o cão mensageiro das agruras
escreve na ambiência feérica
as suas qualidades mais puras
ARENA
a linha invisível dos justos
cimentando arbitrariedades
jogo de equívocos vetustos
equacionando contrariedades
esta será a alvorada mentirosa
da permanência dura e aflitiva
sem fios mestres vista aleivosa
por intuição na arena primitiva
injusta a linha entre estes cegos
que devoram a carne dos filhos
na margem secular de desapegos
uma alvorada enganada de atilhos
incognoscível brincadeira de egos
― um triste mundo de andarilhos
LEITURA
ler é gritar mudamente para o interior
o que dentro foi vivido e revive agora
no corpo de uma estória ou livro maior
entre as dúvidas no limiar duma aurora
o que chegou morto entre as mãos, frio
e pede para se hospedar no corpo legente
acordará em linfa e sangue muito quente
com moradas de água vegetal sobre o rio
― de ter à espera o anémico inimaginável
de visitar em sonhos as obscuras bibliotecas
de gritar o interior humilde e insofismável
o leitor é dono e senhor de todas as portas
sem coalho, fôlego e sangue nas veias secas
todos os livros são restos de árvores mortas
CARGA
entre outros corpos um corpo humano
sabendo cada detalhe da futura privação
viajando em estrita e sincera debilidade
trezentos e quarenta gramas de coração
seiscentos e sessenta gramas cada pulmão
viajando húmido e frágil na sua vacuidade
corpo humano com a sua parte de chama
mil e trezentos gramas de cérebro atento
a cada mínimo estremecer de membrana
humana e sonhadora obrigação deste animal
a de desejar a viagem como único invólucro
mesmo que hipersensível na miudeza visceral
― porque pesa então em transgressão a palma
se nenhum grama assombra a mais gorda alma?
POLAROID
a música parada dos objectos ―
crer na cor de linhas em cólera
para subsidiar monstros abjectos
desmoronar o que se não tolera
e coleccionar ocelos de insectos
intrigante o sangramento onírico
que habita o deprimente estúdio
e o torna deploravelmente lírico
sem que haja o mínimo prelúdio
― uma cama de aguarelas e sexo
turbilhão emocional desconexo
senso amplo da água perturbada ―
só o fogo pintará realmente o estúdio
libando às coisas a sua música parada
CAMA
. cavernosa flor de linhos vermelhos
um sono de lutos entra em gestação
a cama guarda acesos fôlegos velhos
que às vezes entorpecem o coração
pétalas e mantas o corpo confundem
embaraço nu entre lençol e estigma
mas não saberei que sonhos aludem
a pesada cartografia é o paradigma
cumplicidades de colcha e colchão
esmagam-me o peito abandonado
subo a perna e liberto um pulmão
a dor e o cansaço mudam de lado
se flor não é, talvez casulo ou nave
ou na perfídia da noite alguma ave
ÁRVORE
quando a árvore faz a vez do pássaro, aqui
inventando plumas a riscar olhos humanos
ardendo de insónia bem para dentro de si
azul guardado e azedado por deuses insanos
que a árvore tem um filho dentro, aliás voa
de mente em mente às vezes somente ideia
abraço e aconchego entre ermos nunca à toa
que a árvore tem uma filha dentro e clareia
o espaço vazio ou cheio de pequenos nadas
pois a forma do voo significa toda uma vida
o pássaro cantará todas as árvores cortadas
chilreio dourado repercutido a cada ermida
árvore-ave no riscado lêvedo d’olhos insanos
azul libertado e amado por deuses humanos
MONTANHA
, entre sublimes limites da elevação
dizem-me as árvores que o nevoeiro
restaura o sémen vivo de uma visão
ávido cinjo os pergaminhos da pele
entre artefactos animados de cheiro
e tudo o que a boca em segredo sele
pode o corpo na sua beleza nua falar
entre vielas sujas de podres costumes
da verdade trazida do monte a latejar
aberta a ferida a esfaimados cardumes?
que som soará a água no corpo devoto
se essa visão do sémen contrariar a vida
no órgão de lume cada vez mais remoto
entre a verdade sanguínea da despedida?
BARCO
. conversar longitudinalmente com o osso
essa armadilha benemérita da permanência
o barco de marfim saindo caro por retroço
desolado barco sedento de fosforescência
filosofal o osso reorienta os tecidos moles
fala de nós cárneos e de suculências raras
da tíbia ao crânio talvez uns cem mil foles
a desembocarem em assumpções bizarras
mineral o barco e não como o de rimbaud
mas vertiginoso em espanto e adrenalina
as agulhas pendendo e perdendo gravidade
trabalhando adultas nessa monstruosidade
que ascende ao real como vértebra salina
― o barco de marfim nos confins de mim
presto
PALAVRA
no que a língua perguntar
de favo em favo
varre de silêncio
qualquer linguajar
beija-me o oco da boca
por um momento
mesmo que isento
entre os sentidos
, por dentro
beija-me
: nada saberás
da elipse irada no beijo
irrigando a medo
o gosto dos perdidos
NERVURA
fervura a fervura
floresce
a rasura
[raio entre os dias]
vida dura
entre papel
indivisível
à revelia
ou calada luz
por espasmo mudo
[pura tremura]
em texto ou som que dor
no sangue pontiagudo
perdura?
SOMBRA
a sombra ombreia
líquidos lugares
transita de comoção
em comoção
ferida azul do sonho
entre outros vagares
a sombra vai manchando
de tédio o coração
l’ombre
l’oubli
: que quinta-essência
entre avatares
assombrará as almas
em confusão?
DIVISÃO
um quarto que seja rio
fale com o corpo real
e quase me leia esguio
como eu a ele, natural
um quarto respirante
com silêncio líquido
cardíaco e marulhante
ciclo a ciclo redimido
e há quem o mencione
como crisálida volante
[pode ser que funcione]
para mim é um casulo
o lugar ignoto mutante
âmbar órfão que insulo
CHUVA
uma imprecisão à míngua
― plena conversa de água
proporcionada pela chuva
que âmbar de som turva
em abóbadas de mágoa
uma consciência exígua?
entre búzios do espanto
a música entrecortada
adianta uma plataforma
dissolução ensimesmada
― nem adereço ou forma
apenas silêncio por manto
quais vozes em mim escuto?
quem pela chuva fala enxuto?
PRESSÁGIO
subitamente visita-me o cheiro
um sangue de porcelana
quase almíscar púrpura
[esdrúxula filigrana]
e como que murmura
passeando agora grosseiro
pela árvore das artérias
testando a destilaria do olfacto
há um dealbar de matérias
em cada gesto preciso e exacto
uma sobreposição de brumas
de entes com as suas misérias
doendo o sangue e suas espumas
em cada nódulo compacto
MAGMA
da vertigem e do medo
no corpo o arco em tensão
vindo do tempo contra o vento
parte vulcão | parte furacão
sobrevém este corpo com suas
cavernosas paredes de som
avidamente massas se deslocam
por pressentimento e amplexo
uma muscular como espoleta
inteligente armadilha do sexo
outra pairando cinzenta
numa auscultação perversa
da febre e do impulso repulso
por acidez fria se gera a poesia
larghissimo
POETA
a passagem dos anos em paralelo
com a mais entranhável ignorância
mesmo pressentindo o vigoroso elo
ditando âmagos em som e fragrância
sem notícia real desse desconhecido
porém uma presença isenta de corpo
ideia ainda distante do ar invertido
quase líquido torso informe, amorfo
pelos mitos enredada em prata desusada
uma língua ulcerada de poucos cuidados
ciciadas sílabas da circe desassombrada
«estive sempre aqui sobre os teus ombros
escrevi cada um dos teus sonhos farpados
sou o mais definido dos teus escombros»
LEITMOTIV
a ilusória fenda d’água no lago
como consciência saprófita, social
porque ainda se move algures iago
numa atrapalhação de lenços e mal
a fenda d’água é a íris da imagem
mundo a engolir pela visão em rede
duramente fragmentada a personagem
de malgastar nos espelhos sua sede ―
eis que de trepidação em trepidação
algo se revela inalcançável e escuro
e por isso evidência grave do borrão
deturpando escritas à lupa num muro
rosto que cobre um rosto seu igual
havendo uma só boca intersticial ―
APOPTOSE
. esses senhores da guerra nascem sem estômago
as palavras deles tresandam a sangue apodrecido
porque neles a boca é um vazio muito grande ―
sob a vestimenta dum general vive um necrófago
morrem crianças, mulheres e homens, é sabido
por um império egoísta que acéfalo se expande
. os senhores da guerra vivem da absoluta cegueira
são trôpegos cucos precipitando ovos para o abismo
hipnotizadores hipócritas com fome de destruição
, enveredam por uma cruel esquizofrenia de feira
e no tempo viabilizam puro ódio por maquinismo
destroem o futuro arrancando coração a coração
― se contra um cancro acontece o suicídio celular
porque não abate a natureza esta carnificina secular?
MEDIDA
opulento reviver do que se desce
aplainando em alvéolo doloroso
é um novo encontro que esquece
moradas avulsas do ignominioso
no interstício do duplo se escapa
mas muitas vezes rasgando a capa
do que se vive e revive a medida
compreende poliedros do infinito
calado infinito sob planos de vida
, a ignomínia traz o micélio vivo
toda a teia treme em vício estrito
empolando as sedas em cada crivo
de alvéolo em alvéolo nova medida
um novo encontro a cada despedida
POLTERGEIST
reparo que em tudo o que vejo e faço
parece-me haver criaturas prostradas
ou sobreposição alquímica do escasso
equilíbrio onírico entre alvoradas ―
e sei que os olhos são buracos fundos
porém a luz brinca seriamente às almas
como grandeza obscura doutros órgãos
reinventando passados e outros mundos
tocados por todo o tipo de amálgamas
penso eu escorchando a argila das mãos
os dedos que escavaram forma na energia
imanente do barro em transgressão vital
conservam a electroestática do que se cria
no mais inusitado plano pluridimensional
TRAUMA
um rombo de hemáceas em perfusão ―
os seres mágicos abandonam os nichos
as medusas cerebrais entram em rebelião
[fuga de loucura em carismática evasão]
quantos de mim no trauma, que bichos
engendro neste mundo em dissolução?
, vejo duplos nas dobras do tempo baço
recaem em feridas velhas sem tradução
ainda toleradas pelo reino do cansaço ―
e todos os seres mágicos, para onde vão?
tão estranho evento como o nascimento
e nomeiem-se os estrangeiros em evasão
nesta intermitência de desaparecimento
e o rombo, sendo vida, valerá a canção?
DOR
contorce-se no corpo o mapa das dores
ponto de partida cosido ponto a ponto
o corpo extenuado da viagem senhores
e não sei que cardeais ventos defronto
a febre desconstrói mitos refulgentes
não se sabe a origem das origens claro
doendo a vida nos órgãos indulgentes
entre monólogos da dor perco o faro
não sei em que caminhos, que frentes
em que metamorfose eu me deparo ―
a página febril reserva um reduto vital
eu caminharei livre ainda que absorto
nada nem ninguém no plano universal
privar-me-á dessas luzes, antes morto
HERANÇA
a denúncia deste arlequim parado
morrendo desdito entre alvoradas
numa aura d’esqueletos no prado
entre ervas secas ensanguentadas
e seu olhar intenta ser um penedo
sobra como culpa crua no mundo
ânsia viscosa dum remorso quedo
que como adaga ameaça rotundo ―
perpetua-se a vida por desconfiança
no jardim de culpas como herança?
se a cada olhar semeado em gente
for atribuído um arlequim errante
impactando tanto indefinidamente
quantos penedos estacariam adiante?
ÁFONO
uma mágoa com o cheiro a pão quente
um gato persa de pêlo macio na viela
este soneto tem tudo, é-lhe indiferente
até um lago, uma serra e uma cidadela
o fim do discurso em suma a confissão
apresentada a enevoada teia na garganta
isenta de volume e queixume a negação
ou algum eco repercutido que a garanta
, há folhas no pátio de mármore a azedar
folhas secas de árvores e folhas de papel
nem sei porque me dou à estafa de rimar
pois toda a cor de expressão perdeu o tom
não vai haver música ou romance de cordel
afónico deixo este soneto para ler sem som
GRITO
visite-se esta animalidade do grito
não interessando o eco em si vazio
somente o acto cru das entranhas
nem astúcia sem desenho ou mito
talvez narrativa da carne mas a frio
ou notícia da natureza das manhas
visite-se esta animalidade sem pudor
porque vidro transparente a veia cava
do que se revela assim repetidamente
não existe sentimento gutural sem dor
a energia sangra do feixe que se encrava
nessa garganta ferida ininterruptamente
o grito só será animal se vier de dentro
humano se tiver o coração por epicentro
SANGUE
prepara-te, uma língua de sangue invade
compromete aforismos do fútil amanhã
sim, a língua de sangue luminoso há-de
acabar com tudo isto e sem grande afã
, porque qualquer plano subverte o ser
entre corolários dos estigmas e ditados
acautela-te, asfixia esse sono até morrer
como ser-de-mantos à mercê dos dados
a carne velha há-de ser sonâmbulo livro
com o peso de todos os ossos do mundo
bafejado ou não por balbuciares no vidro
carne sonhada pelo sangue cogitabundo
confundindo um veio azuláceo do crivo
dando em sacrifício o lume autofecundo
SEDE
à noite meia água de nada ao pássaro
um refúgio cavernoso de membrana
elo a elo um silogismo que aro a aro
converte algodão em seda na savana
o jogo é o jugo | a sombra é a sobra
em que cova se aninhou esta cobra?
perdidos os esteios na senda do sono
como vibra a noite com música e pão
como lateja a noite do corvo patrono
porque meia água dá dor de coração
a pele perde a água como perde a cor
música no sangue | a água como dor
como lateja a noite do corvo patrono
perdidos os esteios na senda do sono
VENTRE
lúmen adentro o corpo contrai
os risos esquecidos em turbilhão
fosforescem as luas do antro pai
recaindo seus filhos na confusão
lúmen adentro que é como dizer
da fogueira de vísceras revivendo
as fúrias entre ser e ter até morrer
entre dúvidas dum ventre temendo
lúmen adentro às lavas do tremor
são as sombras que clareiam agora
todo o interior imaginado em flor
e que rogam sem género nesta hora
um renovado antro de milagres vivos
onde libertar todos os sonhos cativos
MÚSICA
quando à noite só me junto
à minha solidão entre rostos
e me atiro à cama já defunto
prisioneiro entre desgostos ―
entre música e sobras de som
ressoando o trabalho por dom
minha casa de alegrias e vurmo
confuso nessa intermitência vital
ou filosofia feral pela qual durmo
fingindo arredar-me daquele mal
minha solidão, minha persona ―
a música cobre-me como manto
sem vurmo ou alegrias, minha casa
onde no escuro descubro o espanto
andantino
POÇO
procuro aquela voz no poço
como água na palma da mão
água tão fresca a doer no osso
o tanto quanto beber eu posso
em humilde gesto de confissão
água que é nome e seu descanso
verdade em lenço numa canção
vergando subtil o pinheiro manso
verdejando o que em mim canso
em humilde gesto de confissão
confesso-me bebendo do poço
reverberando nenhuma tradição
à procura dessa voz em remorso
como que substituindo o coração
MIODESOPSIA
andrajoso céu que é o meu
um azul em farrapos à luz
duma redoma condenada
tão injustamente ultrajada
e a mínima nesga que seduz
não é senão uma promessa
raiando a quem não interessa
mínima nesga para outra luz
tão sobejamente recalcada
e nevroticamente decalcada
à espera dum sobressalto azul
já lavado pelo branco barroco
seja o humor vítreo um ovo oco
como derradeira saída deste paul
METAMORFOSE
que a falha no corpo se espalha
plos escafandros da imaginação
e intenta linha a linha na carne
o borrão ― pouquidade amealha
a falha alimenta a fome corporal
de parte a parte a arte indigente
e o pão nada tem a ver com o mal
porém a carência agudiza a mente
fome extrema agiliza os músculos
uma destreza aglutinadora de clarões
trabalhando energia nos corpúsculos
de falha em falha mutam-se electrões
que o corpo faz-se ausência a ausência
amálgama onírica que rasa a demência
PALATO
do alto planalto do palato
as fontes em vertentes
com que me ato e desato
atravessando as torrentes
percorrendo as cidades
a contristar por desacato
estranhas ambiguidades
o foco no gosto será oco
se a boca viuvar de senso
embevecendo esse louco
surgido entre o incenso
eu entre eus me difundo
oco será o foco tampouco
entre vértices do mundo
MÃO
todos os sulcos estão na mão
todos os sulcos do caminho
[nervuras apagadas de erosão]
estão na mão ― rio sozinho
com a incompletude de um eu
achando aforismos no breu ―
todos os sonhos estão na mão
máscara em contínua erosão
a mão como planta invasora
ou vibrátil peixe encantatório
das noites privadas d’aurora
como mais alto promontório
pode uma mão rogar um rosto
quando vassalo dum desgosto?
VÉU
ténue sopro de fímbria e som
em que transparece o dom ―
se incolor este véu que tensão
pode abrir esse casulo violeta
numa fusca e tão brusca ilusão
a forçar tanto o cansado coração
até que sobre si ele vire espoleta
da mais triste e lúgubre canção?
antes um mar de névoas e alegria
pela dor e erosão tão vivificante
rindo a ferrugenta trave do dia
sabendo podres as palavras diante
tavener do violoncelo respirante
diante gestos-ave de casals e suggia
MÉDIUM
aflitivos ecos de estribilhos
esmagam-me com vermelhos
pensamentos entre os trilhos
esmagam-me sob escaravelhos
mas escaravelhos barulhentos
que dissolvem teias às almas
a deambularem seus portentos
cá dentro ― almas marialvas
que se travestem de biologia
e neste corpo estudam reologia
― irei procurar escutar o interior
imo de cada ser a ressoar em mim
porque num alheio ínfimo estertor
verei entre os espelhos o meu fim
moderato
OLOR
vagueia-me na cabeça um olor esquecido
um barulho sepulcral de portas e ameias
angustiante possibilidade de estar ferido
mas anestesiado por soporíferos e teias
― será suor caramelizado de sexo antigo
acordando em mim o que não se resolve?
artifícios de chuva amena rumo ao abrigo?
vistorio entre fogos o que o amor revolve:
mãos, boca, cabelos | uma tensão em fresta
o que revela em sílabas do tempo este olor?
infância, fúria do amargor fresco de giesta?
ou será apenas o cheiro da ausência em dor?
atormenta-me a cabeça este olor esquecido
angustiante possibilidade de eu estar ferido
DUENDE
por um punho em sangue a boca aflora
distorcendo o horizonte a sal e verdade
nunca a planície clareou como veias fora
da sementeira de ventos e voos da idade
acende o corpo a gota dum álcool velho
numa conversa de frutos ao redor do osso
medo a medo citando rácios ao vermelho
que um duende encontrará em alvoroço ―
o desenho d’água no gesto verde da hora
revela as nervuras dum mênstruo febril
a reunir reinos da desmesura d’outrora
no lento afastamento carnívoro e pueril
da artéria à planta entranhada no pulmão
tudo canta a memória de perder um chão
CANTADA
, ondas curvam meu caminho
eu aprendo com o teu cabelo
aprendo a luz de estar sozinho
esguio curvo-me quase exilado
de mim | é-me difícil sabê-lo
entre fugas milagrosas do fado
tanto fogo | dá pena perdê-lo
sei da água deslocada no rosto
de toda essa água tua a olhar-me
beijada por sombras do sol posto
distante febre que irá tocar-me
que luz é esta de estar sozinho?
sigo o teu negro e farto cabelo
se ondas curvam meu caminho
DESAMOR
quem cego ama dentro só se desama
esvaziando o nada em rosas e tulipas
como raiva febril às paixões de cama
não distinguindo o coração das tripas
porque os rios não bebem dos mares
pelo contrário, os mares engolem rios
amante a amante sobra amor plos ares
azedando cerebralmente em desvarios
quem ama quem se desama é desamado
secando o leito de pedras semipreciosas
ao mínimo ímpeto crendo-se desalmado
e nisto desencontram-se iguais os opostos
dias, semanas, meses | estações perigosas
declaram-se amantes solitários indispostos
IMPASSE
a palavra pende no gesto
mas o gesto nada ainda diz
nenhum movimento lesto
compreende réu ou juiz
se uma frase pode prender
num olhar que fenda a razão
se conquanto em si discorrer
um cabelo escuro em aluvião
tanto silêncio | tanta verdade
róseo latejar de lábios, rosas
se no tempo se escoa a idade
de que adiantarão as glosas?
quando areias sanguíneas aleijam...
porque duas bocas não se beijam
RISOS
que riso escarlate diz de ti
duende arredando as flores?
e qual o tom do riso quando vi
entre os rododendros
quedos malabarismos, amores?
que rio da infância
alimentou essa gargalhada
de vítreo som e siso?
e a que distância
bolores e água funda
tornam frágil o teu sorriso?
ri antes como o sol cresce
tudo o que perguntei
ignora ou esquece
LÁBIOS
, trouxe-te perfumes do bosque nos meus dedos
tenho amiúde pensado no burlado doutor fausto
e eroticamente tentado pergunto-te entre medos
a que sabem os teus lábios depois do holocausto?
fugir à notícia enovelada do mundo a cru dia a dia
pronto atropelamento mental do stress e também
de vírgulas adoentadas e de sombras reais de vigia
a que sabem os lábios depois da praça de tiananmen?
sendo a vida receosamente pintada a cada alvorada
com energias a transitarem de membro a membro
pergunto-te então por efemeridade minha amada
a que sabem os lábios depois do 11 de setembro?
― não me respondas, beija-me, a fé se desmorona
porque a maldade é mais viral do que o corona ―
NOITE
que cartas nunca escritas secam os pulmões?
um nome apaga outro nome ― a noite sabe
o que vezes sem conta roubou ar ao camões
antes pão invisível em miséria que não acabe
o que acontece entre dois pulmões afastados
a noite sabe a pele entre corpos fustigados ―
a vigília pesando na cabeça os frutos escuros
na impressibilidade da paixão sujada de tinta
a visão das seivas pesando sangues inseguros
ninguém amando saberá o que o amor pinta
a noite traz pelas palavras essa seda escarlate
secando pulmões ao coração que ainda bate
na impressibilidade da paixão sujada de tinta
ninguém amando saberá o que o amor pinta
FORTUNA
se entorpece o pedido de lua
escura se cara | ácida se coroa
agora nesse pátio recuperando
fôlego a fôlego uma musa nua
que a ideia lentamente esboroa
como essa mão vai queimando
em aura de sombra que amua
num rápido pedido outro à toa
rosto a rosto rindo e revoltando
o passo em falso no meio da rua
que por si só já não é coisa boa
se entre o sal da noite esperando
porque por amor se pede a queda
se do nojo tão em si só é a moeda?
TEMPO
foge o chão antigo que se diz a chorar
e ao redor de tudo à tua volta rodando
a paisagem um rosto | a culpa a doar
uma e outra vez como que suspirando
que o tempo não é nada nas tuas veias
nem cor ou sabor porque nada semeias
foge o chão antigo que se diz a chorar
fazer desse tempo uma coroa de sorrisos
o cheiro de tecidos na violência dos dias
volta como maré entre gestos imprecisos
o tempo feito de pólen e sal em que ardias
nos sonhos como luz num papel nacarado
fazer desse tempo uma coroa de sorrisos
do medo de perder ideia de te ter amado
DESQUITE
o inverno tosse verdades ao amor
nenhuma folha de papel é limpa
vida cítrica ou amarga tal o dissabor
real nenhum sobressai na desilusão
porque artificial é sempre a canção
o inverno oferece árvores negras
possível alimento do pensamento
porém subverte todas as regras
― pois o frio interregno ludibria
aprisiona um coração noite e dia
: cartas cheias de neve sanguínea
vulcão amordaçado sem tremor
silêncio agraciado sem insígnia ―
o inverno tosse verdades ao amor
POMAR
porque é impossível negar o fruto
daquela noite em alvoroço no peito
um amor que perco quando o matuto
insondável ímpeto que gerou perfeito
o fruto sem nome ou outra devoção
fruto sou eu apodrecendo devoluto
[fogo remoendo línguas de luz a eito]
a dúvida dá má terra, sombras virão
rever o corpo membro a membro e
colher aromas nas falas em confusão
, onde te procurar em mim diz-me
cansa-me o suor da noite abandonada
as mãos morrem como árvores secas
não há fruto, não há amor, não há nada
SILVADO
suspenso entre as silvas, bocas e dentes
que de mim saberei de espinhos e amor
se desnuda a pele rasga-se entre gentes?
e quanto mais cegar-me-á a minha dor?
esses quadrados de céu azul são doentes
esquadrinham a pele dum último calor
os espinhos escrevem no corpo o seu ócio
e eu sangro e canto o sol acompanhando-o
suspenso ainda, do solstício ao equinócio
de dispensar o amor embora entranhando-o
amar cego parece ser sempre mau negócio
de depreciar esse amor porém sangrando-o
e o que quererei saber de espinhos e amor
se quanto mais me cego maior é esta dor?
EROS
percebeu que não poderia lavar no mar as mãos
[o deserto devora-lhe ainda cruelmente os rins]
carregando cicatrizes do sexo e outras bênçãos
nesse périplo em busca do orvalho das virgens
rosto de terra e barros antigos aberto à maresia
um rosto escavado por incompreensíveis choros
ou orla infinita que acaba como desaparece, fria
a miríade de leitos abandonados e tantos morros
milímetro a milímetro eros tacteia a pele-poesia
e do terreno perfumado da pélvis colhe os soros
percebeu que a água morre e que ela o irá matar
desaparecendo todo o pólen do jardim de urinas
e a memória da glande: flor do ânus, vulvas finas
, percebeu que não poderia lavar as mãos no mar
vivace
POEMA
acontece lentamente
porém como um sopro
inteiro e sem escopro
perdida fuga da mente
encontro sem interlocutor
acontece bem no interior
como órgão entre os demais
entre silogismos e filosofias
nunca sabendo bem quais ―
ovo alquímico | ovo estranho
espanto forjado no sangue vivo
afirmando-se ainda sem tamanho
na reinvenção de um espasmo
que da carne se julgava cativo
EQUÍVOCOS
meia verdade ou a dança
de criar mal-entendidos
que engrossam a cabeça
com espelhos fendidos ―
como identificar então
esta miríade de enganos
a confundir olhar e visão
de amantes quase insanos?
mas como amar errado
se comparação a morte
de qualquer outro lado
avesso íntimo da sorte?
e dança a meia verdade
sem nenhuma piedade
COISAS
sou como estou
objecto deposto
disposto, indisposto
objecto entre objectos
assunto que não
se encerra
porque então
gente é recipiente
e se esvazia dia a dia
do útero à terra
sou este objecto vivente
ora estanque ora andante
que da sombra amante
se assume coisa falante
LIBIDO
a pressão no abdómen
revolve um grito oco
que da boca ao lúmen
se propaga em bloco ―
que força ou energia
seduz loucas musas?
que remanesce à porfia
das quarenta mil tusas?
mas se cada toque desloca
tectonicamente frágil falha
que órgão essa paixão aloca
no que o cérebro baralha?
o manto do hedonismo
cobre-me como abismo
DÁDIVA
um cristal de lágrimas e suor
brilha no olhar de quem vive
repete em luz misterioso labor
aquiescido milagre do esperante
mendigo das areias ante a abside
lacre de lágrimas a mero favor
ou cama de pedra transumante
onde se estira perfumada vide
esguia serpente vegetal do amor
tatuado de pecados capitais ―
venho falar-vos da água emocional
que irrigando por dentro os cristais
abre ao sol uma magnólia de gesto
de vínculo obscuramente virginal
FOGO
vinco o vínculo olhando
de mover a almofada fria
com desmaiados dedos que
a alvorada vai devorando
como amor em almotolia
com agudo sílex dentro de mim
[que o ângulo vai absolutizando]
vinco na carne o que não meu
me olha em dor possível fim ―
agradeço este fogo a prometeu
o vínculo efémero de eterno céu
a confusão das lavas, o músculo
o reatar contínuo destes dedos no
corpo entre aurora e crepúsculo
VÉNIA
e no vento coronário
uma senhora de plumas
intercede por mim
[ser vivo estacionário]
entre as espumas
com as quais me desavim
senhora de rosto roxo
com um rendilhado
de súplicas termais
e no ombro o mocho
a ela atento e dedicado
em todos os sinais
entre veias este coração
curva-se em contrição
adagio
OLVIDO
busco a forma indelével de passos
adejando na sombra essa fúria interina
na ínclita inclinação daqueles traços
gostos de luar à mercê da boca viperina
não é a foz ou o desalento que raia
nem fome nem sede | mentira do cristal
antes o grito de gestos de nenhuma laia
abrindo entre os sismos alegorias ao mal
rara essa pena de vultos bruxuleantes
[descem águas róseas das mãos ao astro]
raros os espasmos cronológicos cantantes
sussurro a sussurro a voz de inaudível sorte
barulhos de sombra nesse insólito alabastro
trabalha bem o esquecimento com a morte
LENHO
pelo carbúnculo meço a doença
esquecidas as vozes entrosadas
no lenho corporal como crença
esquecidas porque incarnadas
pelo carbúnculo meço a doença
além da cor e do seu movimento
o lenho prende toantes paisagens
músculo pensante em tormento
trocando os sonhos por miragens
além da cor e do seu movimento
| esquecidas as vozes entrosadas
| esquecidas porque incarnadas
o lenho prende toantes paisagens
trocando os sonhos por miragens
EXÉQUIAS
roubar ar a mortos não é saída
implodir será se sob anonimato
ronda a ronda esfria a poesia lida
ronda a ronda neste último acto
pulmões como livro enterrado
bibliotecas húmidas de aromas
labirintos profundos | chão pisado
paixões anquilosadas | hematomas
, ressuscitar? o que cresce do nada?
que azul comparar com o encarnado
se a fome de som por dentro brada?
que enfado lírico cerzir como mortalha
desde o amado antro ao sangrante lado
se todo o coração se esfuma em poalha?
CORVOS
da fina cutícula do medo ou ressaca
crocitam-me os corvos da dissolução
escurecendo as nuvens de adrenalina
imagens visitadas por uma carne fraca
irada com a carótida e com o coração
imagens a causticarem a passo a retina
medir a palmo o pranto negro-cinzento
por minutos manter a ilusão de respirar
num bago de tempo alheio ao necrotério
finjo não saber deste ser-de-mantos lento
que desde o primeiro sopro se veio alojar
nos tenros pulmões, meu real eremitério
animal de espanto brusco eu ou o corvo?
ele em mim, eu nele ― vida ou estorvo?
DEMÓNIO
perfil perigoso do drama com olhos vermelhos
um frio com gatilhos de abismo ou de espelhos
esquinas pejadas de espectros vindos do basalto
o frio das esquinas tem a ver com o sobressalto
a luz de natureza esburacada de prantos a saber
em melodias, sangue mesclado de rocha e medo
a luz inquieta de barulhos a assoberbarem o ser
com fotossíntese demoníaca adentro o arvoredo
«ouves os mortos nesta enseada?» sim, a alegria
da morte como apagamento, eu quase os escuto
em vénulas que transitam no vento por bizarria
sinto-os como pó inconstante entre flor e fruto
frio amante de se fazer labareda azul ofuscante
esse frio erróneo que tanto ludibria o demónio
RUA
, à procura duma rua perdida entre travessas
nem gps ou polícia [triângulo das bermudas]
rua mítica já em alcatrão e o nome às avessas
se outro nome limpo ou branco pelas ajudas ―
o poeta escreve com o seu sangue toda a vida
enraizada numa juvenília vivida nessa sua rua
[memórias e estórias em erosão degenerativa]
o poeta morre e a desvelo deixa a poesia nua
e sua rua confusa na cartografia estremecida
[ao que a morte e o esquecimento nos habitua]
everybody dies, surprise, surprise canta billie eilish
ruas mudam de nome e pouco conta a avenida
vem à memória o que teixeira de pascoaes disse
sempre, no mesmo corpo, a mesma doença: a vida! ―
CAFÉ
move-se o espectro em cada reflexo no café
um espelho embrulhado de retinas por abrir
incompleto sistema de renúncias de uma fé
que desdiz mais do que quer dizer ou intuir
complexo ser de nuvens negras em relevo
ou xadrez ominoso de hormonas assassinas
ao café a estória do espírito e duplo coevo
com fugazes nuances de sombras sibilinas ―
que presença se restaura no halo repentino
duma conversa em que se crê matar o sino?
a vagem de plasma onírico, o seu núcleo duro
mística viagem inversa em que se perde o pé
ou ilusão de negra pureza cristalina do futuro
falará o espectro por um cubo de gelo no café?
SALSUGEM
quando soubeste que tinhas morrido
não escoaste por remorso esse sangue
que te enlouquecia como um vagido
errático e semântico, o teu último dia
branco e limpo, cada vez mais exangue
sobre as esquinas que um texto irradia
quando soubeste da tua própria morte
não escreveste o que acharias absoluto
poema sem a noção de poema ou norte
já não passeias a dor nos linhos da noite
nem assombras diários | tédio devoluto
e já não tens medo que alguém te afoite
talvez lamentes apenas teres de abandonar
os aromas que crepitam na linha do mar ―
PARAGEM
olhos cavos cavados quase poços de água
olhos quase covas | ovas podres de mágoa
a boca a desdizer os olhos grandes do nada
a boca fendendo e fedendo para a estrada ―
à espera do autocarro a vida toda ligando
à pessoa convexa da sua geração e imagem
à espera na conversa à distância esperando
à beira da estrada conversando na paragem
que fundura terão os olhos na morte viva?
que astral negro ridicularizará o alcatrão?
se linfa e sangue ladeiam esta alma esquiva
que plano maior justificará tamanha aflição?
olhos cavos cavados | olhos grandes do nada
à distância esperando a vida à beira da estrada
EROSÃO
ver ou olhar que escolher? visão interna
da força isenta de intentos e soberania?
que escolher quando o espírito inverna
procurando entre artifícios a ventania?
, como se movimentará dentro o vento
entre os órgãos no exercício da erosão?
donde vem ele tido como emolumento?
será o ar engolido entre palavras de pão?
por vontade gravítica das muitas cruzes
mão impalpável viajando no rio apolíneo
circundando movimentos de todo porte
: erguendo-se feixe miraculoso de luzes
que atributos carrega o vento sanguíneo
esse sopro condigno de vida ou morte?
TRONCO
e no momento em que a fala dos corvos apodrece
implodindo a lentescida árvore d’ínvios negrumes
acontece uma escala em carrocel que se entorpece
logo em clareiras do sangue calado entre cardumes
, implode a árvore como um raio dentro da boca
nem que com a água converse amnésico esse céu
que confunde olhos com relâmpagos e cores troca
por vazios do vazio que o esvaziamento esqueceu
. arestas vivas nas artérias ou malogrados arabescos
― o mapa das águas distancia-se do mapa das almas
a conversa entre manchas abre os alfabetos grotescos
onde os corvos grasnam palavras | larvas nada calmas
em ácida sonolência, tanto perdida como encontrada
o negro tronco do discurso apodrecido rente ao nada
PASCOAES
perambulam os penedos na planície
arfam no pensamento se desfocados
perambulam nos olhos desta espécie
a ostentá-los como órfãos deslocados
[penedos como palavras sem sentido]
as mãos moldam o ar frio da solidão
criam palavras por um sopro ferido
numa mesa em são joão de gatão ―
e sendo um penedo em vida suicidado
pascoaes mantém o seu sopro em brasa
volvendo sombras depois de sepultado
: que mistério insone de tão ligeira asa
esgrime esse sangue ao marão bradado
arfando ainda em ecos toda uma casa?
HÚMUS
uma massa bêbeda de angústias a revoar
plano a plano os lodos da fala num cantil
as sete mortes da virgem deverão continuar
ascendendo à morte do bom deus por ardil
que destrinçar águas entre outros líquidos
ainda no domínio das sombras em rebelião
é tarefa de mortos no corpo de vivos lidos
ao avesso nos lodos confusos da putrefacção
o húmus limpo da vontade de arrasto estelar
pontilhado de bactérias e vírus como bateria
plano a plano essa massa bêbeda sôfrega de ar
entre animais e plantas a luz de pura serventia
ou húmus que em movimento anseia borbotar
flores-espasmos no sangue drenado por magia
ESTRELA
aonde a estrela que o sangue faz brilhar
por cada faísca momentânea que lá fora
me esforço em trabalhos para a apanhar?
, que desmesura estranha este sentimento
de perda antes de qualquer haver em roda
de qualquer núcleo a pulsar ou pensamento
tenho os meus membros inferiores afastados
com os meus braços nus a abrirem-se alados
― abraço-me a mim próprio como mundo
cumprimento as árvores e o céu e os animais
da ponta dos dedos à cabeça vejo o rio fundo
longínqua a estrela que pulsa dentro de mim
sei-a espasmódica cá dentro, sei-lhe os sinais
a sua luz calada como energia até ao meu fim